sábado, maio 26, 2018

REFLEXÃO PARA A SOLENIDADE DA SANTÍSSIMA TRINDADE – MATEUS 28,16-20 (ANO B)






Neste domingo em que celebramos a solenidade da Santíssima Trindade, a liturgia oferece o texto evangélico de Mateus 28,16-20. Como de costume, concentramos a nossa reflexão exclusivamente a partir do texto bíblico. Embora curto, apenas cinco versículos, seu conteúdo é precioso, e comporta uma importância ímpar para a vida da Igreja desde os seus primórdios. É a síntese e a conclusão de todo o Evangelho segundo Mateus. Ao escrever as suas últimas linhas, o evangelista e sua comunidade fizeram questão de resumir a essência de tudo o que já tinha sido apresentado ao longo do Evangelho. O contexto é estritamente pascal, bem como o conteúdo: a manifestação do Ressuscitado aos onze, na Galileia.

Mesmo curto, o texto é complexo; por isso, para compreendê-lo bem é necessária uma certa familiaridade do leitor com todo o Evangelho segundo Mateus.  Na impossibilidade de recordarmos aqui todo o conteúdo do Evangelho, recordamos, como introdução e contextualização, o relato do túmulo vazio e ressurreição (cf. Mt 28,1-10), com as respectivas manifestações de um anjo do Senhor (cf. 28,2) e do próprio Jesus Ressuscitado (cf. 28,9) às mulheres que foram ao túmulo naquele primeiro dia da semana (cf. 28,1). O anjo e Jesus Ressuscitado confiaram às mulheres a missão de convencer os discípulos a retornarem à Galileia para, ali, fazerem também eles a experiência de encontro com o Ressuscitado.

Diferentemente de Lucas, por exemplo, para Mateus Jerusalém só oferece hostilidade ao discipulado e à mensagem de Jesus; permanecendo lá, os discípulos não conseguem encontrar-se com o Ressuscitado. Na verdade, essa ideia já vinha sendo preparada desde o início do Evangelho com o episódio da visita dos magos: eles procuraram “o rei dos judeus” em Jerusalém, em vão; guiados pela estrela, perceberam que ele só podia ser contemplado na periferia, em Belém (cf. Mt 2,1-12). Como centro do poder religioso e político, a capital representava o “contra reino”, ou seja, a negação completa do projeto de Jesus.

Podemos, assim, compreender porque “os onze discípulos foram para a Galileia, ao monte que Jesus lhes tinha indicado” (v. 16). A referência aos onze, além de recordar que Judas Iscariotes já não fazia mais parte do grupo, tem um significado muito importante para a comunidade de Mateus: representa a superação de uma mentalidade nacionalista e triunfalista. Ora, o número doze fazia alusão ao antigo Israel, e alimentava a ideologia davídica. Esse projeto faliu, Israel rejeitou o seu verdadeiro messias, causando sua morte na cruz. Fazendo uma releitura dos últimos acontecimentos à luz da ressurreição, a comunidade de Mateus concluiu que, para a missão universal lograr êxito, é necessário distanciar-se dos antigos esquemas e tradições de Israel. Por isso, mais que incompletude, o número onze é sinal de nova mentalidade e perspectiva. Não podemos esquecer que a eleição de Matias para recompor o número doze é um elemento exclusivo da teologia de Lucas (cf. At 1,15-26). Na perspectiva de Mateus, para a comunidade do Ressuscitado sobreviver e crescer, é necessário abandonar os esquemas do judaísmo.

O retorno à Galileia é muito significativo. Em Jerusalém a experiência fora completamente negativa; além de ter sido o cenário da paixão e morte de Jesus, a capital não oferecia nenhuma perspectiva para a comunidade do Ressuscitado lá florescer. Recordemos o conluio dos poderes religioso, militar e político para desacreditar a ressurreição (cf. 28,11-15), com a mentira do roubo do corpo de Jesus pelos discípulos (cf. Mt 28,11-15). Portanto, o retorno à Galileia era necessário para a sobrevivência da comunidade e, ao mesmo tempo, para o reencontro dos discípulos com as motivações originárias do seguimento. Além das incompreensões ao longo da caminhada, inclusive disputa por poder (cf. 20,20), os acontecimentos envolvendo a paixão e a morte de Jesus deixaram a comunidade profundamente abalada. Daí a necessidade do retorno ao ideal primeiro, ou seja, retornar à Galileia, onde tudo começou, para fazer a experiência do monte.

Ao longo de todo o Evangelho, há muitas referências ao monte, desde o monte das bem-aventuranças (cf. 5 – 7) até o monte das oliveiras (cf. 24 – 25). O monte é o lugar de encontro com Deus e com a sua palavra. Foi no monte que Jesus lançou o seu programa de vida, as bem-aventuranças (5,1-12), e esse convite para os discípulos retornarem à Galileia, para o monte, é exatamente para voltarem à essência do seu projeto de vida. É também um modo de indicar a continuidade entre a mensagem de Jesus de Nazaré e o Ressuscitado. A Galileia como região desprezada entre os judeus é um alerta aos discípulos quanto aos destinatários primeiros do anúncio: os pobres e marginalizados.

