O Evangelho deste XXXI Domingo do Tempo
Comum, Lucas 19,1-10, nos indica que o longo caminho de Jesus para Jerusalém está
chegando à sua fase conclusiva. É sempre oportuno recordar que esse caminho não
é apenas um percurso físico, mas muito mais um plano catequético, teológico e
espiritual apresentado pelos evangelhos sinóticos, sendo que é Lucas aquele
evangelista que mais dá importância a esse caminho.
É importante, como sempre procuramos
fazer, contextualizar o texto para, de fato, captarmos a essência de sua
mensagem. Trata-se de um episódio exclusivo do Evangelho segundo Lucas, a
conhecida história de Zaqueu, um personagem bastante controverso, paradoxal e
conhecido.
O cenário da cena é a cidade de Jericó, como
afirma o texto, “Jesus tinha entrado em Jericó e estava atravessando a cidade”
(v. 1). Trata-se de uma cidade muito significativa para a história do povo
bíblico. Situada a aproximadamente 27 km de Jerusalém, contrastava com a capital
pela situação topológica e teológica. Enquanto Jerusalém estava a cerca de 700
metros acima do nível do mar, Jericó estava a quase 300 metros abaixo do nível
do mar. Na luta pela posse da terra prometida, sob a liderança de Josué, um dos
acontecimentos principais foi exatamente a conquista de Jericó (cf. Js 5,13 –
6,27). Do mesmo modo, no Evangelho, em seu êxodo, Jesus também realiza uma
grande conquista em Jericó, salvando o que estava perdido (cf. vv. 9-10).
Naquela cidade, havia “um homem chamado
Zaqueu” (v. 2a), cujo nome significa ‘puro’, o que parece ser mais uma ironia
do autor do terceiro evangelho. O significado do nome do personagem contrasta
completamente com as suas características apresentadas: “chefe dos cobradores
de impostos e muito rico” (v. 2b). Ora, se um simples cobrador de impostos já
era considerado impuro e um ladrão profissional, podemos dizer que Zaqueu era
um ‘chefe de quadrilha’, portanto, um homem desprezível pela sociedade e visto
como um caso perdido pela religião judaica. Pela sua segunda característica, a
riqueza, Zaqueu também estaria excluído da comunidade dos discípulos, afinal,
Jesus tinha acabado de dizer que “é mais fácil um camelo passar pelo buraco de
uma agulha do que um rico entrar no reino de Deus” (Lc 18,25).
Embora sua situação fosse tão
desprezível, religiosamente falando, Zaqueu era um homem inquieto que buscava
um sentido para a sua vida e não se deixava abater pelos rótulos que carregava,
por isso, “procurava ver quem era Jesus” (v. 3a). Certamente, essa curiosidade
não era à toa! Vivendo completamente segregado pela religião, devido sua
condição de pecador público, já tinha escutado falar que havia um mestre que,
por incrível que pareça, acolhia pecadores e comia com eles (cf. Lc 5,29-32).
O desejo de Zaqueu de ver quem era Jesus
oponha-se a sua estatura, pois “era muito baixo” (v. 3c), por isso, facilmente
era sufocado pela multidão. Certamente o evangelista não mediu com exatidão a
altura de Zaqueu, apenas constatou o modo como ele era visto pelo povo que o
olhava de cima para baixo, ou seja, com olhar de gente melhor e superior. Portanto,
Zaqueu era baixo aos olhos dos outros, principalmente das pessoas religiosas de
seu tempo. Era o olhar e o julgamento das pessoas religiosas, tanto da religião
judaica quanto do grupo de Jesus que faziam de Zaqueu uma pessoa pequena. Certamente,
devemos pensar se também em nossos dias muitas multidões e grupos não sufocam a
visão sobre Jesus e até impedem a muitos de vê-lo.
Um aspecto importante no texto é a consciência
de Zaqueu: ele reconhece que sua estatura, realmente, não está à altura de
Jesus, mas isso não diminui seu desejo de vê-lo. Tinha plena consciência de que
necessitava crescer, ou seja, mudar de vida. Por isso, busca novos caminhos,
expondo-se ao ridículo: “correu à frente e subiu numa figueira para ver Jesus
que deveria passar ali” (v. 4). Ele procurou uma estratégia própria para
aproximar-se de Jesus e vê-lo, já que se dependesse das vias oficiais não
conseguiria. Impossível não pensar no lado cômico da cena e nas consequentes risadas
que despertou.
A reação de Jesus é surpreendente,
completamente contrária à dos demais. Ao invés de olhar com desprezo para a
posição patética de Zaqueu em cima da árvore, Jesus vê exatamente o desejo de
conversão de um homem sedento de sentido para sua vida, por isso, “quando
chegou ao local, olhou para cima e disse: Zaqueu, desce depressa! Hoje eu devo
ficar na tua casa” (v. 5). Enquanto a sociedade o via de modo inferior, ou
seja, olhava para ele de cima para baixo, Jesus o vê na sua dignidade, olhando
para cima, dando-lhe a ordem de descer depressa, colocando-o em situação de
igualdade com os demais. Assim, Jesus o inclui, diz que ele é uma pessoa como
as demais, tendo, inclusive, um nome.
