Celebramos neste domingo a solenidade da Epifania do Senhor,
concluindo o tempo do Natal. Epifania quer dizer manifestação, deriva do verbo
grego epifai,nw – epifaino, cujo significado é manifestar-se.
Portanto, celebramos a manifestação de Deus em Jesus como luz, guia e Senhor de
todo o universo, embora o texto evangélico proposto, Mateus 2,1-12, apresente
um movimento oposto: é o mundo com sua pluralidade de raças e culturas,
representado pelos magos do Oriente, que manifesta sua adesão e aceitação ao
senhorio de Jesus.
O texto evangélico referido é, além de longo, muito complexo, rico
em teologia e simbologia e, sobretudo, belo e encantador. Infelizmente, ao
longo da história, foi interpretado mais folcloricamente que teologicamente.
Daí a dificuldade de apresentarmos uma interpretação mais fidedigna às
intenções do autor, tendo em vista que as interpretações folclóricas,
consolidadas pelo cristianismo oficial, estão muito enraizadas no imaginário
popular.
Antes de tudo, devemos esquecer a linda e romântica imagem do
presépio para compreendermos bem o texto bíblico, partindo dos primeiros
versículos: “Tendo nascido Jesus na cidade de Belém, na Judéia, no tempo do rei
Herodes, eis que alguns magos do Oriente chegaram a Jerusalém (v. 1),
perguntando: ‘Onde está o rei dos judeus que acaba de nascer? Nós vimos a sua
estrela no Oriente e viemos adorá-lo’” (v. 2). Percebemos que Mateus, ao
contrário de Lucas, não descreve o nascimento de Jesus, apenas o menciona como
um fato já acontecido, dando, porém, informações importantes de tempo e espaço:
nasceu em Belém, no tempo do rei Herodes.
A princípio, já é possível perceber a intenção do autor com essa
informação: está surgindo uma alternativa de poder e realeza diferente do
sistema vigente; há um deslocamento do centro para a periferia, ou seja, começa
uma descentralização, o que vem a indicar que o poder, exercido até então na
capital, está ruindo. É claro que é necessário o complemento da informação para
termos clareza da oposição que o autor quer apresentar entre o poder
centralizado e o projeto alternativo que surge: nasceu um rei para os judeus
(v. 2), portanto, o poder de Herodes está sendo deslegitimado.
A outra grande novidade do relato está nos personagens apresentados
pelo autor: alguns magos do Oriente (v. 1); Ora, os magos, em grego ma,goi – magoi, eram
estudiosos orientais, responsáveis pela interpretação dos sonhos e pela leitura
dos fenômenos naturais, mas também eram vistos como feiticeiros e charlatões,
operadores da magia e sacerdotes de cultos pagãos da Pérsia e Babilônia, portanto, pertenciam a uma categoria condenada
pelo judaísmo e pelo cristianismo das origens; de fato, dois episódios nos
ajudam a perceber o quanto a magia era condenada pela Bíblia: a saga de Balaão
no Antigo Testamento (cf. Nm 22 – 23), e a tentativa de compra do dom do
Espírito Santo pelo mago Simão no Novo Testamento (cf. At 8,9-24). Portanto, os
magos eram pessoas abomináveis à luz da religião de Israel e dos primeiros
cristãos.
Infelizmente, a tradição cristã revestiu os magos de
características que não eram suas, ao considera-los como reis. Ao invés de
ajudar na compreensão do texto, esse tratamento real aos magos distorceu
completamente o sentido aplicado por Mateus ao criar personagens tão atípicos;
de fato, a intenção do evangelista e sua comunidade ao apresentar esses
personagens era exatamente mostrar que também aos distantes e sem reputação,
Deus se revela e são exatamente esses os que com mais sinceridade buscam o
verdadeiro rosto de Deus, tão difícil de ser reconhecido na pessoa de uma
frágil e pobre criança, como as elites, religiosa e política, não foram capazes
de reconhecer.