Na sequência, o texto descreve a reação dos discípulos: “Quando viram Jesus, prostraram-se diante dele. Ainda assim, alguns duvidaram” (v. 17). A princípio, parecem duas posturas opostas diante da ressurreição, mas o evangelista as vê como complementares. Prostrar-se é sinal de adoração e de convicção na ressurreição e na divindade de Jesus. Aqui, o evangelista emprega o mesmo verbo que tinha usado para indicar a atitude dos magos quando visitaram Jesus recém-nascido em Belém (cf. 2,2): prostrar-se em adoração (em grego: proseku,new – proskinêo). Esse verbo tanto indica adoração quanto sujeição a alguém, como deve ser a postura da comunidade: adorar somente a Jesus e sujeitar-se somente ao que ele ensinou, assumindo completa autonomia e emancipação em relação aos preceitos da lei. Com esse gesto, o evangelista diz que os discípulos aceitam os valores do reino como universais e, por isso, lutarão para que cheguem a todos lugares da terra.

A dúvida não faz mal à comunidade, pelo contrário; nem mesmo Jesus vê problemas no duvidar, tanto que não repreendeu os discípulos por isso. Como o evangelista não diz o motivo da dúvida, nem mostra Jesus repreendendo-os, podemos dizer que ele está apresentando uma característica necessária para a comunidade do Ressuscitado. Para a solidez da fé, a dúvida se faz necessária, pois o seu antídoto não é a certeza, mas o amor. Portanto, quanto mais se duvida, mais necessidade se tem de amar, e amar sem limites. Podemos dizer que a dúvida e a fé são companheiras inseparáveis na vida da comunidade.

Diante da reação dos discípulos, Jesus toma a palavra e profere seu breve discurso de envio (vv. 18-20). É importante perceber que não são palavras de despedida, até porque ele não vai embora da comunidade; são palavras de envio e comissionamento. Ao dizer “Toda autoridade me foi dada no céu e sobre a terra” (v. 18), Jesus está decretando a falência dos poderes sediados em Jerusalém (religioso, militar e político), e estabelecendo uma nova ordem. A verdadeira autoridade, exercida pelo amor, parte da periferia, enquanto em Jerusalém tem apenas força de morte, uma vez que lá a autoridade é exercida com base na mentira, no medo, no suborno e na violência.

Após uma pequena introdução (v. 18), segue-se o envio universalista e inclusivo: “Ide e fazei discípulos meus todos os povos, batizando-os em nome do Pai, e do Filho e do Espírito Santo” (v. 19). Aqui, Ele está, de fato, fazendo uso da sua autoridade e, mais uma vez, mostrando a diferença da sua para outras formas de exercício de autoridade. Ele não envia seus discípulos para impor nem dominar, mas para fazer novos discípulos. Essa é, sem dúvidas, uma das maiores novidades de seu projeto de vida e de sociedade. Não envia os discípulos para doutrinarem ninguém, mas para apresentarem uma proposta de vida. Aqui, registramos a força do verbo empregado pelo evangelista para “fazer discípulos”: no grego, idioma original do evangelho, há o verbo “discipular” (maqhteu,w – matheteúô); com ele, o evangelista consegue distinguir o discipulado de uma simples tarefa, o que não distinguimos com facilidade em nossa língua, com as traduções que temos. O novo e universal discipulado deve nascer do testemunho, ou seja, da maneira de viver dos discípulos, os quais não são operadores de tarefas, mas seguidores e testemunhas de Jesus de Nazaré, o Ressuscitado.

À missão de “discipular” é intrínseca a função de batizar, como sinal de pertença à comunidade dos discípulos. Mateus pensa na sua comunidade marcada pela tensão entre os adeptos e os contrários à prática judaica da circuncisão. Dos novos discípulos, não deve ser exigido nenhum sinal exterior além do batismo. A fórmula trinitária expressa, mais que uma formulação teológica, a preocupação do evangelista para que o batismo de ingresso na comunidade cristã não seja confundido com o rito penitencial do movimento fundado por João Batista. A expressão “Em nome de/do” indica a força do batismo. Na tradição bíblica, o nome de uma pessoa é a sua própria essência, expressa a totalidade do ser. Portanto, ser batizado em nome do Pai, e do Filho e do Espírito Santo, é ser impregnado da essência de Deus.

Como última recomendação do mandato, Jesus apresenta uma advertência, mais que uma ordem: “ensinando-os a observar tudo o que vos ordenei!” (v 20a). Tudo o que Ele ordenou ou ensinou não foi muita coisa, não foi uma doutrina, foi apenas um jeito de viver. O pronome indefinido “tudo” (em grego: pa,nta– panta), expressa a totalidade do que Jesus ensinou e a preocupação para que nada de secundário seja acrescentado e que possa, inclusive, desviar a comunidade do que foi ensinado por Ele. E o que, de fato, Ele ensinou, como já afirmamos, foi um jeito de viver, proposto nas bem-aventuranças e em todo o discurso da montanha (Mt 5 – 7). O que os discípulos têm a ensinar, para que todas as nações sejam “discipuladas” é a vivência das bem-aventuranças, e isso não é doutrina nem código, é vida concreta, é um jeito de ser.

