domingo, outubro 30, 2016

REFLEXÃO PARA O XXXI DOMINGO DO TEMPO COMUM – LUCAS 19,1-10 (ANO C)



O Evangelho deste XXXI Domingo do Tempo Comum, Lucas 19,1-10, nos indica que o longo caminho de Jesus para Jerusalém está chegando à sua fase conclusiva. É sempre oportuno recordar que esse caminho não é apenas um percurso físico, mas muito mais um plano catequético, teológico e espiritual apresentado pelos evangelhos sinóticos, sendo que é Lucas aquele evangelista que mais dá importância a esse caminho.

É importante, como sempre procuramos fazer, contextualizar o texto para, de fato, captarmos a essência de sua mensagem. Trata-se de um episódio exclusivo do Evangelho segundo Lucas, a conhecida história de Zaqueu, um personagem bastante controverso, paradoxal e conhecido.

O cenário da cena é a cidade de Jericó, como afirma o texto, “Jesus tinha entrado em Jericó e estava atravessando a cidade” (v. 1). Trata-se de uma cidade muito significativa para a história do povo bíblico. Situada a aproximadamente 27 km de Jerusalém, contrastava com a capital pela situação topológica e teológica. Enquanto Jerusalém estava a cerca de 700 metros acima do nível do mar, Jericó estava a quase 300 metros abaixo do nível do mar. Na luta pela posse da terra prometida, sob a liderança de Josué, um dos acontecimentos principais foi exatamente a conquista de Jericó (cf. Js 5,13 – 6,27). Do mesmo modo, no Evangelho, em seu êxodo, Jesus também realiza uma grande conquista em Jericó, salvando o que estava perdido (cf. vv. 9-10).

Naquela cidade, havia “um homem chamado Zaqueu” (v. 2a), cujo nome significa ‘puro’, o que parece ser mais uma ironia do autor do terceiro evangelho. O significado do nome do personagem contrasta completamente com as suas características apresentadas: “chefe dos cobradores de impostos e muito rico” (v. 2b). Ora, se um simples cobrador de impostos já era considerado impuro e um ladrão profissional, podemos dizer que Zaqueu era um ‘chefe de quadrilha’, portanto, um homem desprezível pela sociedade e visto como um caso perdido pela religião judaica. Pela sua segunda característica, a riqueza, Zaqueu também estaria excluído da comunidade dos discípulos, afinal, Jesus tinha acabado de dizer que “é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no reino de Deus” (Lc 18,25).

Embora sua situação fosse tão desprezível, religiosamente falando, Zaqueu era um homem inquieto que buscava um sentido para a sua vida e não se deixava abater pelos rótulos que carregava, por isso, “procurava ver quem era Jesus” (v. 3a). Certamente, essa curiosidade não era à toa! Vivendo completamente segregado pela religião, devido sua condição de pecador público, já tinha escutado falar que havia um mestre que, por incrível que pareça, acolhia pecadores e comia com eles (cf. Lc 5,29-32).

O desejo de Zaqueu de ver quem era Jesus oponha-se a sua estatura, pois “era muito baixo” (v. 3c), por isso, facilmente era sufocado pela multidão. Certamente o evangelista não mediu com exatidão a altura de Zaqueu, apenas constatou o modo como ele era visto pelo povo que o olhava de cima para baixo, ou seja, com olhar de gente melhor e superior. Portanto, Zaqueu era baixo aos olhos dos outros, principalmente das pessoas religiosas de seu tempo. Era o olhar e o julgamento das pessoas religiosas, tanto da religião judaica quanto do grupo de Jesus que faziam de Zaqueu uma pessoa pequena. Certamente, devemos pensar se também em nossos dias muitas multidões e grupos não sufocam a visão sobre Jesus e até impedem a muitos de vê-lo.

Um aspecto importante no texto é a consciência de Zaqueu: ele reconhece que sua estatura, realmente, não está à altura de Jesus, mas isso não diminui seu desejo de vê-lo. Tinha plena consciência de que necessitava crescer, ou seja, mudar de vida. Por isso, busca novos caminhos, expondo-se ao ridículo: “correu à frente e subiu numa figueira para ver Jesus que deveria passar ali” (v. 4). Ele procurou uma estratégia própria para aproximar-se de Jesus e vê-lo, já que se dependesse das vias oficiais não conseguiria. Impossível não pensar no lado cômico da cena e nas consequentes risadas que despertou.
A reação de Jesus é surpreendente, completamente contrária à dos demais. Ao invés de olhar com desprezo para a posição patética de Zaqueu em cima da árvore, Jesus vê exatamente o desejo de conversão de um homem sedento de sentido para sua vida, por isso, “quando chegou ao local, olhou para cima e disse: Zaqueu, desce depressa! Hoje eu devo ficar na tua casa” (v. 5). Enquanto a sociedade o via de modo inferior, ou seja, olhava para ele de cima para baixo, Jesus o vê na sua dignidade, olhando para cima, dando-lhe a ordem de descer depressa, colocando-o em situação de igualdade com os demais. Assim, Jesus o inclui, diz que ele é uma pessoa como as demais, tendo, inclusive, um nome.

