sábado, setembro 29, 2018

REFLEXÃO PARA O XXVI DOMINGO DO TEMPO COMUM – MARCOS 9,38-48 (ANO B)




O texto evangélico que a liturgia propõe para este vigésimo sexto domingo do tempo comum – Marcos 9,38-48 – é a continuidade daquele refletido no domingo passado (cf. Mc 9,30-37), e apresenta mais uma atitude de incoerência dos discípulos, seguida da correção e catequese de Jesus. O contexto geral é o do caminho decisivo de Jesus com os discípulos para Jerusalém, que culminará com os eventos da paixão, morte e ressurreição. Com muita maestria, o evangelista Marcos diz que, mesmo estando próximos, os discípulos se tornam, nesse itinerário, verdadeiros opositores de Jesus, com um comportamento oposto ao que o Mestre ensinava. Embora Jesus já tenha, nesse contexto, feito dois anúncios explícitos da sua paixão (cf. Mc 8,31-33; 9,30-32), os discípulos continuam ignorando, preferindo alimentar seus próprios anseios de grandeza, poder e exclusivismo, colocando-se, assim, em oposição a Jesus.
A principal incoerência dos discípulos denunciada no Evangelho de hoje é o exclusivismo e a tendência ao fechamento e fanatismo, expressos na atitude e na fala do apóstolo João: “Mestre, vimos um homem expulsar demônios em teu nome. Mas nós o proibimos, porque ele não nos segue” (v. 38). Assim como a profissão de fé de Pedro – Tu és o Cristo! (Mc 8,27) – não representa uma afirmação pessoal, mas comunitária, ou seja, ele afirmou em nome do grupo, também nesse trecho de hoje a postura de João tem uma dimensão comunitária; é a expressão de todo o grupo de discípulos que permanecia com uma mentalidade fechada e exclusivista. É importante recordar que, no momento da formação do grupo dos Doze, juntamente com seu irmão Tiago, João recebeu o nome de Boanerges, que significa “filhos do trovão” (cf. Mc 3,17), em alusão ao temperamento explosivo, arrogante, intolerante e ambicioso dos dois. Além, dessa de hoje, há outras duas ocasiões em que essas características desses dois discípulos irmãos se revelam: quando pedem a Jesus para ocuparem as melhores posições no reino, um à direita e outro à esquerda (cf. Mc 10,35-40), e quando queriam eliminar com fogo os samaritanos, somente porque não os acolheram, no início do caminho para Jerusalém (cf. Lc 9,51-55). Juntamente com Pedro, João e Tiago são os discípulos mais difíceis de lidar no grupo; por isso, quando Jesus fica somente com eles, como no episódio da transfiguração (cf. Mc 9,2-8; Mt 17,1-8; Lc 9,28-36), não se trata de privilégio, mas de necessidade. Pelo comportamento e temperamento, ambos necessitavam de uma catequese mais intensa.
A atividade de “expulsar demônios” nos evangelhos, e principalmente em Marcos, significa a promoção da liberdade e da dignidade das pessoas. É abrir as portas do Reino de Deus, tornando-o acessível a todas as pessoas. É a difusão da boa nova que transforma vidas, rompendo com as estruturas de morte e opressão vigentes em qualquer sistema. Uma atividade assim, de promoção plena do bem das pessoas, não pode ser estranha ao programa e à mensagem de Jesus, independente do grupo ou movimento a qual se pertença. Quem faz o bem ao próximo, está em sintonia Deus. Ao afirmar que o homem estava “expulsando demônios em nome de Jesus”, o evangelista evidencia que ele estava em sintonia e comunhão plena com Jesus, mesmo sem pertencer ao grupo dos Doze, e nem segui-los. A proibição imposta por João denuncia o fechamento e o fanatismo dos discípulos. Uma atitude dessas coloca em risco a eficácia e a credibilidade do Evangelho. Como uma proposta de vida de alcance universal, que visa a libertação plena do ser humano em todas as suas dimensões, a mensagem de Jesus não é propriedade de nenhum grupo ou instituição. Por isso, a repreensão.
A reação de Jesus é de clara reprovação à mesquinhez dos discípulos liderados por João: “Não o proibais, pois ninguém faz milagres em meu nome para depois falar mal de mim. Quem não é contra nós é a nosso favor” (vv. 39-40). Ora, “fazer milagres em nome de Jesus” significa estar em sintonia com ele; só faz isso quem reconhece a sua autoridade e conduz a vida de acordo com o Evangelho. Ninguém pode ser impedido de fazer o bem, mesmo que não pertença ao mesmo grupo ou movimento. Proibir alguém de agir em nome de Jesus é querer aprisionar a sua mensagem e delimitar a ação do Espírito Santo, o que é impossível. Dos discípulos, exige-se abertura, compreensão e consciência de que a mensagem do Evangelho não é propriedade, mas dom acessível a quem tem sede de justiça e de amor. Com um simples provérbio, Jesus fecha a questão: “Quem não é contra nós é a nosso favor”. Ser contra, significa optar pelo mal e fechar-se aos valores do Reino; quem não faz isso, já está, consequentemente, a favor e, portanto, apto a agir em seu nome, independente de pertencer ou não a algum grupo religioso.