A última frase de todo o evangelho é, na verdade, a síntese: a certeza da presença de Jesus na comunidade e na história: “Eu estou convosco todos os dias, até o fim do mundo” (v. 20b). Embora a tradução do texto litúrgico apresente o verbo estar no futuro, o evangelista o emprega no presente (em grego: eivmi – eimí). O tema da presença é o fio condutor de todo o Evangelho segundo Mateus: no início, Jesus é apresentado como Emanuel, cujo significado é “Deus está conosco” (1,23); Ele mesmo garantiu estar presente quando a comunidade estivesse reunida em seu nome (18,20), e garante, aqui na conclusão, permanecer para sempre com os discípulos. É essa presença constante e perene que confere à comunidade a sua razão de existir.

Que possamos, portanto, viver impregnados da essência de Deus, como discípulos e discípulas de Jesus de Nazaré que, Ressuscitado, vive e está presente na história, ajudando-nos a compreender e viver tudo o Ele mesmo ensinou. Quando a comunidade tem certeza dessa presença, não tem medo de lançar-se à missão para compartilhar os seus ensinamentos e, ao mesmo tempo, está sempre de portas abertas para acolher a todos e todas sem distinção.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN



sábado, maio 19, 2018

REFLEXÃO PARA A SOLENIDADE DE PENTECOSTES – JOÃO 20,19-23



No domingo em que celebramos a solenidade de Pentecostes, o texto evangélico oferecido pela liturgia é João 20,19-23, trecho que relata a primeira manifestação do Senhor ressuscitado à comunidade dos discípulos, ao anoitecer do primeiro dia da semana, ou seja, o domingo mesmo da ressurreição. Esse texto já foi usado pela liturgia neste tempo pascal, como trecho do Evangelho do segundo domingo: Jo 20,19-31.


Pentecostes era uma das três festas mais importantes do calendário litúrgico judaico, juntamente com as festas da Páscoa e das Tendas; era celebrada no quinquagésimo dia após a páscoa, por isso recebeu o nome pentecostes. Inicialmente, seu sentido era estritamente agrícola, na qual se celebrava a conclusão da colheita. Na ocasião, os judeus mais devotos iam até Jerusalém para apresentar os melhores frutos da colheita como oferenda, em gratidão a Deus. Com o passar do tempo, a festa foi perdendo sua relação com a agricultura e ganhando um sentido mais religioso, passando a ser a festa do dom da lei. Esse novo sentido já estava consolidado no tempo de Jesus e dos apóstolos: pentecostes era a festa na qual os judeus recordavam a lei dada por Deus a Moisés.

Somente o evangelista Lucas, autor do livro dos Atos dos Apóstolos, faz coincidir o envio do Espírito Santo com a festa judaica de pentecostes. Isso é um mero artifício literário e teológico para levar as comunidades a adotarem os dons do Espírito Santo como única lei a ser seguida. A comunidade cristã, para ser fiel a Jesus e seu Evangelho, já não necessita mais das prescrições da Lei, basta estar sensível e aberta às intuições do Espírito Santo, dom do Ressuscitado.

Ao contrário do que Lucas propõe em Atos dos Apóstolos, a comunidade joanina fez de tudo para que os seus referenciais não coincidissem com os esquemas litúrgicos judaicos. Por isso, de acordo com o evangelista João, o Senhor ressuscitado doa o Espírito, seu dom maior, no dia mesmo da ressurreição. Embora a Igreja tenha adotado o esquema lucano, a proposta da comunidade joanina tem mais sentido e responde melhor às necessidades dos discípulos, como vemos no Evangelho de hoje. Amedrontada e sem poder de ação, essa não teria condições de esperar cinquenta dias para que o Espírito Santo se manifestasse em seu meio.

Embora estejamos, de fato, há cinquenta dias da páscoa, o Evangelho de hoje nos convida a retornarmos para aquele primeiro dia, o da ressurreição. Somente Maria Madalena tivera, até então, o privilégio de ver o Ressuscitado. Entre os discípulos reina o medo e a dúvida, como diz o texto: “Ao anoitecer daquele dia, o primeiro da semana, estando fechadas, por medo dos judeus, as portas do lugar onde os discípulos se encontravam, Jesus entrou e pondo-se no meio deles disse: a paz esteja convosco” (v 19).

Certamente, aquele foi um dia de muita tensão entre os discípulos. Isso se evidencia pelas informações do primeiro versículo: “reunidos a portas trancadas, por medo dos judeus”.  Esse dado evidencia insegurança e medo em demasia. Era uma comunidade em crise, em pleno desmoronamento. Embora em crise e amedrontada, parece que a comunidade estava decidida a não voltar mais aos esquemas de sempre: estava reunida “ao anoitecer do primeiro dia da semana”. Segundo o esquema litúrgico judaico, o anoitecer já não fazia mais parte do mesmo dia. Com esse dado, o evangelista apresenta a necessidade de distanciamento das tradições e prescrições da lei. Na embrionária comunidade cristã é necessário que o dia se prolongue, ou seja, as trevas não podem prevalecer sobre a luz. Mesmo que chegue a noite, o dia continua.

A situação de medo em que os discípulos se encontravam deve ser vista em um sentido mais amplo. Embora o evangelista afirme que era por “medo dos judeus” (em grego fo,bon tw/n VIoudai,wn – fóbon ton iudaion), não podemos generalizar. Nem todos os judeus transmitiam medo aos discípulos. O evangelista se refere às autoridades e fariseus que sempre foram hostis a Jesus e continuavam sendo também aos discípulos (cf. 9,22; 12,42; 16,16). Enquanto não fizer uma experiência de encontro com o Ressuscitado, toda comunidade tende a fechar-se por medo e falta de convicções. Naquele medo estava a angústia, a desilusão e o remorso de alguns; significa a ausência do Senhor. Sem a presença do Ressuscitado toda a comunidade perece e sua mensagem é bloqueada; as portas fechadas impedem a boa nova de ecoar e a acolhida ao novo, ao diferente.