Além de trazer Zaqueu para o meio, ordenando-lhe que desça da árvore, Jesus surpreende mais ainda dizendo “hoje devo ficar na sua casa” (v. 5). O aspecto temporal aqui é muito importante, expresso pelo advérbio hoje, em grego  sh,meron – semeron. Trata-se de uma palavra chave para a teologia de Lucas. Realmente, são muitas as ocasiões em que se expressa o ‘hoje’ de Deus no terceiro evangelho: no nascimento de Jesus, os anjos anunciaram aos pastores “hoje, nasceu para vós um salvador” (Lc 2,11); no início da sua vida pública, na sinagoga de Nazaré, Jesus diz “Hoje cumpriu-se esta Escritura” (Lc 4,21); na cruz, é dada a promessa a um dos malfeitores: “hoje, estará comigo no paraíso” (Lc 23,43). Portanto, é hoje, especificamente que a comunidade é convidada a encontrar-se com Jesus. Aquilo que ontem era negado, pela religião oficial, não pode esperar para amanhã, deve ser hoje!

É interessante que Jesus não diz que quer ser hóspede de Zaqueu, mas que “deve ficar na sua casa”. Isso só reforça a urgência da experiência do encontro. É inadiável, tem que ser “hoje”. Por isso, usa-se o verbo grego mei/nai – meinai – cujo significado é permanecer ou ficar. Não se trata apenas de passar por lá, mas permanecer, ficar. É o mesmo verbo que os discípulos de Emaús usam no imperativo quando pedem “Fica conosco, Senhor!” (Lc 24,29). Portanto, não se trata de uma simples e passageira visita, mas de uma presença que permanece, por isso, é eficaz e transforma.

Ao sentir confiança nas palavras de Jesus, a curiosidade de Zaqueu foi transformada em alegria (v. 6), outro tema caro para o terceiro evangelho. O encontro autêntico com Jesus é marcado exatamente pela alegria verdadeira, porque Ele não dirige um sermão cheio de normas e julgamentos, mas simplesmente acolhe e olha com um olhar único de quem não condena, não julga nem discrimina.

À alegria do pecador acolhido e transformado pelo encontro com Jesus, contrasta a reação das pessoas religiosas que se sentiam mais dignas e não toleravam um Deus que ama a todos sem distinção. Por isso, houve murmúrio, como vem empregado no texto o verbo grego diego,gguzw – diegonguizô, usado três vezes por Lucas para expressar a reação dos opositores de Jesus, principalmente os fariseus (cf. Lc 5,30; 15,1-2; 19,7). Esse verbo é sinal de reprovação às atitudes de Jesus, e se nas outras duas vezes é empregado especialmente para os fariseus e doutores da lei, aqui expressa uma reprovação generalizada: “todos murmuravam, dizendo: Ele foi hospedar-se na casa de um pecador” (v. 7). A não aceitação à postura inclusiva e acolhedora de Jesus é própria do farisaísmo, mas as vezes consegue contagiar também as multidões, infelizmente.

Para Jesus, não importava a reação dos considerados ‘puros’ do seu tempo. O que de fato lhe interessava, era a atitude nova do homem transformado pelo seu encontro, como Zaqueu que “ficou em pé e disse ao Senhor” (v. 8a). Essa é, realmente, a imagem do novo homem. A imagem do homem “em pé” significa que ele está vivo, é uma pessoa autêntica e consciente, portanto, digna, como estava Zaqueu, renovado pelo encontro com Jesus. Foi esse encontro que lhe deu capacidade para tomar uma séria decisão em sua vida: dar a metade dos bens aos pobres e devolver quatro vezes mais o que tinha roubado (v. 8).