Como sempre, às repreensões de Jesus aos discípulos são seguidas de catequese mais aprofundada e prática: “Em verdade eu vos digo: quem vos der a beber um copo de água, porque sois de Cristo, não ficará sem receber a sua recompensa” (v. 41). Embora seja um gesto, aparentemente, simples, dar um copo de água era, para a mentalidade semita, uma das maiores demonstrações de hospitalidade e acolhida. A recompensa, aqui, significa a pertença a Jesus e sua comunidade. Essa pertença não depende de discursos ou formulações doutrinárias, mas de gestos e atitudes que revelem amor e justiça, como dar um simples copo de água a uma pessoa sedenta. O que importa, de acordo com o evangelista, é que tudo seja feito em “nome de Jesus”, ou seja, em comunhão com ele. Aqui, o ensinamento é dirigido exclusivamente aos discípulos: eles não devem esperar muita coisa, nem grandes adesões; basta um simples gesto de reconhecimento da pertença a Cristo, para que os destinatários sejam recompensados, ou seja, entrem em comunhão com sua vida.
Na sequência, a catequese é continuada com a retomada da importância dos “pequeninos” para o Reino de Deus, já introduzida no domingo passado com o exemplo da criança: “E, se alguém escandalizar um destes pequeninos que creem, melhor seria que fosse jogado no mar com uma pedra de moinho amarrada ao pescoço” (v. 42). Escandalizar, aqui, é criar obstáculo ou impedimento à fé e à vida digna. O maior exemplo de escândalo numa comunidade é o espírito de grandeza e busca pelo poder. “Pequeninos” é a síntese de todas as categorias de pessoas vulneráveis e historicamente excluídas: pobres, mulheres, pecadores, etc. Quando os membros da comunidade cristã são motivos de escândalo para essas pessoas, isto é, quando não favorecem a acolhida e a inclusão, Jesus reprova e adverte severamente. Por sinal, Jesus tolera quase tudo, inclusive que sua mensagem seja rejeitada; a única coisa que ele não tolera é a indiferença e o desprezo aos pequeninos, os seus prediletos. A sorte de quem os rejeita é trágica. Ser jogado no mar com uma grande pedra amarrada ao pescoço é a certeza de que esse corpo jamais será resgatado; assim, não poderia receber uma sepultura digna e, consequentemente, não teria sequer direito à ressurreição dos mortos do último dia, como acreditavam os judeus. Esse destino exclui qualquer possibilidade de salvação. Dentre as tantas possibilidades de morte, a mais temida pelos judeus era o afogamento no mar, devido ao risco de não ter o corpo encontrado para ser sepultado. Daí, a ênfase de Jesus para mostrar que o ser humano se auto condena quando se torna obstáculo na vida dos pequeninos. Portanto, não é um convite para amputar membros do corpo, mas a ter o máximo cuidado de pautar toda a vida em favor do bem.
A chamada de atenção aos discípulos continua com a demonstração de certas ocasiões, através dos principais membros do corpo, que podem levar os discípulos a causarem “escândalo” aos pequeninos. A mão, o pé e o olho (cf. vv. 43-47) eram, de fato, os membros do corpo responsáveis pelo bom ou mau comportamento das pessoas, segundo a mentalidade semita. As mãos, representam todo o agir da pessoa; quando a pessoa não age conforme o evangelho, é melhor não tê-las, conforme essa mentalidade. Os pés representam a conduta, podendo levar a pessoa por caminhos justos e injustos; é melhor não ter pé do que andar por caminhos errados. O olho, como “lâmpada do corpo” (cf. Mt 6,22) é a porta de entrada dos sentimentos e desejos alimentados no coração da pessoa; tudo o que é processado no coração, sentimentos bons e maus, passou pelo olho. Diante disso, se esses membros são usados para o mal, é melhor o ser humano privar-se deles, do que ter um corpo são e uma vida perdida, sem sentido, ou seja, jogado no fogo que nunca se apaga. O texto original não fala de inferno, como na tradução litúrgica, mas de “geena” (em grego: γεενα). O “geena” era um vale onde ficava o lixão de Jerusalém; era sinônimo de imundície e de fogo constante. Inclusive, corpos humanos já tinham sido lá sacrificados, em cultos pagãos, por isso, esse local passou a ser símbolo de condenação completa para os judeus. Além do fogo, lá predominava também o mau cheiro constante. Era um símbolo concreto da negação da vida. Por ser depósito de todo o lixo de uma grande cidade, numa época em que o saneamento não era sequer imaginado, todos os tipos de resíduos iam para lá, por isso possuía um “fogo que não se apaga” (v. 48).
Com essa linguagem tão severa, Jesus não está apontando as possibilidades de uma vida futura, mas denunciando que não tem sentido algum a vida que não é pautada pelo bem ao próximo e, em especial, aos mais necessitados, ou seja, os pequeninos. “Geena” e fogo são imagens de uma vida fora do Reino de Deus, Reino esse que não é um paraíso futuro, mas um projeto real de vida para ser aplicado e vivido desde agora. Isso acontece quando a Boa Nova de Jesus é aceita com todas as suas dimensões e exigências. A dinâmica do Reino é incompatível com todas as formas de dominação, exclusivismo, autoritarismo e falta de amor e justiça.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, setembro 22, 2018