Além de trazer Zaqueu para o meio, ordenando-lhe
que desça da árvore, Jesus surpreende mais ainda dizendo “hoje devo ficar na
sua casa” (v. 5). O aspecto temporal aqui é muito importante, expresso pelo
advérbio hoje, em grego sh,meron – semeron. Trata-se de uma palavra chave para a teologia de Lucas. Realmente,
são muitas as ocasiões em que se expressa o ‘hoje’ de Deus no terceiro
evangelho: no nascimento de Jesus, os anjos anunciaram aos pastores “hoje,
nasceu para vós um salvador” (Lc 2,11); no início da sua vida pública, na
sinagoga de Nazaré, Jesus diz “Hoje cumpriu-se esta Escritura” (Lc 4,21); na
cruz, é dada a promessa a um dos malfeitores: “hoje, estará comigo no paraíso”
(Lc 23,43). Portanto, é hoje, especificamente que a comunidade é convidada a
encontrar-se com Jesus. Aquilo que ontem era negado, pela religião oficial, não
pode esperar para amanhã, deve ser hoje!
É interessante que
Jesus não diz que quer ser hóspede de Zaqueu, mas que “deve ficar na sua casa”.
Isso só reforça a urgência da experiência do encontro. É inadiável, tem que ser
“hoje”. Por isso, usa-se o verbo grego mei/nai – meinai – cujo
significado é permanecer ou ficar. Não se trata apenas de passar por lá, mas
permanecer, ficar. É o mesmo verbo que os discípulos de Emaús usam no
imperativo quando pedem “Fica conosco, Senhor!” (Lc 24,29). Portanto, não se
trata de uma simples e passageira visita, mas de uma presença que permanece,
por isso, é eficaz e transforma.
Ao sentir confiança
nas palavras de Jesus, a curiosidade de Zaqueu foi transformada em alegria (v.
6), outro tema caro para o terceiro evangelho. O encontro autêntico com Jesus é
marcado exatamente pela alegria verdadeira, porque Ele não dirige um sermão
cheio de normas e julgamentos, mas simplesmente acolhe e olha com um olhar
único de quem não condena, não julga nem discrimina.
À alegria do pecador
acolhido e transformado pelo encontro com Jesus, contrasta a reação das pessoas
religiosas que se sentiam mais dignas e não toleravam um Deus que ama a todos
sem distinção. Por isso, houve murmúrio, como vem empregado no texto o verbo
grego diego,gguzw –
diegonguizô, usado três vezes por Lucas para expressar a reação dos opositores de Jesus,
principalmente os fariseus (cf. Lc 5,30; 15,1-2; 19,7). Esse verbo é sinal de
reprovação às atitudes de Jesus, e se nas outras duas vezes é empregado
especialmente para os fariseus e doutores da lei, aqui expressa uma reprovação
generalizada: “todos murmuravam, dizendo: Ele foi hospedar-se na casa de um
pecador” (v. 7). A não aceitação à postura inclusiva e acolhedora de Jesus é
própria do farisaísmo, mas as vezes consegue contagiar também as multidões,
infelizmente.
Para Jesus, não
importava a reação dos considerados ‘puros’ do seu tempo. O que de fato lhe
interessava, era a atitude nova do homem transformado pelo seu encontro, como
Zaqueu que “ficou em pé e disse ao Senhor” (v. 8a). Essa é, realmente, a imagem
do novo homem. A imagem do homem “em pé” significa que ele está vivo, é uma
pessoa autêntica e consciente, portanto, digna, como estava Zaqueu, renovado
pelo encontro com Jesus. Foi esse encontro que lhe deu capacidade para tomar
uma séria decisão em sua vida: dar a metade dos bens aos pobres e devolver
quatro vezes mais o que tinha roubado (v. 8).
O homem novo e puro que nasceu
do encontro de Jesus com Zaqueu inaugura a salvação no ‘hoje’ da sua vida. A salvação,
de fato, acontece sempre que alguém faz um encontro pessoal com Jesus e
deixa-se transformar por esse encontro. A atitude de Zaqueu, que de ladrão e
rico que era, passou a partilhar e usar corretamente seus bens, em favor dos
pobres, mostra que, de fato, “para Deus nada é impossível” (cf. Lc 18,27). Ou seja,
a salvação é também possível para os ricos, desde que percebam a necessidade
dos pobres e abandonem à lógica do acúmulo abrindo-se à partilha e a
generosidade. É assim que Jesus procura e salva o que estava perdido, como
Zaqueu no meio da multidão.
Pe. Francisco
Cornelio F. Rodrigues