Está mais do que clara a oposição: os magos vieram de longe para
adorar ao Deus verdadeiro. Foram a Jerusalém, mas lá não era possível encontrar
o verdadeiro Deus porque a elite o tinha monopolizado; como gentios, eram
barrados pelas paredes do templo que segregava os pagãos dos judeus piedosos.
Com a pergunta “Onde está o rei dos judeus que acaba de nascer?”
(v. 2a), os magos afirmam que não reconhecem a autoridade de Herodes, ou seja,
o consideram um rei ilegítimo; com a afirmação “nós vimos sua estrela no
Oriente e viemos adorá-lo” (v. 2b), eles desafiam também a elite religiosa,
mostrando que as paredes do templo já não conseguem mais conter esse Deus que
se revela em todo o universo e a todos os povos. Portanto, os poderes político
e religioso são ameaçados com o nascimento de Jesus.
Enquanto Herodes exercia o poder pela força e a violência, Jesus
exercerá a sua autoridade pelo serviço; enquanto a relação com Deus,
monopolizado pela elite religiosa, era mediada por uma casta sacerdotal
corrompida e através de sacrifícios e ofertas, em Jesus é Deus se manifesta
plenamente, sendo Ele mesmo que se oferece, ao invés de exigir oferendas. Por
isso, “o rei Herodes ficou perturbado, assim como toda Jerusalém” (v. 3), pois
viam que um novo tempo estava surgindo, novas relações estavam sendo gestadas,
uma sociedade alternativa estava nascendo, enfim, o Reino de Deus estava
começando e, portanto, todos os reinos humanos deveriam desaparecer.
As preocupações de Herodes e de ‘toda Jerusalém’, compreendida como
a elite política e intelectual predominantes, ou seja, sacerdotes e escribas,
leva-os a um medíocre pacto (vv. 4-6), o qual se repetirá posteriormente e
levará Jesus à morte, com as mesmas motivações: o medo que as autoridades
tinham de um autêntico ‘Rei dos Judeus’. No nascimento, o pacto é feito entre
Herodes e toda Jerusalém; na paixão será entre Pilatos e o sinédrio, mas são as
mesmas forças, com as mesmas práticas. Como último recurso, Herodes tenta a
fraude e o suborno, exigindo que os magos retornem a ele quando encontrassem o
menino (vv. 7-8).
Ajudados pela Escritura e pelo próprio Herodes, os magos foram a
Belém e lá, de fato, encontram o que estavam procurando: Jesus, Deus e luz que
ilumina todos os povos, inclusive eles, operadores de práticas abomináveis aos
olhos do judaísmo. A reação deles não poderia ser outra: “Ao verem de novo a estrela, os magos sentiram
uma alegria muito grande” (v. 10); a tradução do texto litúrgico, infelizmente,
não consegue expressar suficientemente esse sentimento dos magos; o autor usa a
expressão grega evca,rhsan cara.n mega,lhn – ‘ekaressan karan megalen’, para a qual a tradução mais adequada é
“alegraram-se com uma alegria grande”; é compreensível o exagero do autor,
considerando o seu esforço em mostrar que Aquele que parecia distante e
inacessível pode, de fato, ser contemplado e visto por todos. A luz de Deus, até
então sufocada por uma religião ritualista e segregadora, ilumina o universo
inteiro e o convida a alegrar-se com isso, pois significa o fim de todas as
barreiras, o desmoronamento de todos os muros e sinais de separação.
Certamente, a alegria deles aumentou ainda mais “Quando entraram na
casa, viram o menino com Maria, sua mãe” (v. 11a). Por serem pagãos e magos,
não podiam adentrar mais que o pátio do templo reservado para os gentios e,
portanto, não podiam contemplar nem adorar verdadeiramente; agora, é tudo
diferente: eles vêem porque é o próprio Deus quem se deixa ver e conhecer em
Jesus, e na comunidade, personificada em Maria, mãe.