REFLEXÃO PARA O XXV DOMINGO DO TEMPO COMUM – MARCOS 9,30-37




O Evangelho deste vigésimo quinto domingo do tempo comum – Marcos 9,30-37 – apresenta o segundo anúncio da paixão de Jesus, seguido da incompreensão dos discípulos que não aceitavam um messias sofredor. À incompreensão dos discípulos, Jesus reage e reforça a sua catequese, apresentando uma criança como exemplo para a comunidade, mostrando que o Reino de Deus tem como protagonistas e destinatários os pequenos e humildes, ao contrário do que pensavam os discípulos, que imaginavam uma comunidade hierárquica, aos moldes dos sistemas humanos de dominação.

O texto divide-se claramente em duas partes demarcadas pela dimensão espacial: a primeira (vv. 30-32), acontece no caminho, enquanto a segunda acontece na casa (vv. 33-37), em Cafarnaum. Casa e caminho representam os dois cenários privilegiados para a pregação de Jesus e para a vida da comunidade cristã, especialmente a comunidade do evangelista Marcos que, rompida definitivamente com a sinagoga, não tinha um espaço fixo para as suas reuniões. O caminho tem como significado a instabilidade, os perigos e, ao mesmo tempo, o dinamismo e a dimensão missionária da comunidade; é uma prova de que a Igreja nasceu para estar, realmente, em saída. Já a casa, significa a necessidade das relações fraternas e sinceras que devem marcar a vida da comunidade; é um espaço de acolhida, compreensão e vivência do amor.

