sábado, outubro 31, 2020

REFLEXÃO PARA A SOLENIDADE DE TODOS OS SANTOS – MATEUS 5,1-12a

 



O evangelho que a liturgia propõe para a solenidade de todos os santos é Mateus 5,1-12a. É um texto fixo, lido todos os anos, certamente porque nenhum outro expressa tão bem o sentido da santidade como esse. Trata-se da introdução do primeiro dos cinco discursos de Jesus no Evangelho segundo Mateus, conhecido como “discurso ou sermão da montanha”. Essa introdução ficou conhecida como “bem-aventuranças”, devido a repetição constante do termo grego makárioi (μακάριοι), cujo significado é benditos, felizes ou bem-aventurados. Esse é, certamente, um dos trechos mais lidos e conhecidos de todo o Novo Testamento, apreciado por cristãos e não cristãos. Gandhi, por exemplo, definiu as bem-aventuranças como “as palavras mais altas que a humanidade já escutou”.

As bem-aventuranças compreendem a síntese do programa de vida de Jesus e, consequentemente, dos seus discípulos e discípulas de todos os tempos. É um texto belo, mas muito fácil de ter seu sentido deformado, se interpretado de modo equivocado, como geralmente tem acontecido. Ora, falar em todos os santos e santas tem tudo a ver com o autêntico seguimento de Jesus de Nazaré. Por isso, é importante refletir cada vez mais sobre as palavras de Jesus que o Evangelho apresenta.

O discurso da montanha é um indicador de direção para o discipulado de Jesus e, portanto, para a santidade. Devemos, pois, concentrar nossa reflexão na mensagem evangélica, evitando que esta solenidade se transforme em mera apologia ao devocionismo fundamentalista que tanto tem se difundido nos últimos anos. Por isso, é preciso ter clareza do programa de vida de Jesus com seu projeto de sociedade e, consequentemente, das suas exigências.

De todas as palavras atribuídas a Jesus que encontramos ao longo dos evangelhos, as bem-aventuranças são as mais interpelantes e revolucionárias, embora sejam as mais fáceis de serem deturpadas, passando de uma mensagem de transformação a uma de resignação. Infelizmente, isso tem acontecido com muita frequência. Por isso, é necessário compreendê-las bem, para que sua mensagem seja sempre de encorajamento e transformação. Na versão mateana, encontramos oito bem-aventuranças, embora alguns comentadores considerem nove, devido à ocorrência do termo grego makárioi (μακάριοι) por nove vezes. Não consideramos a nona ocorrência do termo (v. 11) como uma nova bem-aventurança, mas como uma recapitulação e síntese das oito para os discípulos, reforçando a exigência para que eles de fato vivessem intensamente todas elas.

Para compreendermos as bem-aventuranças em seu sentido original, é necessário fazer mais uma consideração semântica. Como já afirmamos anteriormente, o termo grego empregado no Evangelho é makárioi (μακάριοι), o qual pode ser traduzido por benditos, felizes ou bem-aventurados; é uma fórmula que introduz uma mensagem de felicitação. É importante recordar que, embora escritos em grego, os evangelhos foram construídos segundo uma mentalidade semítica, sobretudo o de Mateus. Por isso, é importante recordar o sentido da palavra na língua original de Jesus, o hebraico. Ora, o termo correspondente ao grego μακαριοι – makárioi, em hebraico é (אשריashrei, o qual significa uma felicitação, mas é, ao mesmo tempo, uma forma imperativa do verbo caminhar, seguir em frente, avançar ou pôr-se em marcha. Acreditamos que o evangelista pensou nos dois sentidos ao formular o seu texto. Sem esse segundo sentido, as bem-aventuranças não passariam de conformismo ou resignação; com ele, passam a ser uma mensagem de transformação.

Olhemos, pois, para cada uma das situações contempladas por Jesus como necessitadas de transformação. Eis a primeira bem-aventurança“Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o Reino dos Céus” (v. 3). De todas, tem sido essa a bem-aventurança que tem recebido as interpretações mais equivocadas ao longo da história, infelizmente. Longe de ser um convite ao conformismo, é um impulso à transformação. Na língua grega a palavra pobre (πτωχός – ptokós) deriva do verbo acocorar-se de medo, dobrar-se, abaixar-se, encurvar-se; designa, portanto, uma condição de humilhação extrema.

O convite de Jesus é para que não desanimem, mas sigam em frente, não desistam, coloquem-se em marcha para alcançarem o Reino que foi criado para eles, o Reino dos Céus, mas não no céu, aqui mesmo na terra, como sinônimo de vida digna e plena. Aqui o termo espírito (em grego: πνεύμα – pneuma) é empregado como sinônimo de consciência da situação em que se encontram os pobres, encurvados de medo pela opressão do império romano e pela religião oficial da época. A esses, Jesus convida a perder o medo e, conscientemente, seguir em frente lutando pelo Reino. O pobre que se encontra encurvado pelo sistema, deve tomar consciência da sua situação insuportável e lutar, seguindo em busca de seus direitos de herdeiro do Reino.

segunda bem-aventurança diz: “Bem-aventurados os aflitos, porque serão consolados” (v. 4). Ora, jamais será consolado o aflito que se fecha em suas aflições, mas sim aquele que consegue mover-se, apesar do sofrimento. Ser consolado na mentalidade bíblica é ter o sofrimento eliminado por completo. A implantação do Reino dos Céus em um mundo tão hostil traz muitas aflições para os discípulos de Jesus. Mesmo assim, eles devem avançar, jamais recuar, para encontrar a consolação.

Na terceira bem-aventurança, Jesus diz: “Bem-aventurados os mansos, porque possuirão a terra” (v. 5). O termo manso equivale a humilde, e significa a pessoa que reivindica alguma coisa sem violência. Nesse caso particular, equivale às pessoas que lutam pela terra sem fazer uso da violência. A luta sem violência se torna mais lenta e, aparentemente, mais difícil de conseguir o objetivo. Por isso, Jesus encoraja, pede paciência, determinação e ação; em outras palavras, é como se ele dissesse: “não parem, continuem caminhando e lutando”. Era muito comum os pequenos camponeses perderem suas terras por dívidas, com possibilidade de resgate. À medida que o tempo passava, as esperanças de resgate diminuíam e muitos desanimavam. Por isso, Jesus os consola e os encoraja.

Como não poderia deixar de ser, Jesus coloca para os discípulos, conforme ele mesmo o fizera, a justiça como uma busca incessante. Por isso, a quarta bem-aventurança é tão forte: “Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados” (v. 6). A fome e a sede são as necessidades que mais incomodam o ser humano. Assim como o alimento e a bebida são essenciais para a vida, também deve ser a luta por justiça entre seus discípulos. A comunidade cristã não tem vida quando não se alimenta cotidianamente de justiça. Onde não há justiça, não há dignidade, não há paz. É preciso seguir em frente na luta por justiça.

Na quinta bem-aventurança, temos: “Bem-aventurados os misericordiosos, porque encontrarão misericórdia” (v. 7). É importante recordar que misericórdia, na Bíblia, não é um sentimento, mas uma ação em favor dos necessitados. Com isso, Jesus pede que seus discípulos prossigam sempre no caminho do bem. A misericórdia é uma das principais características do Deus de Jesus, por isso, deve ser também para os seus seguidores. Seguir fazendo o bem ao próximo, sem distinção, é uma das principais exigências do discipulado.