Diante dessa situação, eis que “Jesus entrou e, pôs-se no meio deles”. Aqui aparece a primeira condição para a comunidade superar a crise: ter Jesus como centro. Com isso, o evangelista reforça o modelo de comunidade ideal: uma comunidade livre, igualitária, tendo um único centro: o Cristo Ressuscitado. Trata-se de um claro combate à tendência hierarquizante na comunidade do discípulo amado. É esse o significado do seu colocar-se no meio.

Manifestando-se no meio dos discípulos, o Ressuscitado inicia neles o processo de transformação, oferecendo o primeiro antídoto ao medo: o dom da paz! É o encontro com a paz de Jesus que levanta o ânimo da comunidade fracassada. A paz é sinal da vida em plenitude, o bem-estar do ser humano em todas as suas dimensões, condição indispensável para a felicidade. Jesus comunica a sua paz e, ao mesmo tempo, reforça o modelo de comunidade sonhado e praticado durante toda a sua vida: uma comunidade igualitária e livre, tendo um único centro: o Cristo Ressuscitado. É esse o significado do seu colocar-se no meio deles. Para uma comunidade viver realmente os propósitos do Evangelho é necessário, antes de tudo, que ao centro do seu existir esteja o Ressuscitado.

Na continuidade da experiência, Jesus “mostrou-lhes as mãos e o lado” (v. 20a), ou seja, as marcas do sofrimento, do flagelo e da cruz, garantindo a continuidade entre o Crucificado e o Ressuscitado. Com isso ele diz que a cruz não foi o fim e, assim, leva os discípulos à restituição da fé, uma vez que o principal motivo da desilusão e decepção deles foi o escândalo de um messias crucificado. É importante recordar sempre: o Ressuscitado tem as marcas do Crucificado. Ora, a cruz não foi um acidente na vida de Jesus, e não pode ser esquecida pela comunidade; pelo contrário, foi consequência de suas opções e do seu jeito de viver, e as opções da comunidade devem ser as mesmas. Portanto, é necessário que os discípulos estejam sempre, em todos os momentos da história, familiarizados com a cruz, não como símbolo ou adorno, mas como disposição de dar a vida por amor, como fez Jesus.

Finalmente, o medo foi vencido: “os discípulos se alegraram por verem o Senhor”. Conforme Ele mesmo tinha garantido, a tristeza dos discípulos foi transformada em alegria (cf. Jo 16,20). De uma situação de medo, a comunidade passa à alegria, como consequência da experiência com o Ressuscitado. A alegria é uma característica marcante da comunidade que vive e celebra a presença do Ressuscitado. A paz é novamente oferecida (v. 21a). Só é possível acolher plenamente os dons pascais com a paz oferecida por Jesus. É a mesma paz transmitida anteriormente como antídoto ao medo. Aqui, nessa segunda vez, a paz precede o envio, como encorajamento para a missão: não basta transformar o medo em alegria, é necessário anunciar e partilhar essa alegria... a alegria do Evangelho!

Ao contrário de Mateus, Marcos e Lucas que determinam as nações e até os confins da terra como destinos da missão (cf. Mt 28,19; Mc 16,15; Lc 24,47; At 1,8), em João isso não é determinado: “Como o Pai me enviou, também eu vos envio”. Jesus simplesmente envia. Sem diminuir a importância da missão em sua dimensão universal, o mais importante para o Quarto Evangelho é a comunidade. É essa a primeira destinatária da missão, porque é nessa que estão as situações de medo, desconfiança, angústia, falta de entusiasmo, por isso é a primeira a necessitar da paz do Ressuscitado. Sendo portadores da sua paz, os discípulos são enviados com as mesmas credenciais, pois Ele os envia como o “Pai o enviou” e, portanto, devem fazer as mesmas opções e assumir as respectivas consequências.

O texto mostra, como sempre, a coerência entre a prática e as palavras de Jesus: “E depois de ter dito isso, soprou sobre eles e disse: Recebei o Espírito Santo” (v. 22). Jesus tinha prometido o Espírito Santo na última ceia (cf. Jo 14,16.26; 15,26). Ao soprar sobre eles, a promessa é cumprida, o Espírito é comunicado. O evangelista usa o mesmo verbo empregado no relato da criação do ser humano: “O Senhor modelou o ser humano com a argila do solo, soprou-lhe nas narinas um sopro de vida, e o ser humano tornou-se vivente” (Gn 2,7). O verbo soprar aqui (em grego evmfu,sa,w – empsáo) significa transmissão de vida. Assim, podemos dizer que Jesus recria a comunidade e, nessa, a humanidade inteira.

Finalmente, a comunidade foi revivificada e habilitada para a missão. Ao receber o Espírito Santo (em grego pneu/ma a[gioj – pneuma háguios), a comunidade se torna também comunicadora dessa força de vida. É o Espírito quem mantém a comunidade alinhada ao projeto de Jesus, porque é Ele quem faz a comunidade sentir, viver e prolongar a presença do Ressuscitado como seu único centro. A missão da comunidade portadora do Espírito Santo é prolongar no tempo e no espaço a missão do próprio Jesus.