O homem novo e puro que nasceu do encontro de Jesus com Zaqueu inaugura a salvação no ‘hoje’ da sua vida. A salvação, de fato, acontece sempre que alguém faz um encontro pessoal com Jesus e deixa-se transformar por esse encontro. A atitude de Zaqueu, que de ladrão e rico que era, passou a partilhar e usar corretamente seus bens, em favor dos pobres, mostra que, de fato, “para Deus nada é impossível” (cf. Lc 18,27). Ou seja, a salvação é também possível para os ricos, desde que percebam a necessidade dos pobres e abandonem à lógica do acúmulo abrindo-se à partilha e a generosidade. É assim que Jesus procura e salva o que estava perdido, como Zaqueu no meio da multidão.


Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues

sábado, outubro 22, 2016

REFLEXÃO PARA O XXX DOMINGO DO TEMPO COMUM – LUCAS 18,9-14 (ANO C)


Ainda no longo caminho de Jesus para Jerusalém, a liturgia deste XXX Domingo do Tempo Comum nos oferece, como texto evangélico, a famosa parábola do fariseu e o publicano (Lc 18,9-14). É a segunda parábola do capítulo dezoito de Lucas e uma das mais conhecidas de todo o evangelho. Assim como a primeira, a do juiz iníquo e a viúva (cf. Lc 18,1-8), a parábola de hoje está inserida no ensinamento de Jesus sobre a oração, embora ela não se limite apenas a esse tema.

Em linhas gerais, a parábola refletida domingo passado (cf. Lc 18,1-8) nos convidava a rezar sempre e sem desanimar, lutando e suplicando a Deus por justiça, a partir do exemplo da pobre e injustiçada viúva. A parábola de hoje nos chama a atenção sobre a maneira correta de rezar, ou seja, de dirigir-se a Deus na oração, a partir da contraposição de dois personagens. Nela, prevalece o estilo típico de Lucas de apresentar personagens com características e comportamentos completamente opostos para despertar a atenção do leitor, levando-o a fazer opção por um dos lados.

Diante de qualquer ensinamento de Jesus, principalmente quando em forma de parábola, é importante considerar quem são os destinatários primeiros. É claro que seus ensinamentos serão válidos e atuais para todas as gerações, mas não podemos perder de vista o contexto específico em que se deu. Por isso, é importante recordar que muitas vezes os evangelhos afirmam: “Jesus disse aos discípulos”, “Jesus disse aos fariseus”, “Dirigindo-se às multidões, Jesus disse-lhes”. Se mesmo quando os destinatários são determinados, o ensinamento os transcende, ou seja, serve para todas as pessoas e em todos os tempos, muito mais quando não vem mencionado um destinatário determinado, como no caso da parábola de hoje.

O texto diz que a parábola foi contada para “alguns” (v. 9). Certamente, aqui está um alerta para nós, leitores de hoje. Pelo desenvolvimento da parábola, a tendência é imaginar como destinatários, apenas os fariseus. Porém, também os discípulos estavam incluídos, até porque, não são raras as vezes em que Jesus chama-lhes a atenção por não assimilarem os valores do Reino. Na verdade, com os fariseus Jesus já nem se preocupava; o que Ele queria mesmo era prevenir os discípulos para não se deixarem contaminar pelo “fermento dos fariseus” (cf. 12,1). Portanto, também nós, discípulos e discípulas de hoje devemos nos incluir nesses “alguns” para quem a parábola é dirigida.

Feitas as devidas considerações iniciais, voltemo-nos atentamente para o texto do evangelho. Na versão da liturgia, a parábola é introduzida assim: “Jesus contou esta parábola para alguns que confiavam na sua própria justiça e desprezavam os outros” (v. 9). No entanto, a tradução mais adequada seria: “Jesus contou uma parábola para alguns que, convencidos de serem justos, desprezavam os outros”. De fato, o desenvolvimento da parábola vai apontar que, aqueles se consideram justos, tendem a desprezar os outros exatamente como consequência da qualidade de justos. O desprezo pelos outros é consequência do sentir-se justo. Eis o problema de “alguns”: desprezar os outros a partir de uma visão errada de Deus e de justiça. Mas, não pensemos que havia “alguns” assim somente no tempo de Jesus. Os alguns para quem a parábola é dirigida está dentro de cada e cada uma. Trata-se de um alerta de Jesus para a comunidade estar sempre atenta à tendência de autossuficiência, presunção e orgulho.