Com a sexta bem-aventurança, Jesus se contrapõe claramente aos ritos de purificação da religião judaica: “Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus” (v. 8). Os antigos ritos de purificação do judaísmo tinham escondido o rosto verdadeiro de Deus. Jesus proclama a nulidade daqueles ritos e pede para seus discípulos caminharem em outra direção, avançarem por outro caminho que não seja o da religião que divide, exclui e até mata. Só há um tipo de pureza: aquela interior, e essa não é proporcionada por nenhum rito, mas somente pela disposição do ser humano em seguir os propósitos de Deus. Vê a Deus quem olha para o próximo com os olhos de Deus. É nessa direção que o discípulo de Jesus deve marchar, avançar.

sétima bem-aventurança diz: “Bem-aventurados os que promovem a paz, porque serão chamados filhos de Deus” (v. 9). Na marcha da comunidade formada por discípulos e discípulas de Jesus, a promoção da paz é requisito básico e essencial. Não se trata de uma falsa paz como aquela imposta por Roma, intitulada “pax romana”. A paz que Jesus propõe não é uma mera ausência de conflitos, mas um retorno ao ideal hebraico expresso pela palavra (שלום) shalom: paz como bem-estar total do ser humano, harmonia com Deus, com o próximo e consigo mesmo. É por essa paz que a comunidade de discípulos e discípulas deve lutar enquanto caminha, fazendo dessa paz o rumo da caminhada. Não há prêmio para quem caminha promovendo a paz, mas há consequências: ser chamados filhos de Deus. Na tradição bíblica, ser filho é ser parecido com o pai. Quando alguém caminha promovendo a paz, se torna parecido com Deus, por isso, será chamado seu filho.

oitava bem-aventurança funciona como uma espécie de credencial para o reconhecimento do discípulo e sua pertença ao Reino: “Bem-aventurados os que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o Reino dos Céus” (v. 10). A justiça, por excelência, é a prática das bem-aventuranças anteriores. A quem adere plenamente à lógica do Reino, não há outra consequência a não ser a perseguição. Mas, mesmo diante da perseguição, a palavra de Jesus continua sendo de ânimo e encorajamento: continuai caminhando, avançando, marchando em busca do Reino que é vosso!

Viver as bem-aventuranças é, portanto, abraçar um projeto de sociedade alternativa que, inevitavelmente, entra em conflito com os sistemas dominantes baseados na exploração, no lucro, na sobreposição de uns sobre os demais e pela violência. Mas é diante de tudo isso, ou seja, no conflito, que a comunidade cristã deve avançar, seguir em frente sem jamais desanimar. Por isso, Jesus reforçou todo o ensinamento anterior, direcionando diretamente para os discípulos a conclusão com as consequências do abraçar o seu projeto: “Bem-aventurados sois vós, quando vos injuriarem e perseguirem, e, mentindo, disserem todo tipo de mal contra vós, por causa de mim. Alegrai-vos e exultai, porque será grande a vossa recompensa nos céus” (vv. 11-12a). Alguns estudiosos vêem essa afirmação como uma nova bem-aventurança, enquanto outros, a maioria, a vêem como um reforço e síntese conclusiva das oito anteriormente apresentadas. Aquelas oito são inseparáveis. Jesus não as apresenta como sugestões para os discípulos escolherem uma ou outra. É preciso viver todas elas para ser discípulo e discípula de Jesus, pois nelas ele traça o seu próprio retrato, diz como ele mesmo viveu, caminhou ou avançou; e o discípulo deve, inevitavelmente, viver como ele.

Assim, recordando que Paulo e os demais cristãos de suas comunidades chamavam-se mutuamente de santos, e eram cristãos porque levavam a sério as bem-aventuranças, podemos compreender que celebrar todos os santos é recordar todos os que não aceitam as coisas como são impostas, mas sabem mover-se, avançar e seguir um outro caminho, não para fugir da realidade, mas para transformá-la à maneira de Jesus.

Para seguir Jesus é preciso estar em estado permanente de marcha, caminhando contra tudo o que impede a realização do Reino já aqui na terra. A comunidade cristã não pode mais aceitar que uma mensagem tão encorajante e transformadora se transforme em sinal de resignação e aceitação passiva diante de tudo o que impede o advento do Reino. A mensagem das bem-aventuranças é libertadora porque convida o discípulo e a discípula a sair de si, colocar-se em movimento rumo a um mundo melhor, mais justo e mais fraterno.

 Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, outubro 24, 2020

REFLEXÃO PARA O 30º DOMINGO DO TEMPO COMUM – Mt 22,34-40 (ANO A)

 


O evangelho deste trigésimo domingo do tempo comum – Mt 22,34-40 – continua a série de confrontos ou disputas entre Jesus e as classes dirigentes e grupos influentes de Israel, na fase final do seu ministério em Jerusalém. Tudo começou com a corajosa denúncia à transformação do templo em casa de comércio e covil de ladrões (Mt 21,12-17), logo após sua entrada na cidade. Daquele momento em diante, cada passo de Jesus passou a ser milimetricamente vigiado. Havia uma espécie de consórcio entre os diversos grupos hegemônicos – nos âmbitos político, econômico, religioso e intelectual – com o objetivo de colocar Jesus em situações constrangedoras, até encontrar motivos para condená-lo, seja por subversão política ou por transgressão religiosa. Esses grupos se alternavam no confronto: quando um deles ficava sem argumentos, outro entrava em cena com uma questão ainda mais embaraçante.

Os primeiros grupos a confrontá-lo diretamente foram os sacerdotes e anciãos, questionando com que autoridade ele ensinava no templo (Mt 21,23-27). A esses, Jesus respondeu com uma série de três parábolas (Mt 21,28–22,14), deixando-os sem argumentos, pelo menos momentaneamente. Em seguida, entraram em cena os fariseus e os herodianos, questionando sobre a legitimidade do pagamento do imposto ao império romano (Mt 22,15-22), aos quais Jesus também deixou sem palavras. Depois, entraram em cena os saduceus perguntando sobre a ressurreição, com a estranha parábola da mulher que ficou viúva sete vezes, cujos maridos eram todos irmãos (Mt 22,23-33); também a esses Jesus deixou calados. À exceção da disputa com os saduceus, todas as demais foram lidas na liturgia dos últimos domingos.

O texto lido hoje mostra uma nova investida dos fariseus, o grupo mais preparado em relação ao conhecimento da doutrina e da Lei. Inclusive, a maioria dos doutores da Lei pertenciam ao grupo dos fariseus. Como a questão tratada no evangelho de hoje refere-se à Lei, e os interlocutores de Jesus são os fariseus, tudo aponta para um caloroso embate. Eis o início do texto: “Os fariseus ouviram dizer que Jesus tinha feito calar os saduceus” (v. 34a). As primeiras palavras do texto já denunciam o complô: os grupos agiam em comum acordo, de modo que se um deles falhasse, outro já estava pronto para agir, mostrando que havia um verdadeiro cerco contra Jesus. Os fariseus percebem que fica cada vez mais difícil vencê-lo com argumentos, por isso se preparam melhor dessa vez: “Então eles se reuniram em grupo” (v. 34b). Certamente, se reuniram para elaborar uma pergunta mais difícil e escolher um dos mais capacitados para perguntar.