Como diz o texto, “Jesus e seus discípulos atravessavam a Galileia. Ele não queria que ninguém soubesse disso” (v. 30). Essa travessia pela Galileia acontece após o episódio da transfiguração (cf. Mc 9,2-13) e a expulsão de um espírito impuro de um jovem epilético (cf. Mc 9,14-29). Chegou um momento de extrema necessidade de aprofundar o ensinamento sobre o seu destino aos discípulos; por isso, Jesus prefere o anonimato e o isolamento das multidões nessa fase da sua vida: “Pois estava ensinando a seus discípulos” (v. 31a). A incompreensão de Pedro após o primeiro anúncio da paixão (cf. Mc 8,31-35), como refletimos no domingo passado, foi um alerta para Jesus: os discípulos ainda não tinham compreendido quase nada; por isso, era necessário estar sozinho com eles para intensificar a catequese.

O conteúdo dessa fase específica da catequese é exatamente aquilo que os discípulos mais tinham dificuldade de compreender e aceitar, ou seja, o drama da paixão que se aproximava cada vez mais, não como predestinação, mas como consequência das opções feitas e posições assumidas até então por Jesus. Por isso, “dizia-lhes: “O Filho do Homem vai ser entregue nas mãos dos homens, e eles o matarão. Mas, três dias após sua morte, ele ressuscitará” (v. 31bc). Esse é o segundo anúncio da paixão. Enquanto os discípulos, conforme a ideologia nacionalista, esperavam que o messias matasse, declarando guerra ao poder romano para recuperar o trono dravídico-salomônico, Jesus afirma o contrário: é ele quem vai morrer. Embora nesse segundo anúncio não esteja tão claro quem serão seus algozes, ele já tinha declarado no primeiro: anciãos, sacerdotes e escribas (cf. Mc 8,31), ou seja, as autoridades religiosas, até então controladoras de Deus, agora inconformadas porque Jesus estava, com seu ministério, apresentando um Deus completamente diferente. O Deus dos chefes era cruel, vingativo e exigente, enquanto o Deus de Jesus é amoroso, misericordioso, acolhedor e justo.

A incompreensão dos discípulos continua, e até parece aumentar, gerando até medo: “Os discípulos, porém, não compreendiam estas palavras e tinham medo de perguntar” (v. 32). Se não compreendiam, muito menos aceitavam a realidade como Jesus apresentava. Eles tinham medo de fazer perguntas porque suspeitavam que a explicação de Jesus não correspondesse às suas expectativas de triunfo e sucesso. Por isso, covardemente, preferem conversar entre si, alimentando sonhos triunfalistas e distantes da proposta de Jesus. Porém, Jesus os conhecia muito bem e sabia o que eles pensavam; lhes perguntará apenas por protocolo. “Eles chegaram a Cafarnaum. Estando em casa, Jesus perguntou-lhes: “O que discutis pelo caminho?” (v. 33). A cidade de Cafarnaum, onde Jesus realizou boa parte do seu ministério, tem um significado especial para a comunidade. É o ponto de partida da Boa Nova. Ao questionar os discípulos em casa, nessa cidade, Jesus revela a necessidade de renovação constante e de retorno às origens do chamado, com coragem para recomeçar. De fato, com o caminho da paixão já delineado, se torna cada vez mais necessário reavivar nos discípulos as motivações para o seguimento com bastante clareza.

Cientes do absurdo e da incompatibilidade entre o que eles conversavam e o que Jesus lhes apresentava, “eles ficaram calados, pois pelo caminho tinham discutido quem era o maior” (v. 34). Com essa informação, o evangelista revela que os discípulos estavam em total oposição ao projeto de Jesus. Ora, discutir quem é o maior, é negar completamente o projeto de Reino de Deus como fraternidade e igualdade. Essa discussão revela ambição e alimenta rivalidade, elementos impensáveis para uma comunidade que deve viver o princípio da igualdade e do amor. O silêncio deles denuncia a incoerência.