O convencimento de ser justo pode levar a pessoa a duas consequências anti-evangélicas: o desprezo pelos outros e a falta de confiança em Deus. É exatamente isso que Jesus quis combater com a parábola do fariseu e o publicano. Assim identificados os destinatários, olhemos para os personagens: “Dois homens subiram ao templo para orar: um era fariseu e o outro publicano” (v 10). Os dois personagens antagônicos encontram-se em situações de convergência: no mesmo lugar, o templo, e fazendo a mesma coisa, rezando.

A princípio, parece tudo muito óbvio: dois homens foram ao templo para orar. O uso do verbo subir, em grego avna,bainw – anabaino, além de indicar as circunstâncias geográficas do templo, na parte alta de Jerusalém, indica também a atitude da pessoa orante: elevar-se ou subir para encontrar-se e comunicar-se com Deus faz parte da mentalidade bíblica. Embora tenham ido paralelamente, é isso que o evangelho nos faz entender, eles já vão separados pela condição social e religiosa. O primeiro, fariseu, era frequentador assíduo do templo, pertencia à corrente religiosa de maior fidelidade à Lei em todo o Israel. Os fariseus, cujo nome significa separados, observavam os preceitos da Lei em seus mínimos detalhes e gozavam de grande simpatia popular, pela vida religiosa exemplar que levavam e pela prática das boas obras.

O segundo personagem, o publicano, era um cobrador de impostos, e, portanto, um colaborador direto do poder opressor, o império romano. Gozava de uma péssima reputação popular, e com razão, pois além de cobrar as taxas exigidas pelo império, as quais já eram altas, ainda as aumentava para tirarem suas comissões. Assim, enriqueciam ilicitamente, pois recebiam o salário pelo trabalho, e ainda roubavam. Eram odiados pelo povo e completamente excluídos da religião, pois a condição de servidores do poder dominante não permitia que observassem a Lei de Deus. Eram considerados ladrões profissionais e pecadores públicos. Portanto, o publicano da parábola carregava consigo todos estes estigmas.

A parábola não se limita a dizer que os dois subiram para orar; diz também o conteúdo da oração de cada um (vv. 11-13). E, é exatamente a atitude e o conteúdo da oração de cada um deles que vai determinar o desfecho final da história. Como de praxe, a oração do fariseu é bastante longa (vv. 11-120, uma espécie de prestação de contas de suas ações. É uma ação de graças, mas não pelas obras de Deus, e sim pelas suas próprias obras, um louvor a si mesmo. Parece até que o fariseu não acreditava que Deus conhece e vê tudo!

Por ser um dos que se “consideravam justos” (v. 9), o fariseu desprezava os outros, comparando sua vida de fiel observante com os pecados dos outros: “ladrões, desonestos, adúlteros, como aquele publicano” (v. 11). Ele não confrontava sua vida com o projeto de Deus, mas com a vida dos outros, imaginando com isso, receber crédito da parte de Deus.

Na sequência da oração, ele apresenta como é bom observante da Lei: jejuava duas vezes por semana, e pagava dízimo de toda a sua renda (v. 12). Na verdade, ele fazia mais até do que era determinado pela Lei; enquanto o jejum era exigido apenas uma vez no ano (cf. Lv 16,29), o fariseu ele jejuava duas vezes por semana, como faziam os féis mais tradicionalistas. Esses dias eram as segundas e quintas-feiras, como recordação da subida e descida ao monte de Moisés para receber a Lei. Enquanto o dízimo era exigido apenas dos principais produtos, trigo, vinho, azeite e primeiras crias do rebanho (cf. Dt 14,22-27), ele pagava de tudo. Por isso, considerava-se perfeito e irrepreensível. Foi orar dizendo a Deus que era justo, e quem se considera justo não sente necessidade da justiça de Deus.

Já o publicano, “ficou a distância” (v. 13a), pois ocupar os primeiros lugares era uma prática comum dos fariseus e criticada por Jesus (cf. Lc 14,7; 21,46). A atitude do publicano é de quem tem consciência de sua condição de pecador, por isso, “não se atrevia a levantar os olhos para o céu” (v. 13b). Colocou-se em condição de penitência, sabendo que sua condição de pecador público era motivo de escárnio para os outros, como foi para o fariseu na sua oração: “não sou como este publicano” (v. 11). Sua atitude de penitência se evidencia ainda mais com o gesto de “bater no peito”, sinal de arrependimento. Sua oração é muito simples, mas muito profunda, por isso foi ouvido por Deus: “Meu Deus, tem piedade de mim, porque sou pecador” (v. 13). Essa é uma das invocações que mais se repetem nos salmos (cf. Sl 25,11; 51,13), é a oração dos humildes, dos que reconhecem a necessidade de Deus. É essa atitude que vai determinar a sentença final de Jesus.