O objetivo da pergunta é muito claro: “e um deles perguntou a Jesus, para experimentá-lo” (v. 35). Embora a tradução litúrgica empregue o verbo experimentar, o que melhor corresponde à língua original do texto é tentar; é o mesmo verbo empregado no episódio das tentações para descrever a ação de satanás (em grego: πειράζω – peirázo) no início da vida pública de Jesus (Mt 4,1). Com isso, o evangelista recorda que, do início ao fim, a vida de Jesus foi marcada pela tentação, pelo confronto com os inimigos, opositores do Reino, sendo que na maioria das vezes são as próprias pessoas religiosas que assumem o papel de satanás; inclusive, os próprios discípulos, como Pedro, a quem Jesus chegou a chamá-lo explicitamente de satanás (Mt 16,23).

Escolhido a dedo pelo grupo, um dos fariseus faz uma pergunta interessante, teologicamente, mas ao mesmo tempo maliciosa, tendo em vista as intenções de tentar Jesus: “Mestre, qual é o maior mandamento da lei?” (v. 36). A falsidade deles já é perceptível pela introdução da pergunta: chamam a Jesus de mestre (em grego: διδάσκαλος – didáskalos) sem reconhecê-lo como tal. A especialidade dos fariseus era exatamente o estudo minucioso da lei e dos mandamentos. Com essa pergunta eles não pretendiam aprender, mas fazer Jesus cair em contradição até ser acusado de blasfemo e transgressor da Lei. Nas escolas rabínicas, essa pergunta era muito frequente e gerava bons debates. Isso porque elaboraram um catálogo com 613 mandamentos, encontrados na Torá, divididos entre 365 proibições e 248 obrigações. Diante de um número tão alto, sendo difícil até a memorização, surgiam muitas perguntas a respeito; ora, não sendo possível observar todos, quais são os essenciais? Havia uma diversidade de posições: entre os fariseus, predominava a ideia do sábado como o maior mandamento, com a alegação de que até Deus observava esse mandamento (Gn 2,2-3; Ex 20,8-11; Dt 5,12-15). Inclusive, já tinham entrado em conflito com Jesus, ainda na Galileia, acusando-o de relativizar o sábado (Mt 12,1-13). Outros grupos consideravam que o essencial era a observação do decálogo (Ex 19,3-17; Dt 5,6-21). E outros, ainda, defendiam a igualdade entre todos os mandamentos, uma vez que todos tinham a mesma origem divina.

Desde o início da sua vida pública, Jesus tinha demonstrado muita liberdade ao interpretar os mandamentos e toda a Lei, colocando sempre o bem da pessoa e da criação acima de qualquer preceito. Por isso, os fariseus imaginavam que com essa pergunta teriam argumentos para deixá-lo em situação difícil, uma vez que Jesus já tinha fama de relativizar a Lei. Como sempre, ao invés de incompleta, a resposta de Jesus vai muito além do que fora pedido: “Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todo o teu entendimento!” (v. 37). Jesus encontra uma resposta que transcende o decálogo. Essa resposta encontra seu fundamento justamente no credo de Israel, o Shemá, que os fariseus tão bem conheciam: “Ouve ó Israel: O senhor é nosso Deus e único Senhor! Por isso, amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma e com toda a tua força” (Dt 6,4-5).

Com pequenas modificações, Jesus confirma que o ser humano deve amar a Deus com o máximo de si. Como ele mesmo diz, “esse é o maior e o primeiro mandamento” (v. 38), qualificando-o com dois adjetivos absolutos: maior (em grego: μεγάλη – megále) e primeiro (em grego: πρώτος – protos), significando aquilo que é essencial e irrenunciável. Porém, a resposta de Jesus não visa uma hierarquização dos mandamentos, mas uma denúncia: enquanto os fariseus buscavam classificar os mandamentos, Jesus diz que basta viver a genuína fé israelita, da qual eles se achavam os primeiros guardiões. O Shemá era proclamado duas vezes ao dia, ao amanhecer e ao anoitecer pelos fariseus, mas na verdade eles não viviam aquilo que proclamavam. Se vivessem em comunhão com Deus, não ficariam presos a preceitos.

Novamente, a resposta de Jesus transcende à pergunta: “o segundo é semelhante a esse: “Amarás ao teu próximo como a ti mesmo” (v. 39). Aqui, Jesus cita o livro do Levítico (Lv 19,18b). É importante perceber a introdução: “é semelhante”, quer dizer, é equivalente, está no mesmo nível. Para Jesus, o amor a Deus não pode ser separado do amor às pessoas; aqui está a singularidade e novidade do seu ensinamento. É evidente que ele não inventa esse segundo mandamento, pois já estava na Lei. Mas ninguém antes dele tinha ousado considerar o amor ao próximo no mesmo nível do amor a Deus. Inclusive, o conceito de próximo na Lei era restrito ao compatriota, o membro do mesmo povo, embora as leis de Israel protegessem o estrangeiro melhor do que as leis de qualquer outra nação antiga. E Jesus já tinha ensinado que até aos inimigos deve-se amar (Mt 5,44). Portanto, é inegável a novidade do seu ensinamento.

Enquanto os fariseus procuravam classificar os mandamentos, focando em minuciosidades, Jesus toma o todo da Lei e dos profetas e faz a sua própria síntese, conforme relata o evangelista: “Toda a Lei e os profetas dependem desses dois mandamentos” (v. 40). Os fariseus queriam distinguir preceitos, e Jesus mostrou a unidade e coerência da Lei e dos profetas. Sem essa visão de conjunto, a religião excluía e até matava. Ao mostrar que o amor a Deus é inseparável do amor ao próximo, Jesus prega a unidade, coesão e coerência na comunidade. É provável que a conclusão da resposta também tenha sido ainda chocante para os fariseus, ao colocar os profetas no mesmo nível da Lei, no conjunto das Escrituras. Por mais que os profetas fossem estimados pelos fariseus, para eles o valor da Lei era absoluto, incomparável a qualquer outro conjunto de livros sagrados.

Jesus dá um passo muito importante com a sua resposta, o que já era referendada pelo seu jeito de viver. A sua vida foi toda marcada pelo amor intenso ao Pai e pelo amor concreto ao próximo, cuja demonstração fora mais visível na sua relação com as pessoas marginalizadas e excluídas da época, sobretudo pela religião. Por isso, respondeu de modo tão enfático, sobretudo, no que diz respeito ao próximo: o ser humano é colocado em uma tríade, cujo centro é o próximo, conforme a ordem da resposta: DeusPróximoEu. Essa relação tríade deve ser guiada por um amor semelhante, para ser verdadeiro. Com isso, Jesus deixa claro que só há uma maneira de demonstrar que amamos a Deus e a nós mesmos: quando o próximo ocupa o centro da nossa vida. O próximo é, portanto, o critério do amor a Deus e a si mesmo.

Pe. Francisco Cornélio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, outubro 17, 2020

REFLEXÃO PARA O 29º DOMINGO DO TEMPO COMUM – MATEUS 22,15-21 (ANO A)

 


O evangelho deste vigésimo nono domingo do tempo comum continua ambientado em Jerusalém, mais precisamente nas dependências do templo, onde Jesus viveu a fase mais tensa e intensa do seu ministério. O texto lido hoje – 22,15-21 – descreve a primeira controvérsia ou disputa com os fariseus em Jerusalém. Por enquanto, os sacerdotes e anciãos, interlocutores diretos de Jesus nos últimos três domingos, saem de cena e outros personagens entram em evidência, mas sempre com os mesmos propósitos de questionar e deslegitimar a autoridade e o ensinamento de Jesus. Enquanto os questionamentos dos sacerdotes e anciãos tinham um viés mais político, pois viam o ensinamento de Jesus como uma ameaça ao poder que exerciam, as questões levantadas pelos fariseus são mais relacionadas à doutrina, sobretudo em relação à interpretação da Lei, embora o caso retratado no texto de hoje também reflita uma dimensão política.