A atitude de Jesus diante de tamanha incoerência dos discípulos não é de condenação, mas de insistência no ensinamento e de renovação do chamado. Ao invés de abandoná-los, Jesus prefere aprofundar a catequese, demonstrando uma imensa capacidade pedagógica: “Jesus sentou-se, chamou os doze e lhes disse: “Se alguém quiser ser o primeiro, que seja o último de todos e aquele que serve a todos!” (v. 35). Ao sentar-se para ensinar, Jesus reafirma sua condição de mestre, o único maior naquele grupo. Chamando os doze para perto de si, ele os convida, antes de tudo, a renovar a vocação originária, deturpada pelos sentimentos de grandeza e ambição que eles tinham alimentado. Para aprender e aceitar o ensinamento, é necessário que os discípulos estejam muito próximos ao mestre, sendo influenciados somente por ele.

O ensinamento, aqui, é bastante didático, e revela, mais uma vez, os dotes pedagógicos de Jesus: bastam duas frases e um gesto para desconstruir os projetos de poder e ambição dos discípulos. Eis a primeira frase: “Se alguém quiser ser o primeiro, que seja o último de todos e aquele que serve a todos!” (v. 35). Enquanto os discípulos pensavam em poder e grandeza, tema da discussão no caminho, Jesus mostra um caminho oposto. Só há uma forma de ser o primeiro na comunidade: tornando-se servidor de todos. Tornar-se servidor de todos é o mesmo que “renunciar a si mesmo”, como ele já tinha dito anteriormente (cf. Mc 8,34). O discipulado não é um caminho para o sucesso, mas para o serviço. O sentido de ser discípulo é, portanto, a disposição de fazer para os outros e estar sempre a serviço, desinteressadamente.

Concluindo a sua catequese de contraponto às ambições de poder dos discípulos, Jesus faz um gesto bastante significativo, e finaliza com uma frase relacionada ao gesto: “Em seguida, pegou uma criança, colocou-a no meio deles e, abraçando-a, disse: “Quem acolher em meu nome uma destas crianças, é a mim que estará acolhendo. E quem me acolher, está acolhendo, não a mim, mas àquele que me enviou” (vv. 36-37). Aqui está o ponto alto da sua catequese; não basta falar, é necessário demonstrar com ações a veracidade da fala. O gesto de pegar uma criança, é bastante provocatório, uma vez que, na época, a criança não gozava de nenhuma estima e consideração, a não ser pelos próprios pais. Tanto o mundo hebraico quanto o grego, tinham visões muito negativas a respeito da criança, considerando-a uma pessoa inacabada e incapacitada para qualquer coisa. Jesus, pelo contrário, via com outros olhos: a criança é sinal de pequenez, mas também simboliza a capacidade de aprendizagem, tão necessária para o discipulado.

Colocando a criança no meio, Jesus a torna protagonista e centro da comunidade. O abraço é sinal da acolhida e do amor que devem ser dispensados aos pequenos do Reino, representados pela criança, os quais são todas as pessoas vulneráveis, necessitadas e desprezadas. De modo bastante claro, Jesus diz que acolher as pessoas desprezadas, representadas pela criança, é acolher a ele próprio e ao Pai que lhe enviou. Desse modo, podemos concluir que as pessoas consideradas pequenas, humildes, pobres, mulheres crianças e todas as categorias desprezadas pela sociedade são destinatárias e protagonistas do Reino, porque devem ocupar o centro da comunidade, uma vez que nelas se revelam Jesus e o Pai. A comunidade é, de fato, cristã quando, ao invés de excluir, acolhe e coloca em seu centro as pessoas historicamente condenadas e excluídas pela(s) sociedade(s).

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, setembro 15, 2018

REFLEXÃO PARA O XXIV DOMINGO DO TEMPO COMUM – MARCOS 8,27-35 (ANO B)




Neste vigésimo quarto domingo do tempo comum, a liturgia nos apresenta o episódio central e divisório do Evangelho segundo Marcos: a confissão de fé de Pedro, em nome de todo o grupo dos discípulos, e o primeiro anúncio da paixão. O texto proposto, Marcos 8,27-35, é um divisor de águas também no itinerário missionário e messiânico de Jesus, pois marca o início do seu caminho para Jerusalém, onde acontecerão os eventos da sua paixão e morte, culminando com a ressurreição. É, portanto, o início de uma etapa decisiva que exige muita convicção nos discípulos. Se trata de um episódio comum aos três evangelhos sinóticos (cf. Mc 8,27ss; Mt 16,13-19; Lc 19,18-22), cuja versão mais rica é essa de Marcos, com mais probabilidade de correspondência com os fatos reais.