Na conclusão, Jesus usa de sua autoridade ao dar a sentença final, com a expressão “Eu vos digo”. De fato, o uso dessa fórmula é sinal de um ensinamento importante e irrevogável, em grego le,gw u`mi/n – legô himin, quer dizer que a declaração feita é irrevogável. E, a sentença é a justiça. O publicano voltou para casa justificado, enquanto o fariseu não” (v. 14a). Porque? O fariseu não foi pediu justiça nem misericórdia, pelo contrário, ofereceu aquilo que Deus já tem, os méritos. O publicano, pelo contrário, ofereceu sua condição miserável de pecador, e recebeu misericórdia, pediu piedade e recebeu justiça. A expressão final, uma espécie de provérbio “ quem se eleva será humilhado e quem se humilha será elevado”, usada duas vezes por Lucas (cf. 14,11; 18,14) além de resgatar a postura de cada um dos personagens na oração, o fariseu orgulhoso estava erguido, enquanto o publicano nem a cabeça levantava para o céu, revela o projeto de Deus apresentado no Evangelho de Lucas desde o início: “dispersou os orgulhos, aos humildes exaltou” (Lc 1,51b.52b).


Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues

domingo, outubro 16, 2016

REFLEXÃO PARA O XXIX DOMINGO DO TEMPO COMUM – LUCAS 18,1-8 (ANO C)


Neste XXIX Domingo do Tempo Comum, a liturgia nos coloca ainda ao longo do caminho de Jesus com seus discípulos para Jerusalém, sendo que já nos encontramos nas últimas etapas desse percurso iniciado no capítulo nono (cf. Lc 9,51. O trecho que hoje nos é proposto, Lucas 18,1-8, apresenta três dimensões essenciais para o discipulado: a oração, a luta por justiça e a fé. O texto apresenta uma parábola bastante ambígua e complexa, a do juiz iníquo e a viúva, exclusiva de Lucas.

A oração é um tema bastante frequente no evangelho de Lucas, tanto da parte de Jesus, quanto dos discípulos. De fato, em diversos momentos Lucas apresenta Jesus em oração: após o batismo (cf. 3,21), antes da escolha dos Doze (cf. 6,12) na transfiguração (cf. 9,28), e em tantos outros. A oração de Jesus causava admiração nos discípulos, tanto que eles pediram para que Lhes ensinasse a orar: “Estando em certo lugar, orando, ao terminar, um de seus discípulos pediu-lhe: “Senhor, ensina-nos a orar” (Lc 11,1). Portanto, a atitude orante de Jesus e seus discípulos é uma das características do Terceiro Evangelho.

A princípio, é necessário ressaltar que o primeiro versículo do evangelho de hoje pode levar-nos a uma interpretação precipitada e equivocada da complexa parábola. A primeira observação importante a ser feita diz respeito à tradução. A expressão “Jesus contou aos discípulos uma parábola, para mostrar-lhes a necessidade de rezar sempre e nunca desistir” (v. 1) não exprime completamente o seu sentido original, devido ao uso inadequado do verbo desistir. Na verdade, o verbo empregado na língua original é  evgkakew – enkakêo, cujo significado é desanimar ou desencorajar. Portanto, o ensinamento de Jesus aos discípulos sobre a oração é um convite a não desanimar. É possível que alguém, mesmo sem desistir, mantenha-se desanimado, e Jesus não pede apenas que seus discípulos persistam de qualquer modo, mas que se mantenham animados e encorajados. Assim, a tradução correta da parte final do versículo é “para mostrar-lhes a necessidade de rezar sempre e não desanimar” (v. 1b).

Ainda sobre o primeiro versículo, devemos fazer uma segunda observação: isolando-o, o mesmo pode nos desviar do foco da parábola. É notório que o tema da parábola não é a oração em si, mas a busca pela justiça. Podemos dizer que a oração é um meio, e não um fim em si mesma. Por estarmos tão familiarizados com o tema da oração em Lucas, podemos nos precipitar na interpretação e, assim, distorcê-la.

Por fim, ainda sobre o primeiro versículo, não podemos esquecer que ele nos apresenta informações preciosas sobre o contexto histórico do evangelho de Lucas. Ora, escrito nos anos 80 d.C., quando Domiciano era o imperador romano, as perseguições aos cristãos estavam em plena evidência, o que gerava um clima de desânimo nas comunidades cristãs. Daí a necessidade de uma palavra de encorajamento e perseverança diante da situação hostil vivenciada.