O Espírito Santo garante responsabilidade à comunidade, jamais poder. Por isso, devemos prestar muita atenção à afirmação de Jesus: “A quem perdoardes os pecados eles lhes serão perdoados; a quem não perdoardes, eles lhes serão retidos” (v. 23). Por muito tempo, esse trecho foi usado simplesmente para fundamentar o sacramento da penitência ou confissão, equivocadamente. Jesus não está dando um poder aos discípulos, mas uma responsabilidade à comunidade: reconciliar o mundo, levar a paz e o amor do Ressuscitado a todas as pessoas e de todos os lugares. A comunidade cristã tem essa grande missão: fazer-se presente em todas as situações para, assim, tornar presente também o Ressuscitado.

Não se trata, portanto, de poder para determinar se um pecado pode ou não pode ser perdoado. É a responsabilidade da obrigatoriedade da presença cristã para que, de fato, o mundo seja reconciliado com Deus. O Espírito Santo, doado pelo Ressuscitado, recria e renova a humanidade. A comunidade tem a responsabilidade de fazer esse Espírito soprar em todas as realidades, para que toda a humanidade seja recriada e, assim, o pecado seja definitivamente tirado do mundo (cf. Jo 1,29).

Assim como João, o batista, apontou para Jesus como o responsável por fazer o pecado desaparecer do mundo (cf. Jo 1,29), agora, é Jesus quem confia à comunidade essa responsabilidade.  Os pecados são perdoados à medida em que o amor de Jesus vai se espalhando pelo mundo, quando seus discípulos se deixam conduzir pelo Espírito Santo. O que perdoa mesmo é o amor de Jesus; logo, ficam pecados sem perdão quando os discípulos e discípulas de Jesus deixam de amar como Ele amou. Em outras palavras, os pecados ficarão retidos quando houver omissão da comunidade.

É na comunidade que o Ressuscitado se manifesta, fazendo essa perder o medo e insegurança. Somente uma comunidade que tem o Ressuscitado como centro, pode viver plenamente reconciliada, em paz e animada pelo Espírito. São essas as condições para que a alegria do Evangelho seja, de fato, anunciada! Deixando-se conduzir pelo Espírito Santo, a comunidade atualiza e prolonga, no tempo e no espaço, a missão única do próprio Jesus de revelar o amor de Deus a todas as pessoas.

Pe. Francisco Cornelio Freire Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, maio 12, 2018

REFLEXÃO PARA A SOLENIDADE DA ASCENSÃO DO SENHOR – MARCOS 16,15-20 (ANO B)




No domingo em que celebramos a solenidade da ascensão do Senhor, a liturgia oferece, neste ano B, o texto evangélico de Marcos 16,15-20, para nossa reflexão e meditação. A solenidade da ascensão marca a consumação da ressurreição: o Ressuscitado penetra no mundo do Pai, conferindo à sua comunidade de seguidores e seguidoras a continuidade da sua obra, enviando-a a proclamar o Evangelho, notícia boa e maravilhosa, à toda a criação. O texto confere a responsabilidade da comunidade cristã para que, mesmo na convivência eterna do Pai, o Ressuscitado continue presente no mundo através dos seus seguidores. Embora de grande riqueza teológico-eclesial, o texto carrega em si alguns problemas de caráter redacional.

É praticamente unanimidade entre os estudiosos que o evangelho original de Marcos termina em Mc 16,8, e os versículos seguintes, de 9 a 20, foram acrescentados posteriormente, já após algumas décadas. Dois motivos principais contribuem para essa teoria; o primeiro é a mudança de estilo literário entre esses versículos e o restante do evangelho; o segundo motivo é a ausência desses versículos nos manuscritos mais antigos desse evangelho, os códigos Vaticano e Sinaítico. Como 16,8 termina dizendo que naquele primeiro dia semana “as mulheres fugiram do túmulo com medo”, a comunidade completou o texto, colhendo informações dos outros evangelhos, dando uma conclusão menos angustiante ao evangelho. De fato, nos versículos de 9 a 20, podemos encontrar uma espécie de síntese dos relatos de aparição dos outros três evangelhos: referência aos discípulos de Emaús (cf. v. 12), típico de Lucas; menção à incredulidade (cf. v. 14), típico de João, e o envio missionário universal (v. 15), característico da conclusão de Mateus. O acréscimo desses versículos, portanto, serviu para apagar, em partes, a impressão de incompletude no Evangelho segundo Marcos.

Uma vez contextualizado, olhemos para o texto que nos é oferecido: “Naquele tempo, Jesus se manifestou aos onze discípulos, e disse-lhes: Ide pelo mundo inteiro e anunciai o Evangelho a toda criatura!” (v. 15). Lendo o versículo anterior, sabemos que foi na mesa, durante a refeição, que Jesus se manifestou (cf. v. 14). A comunidade se encontrava fechada, amedrontada e incrédula. A presença do Ressuscitado impulsiona, provoca abertura de perspectiva e compromisso. As palavras são claramente de um envio universal. A novidade é que não são apenas os seres humanos os destinatários do Evangelho, mas a criação inteira: toda criatura. Como boa notícia, o Evangelho, anunciado e vivido fielmente pela comunidade cristã, comporta uma forma de vida totalmente nova em relação à todas as experiências até então praticadas, propondo uma relação harmoniosa com a criação inteira, e não apenas com os seres humanos.