Logo ao entrar na cidade, Jesus fez uma grande denúncia contra a situação em que se encontrava o templo: uma casa de oração transformada em covil de ladrões (Mt 21,12-17), estendendo essa denúncia a todos os que mantinham a religião como instrumento de exploração e dominação, a casta sacerdotal e os anciãos do povo, especialmente. A primeira seção dessa denúncia foi ilustrada por três ricas parábolas, lidas na liturgia dos últimos três domingos: 1) O pai, os dois filhos e a vinha em Mt 21,28-32; 2) Os vinhateiros homicidas em Mt 21,33-43; 3) A festa de casamento do filho do rei em Mt 22,1-14. Ao desmascarar o sistema religioso vigente, Jesus deixava claro o seu projeto de restituir ao Pai aquilo que o poder político-religioso tinha roubado: a vida humana em todas as suas dimensões. Para isso, Ele proponha o Reino de Deus como única alternativa e realidade na qual a vida pudesse ser vivida em plenitude e abundância.

A proposta de Jesus soava absurda para a elite de Jerusalém, de modo que quanto mais ele falava, mais essa elite se organizava para pôr fim à sua vida. Como as três parábolas citadas deixaram os chefes sem palavras, novos grupos entram em cena com o mesmo propósito: provocar em Jesus uma autocondenação, armando-lhe ciladas. Dessa vez, foram os fariseus quem armaram a cilada, como atesta o texto: “Os fariseus fizeram um plano para apanhar Jesus em alguma palavra” (v. 15). O plano consistia em colocar Jesus em situação constrangedora e, assim, acusá-lo publicamente. Queriam eles que o próprio Jesus entrasse em contradição e fosse desmoralizado, dando motivo para ser acusado seja no âmbito religioso ou no político. Por isso, procuram aliados para a execução do plano: “Então mandaram os seus discípulos, junto com alguns do partido de Herodes” (v. 16a). A existência de discípulos dos fariseus revela o quanto o movimento era organizado, inclusive com escolas de formação para rabinos.

O que mais chama a atenção, no entanto, é a aliança com os herodianos, um grupo rival. A conveniência leva adversários a se unirem quando há um inimigo comum. Os herodianos constituíam o grupo de apoio público à dominação romana, e reconheciam a divindade do imperador. Já os fariseus, como o mais devoto dos grupos religiosos judaicos, viam a dominação romana como um abomínio, por isso esperavam constantemente pelo envio de um Messias glorioso e guerreiro que ressuscitasse o reino davídico-salomônico, para libertar Israel da dominação romana. Mesmo assim, pagavam convenientemente todos os impostos exigidos por Roma para evitar o rótulo de rebeldes e subversivos, como os zelotes. Apesar de contrários à dominação romana, não apresentavam nenhum tipo de resistência. O jogo de conveniência entre fariseus e herodianos é imagem do plano futuro que levará Jesus à morte; significa a religião e o império unidos para pôr fim a um personagem incômodo e indesejado para os dois: Jesus de Nazaré.

Como o plano era apanhar Jesus pela palavra, eis a investida: “Mestre, sabemos que és verdadeiro e que, de fato, ensinas o caminho de Deus. Não te deixas influenciar pela opinião dos outros, pois não julgas um homem pelas aparências” (v. 16). Todas estas palavras elogiosas faziam parte do plano. São palavras que demonstram respeito, admiração e conhecimento da pessoa de Jesus, mas pronunciadas ironicamente por pessoas falsas e mal intencionadas. Se, de fato, reconhecessem Jesus como mestre, não estariam armando-lhe ciladas. Essa descrição, de fato, correspondia a Jesus. Mas era um elogio falso, pois não passava de um pretexto ou um passo a mais para chegarem ao golpe final, com a pergunta tendenciosa e maliciosa: “Dize-nos, pois, o que pensas: é lícito ou não pagar imposto a César?” (v. 17). Era aqui aonde eles queriam chegar, imaginando estar colocando Jesus em um beco sem saída.

E, realmente, a situação era desfavorável para Jesus, pois ele deveria opinar sobre um dos temas mais delicados da vida cotidiana do povo judeu da época. Se respondesse que é lícito pagar imposto a César, Jesus estaria agradando aos herodianos e, consequentemente, sendo conivente com a dominação romana e seu sistema de exploração. Ao mesmo tempo, estaria ganhando a antipatia das multidões que até pouco tempo lhe tinham aclamado na entrada de Jerusalém (Mt 21,1-11), passando a ser considerado um traidor do seu povo. Além disso, estaria reconhecendo o senhorio de César, ou seja, do imperador romano. Se respondesse que não é lícito pagar o imposto, agradaria aos fariseus e demais compatriotas judeus e, ao mesmo tempo, antecipava a sua condenação como um rebelde e subversivo político. Recusar pagar o imposto significava declarar guerra ao sistema dominante. O que seus adversários queriam era um motivo para condená-lo a partir da sua resposta: respondendo sim, seria condenado pelo povo e pela religião como traidor; respondendo não, seria preso e condenado imediatamente pelo império. Esse era um plano que parecia perfeito.

Exatamente por ser verdadeiro e não julgar pelas aparências (v. 16), Jesus não caiu na trama dos seus adversários, e logo os repreendeu: “Jesus percebeu a maldade deles e disse: ‘Hipócritas! Por que me preparais uma armadilha?” (v. 18). Nessa resposta, o autor emprega duas palavras duras para caracterizar os adversários de Jesus: maldade (em grego: πονηρία – poneria) e hipócritas (em grego: ὑποκριταί – hipocritai). Isso quer dizer que os fariseus e herodianos, juntamente com os adversários da controvérsia anterior, eram pessoas más, falsas, dissimuladas, mascaradas e, por isso, não mereciam nenhuma credibilidade. Estavam agindo por conveniência para encontrar uma maneira de eliminar Jesus, esperando que ele mesmo pronunciasse palavras que servissem de prova para a sua condenação. Como já tinha acontecido em outras ocasiões, Jesus se sobressai de uma situação desconfortável e termina deixando seus adversários em maus lençóis: “Mostrai-me a moeda do imposto!’ Levaram-lhe então a moeda” (v. 19). Diante de questões delicadas, Jesus nunca dava respostas simples como “sim” ou “não”, mas provocava uma reflexão mais profunda.

Como estavam na área interna do templo, espaço considerado sagrado, não era permitido circular ali com a moeda romana. Por isso, havia as bancas de câmbio de moeda na entrada do templo. Jesus começa a desmascará-los daí, e eles que tinham armado a cilada, são agora os que caem: na moeda romana havia a figura e os títulos do imperador com seu reconhecimento divino inscritos: “Tibério César, Augusto filho do divino Augusto, Sumo Sacerdote”. A figura e a inscrição gravadas na moeda poderiam ser consideradas como transgressão ao primeiro mandamento do decálogo (Ex 20,4), tendo em vista a interpretação rígida dos fariseus, os mais fiéis observadores da Lei. Jesus, ao ver a moeda, perguntou-lhes: “De quem é a figura e a inscrição desta moeda?” (v. 20). Eles não tinham outra resposta senão admitir: “De césar” (v. 21a). Ora, os mesmos que demonstravam observar a Lei com tanta fidelidade, eram os primeiros a transgredi-la.