Feita a devida introdução, voltamos nossa atenção para a parábola em si, partindo da apresentação dos dois personagens envolvidos: “Numa cidade havia um juiz que não temia a Deus e não respeitava homem algum” (v. 2); eis o retrato do primeiro personagem, bastante negativo por sinal. Desde o Antigo Testamento, a tradição bíblica apresenta a magistratura com características negativas, de modo que essa descrição do juiz da parábola é uma verdadeira síntese: a falta de temor a Deus e de respeito ao próximo representa o máximo de prepotência e injustiça para uma pessoa. Um dos alvos constantes das denúncias dos profetas foi a figura do juiz ou “administrador da justiça”. Em uma das suas críticas aos juízes, o profeta Isaías denuncia exatamente a contribuição deles para a opressão das viúvas (cf. Is 10,1). O profeta Amós, por sua vez, acusa os juízes de transformarem o direito em veneno (cf. Am 5,7).

O motivo das críticas dos profetas aos administradores da justiça se deve à tendência de favorecimento dos mais ricos, prejudicando sempre os mais necessitados: órfãos, viúvas e pobres, prática comum no direito oriental, mas não muito distante de práticas atuais em todo o mundo. Para a tradição bíblica, além de descrever uma realidade concreta, embora muito triste, essa negatividade dos magistrados terrenos ajuda na construção da imagem de Deus como o único e justo juiz de todo o universo.

Como segundo personagem da parábola, Lucas apresenta o oposto do primeiro: “Na mesma cidade havia uma viúva que vinha à procura do juiz pedindo: ‘Faze-me justiça contra o meu adversário!’” (v. 3). Mais uma vez, a técnica lucana de apresentar personagens com características opostas em uma mesma cena se evidencia aqui: de um lado, um homem poderoso e prepotente, do outro, uma mulher indefesa e injustiçada. Ora, a figura da viúva na tradição bíblica representa a situação de máxima vulnerabilidade. Tanto no Antigo quanto no Novo Testamento, há uma predileção pela figura da viúva, pois sendo a imagem da pessoa desamparada, representa uma das classes sociais por quem Deus faz opção.

O estado de viuvez em si já é um sinal de preocupação. Essa preocupação aumenta mais ainda quando a viúva tem um ‘adversário’, avntidi,koj – antidikos em grego. Sendo o adversário um homem, obviamente a situação da viúva se torna desesperadora, por isso, sempre levava desvantagem nos julgamentos. Ainda convém ressaltar que a viúva da parábola é tão desprotegida, a ponto de ser ela mesma quem recorre diretamente ao juiz, algo incomum na época de Jesus. Algum parente masculino deveria assumir a causa e recorrer ao juiz. A intenção do evangelista ao coloca-la sozinha, reforça ainda mais sua condição de desamparada. E, quanto mais desemparada for, mais terá a predileção de Deus, principalmente na perspectiva do evangelista Lucas.

A parábola continua até o quinto versículo, quando vem apresentado seu desfecho final. A prepotência do juiz levava-o a negar-se a fazer justiça em favor da viúva (v. 4), mas a insistência perseverante dela foi tão grande, a ponto de conseguir o seu pleito (v. 5). Aqui, corremos o risco de atribuir a imagem do juiz a Deus. De modo algum devemos fazer isso. Os atributos desse juiz iníquo são completamente opostos aos de Deus. Aqui, é necessário desvendar o que cada um destes personagens representa, para não chegarmos a conclusões erradas. E, começamos pela viúva que é a imagem das comunidades cristãs dos anos 80 d.C., perseguidas pelo império. A história comprova que era praticamente impossível um cristão ter uma causa julgada em seu favor naquela época. Além de desfavorecidos pelo poder judiciário da época, os cristãos ainda eram responsabilizados pelas diversas mazelas que surgissem nas cidades onde eles estavam. Eram indefesos e desamparados legalmente, como a viúva na parábola. O juiz iníquo, obviamente, representa todas as hostilidades colocadas para impedir o crescimento da comunidade, principalmente o aparato jurídico oficial do império romano na época.

Diante disso, podemos concluir que o tema principal de todo o evangelho de Deus é a justiça. Por sinal, justiça é a palavra que mais se repete em todo o texto: quatro vezes (vv. 3. 5. 7. 8). A oração é o meio, por sinal, o único eficaz, para alguém obter justiça, desde que permaneça firme na fé. Por isso, a preocupação no último versículo: “Quando o Filho do Homem vier, será que vai encontrar fé sobre a terra?” (v. 8).