Como obra de Deus, toda a criação precisa ser revestida do amor do Pai revelado em Jesus, a essência do Evangelho, uma vez que o mal presente no mundo atinge a criação inteira. De fato, Paulo já tinha se dado conta dessa realidade: “a criação inteira e sofre como em dores de parto” (Rm 8,22). Somente o amor do Pai revelado em Jesus, vivido e transmitido pela comunidade de seus seguidores e seguidoras, pode restaurar a criação. Por isso, é urgente que todas as criaturas sejam revestidas de amor e conheçam a forma de vida que o Evangelho propõe.

O Evangelho é dom gratuito, não uma doutrina a ser imposta; por isso, pode ser aceito ou não. O anúncio cristão só é autêntico se respeitar a liberdade dos destinatários. Como toda escolha tem consequências, assim também é a adesão ao Evangelho: “Quem crer e for batizado será salvo. Quem não crer será condenado” (v. 16). Crer, aqui, é aderir, dar adesão a uma proposta de vida, é aceitar o amor de Jesus e deixar-se envolver por ele, e não simplesmente repetir fórmulas. A aceitação do Evangelho é seguida pelo batismo, sinal dessa adesão e de comunhão com a comunidade. Quem faz essa experiência, será salvo, ou seja, terá sua vida ressignificada, plenificada e cheia de sentido, já não mais vulnerável aos efeitos da morte.

Não crer, ou seja, rejeitar o amor de Jesus também traz consequências. O texto diz que “aquele que não crer será condenado”, mas não diz que é Deus quem condena porque, sendo essencialmente amor, ele não condena ninguém. É o próprio ser humano que se auto condena quando não aceita o amor como regra de vida. É condenado, portanto, quem não consegue dar sentido à sua existência, e isso é perder a vida. Fechar-se ao amor de Deus é deixar de viver plenamente.

Quem aceita a proposta de amor contida no Evangelho tem a vida transformada, não como passe de mágica, mas como forma de viver e compreender as coisas. Por isso, Jesus elenca alguns sinais: “Os sinais que acompanharão aqueles que crerem serão estes: expulsarão demônios em meu nome, falarão novas línguas, se pegarem em serpentes ou beberem algum veneno mortal, não lhes fará mal algum; quando impuserem as mãos sobre os doentes, eles ficarão curados” (vv. 17-18). Antes de tudo, é importante recordar que os sinais elencados não são dons conferidos aos anunciadores, mas aos que crêem, ou seja, Jesus não está dotando os seus discípulos de dons extraordinários, mas comprometendo-os: o anúncio deve ser transformador de vidas. Por expulsar demônios, entende-se a eliminação do mal do mundo; não se trata de ritos de exorcismos, mas de compromisso com o bem. Quem adere ao Evangelho elimina o mal da sua vida e da vida do seu próximo. O antídoto ao mal é o amor. Falar novas línguas significa a abertura ao universalismo da salvação e a convivência fraterna das diversas culturas em torno do Evangelho. O amor quebra barreiras e abre perspectivas sem impor nada.

Na sequência dos sinais que devem acompanhar aqueles que crerem no Evangelho, percebemos uma releitura da descrição profética dos tempos messiânicos em Isaías (cf. Is 11,1-19): um mundo completamente harmônico, com todas as criaturas convivendo entre si sem nenhuma causar dano ao outro. O sonho de um mundo novo inspirava a criatividade dos profetas para descrever a realidade imaginada e desejada. Com imagens tão interpelantes, o texto quer ressaltar a força transformadora do Evangelho e mostrar que, tanto o anúncio quanto a adesão a esse, implicam em compromisso transformador de vidas e situações.

Com uma imagem típica de entronização, o autor narra a ascensão propriamente dita: “Depois de falar com os discípulos, o Senhor Jesus foi levado ao céu, e sentou-se à direita de Deus” (v. 19). Sentar-se à direita significa uma posição de honra. Essa imagem era muito usada nas cortes do antigo Oriente, influenciando bastante a literatura bíblica. Aqui, significa que Jesus cumpriu fielmente a sua missão de revelar, com palavras e ações, o rosto amoroso do Pai. Ao invés de suscitar sentimentos de triunfalismos nos seus seguidores, essa imagem deve gerar compromisso: tendo retornado ao Pai, cabe agora aos discípulos e discípulas a missão de irradiar o seu amor no mundo. Inclusive, o autor do texto deixa muito claro isso, com o versículo conclusivo: “Os discípulos então saíram e pregaram por toda parte. O Senhor os ajudava e confirmava sua palavra por meio dos sinais que o acompanhavam” (v. 20a).  A resposta da comunidade ao retorno de Jesus ao Pai não é a contemplação com espera passiva pela sua segunda vinda, mas a missão: Jesus sobe ao céu, e os discípulos saem por toda parte. A missão de Jesus, portanto, não se conclui com a ascensão, mas ganha com ela novos aspectos e dimensões; ela deve continuar através dos discípulos, e o texto atesta como as primeiras gerações de cristãos e cristãs levaram a sério esse mandato.