Certamente, ficaram desconcertados, talvez até arrependidos da pergunta, uma vez que a armadilha falhara. Como a pergunta tinha sido se era lícito ou não pagar o imposto, a resposta de Jesus vai muito além disso. Na luta por uma sociedade alternativa, denominada Reino de Deus, Jesus já tinha se posicionado diversas vezes contra a falsa “pax romana”, e agora deixa ainda mais claro o seu posicionamento com a sua resposta: “Dai, pois, a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” (v. 21). O texto litúrgico erra ao empregar o verbo dar; na verdade, o verbo empregado na língua original do texto corresponde a restituir ou devolver (em grego: ἀποδίδωμι – apodídomi), uma vez que a César nada deve ser dado. A resposta de Jesus parece complexa, à primeira vista, e fácil de ser distorcida, como foi por muito tempo e continua sendo.

Jesus não estabeleceu duas esferas de poder, uma temporal e outra espiritual, nem traçou a harmonia das relações entre estado e igreja, como muito se tem interpretado a partir dessa afirmação. A ordem para devolver a César o que lhe pertence consiste em abandonar tudo o que não condiz com o Reino. Nesse sentido, o imposto passa a ser apenas um aspecto de uma realidade muito mais ampla e complexa. É necessário deixar de compactuar com a lógica imperial de um modo geral. Isso exige uma consciência nova e uma atitude vigilante constante. É necessário construir uma nova sociedade a partir de perspectiva e lógica diferentes, substituindo o poder pelo serviço, com uma nova justiça baseada no amor. Devolver a César o que é dele exige um esforço da comunidade, a começar por uma autocrítica. Muitas lideranças religiosas parecem combater o poder de César para assumir o seu lugar. Essa mentalidade estava presente em alguns dos primeiros discípulos, na comunidade de Mateus e tem estado ao longo da história, infelizmente.

Devolver a Deus o que lhe pertence é restituir o ser humano, imagem única de Deus, à sua dignidade originária. A religião e o império romano tinham roubado o que Deus fez de melhor: o ser humano, transformado em produto, em mera mercadora, pela combinação dos poderes político-econômico-religioso. A mercantilização do ser humano fere e nega a sua dignidade. Esse foi um problema denunciado pelos profetas desde os tempos de Amós, o qual denunciou que o ser humano tinha se tornado um produto comprado ou vendido por um par de sandálias (Am 2,6; 8,6). Esse ser humano que tem a imagem de Deus, tem que ser devolvido a Deus; a moeda com a figura de César seja restituída a César, juntamente com toda a lógica perversa do império.

A opção pelo Reino apresentada por Jesus torna-se cada vez mais exigente, à medida que a sua vida vai sendo ameaçada. Longe de ser uma via conciliatória entre duas realidades, a frase imperativa de Jesus é um convite à reflexão e a uma tomada de posição. A comunidade cristã deve se posicionar diante dos acontecimentos, eliminando de suas bases e estruturas tudo o que não pertence à lógica do Reino, ou seja, o que não é de Deus.


 Pe. Francisco Cornélio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, outubro 10, 2020

REFLEXÃO PARA O 28º DOMINGO DO TEMPO COMUM – MATEUS 22,1-14 (ANO A)



Com o evangelho deste vigésimo oitavo domingo do tempo comum – Mt 22,1-14 – conclui-se a leitura da série de três parábolas consecutivas, contadas por Jesus em seu primeiro confronto direto com as lideranças religiosas e políticas de Jerusalém. O contexto, portanto, é o mesmo dos dois últimos domingos. Jesus se encontra em Jerusalém, vivendo a última etapa de seu ministério, e enquanto estava ensinando no templo, foi questionado pelos sacerdotes e anciãos a respeito da sua autoridade para ensinar (Mt 21,23-23). Como resposta, Jesus contou três parábolas sobre o Reino de Deus (ou dos Céus, como prefere Mateus), sendo a de hoje a terceira. Como a contextualização já foi bastante enfatizada nos dois últimos domingos, não é necessário repeti-la minuciosamente hoje.

A parábola lida hoje se destaca sobre as outras duas da série, lidas na liturgia dos dois últimos domingos: a de “um pai que tinha dois filhos e uma vinha” (Mt 21,28-32) e a dos “vinhateiros homicidas” (Mt 21,33-43). Na de hoje, o Reino dos Céus é comparado a um banquete, mais precisamente a uma festa de casamento do filho de um rei. Enquanto a imagem da vinha, predominante nas duas primeiras, possuía um significado mais restrito, impactante apenas para a cultura semita, a imagem de um banquete possui um significado bem mais universalista, podendo ser compreendida com mais facilidade também em outras culturas. Convém recordar, ainda, que essa parábola encontra-se também no Evangelho de Lucas, embora localizada num contexto diferente e com algumas modificações internas (Lc 14,15-24).

O primeiro versículo nos insere diretamente no contexto, e nos faz perceber que essa parábola é a continuidade de um discurso já iniciado, embora a tradução do texto litúrgico não expresse bem isso, ao afirmar que “Jesus voltou a falar em parábolas” (v. 1). Essa expressão dá a entender que houve uma interrupção no discurso. Conforme o contexto narrativo do Evangelho e a língua original do texto, o grego, a tradução mais adequada para essa expressão introdutória seria “Jesus continuou falando em parábolas”. O auditório é o mesmo das duas parábolas anteriores: os sumos sacerdotes e anciãos do povo, ou seja, a elite religiosa de Jerusalém, e não houve interrupção entre a parábola anterior e a de hoje que conclui a sequência. A propósito do auditório, deve-se recordar sempre que independente de quem sejam os interlocutores diretos de Jesus na narrativa, neste caso os sacerdotes e anciãos, os destinatários primeiros do ensinamento são sempre os discípulos e discípulas de todos os tempos.

Eis a parábola: “O Reino dos Céus é como a história do rei que preparou a festa de casamento do seu filho” (v. 2). Apesar de impactante, essa imagem não chega a ser novidade na linguagem bíblica. Os profetas já tinham anunciado a consumação dos tempos messiânicos com a imagem do banquete (Is 25,6-10). É uma imagem que evoca amor, alegria, fraternidade. Aqui, Jesus dispensa a linguagem litúrgico-religiosa. Não faz menção a sacrifício, nem a culto, nem a peregrinações, nem a um templo, mas a uma festa comum a todos os povos e culturas. E a festa por excelência na antiguidade, era a festa de casamento, sobretudo no mundo oriental. Era uma festa que durava em média sete dias, podendo ser ainda prolongada, a depender das condições econômicas dos noivos. No caso da parábola, sendo o casamento do filho de um rei, a duração seria bem maior. Dessa imagem usada por Jesus, evocamos, de imediato, algumas das mais importantes características do Reino: a alegria, o amor e a perenidade.

A festa em si, é sinônimo de alegria e fartura, ainda mais preparada por um rei. É certa a abundância de comida e bebida, música e muita alegria entre os convivas. O fato de ser uma festa de casamento, lembra o amor, elemento indispensável para a vida da comunidade. Sendo uma festa com duração de sete dias ou mais, lembra a perenidade: um tempo completo e perfeito, que transmite uma ideia de eternidade. Por isso, a festa de casamento (em grego: γάμος – gamos) era a mais bela de todas as festas, inclusive sonhada por tanta gente. As pessoas, na antiguidade, aguardavam com ansiedade um convite para uma festa assim. Era o momento de exagerar na alegria, inclusive na bebida (Jo 2,1-12), como atesta a própria Bíblia. É surpreendente que seja com esse tipo de festa que Jesus comparou o Reino, ao invés de uma reunião litúrgica ou vigília.