A comunidade cristã é convidada por Lucas a manter-se perseverante, com a fé viva em constante luta por justiça. Se, às vezes, até um juiz iníquo, antítese de Deus, dá sinais de justiça, quanto mais Deus!


Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues

domingo, outubro 02, 2016

REFLEXÃO PARA O XXVII DOMINGO DO TEMPO COMUM – LUCAS 17,5-10 (ANO C)

O texto evangélico que a liturgia deste XXVII Domingo do Tempo Comum nos apresenta continua a nos situar no longo caminho de Jesus para Jerusalém. É certo que nesse caminho muitos obstáculos foram encontrados, enfrentados e superados. Também ao leitor do terceiro evangelho, Lucas, alguns obstáculos são postos no caminho, sobretudo, no que diz respeito à compreensão daquilo que o texto quer apresentar. Com isso, dizemos que o texto de hoje, Lc 17,5-10, pode ser considerado um destes obstáculos, tendo em vista as dificuldades de interpretação que o mesmo apresenta.

Uma vez que estamos diante de um texto considerado difícil, a melhor forma de ir superando as dificuldades de compreensão é olhando para o seu contexto. Ora, o capítulo dezessete de Lucas apresenta a retomada das exigências de Jesus aos seus discípulos. À medida que avança e se aproxima de Jerusalém, Jesus vai deixando cada vez mais claro o que é necessário para os discípulos continuarem com Ele. Muitas exigências já tinham sido apresentadas até então: renúncia a todos os bens (cf. Lc 14,33), coragem para ser crucificado (cf. 14,27), ruptura nas relações familiares (cf. Lc 14,26). Até então, parece que a fé dos discípulos estava sendo suficiente para suportar tantas exigências. Pelo menos, não reclamaram. Mas, uma nova fase surge.

A situação parece complicar-se quando Jesus exige dos discípulos a disponibilidade para perdoar constantemente ao irmão que lhes tiver ofendido (cf. 17,3-4). Portanto, para compreendermos bem o evangelho de hoje, é necessário partirmos do contexto, recordando a mensagem apresentada nos versículos iniciais desse capítulo dezessete (vv. 1-4). A primeira recomendação feita foi o cuidado com o “escândalo” (cf. Lc 17,1-2); é importante ressaltar que ‘escândalo’ na linguagem bíblica, do grego ska,ndalon – skandalon – não significa apenas um comportamento moral inadequado, e sim um obstáculo para o Reino, tudo o que é capaz de atrapalhar uma adesão completa a Jesus, como o apego aos bens materiais, o orgulho, a inveja, a incapacidade de perdoar, e tantos outros.

Após a advertência sobre os ‘escândalos’, Jesus apresentou a maior de todas as exigências até então: a capacidade e a disponibilidade para perdoar de modo ilimitado, até sete vezes num único dia, sinal de totalidade, ao irmão que tiver ofendido (vv. 3-4). Foi essa exigência que deixou os apóstolos em crise, a ponto de perceberem que não tinham, ainda, uma fé suficiente para tal. Deixar a família, os bens, romper com tantos laços tradicionais tinha sido mais fácil que perdoar! E, para Jesus, o maior dos escândalos é a falta de perdão!

Sem dúvidas, essa foi a maior exigência feita até aqui. Por isso, “os apóstolos disseram ao Senhor: aumenta a nossa fé!” (v. 5); trata-se de uma reação ao que lhes fora anteriormente exigido. Ao pedido dos apóstolos, Jesus responde em tom de ironia, dizendo, antes de tudo, que a fé não se mede quantitativamente. Os apóstolos consideravam que já tinham fé, mas não em quantidade suficiente para abraçarem a mais nova exigência. Porém, essa exigência não era tão nova, pois já estava contida no Pai-nosso: “Perdoa os nossos pecados como também nós perdoamos aos nossos devedores” (cf. Lc 11,4); assim, a oração ensinada por Jesus, também em resposta a um pedido deles, “Senhor, ensina-nos a orar” (cf. Lc 11,1-4), não estava sendo levada a sério. Por isso, a resposta de Jesus soa irônica.