Essa passagem é muito importante, pois em todo o primeiro capítulo
de Mateus houve uma centralidade e importância dadas a José; nessa cena, ele
não é mencionado, mas apenas Maria; em Lucas, “os pastores encontraram Maria,
José e o recém-nascido” (cf. Lc 2,16).
Certamente, Mateus teve uma intenção especial com esse detalhe: quis
mostrar que Deus se deixa conhecer parcialmente na criação, através da estrela
(vv. 2.9.10), na Escritura (vv. 4-6), mas de modo pleno, só é possível fazer
uma verdadeira e autêntica experiência na comunidade reunida, personificada em
Maria (v. 11).
É necessário recordar o que o texto diz, desde o início, sobre o
objetivo dos magos: adorar o rei dos judeus (v. 2). Tinham empreendido um longo
caminho, inclusive errando a rota, pois foram primeiro a Jerusalém, mas lá não
o encontraram, devido a estrutura rígida e decadente da religião oficial.
Somente deslocando-se para a periferia puderam, de fato, experimentar o Deus
que tanto buscavam. Aqui, está o ápice do contraste que o evangelista quer
apresentar: o templo perdeu seu sentido, Deus não habita mais nele; é
necessário retirar-se para a periferia, inserir-se na comunidade e, assim,
adorar e experimentar a beleza desse Deus que quer apenas misericórdia e amor,
e não mais sacrifícios.
Quando perceberam que encontraram aquele que tanto buscavam,
“ajoelharam-se diante dele e o adoraram” (v. 11). Essa atitude mostra que,
finalmente, saciaram-se, encontraram sentido para suas vidas e, portanto,
esvaziaram-se de si, oferecendo tudo o que haviam. Não ofereceram porque lhes
fora exigido, como exigia o templo, mas porque sentiram-se confortados e correspondidos.
É claro que os presentes oferecidos pelos magos, ouro, incenso e
mirra (v. 11b) são simbólicos e revelam, por um lado a identidade de Jesus e,
por outro, a nova relação entre a humanidade e Deus. O ouro, revela que Jesus é
rei enquanto recebe, mas ao mesmo tempo diz que todas nações podem participar
do seu reino, enquanto foi oferecido por pagãos; o incenso revela sua
divindade, ou seja, é o reconhecimento de que Ele é Deus, mas a humanidade não
precisa mais dos sacerdotes do templo para se comunicar com Ele, pois qualquer pessoa
e em qualquer lugar pode fazer isso. A mirra é o mais ambíguo dos três
presentes: é, antes de tudo, o sinal da humanidade de Jesus, uma vez que era um
perfume usado pelos judeus para embalsamar os cadáveres, como acontecerá com o
corpo do próprio Jesus, quando morre; porém, no Cântico dos Cânticos, em
diversas passagens, a mirra é citada como o perfume da esposa e, com muita probabilidade,
Mateus quis dizer que a esposa privilegiada de Deus deixou de ser Israel e
passou a ser toda a humanidade.
O texto termina com uma afirmação de muita relevância para a
comunidade cristã e para todas pessoas de todos os tempos e lugares: os magos
retornaram seguindo outro caminho (v. 12). Para viver essa nova relação com
Deus, é necessário desviar-se das antigas estruturas, representadas por Herodes
e o templo. Quem faz uma experiência autêntica com Deus, de fato, segue outro caminho,
em grego a;llhj o`dou/ - ‘allés hodú’. Eles perceberam,
finalmente, que Jerusalém só oferecia exploração, ganância e violência. A
experiência com Deus faz o ser humano mudar a mentalidade e, consequentemente,
o caminho a percorrer.
Concluindo, podemos deixar como reflexão permanente: uma vez que
concluímos o tempo do Natal, quais os caminhos que iremos percorrer de agora em
diante? Se serão os caminhos de sempre, ou seja, se continuamos com as mesmas
maneiras de pensar e compreender as coisas, principalmente nossa relação com
Deus e o próximo, Jesus não nasceu em nós... e, se não nasceu, não poderemos
manifestá-lo ao próximo!
Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues
Nenhum comentário:
Postar um comentário