Além de um ensinamento para o presente, com essa parábola Jesus dá uma verdadeira aula sobre a história da salvação aos seus interlocutores. Diz ele que o rei “mandou os seus empregados para chamar os convidados para a festa, mas estes não quiseram vir” (v. 3). Aqui, Jesus recorda aos seus interlocutores que foi Israel o destinatário predileto de Deus, a quem foram enviados os profetas, os quais não foram ouvidos. A recusa ao convite de um rei equivale a uma rebelião. Nesse caso, Jesus enfatiza a rebelião de Israel aos apelos de seu Deus. Um povo fechado, de coração duro, que não escuta o seu Senhor. Como Deus não desiste do seu povo, e nem da humanidade, eis que o convite continuou sendo feito até que, aborrecidos pela insistência do rei, os primeiros convidados passaram da indiferença à violência, chegando a matar os emissários do rei (vv. 4-5). Com a insistência do convite e a recusa dos destinatários, Jesus apresenta uma síntese de toda a história da salvação, denunciando Israel e advertindo os seus seguidores de outrora e de sempre.

O versículo sétimo é, certamente, um acréscimo posterior da comunidade de Mateus, uma vez que ele não consta na versão desta parábola no Evangelho de Lucas (Lc 14,15-24). Na época da redação do Evangelho de Mateus, Jerusalém já tinha sido destruída pelas tropas romanas e, no auge do conflito da comunidade de Mateus com a sinagoga, a destruição da cidade e do templo servia como resposta e explicação para a rejeição dos judeus à mensagem cristã. A própria lógica temporal interna da parábola não comporta tal atitude da parte do rei: se todo o reino estava concentrado e voltado para a festa, e a comida já estava à mesa, não teria sentido algum parar tudo de repente para guerrear e depois recomeçar a festa.

A parábola continua a sua sequência natural no versículo oitavo: “Em seguida, o rei disse aos empregados: a festa de casamento está pronta, mas os convidados não foram dignos dela” (v. 8) A conclusão do rei é uma acusação ao fechamento dos primeiros convidados – Israel – à não aceitação do convite, ou seja, à conversão. De fato, é notório que, ao longo da história, o quanto a mensagem profética foi rechaçada em Israel, sobretudo pelas autoridades religiosas. A falta de dignidade dos convidados fora comprovada pela indiferença e violência com que trataram os enviados do rei. Porém, a rejeição dos primeiros convidados não muda os propósitos salvíficos de Deus para com a humanidade inteira, ou seja, não levam o rei a desistir da festa.

A nova determinação do rei corresponde à insistência de Deus e à continuidade de sua oferta de vida para toda a humanidade: “Portanto, ide até às encruzilhadas dos caminhos e convidai para a festa todos os que encontrardes” (v. 9). Podemos considerar esse o versículo central de toda a parábola. Aqui está o embrião de uma Igreja-comunidade em saída! A expressão “encruzilhadas” significa o encontro com as periferias. A expressão usada na língua original do texto significa a literalmente a saída da cidade (em grego: διεξόδος – diecsódos). Era lá onde ficavam todas as pessoas de atividades “vergonhosas”, ou seja, o que era considerado escória da sociedade, como prostitutas, mendigos, assaltantes e doentes considerados impuros. Quem não tinha acesso aos bens que a cidade oferecia, incluindo os serviços religiosos. Esse versículo é um convite claro para que os seguidores e seguidoras de Jesus se voltem para as margens, para as periferias. Aqui, de modo definitivo, é apresentada a nova dinâmica do Reino, destacando seu aspecto inclusivo: todos os que forem encontrados devem ser convidados! Acabou o tempo das distinções, dos rótulos, das separações.

Finalmente, o convite tornou-se efetivo: quando foi endereçado a todos, sem distinção: a maus e bons. O resultado foi a sala cheia de convidados (v. 10). Enquanto os enviados dirigiam-se a uma elite privilegiada e indiferente, a sala permaneceu vazia. Somente quando saíram para as margens o convite encontrou adesão. Aqui está um alerta da comunidade de Mateus para as comunidades de todos os tempos. O convite, ou seja, o anúncio, deve ser feito a todos e todas, sem distinção alguma. Maus e bons são convidados para o Reino. Porém, aceitar o convite-anúncio comporta exigências e compromissos da parte do convidado.

Ninguém é excluído do Reino, mas alguém pode se autoexcluir, ao não fazer comunhão com os demais. É esse o sentido do convidado que não portou o “traje de festa” (v. 11). Caso se tratasse de uma veste real, nenhum dos convidados estaria apto, afinal, todos foram pegos de surpresa com o convite feito de última hora. Através da percepção do rei, o evangelista, chama a atenção da sua comunidade, fazendo uma advertência que serve para as comunidades de todos os tempos: não basta estar na sala, participar de reuniões e atos litúrgicos, receber sacramentos, sem disposição para a vida comunitária. O traje de festa é, aqui, o sinal de unidade entre os convivas do banquete e, portanto, dos membros da comunidade cristã: a prática das bem-aventuranças, o conteúdo programático do discipulado no Evangelho de Mateus. Todas as pessoas são convidadas e podem entrar na sala de festa, mas só permanece quem se abre ao espírito das bem-aventuranças. É o “revestir-se” de Cristo, expressão que foi inserida nas fórmulas de batismo desde as primeiras comunidades cristãs (Rm 13,14; Gl 3,27).

A reação do rei ao convidado sem o traje de festa parece violenta (vv. 12-13), mas apenas reflete o uso do gênero literário apocalíptico, tão empregado na época entre os rabinos e utilizado também pelos pregadores cristãos. Não significa castigo, mas a autoexclusão do próprio convidado. A ausência do traje de festa é a falta de disposição para “revestir-se” de Cristo, ou seja, é o fechamento ao espírito das bem-aventuranças (Mt 5,1-12). As bem-aventuranças são o caminho da felicidade e da realização plena; quem não as vive, priva-se de viver plenamente feliz e realizado, e é isso o que a imagem tão forte indica: perder o sentido da vida. Ter os pés e as mãos amarrados, chorar e ranger os dentes (v. 13), é a imagem do desespero último do ser humano. Só é desesperado quem não aceita participar do banquete da vida. Não se trata de uma descrição, mas de uma comparação, como é toda a parábola. Não aceitar participar do banquete com alegria, amor e justiça é privar-se da vida em plenitude.

O evangelista ensina, com tudo isso, que o simples fato de alguém participar de uma comunidade ou igreja não é sinal de nenhuma garantia de vida. Só vive plenamente quem aceita fazer comunhão e pratica o programa de vida de Jesus. A parábola é concluída com uma nota proverbial explicativa: “Porque muitos são os chamados, e poucos são os escolhidos” (v. 14). Mesmo dentro da comunidade, lugar do início da concretização do Reino, há sérios riscos de alguém ficar privado de vida plena. O evangelista enfatiza exatamente isso: não basta ter sido convidado ou convidada, afinal, todos são, indistintamente: bons e maus. O importante é, ao sentir o chamado, conduzir a vida segundo o programa de vida daquele que chama.