Se os apóstolos concebiam a fé como algo mensurável quantitativamente, imaginavam que já possuíam em pequena quantidade e, portanto, necessitavam de algumas ‘porções’ a mais. Daí a ironia de Jesus com o exemplo parabólico do grão de mostarda (v. 6), dizendo, em outras palavras que, ou se tem fé ou simplesmente não se tem, ou seja, basta que seja autêntica, qualitativa e não quantitativa. Para desconcerta-los ainda mais, usa o exemplo da amoreira, a árvore conhecida na sua época como a possuidora das raízes mais profundas e de maior tempo de sobrevivência e, portanto, a mais difícil de ser arrancada; e se o simples fato de uma amoreira ser arrancada já parecia impossível para a mentalidade da época, menos possível ainda seria a sua sobrevivência no mar.

A resposta é simbólica e irônica. Ele não promete dar algumas porções a mais de fé aos apóstolos, porque isso não é possível. A fé não pode ser medida e muito menos ofertada por Ele; é a resposta incondicional ao seu amor, é a adesão plena ao Reino, e isso é pessoal. O exemplo da fé com poder de fazer uma árvore arrancar-se sozinha e plantar-se no mar é apenas um modo de dizer que a fé transforma realidades, quando autêntica. No caso dos apóstolos, era a mentalidade deles que necessitava de uma transformação. Portanto, Ele não promete o poder de fazer e ver milagres extraordinários a quem tem fé; pede uma transformação interior e radical, a começar pela vivência do perdão sem medidas.

O grande milagre da fé é arrancar pela raiz tudo o que obstaculiza o advento pleno do Reino de Deus: o egoísmo, a injustiça, a falta de amor e de solidariedade, o apego aos bens materiais; é tudo isso que, movidos pela fé, devemos “jogar no mar”, recordando que na mentalidade bíblica o ‘mar’ tem um sentido muito negativo, pois era considerado também o lugar onde habitavam as forças do mau. Inclusive, no início do capítulo em questão, como destino de quem escandalizar um pequenino, Jesus sugere ‘ser jogado no mar’ (cf. Lc 17,1-2). Na descrição do ‘novo céu e a nova terra’ no Apocalipse, o autor afirma que “o mar já não existe” (cf. Ap 21,1), exatamente porque as forças do mau já foram vencidas. Eis, portanto, um exemplo do sentido negativo do mar para a mentalidade bíblica.

Na continuação, Jesus conta-lhes uma pequena parábola (vv. 7-10), aparentemente sem nexo com a discussão sobre a fé, porém intrinsecamente relacionada. Trata-se de mais uma parábola exclusiva de Lucas. Com ela, Jesus quer mostrar aos discípulos a melhor maneira de cultivar e viver uma fé autêntica e verdadeira: colocando-se como servos completamente disponíveis e despretensiosos. Ora, vigorava na época, sobretudo em ambientes farisaicos, uma mentalidade meritocrática. Os fariseus observavam fielmente a Torá pensando na retribuição, vivendo uma relação contratual com Deus: observavam a Lei porque eram justos e, portanto, seriam mais merecedores dos dons de Deus. Infelizmente, essa mentalidade contaminava também os discípulos de Jesus.

O verdadeiro discípulo é aquele que, movido por uma fé autêntica, não reivindica direitos nem privilégios para si. Tudo o que faz é para a edificação do Reino, até porque, desde o início Jesus deixou muito claro o seu projeto, exigindo dos discípulos que fossem capazes de “renunciar a si mesmo” (cf. Lc 9,23). Logo, era completamente descabida a tendência à exigência de reconhecimento da parte deles. Na frase final do texto, há um exagero na expressão ‘servos inúteis’ como tradução do grego dou/loi avcrei/oi, (duloi akreioi). A tradução mais justa seria “simples servos” ou “simplesmente servos”, pois o servo não é inútil, pelo contrário, é necessário para a edificação do Reino. Porém, ele não pode esquecer a sua condição de servo e, portanto, tudo o que venha fazer pelo Reino não é motivo de mérito nem de reconhecimento, pois é essa a sua missão: servir de modo incondicional e movido pela fé!

Podemos dizer, então, que o Evangelho de hoje nos convida a viver e cultivar uma fé autêntica, que nos leve a cortar pela raiz tudo o que se opõe ao Reino dentro de nós e, de modo incondicional e livre, assumirmos a nossa condição de simples servos, porque nossa missão é servir sempre!


Pe. Francisco Cornelio Freire Rodrigues

REFLEXÃO PARA O 4º DOMINGO DA PÁSCOA – JOÃO 10,11-18 (ANO B)

O evangelho do quarto domingo da páscoa é sempre tirado do capítulo décimo do Evangelho de João, no qual Jesus se auto apresenta como o ún...