Quando a comunidade assume a missão, ela nunca está sozinha, o Senhor está presente. O anúncio, se autêntico, deixa marcas, transforma as situações. Os sinais concretos que devem marcar o anúncio não são condições para despertar a fé, mas consequência: “O Senhor os ajudava e confirmava sua palavra por meio dos sinais que a acompanhavam” (v. 20b). Os sinais apenas confirmavam o anúncio. Esses sinais são os frutos de amor gerados: a justiça, a fraternidade, a aceitação das diferenças, o acolhimento, a solidariedade, a tolerância.

O Ressuscitado está presente onde o Evangelho é anunciado, vivido e produz frutos de amor! Os sinais são consequências da força indescritível do amor; é essa a energia vital de qualquer comunidade cristã; amor que aumenta à medida em que é experimentado.

Pe. Francisco Cornelio Freire Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN


sábado, maio 05, 2018

REFLEXÃO PARA O VI DOMINGO DA PÁSCOA – JOÃO 15,9-17




Neste sexto domingo da páscoa continuamos a leitura do capítulo 15 do Evangelho segundo João, iniciada no domingo passado. A liturgia de hoje propõe os versículos de 9 a 17, os quais podem ser considerados como a explicação e aplicação da alegoria da videira, usada por Jesus nos versículos de 1 a 8, como lemos no último domingo.

É sempre oportuno recordar que esse capítulo 15, fazendo parte do chamado “Testamento de Jesus”, assume uma centralidade ímpar para a vida dos cristãos e cristãs de todos os tempos. Se trata de um ensinamento essencial para a comunidade permanecer fiel aos propósitos de Jesus, não obstante as dificuldades e, ao mesmo tempo, para fazer retornar à essência da fé, quando por ventura se distanciar. É uma resposta para situações de crise, principalmente, quando a identidade cristã estiver ameaçada, seja por fatores externos (perseguição), ou internos (autoritarismo, centralização, divisão, falta de unidade e de amor).  

Com a imagem da videira e seus ramos, Jesus exortou simbolicamente os discípulos a permanecerem unidos a ele; agora, ele deixa a linguagem simbólica de lado, e fala claramente que a maneira ideal e única para alguém unir-se a ele é permanecendo no seu amor: “Como meu Pai me amou, assim também eu vos amei. Permanecei no meu amor” (v. 9). Esse não é um ensinamento teórico ou abstrato, mas se trata de algo concreto e real, pois ele mesmo deu o exemplo, amando-os primeiro com um amor inconfundível, igual ao do Pai por ele. O parâmetro do amor, o exemplo a ser seguido na comunidade não pode ser outro senão o próprio Cristo, e a comunidade só é autenticamente cristã quando nela são vividas relações de amor tão intensas quando as de Jesus com o Pai.

É indiscutível que o discípulo se torna “ramo unido à videira” permanecendo no amor de Jesus. Mas esse amor, para ser verdadeiro, precisa ser manifestado concretamente, como ele mesmo explica: “Se guardardes os meus mandamentos, permaneceis no meu amor, assim como eu guardei os mandamentos do meu Pai e permaneço no seu amor” (v. 10). Os mandamentos (em grego: ta.j evntola,j – tás entolás) aos quais Jesus se refere aqui não são normas nem preceitos, mas é todo o conjunto da sua mensagem e da sua práxis, o que pode ser resumido pela prática do amor, como ele mesmo faz (cf. v. 12), mas é sempre oportuno recordar como ele praticou esse amor: lavando os pés, perdoando, acolhendo, defendendo os humildes e excluídos, curando feridas, e não julgando nem condenando. Foi com essas atitudes que ele guardou os mandamentos do Pai, ou seja, fez a sua vontade, e é assim que a comunidade dos seus seguidores e seguidoras também deve fazer.

O amor vivido e praticado reciprocamente na comunidade tem como primeiro fruto a alegria: “Eu vos disse isso para que a minha alegria esteja em vós e a vossa alegria seja plena” (v. 11). Não se trata de um simples estado de exaltação emotiva, e sim da expressão de quem encontrou o verdadeiro sentido da vida; e o sentido da vida que Jesus experimentou pessoalmente e propõem aos seus seguidores e seguidoras consiste exatamente na capacidade de entregá-la por amor, porque nem a morte é capaz de destruir uma vida assim. Por isso, na comunidade onde se vive realmente o amor de Jesus, a alegria está presente porque essa atesta a convicção de que o amor do Ressuscitado está sendo vivido.

De mandamentos, Jesus passa a falar de um único mandamento: “Este é o meu mandamento: amai-vos uns aos outros, assim como eu vos amei” (v. 12). Aqui está a grande síntese de todo o seu ensinamento e, ao mesmo tempo, a responsabilidade da comunidade: essa não tem outro critério para afirmar sua pertença a Jesus a não ser o amor praticado reciprocamente entre os cristãos e cristãs. Por isso, na conclusão ele irá repetir novamente esse imperativo do amor (cf. v. 17). E esse amor deve ser incondicional e ilimitado, pois tem como parâmetro o amor de Jesus, e esse, por sua vez, é igual ao amor do Pai. É importante ainda perceber que Jesus já nem pede que os discípulos lhe amem, até porque o amor do Pai lhe basta, mas pede que se amem entre si, formando, de fato, uma comunidade de amor. Ele insiste em colocar-se como parâmetro: o amor só vale se for como o seu, ou seja, incondicional e intenso, capaz de dar a vida.