Portanto, que ninguém se sinta seguro por estar na Igreja. Todos são chamados, mas só participa plenamente da festa, ou seja, do Reino, quem porta o traje das bem-aventuranças, sinal único e distintivo dos cristãos e cristãs. O certo mesmo é que Deus quer a sala cheia; para as igrejas e comunidades eclesiais precisam ir às encruzilhadas e fazer o convite com amor, alegria diálogo e espírito de acolhimento.

Pe. Francisco Cornélio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, outubro 03, 2020

REFLEXÃO PARA O 27º DOMINGO DO TEMO COMUM – MATEUS 21,33-43 (ANO A)

 



A liturgia deste domingo – vigésimo sétimo do tempo comum – continua apresentando Jesus em Jerusalém, vivendo a última fase do seu ministério, marcada pelo confronto direto com as lideranças religiosas e políticas de Israel. O texto lido hoje – Mt 21,33-43 – contém mais uma parábola que emprega a imagem da vinha como comparação do Reino de Deus proposto por Jesus. Ao todo, o Evangelho de Mateus contém três parábolas com a imagem da vinha, sendo duas delas exclusividade sua, as quais foram lidas nos dois últimos domingos: a “parábola dos trabalhadores da vinha” ou do “patrão generoso” (20,1-16) e a “parábola dos dois filhos” (21,28-32). Essa primeira foi narrada ainda na etapa do caminho para Jerusalém, portanto, faz parte de outro contexto. A terceira, lida hoje, chamada de “parábola dos vinhateiros homicidas” está presente também nos outros dois evangelhos sinóticos (Mc 12,1-12; Lc 10,20,9-19).

Tendo já feito uma contextualização mais ampla no domingo passado, e o texto de hoje faz parte do mesmo contexto, ressaltaremos somente alguns aspectos mais importantes. Jesus se encontrava nas dependências do templo de Jerusalém, ensinando. Como é sabido, os ensinamentos de Jesus contrariavam a ortodoxia da época. À medida em que apresentava o Reino de Deus como proposta de vida e de sociedade alternativa ao sistema vigente, Jesus denunciava a hipocrisia e os privilégios das lideranças religiosas de Israel, que tinham distorcido completamente a imagem de Deus, o seu Pai, transformando-o em patrão vingativo e em mercadoria, uma vez que o templo, que deveria ser casa de oração, se tornou casa de comércio e covil de ladrões (Mt 21,12-13).

A mensagem de Jesus era insuportável para quem explorava o povo em nome de Deus, como faziam as lideranças religiosas e políticas da sua época. Por isso, enquanto ele ensinava nas dependências do templo, foi questionado pelos sacerdotes e anciãos, as lideranças de Israel: “Com que autoridade fazes isso? Quem te deu essa autoridade?” (Mt 21,23). A esse questionamento, Jesus respondeu com três parábolas, das quais a de hoje é a segunda. A primeira, a “parábola dos dois filhos” (Mt 21,28-32), fora lida no domingo passado, e a terceira, a do “banquete de casamento” (Mt 22,1-14), será lida no próximo domingo. É importante recordar que, embora os interlocutores diretos de Jesus nestas parábolas, conforme o contexto narrativo do evangelho, sejam os sacerdotes e anciãos, ou seja, as lideranças religiosas da época, o seu ensinamento é destinado primordialmente aos discípulos e discípulas de todos os tempos, começando por aqueles de primeira chamada, passando pelos membros da comunidade de Mateus, até os cristãos de hoje e sempre.

Passada a contextualização, voltamos a atenção para o próprio texto, começando pela introdução: “Escutai esta outra parábola” (v. 33a). Com essa fórmula introdutória fica claro que essa parábola é a continuidade de um discurso já iniciado. Se essa é “outra parábola” (em grego: Ἄλλην παραβολὴν – alen parabólen), significa que já fora contada alguma antes, como já acenamos na contextualização. Logo, essa é “outra” em relação àquela dos “dois filhos” (Mt 21,28-32), lida no último domingo. A sucessão de parábolas em um mesmo discurso e com um mesmo tema é sinal de importância do que está sendo ensinado, pois revela uma insistência. Recordemos, por exemplo, a série de parábolas sobre o Reino (Mt 13), a série de parábolas da misericórdia (Lc 15) e, ainda, a série de parábolas escatológicas (Mt 24 – 25). Portanto, as denúncias de Jesus às lideranças religiosas do seu tempo foi um elemento de fundamental importância no seu ministério.

Ainda sobre a introdução da parábola, é importante recordar o imperativo “escutai” (em grego: ἀκούσατε – akússate). Esse é mais um indicativo de importância do que está sendo ensinado. Mais do que um exercício da audição, o verbo escutar na linguagem bíblica, sobretudo quando vem empregado no modo imperativo, significa uma fórmula de denúncia e um convite à conversão. Não por acaso, esse é um dos verbos prediletos dos profetas (Is 1,10; Os 4,1; Am 3,1; 4,1; 5,1; 8,4; Mq 1,2; 3,1.9; 6,1.9). E, Considerando as peculiaridades de seus interlocutores, Jesus os convida a olhar para a história de Israel e para Escritura. Isso se evidencia pela apresentação da parábola: “Certo proprietário plantou uma vinha, pôs uma cerca em volta, fez nela um lagar para esmagar as uvas, e construiu uma torre de guarda. Depois arrendou-a a vinhateiros, e viajou para o estrangeiro” (v. 33). Não temos dúvidas de que Jesus tinha em mente o “Cântico da vinha” do profeta Isaías (Is 5,1-7) ao propor esta parábola, e sabia que seus interlocutores conheciam muito bem esse texto profético.

Como já sabemos, a vinha é a uma imagem privilegiada do povo de Deus, usada principalmente nas tradições proféticas (Is 5,1-7; 27,2-3; Jr 2,21; Ez 15,2-8; Os 9,10; etc). Ao ouvir falar de uma vinha, quem tinha familiaridade com as Escrituras, como os interlocutores de Jesus, logo percebia que ele falava da relação de Deus com Israel. Todos sabiam que Deus possuía uma vinha e que a amava tanto. E a parábola ressalta isso. Os cuidados do proprietário acenam para uma grande expectativa em relação à produtividade daquela vinha: ele mesmo a plantou e a cercou. O lagar para esmagar as uvas significa a expectativa de boas colheitas: uvas boas e em abundância para produzir vinho; a torre de guarda construída significa o cuidado e o quanto a vinha é preciosa para o seu dono. A ausência do dono durante o cultivo e a colheita é sinal de muita responsabilidade confiada aos trabalhadores. Esse detalhe ressalta a confiança que Deus deposita na humanidade; foi ele quem tudo plantou, ao criar o mundo, confiando à humanidade o cuidado de toda a criação.

Quem planta espera colher frutos. Assim, aconteceu com o dono da vinha, conforme a parábola: “Quando chegou o tempo da colheita, mandou seus empregados para receber seus frutos” (v. 34). Embora ele mesmo tenha plantado, ele não vai receber os frutos pessoalmente, mas envia seus “servos” (em grego: δούλοι – duloi), termo que o lecionário traduziu inadequadamente por empregados. O envio dos servos para receber os frutos da colheita significa a confiança que o dono lhes deposita, tendo-os como seus colaboradores muito próximos. À confiança do dono, contrapõe-se a brutalidade dos vinhateiros: “agarraram os empregados, espancaram a um, mataram a outro, e ao terceiro apedrejaram” (v. 35). Uma série de ações violentas é anunciada. Isso tudo é consequência do abuso de poder da parte dos vinhateiros, com quem Jesus compara os líderes religiosos e políticos de Jerusalém, os quais se apossaram da vinha indevidamente.

A sequência do texto mostra a paciência e tolerância do proprietário da vinha: “mandou de novo outros empregados, em número maior que os primeiros” (v. 36). O dono que ama a sua vinha não desiste dos frutos. Porém, aconteceu o mesmo com a segunda comitiva de servos, ou seja, foram tratados com violência, como os primeiros. É quase consenso entre os estudiosos que os servos enviados duas vezes à vinha para receber os frutos significam os profetas anteriores e posteriores, conforme a divisão tradicional da Bíblia Hebraica. Essa interpretação ajuda a identificar os vinhateiros, aqueles que se apossaram da vinha, fazendo do que é de Deus uma propriedade particular: as autoridades e instituições políticas e religiosas de Israel, da antiga monarquia à aristocracia sacerdotal do tempo de Jesus. Ao invés de facilitar os devidos frutos ao único dono da vinha, a religião de Israel tinha se tornado o maior obstáculo para a colheita. Um simples olhar na história já seria suficiente para essa conclusão: a rejeição aos profetas, quase todos hostilizados pelos detentores de poder.

A paciência do dono da vinha é mais uma vez evidenciada, como mostra o texto com muita clareza: “Finalmente, o proprietário enviou-lhes o seu filho, pensando: ‘Ao meu filho eles vão respeitar’!” (v. 37). Porém, a reação dos vinhateiros se torna ainda mais violenta com o filho. Tendo já tomado posse da vinha, não permitindo mais que o dono recebesse seus frutos, os falsos proprietários viam o filho do dono como uma ameaça ainda maior, por isso procuram eliminá-lo de uma vez: “Este é o herdeiro. Vinde, vamos matá-lo e tomar posse da sua herança” (v. 38). Ao relatar a violência sofrida pelo filho do dono da vinha, Jesus chega ao ápice do ensinamento da parábola: os chefes que interrogaram sua autoridade são os vinhateiros que se apossaram da vinha. Eles que hostilizaram os profetas do Antigo Testamento, rejeitaram a pregação de João Batista, e agora estão quase matando o filho. Aqui, Jesus faz um novo anúncio da paixão, dessa vez implícito, uma vez que já havia feito os três anúncios explícitos (Mt 16,21-18; 17,22-23; 20,17-19). Os três anúncios anteriores foram feitos aos discípulos, agora é aos futuros algozes que Ele anuncia. Com isso, a parábola ganha um sentido ainda mais amplo, funcionando como síntese da história de Israel e autobiografia de Jesus.

Ao concluir a parábola descrevendo o tratamento dado ao filho do dono da vinha pelos vinhateiros, “agarraram-no, jogaram-no para fora da vinha e o mataram” (v. 39), Jesus deixa novamente os sumos sacerdotes e anciãos do povo em maus lençóis: “Quando o dono da vinha voltar, o que fará com esses vinhateiros?” (v. 40). A resposta deles é praticamente uma sentença de autocondenação: “Com certeza mandará matar de modo violento esses perversos e arrendará a vinha a outros vinhateiros, que lhe entregarão os frutos no tempo certo” (v. 41). Os sumos sacerdotes e anciãos parecem não perceber que Jesus está falando deles. Continuam ignorando e insistindo em não acatar o ensinamento de Jesus, exatamente porque tomaram posse indevidamente do que não lhes pertencia, estavam movidos pelo orgulho, pela mentira e violência e, por isso, fechados ao que Jesus ensinava. Ao contrário da resposta deles, Jesus não fala em momento algum de vingança ou violência da parte do dono da vinha. Por outro lado, mostra uma reviravolta na história, com base na Escritura que seus interlocutores deveriam conhecer, mas a ignoravam: “Então Jesus lhes disse: ‘Vós nunca lestes nas Escrituras: ‘A pedra que os construtores rejeitaram tornou-se a pedra angular; isto foi feito pelo Senhor e é maravilhoso aos nossos olhos?” (v. 42). Essa citação da Escritura (Sl 118,22-23) é uma palavra de reprovação a quem se impõe pela força, e de esperança às vítimas de todo sistema opressor, enfatizando qual é o lado de Deus na história.

Ao propor a vingança do dono da vinha, os sacerdotes e anciãos revelam a religião que eles praticavam e o Deus em quem acreditavam: uma religião mercantilista, baseada na lei do “olho por olho e dente por dente” (Mt 5,38), condenada por Jesus, e um Deus severo e castigador, diferente do Deus Pai revelado por Jesus. A atitude do dono, ao contrário do que pensam os interlocutores de Jesus, será apenas destituir os vinhateiros de um poder que eles tinham usurpado. Foram encarregados de cuidar, isto é, cultivar, produzir, colher os frutos e restituir ao dono; ao invés disso, tomaram posse como se a vinha fosse propriedade particular. Ora, o que pertence a Deus é direito de todos; ninguém pode considerar propriedade sua o que é dom, o que é fruto do amor e da graça de Deus. Porém, Jesus não anuncia castigo, mas apenas a destituição do poder: “o Reino de Deus vos será tirado e será entregue a um povo que produzirá frutos” (v. 43). A ironia de Jesus, aqui, chega ao ápice: os que questionaram sua autoridade são exatamente aqueles que não têm autoridade para falar em nome de Deus, uma vez que Deus só autoriza a falar em seu nome quem produz frutos em favor de todos, e não quem pensa somente em si e age com violência e mentira.

Ao ler essa parábola e, quase de imediato, perceber que Jesus aplica o dono da vinha ao seu Pai, os vinhateiros às classes dirigentes de Jerusalém, e o filho rejeitado a si mesmo, corremos o risco de imaginar também uma simples passagem do Reino, saindo das mãos do judaísmo para a Igreja nascente. É importante perceber que o Reino de Deus não é transferido de uma religião para outra; é apenas confiado a quem produzir frutos. A entrega do Reino “a um povo” não determinado significa a universalidade da salvação e a dimensão inclusiva do Reino. Não é a pertença a uma raça, cultura ou religião específica que dá acesso ao Reino, mas a “produção de frutos”, quer dizer, a prática da justiça e a vivência do amor (Mt 5-7), como já fora antecipado no discurso da montanha, especialmente com as bem-aventuranças (Mt 5,1-12).

Produz frutos e participa do Reino, portanto, quem faz a vontade do Pai que está nos céus, e não quem apenas diz “Senhor, Senhor!” (Mt 7,21). O Reino é entregue a toda pessoa que aceita o desafio de viver segundo as bem-aventuranças. Toda vez que alguém quer controlar o agir de Deus, determinando quem está salvo e quem está condenado, está agindo como os vinhateiros homicidas. O fato de alguém pertencer a uma comunidade/igreja cristã não garante participação no Reino de Deus. Por isso, mais do que uma ameaça ao judaísmo da época, essa parábola é uma séria advertência ao cristianismo de todos os tempos.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

REFLEXÃO PARA O 4º DOMINGO DA PÁSCOA – JOÃO 10,11-18 (ANO B)

O evangelho do quarto domingo da páscoa é sempre tirado do capítulo décimo do Evangelho de João, no qual Jesus se auto apresenta como o ún...