Como parâmetro único de amor para a sua comunidade, Jesus diz o porquê: “Ninguém tem amor maior do que aquele que dá sua vida pelos amigos” (v. 13), e ele foi capaz disso, por isso fala com autoridade e propriedade. Além de enfatizar o caráter insuperável do seu amor, aqui ele acrescenta uma novidade, mostrando que na sua comunidade, se o amor for realmente levado a sério, as relações serão de amizade: “Vós sois meus amigos, se fizerdes o que eu vos mando” (v. 14). Amigo (em grego: fi,loj – fílos) é uma pessoa cara, dileta, especial, amada gratuitamente, em uma relação de igualdade. Ser amigo de Jesus é fazer o que ele manda, e o que ele manda é apenas amar como ele amou. Portanto, nenhum fardo é imposto, mas apenas uma condição: amar à sua maneira.

A igualdade, por sinal, deve ser também um traço característico da comunidade, uma vez que seus membros não são súditos, mas amigos: “Já não vos chamo servos, pois o servo não sabe o que faz o seu senhor. Eu vos chamo amigos, porque vos dei a conhecer tudo o que ouvi de meu Pai” (v. 15). Essa é uma das declarações mais revolucionárias de Jesus em todo o Evangelho. Sua comunidade não é um grupo com dominador e dominados, patrão e servos, mas um grupo de amigos, pessoas que estão juntas em pé de igualdade. A amizade é atestada pela gratuidade e transparência nas relações. O gesto do lava-pés (cf. Jo 13,1-15) já tinha antecipado essa declaração na prática; aqui ele explica o gesto com clareza. Mais uma vez, Jesus reproduz entre os discípulos a sua experiência com o Pai, mostrando que, realmente, é o Pai a fonte originária de tudo o que a comunidade deve viver.

Enquanto o Deus da religião oficial era um soberano distante, juiz, vigilante e vingativo, Jesus interage diretamente com a sua comunidade como um dos membros, por vontade própria. O evangelista resgata essa dimensão porque percebia que, aos poucos, o modelo de comunidade proposto por Jesus estava perdendo espaço para uma estrutura parecida com aquilo que Jesus mais tinha combatido: com divisões, rivalidades, ritualismos e centralização. Na comunidade cristã, marcada por amor e igualdade, devem imperar a confiança, a transparência e a solidariedade.

Em se tratando de um discurso de despedida, não podem falta palavras de envio; porém, a missão no Quarto Evangelho tem como destinatária primeira a própria comunidade. Antes de atravessar qualquer fronteira, o amor deve estar bem enraizado na comunidade. Por isso, Jesus envia, reforçando que é sua a iniciativa do chamado: “Não fostes vós que me escolheste, mas fui eu que vos escolhi e vos designei para irdes e para produzirdes frutos e o vosso fruto permaneça. O que então pedirdes ao meu Pai em meu nome, ele vo-lo concederá” (v. 16). Como amigos, os discípulos são escolhidos por ele e designados para produzir frutos perenes de amor e justiça. Assim como já tinha deixado claro na alegoria da videira, a comunidade de discípulos e discípulas só produz frutos se permanecer unida a ele, amando como ele amou. Ele envia, mas não confere nenhuma fórmula ou doutrina para ser ensinada. O objetivo da missão é apenas produzir frutos permanentes de amor.

A permanência do discípulo em Jesus, semelhante à do ramo à videira, garante a sintonia entre ambos, a ponto de a vontade de um ser confirmada pelo outro; essa sintonia só pode ser atestada pelos frutos produzidos. De fato, a produção dos frutos é a confirmação da unidade e, portanto, de que o amor está sendo vivenciado. Isso tudo gera confiança no Pai. Porém, não se trata de uma confiança mágica e ingênua, mas de uma afinidade de sentimentos e projetos. O discípulo e discípula que ama, vive com Jesus uma relação de tamanha transparência, semelhante àquela entre Jesus e o Pai: “Eu e o Pai somos um” (Jo 10,30). Assim, o discípulo que vive o amor e o faz frutificar passa a gozar perante o Pai da mesma afinidade de Jesus. Portanto, tudo o que o Pai faz por Jesus, fará também por aqueles que Jesus escolheu: seus discípulos e discípulas de todos os tempos.

Concluindo, Jesus recorda que, para que tudo isso aconteça, há uma condição indispensável: “Isto é o que vos ordeno: amai-vos uns aos outros” (v. 17). Esse imperativo “amai-vos uns aos outros” (em grego: avgapa/te avllh,louj – hína agapáte alelus) é uma espécie de refrão no Evangelho de hoje, e o deve ser na vida de todos os cristãos e cristãs. Nada pode substituir o amor entre os seguidores e seguidoras de Jesus. De fato, pode faltar tudo numa comunidade cristã, menos o amor entre os seus membros. É esse amor que atesta se a comunidade é realmente cristã, ou seja, se está unida a Jesus.

Pe. Francisco Cornelio Freire Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

REFLEXÃO PARA O 4º DOMINGO DA PÁSCOA – JOÃO 10,11-18 (ANO B)

O evangelho do quarto domingo da páscoa é sempre tirado do capítulo décimo do Evangelho de João, no qual Jesus se auto apresenta como o ún...