Dividido em duas grandes partes, o Evangelho segundo Marcos tem como finalidade apresentar Jesus como o Cristo, ou seja, como o messias, e como o Filho de Deus, como já se percebe em seu primeiro versículo: “Início do Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus” (Mc 1,1). Toda a primeira parte, capítulos de 1 a 8, visa gerar na comunidade a certeza de que Jesus de Nazaré é o messias, tão esperado por Israel ao longo dos séculos; por isso, essa é concluída com a proclamação solene de Pedro, em nome da comunidade dos discípulos, afirmando “Tu és o Cristo” (o nome Cristo, em grego χριστóς - christós, significa messias ou ungido). Já a segunda parte, capítulos de 9 a 16, visa levar a comunidade a acreditar que o messias é também o Filho de Deus, cuja certeza é dada pela confissão do centurião romano no momento da morte de Jesus: “realmente, esse homem era Filho de Deus” (Mc 15,39). A maturidade da comunidade, portanto, pode ser verificada pela sua capacidade de professar livremente essas duas verdades a respeito de Jesus de Nazaré, dando-lhe adesão até as últimas consequências.

Olhando especificamente para o texto do evangelho de hoje, a nossa primeira observação diz respeito à dimensão espacial: Jesus partiu com seus discípulos para os povoados de Cesaréia de Filipe” (v. 27b). Esse dado possui grande relevância, considerando a localização e a importância da cidade de Cesaréia de Filipe. Ora, como Cesareia estava localizada no extremo norte da Galileia, em área já considerada pagã, esse dado representa uma espécie de isolamento dos discípulos em relação à ideologia nacionalista. Lá, eles estariam livres para emitir uma opinião isenta de qualquer influência ideológica e preconceitos. Para reconhecer a verdadeira identidade de Jesus é necessário isolar-se dos esquemas religiosos de Israel. Além disso, a cidade de Cesareia, como o próprio nome indica, era uma homenagem a César, um dos títulos de honra do imperador romano; logo, o reconhecimento de Jesus como messias, na “cidade de César” representava a oposição do projeto do Reino de Deus às forças de morte movidas pelo poder opressor romano.

Com esse dado, o evangelista quer ensinar que as duas primeiras exigências para o seguimento convicto de Jesus é o rompimento com as ideologias, religiosas principalmente, e a coragem para confrontar toda forma de poder oposta ao Reino de Deus. Essa era a situação da comunidade do evangelista Marcos, na época da redação do evangelho: escrito fora da Palestina, quando a convivência com a comunidade judaica já tinha se tornado insuportável e, especificamente, na cidade de Roma, capital do império, em época de forte perseguição. Portanto, o evangelista, para fortalecer os cristãos da sua comunidade, narra esse episódio para mostrar que aquela situação presente já tinha sido prevista e vivida pelo próprio Jesus com seus primeiros discípulos.

Em situações de hostilidade, é necessário renovar as convicções para continuar o seguimento. Assim, Jesus faz uma espécie de consulta a respeito da sua própria imagem, não interessado em fama, mas somente para saber se estava sendo compreendido juntamente com a sua mensagem; não era preocupação com sua imagem pessoal, mas com a eficácia do anúncio na comunidade. Por isso, ainda “no caminho, perguntou aos discípulos: ‘Quem dizem os homens que eu sou?’” (v. 27). Aqui, o evangelista faz questão de evidenciar o aspecto itinerante e a falta de comodidade no discipulado. Por isso, “o caminho” com os inerentes perigos é lugar de catequese e anúncio, o que também reflete a situação da comunidade do evangelista: expulsos da sinagoga, os cristãos já não tinham lugar fixo para a pregação, buscando espaços alternativos, como as casas, as estradas e até os cemitérios. Não obstante esses desafios, a clareza e a convicção do seguimento são fundamentais para a vida da comunidade.

A resposta dos discípulos à pergunta de Jesus revela a falta de clareza que se tinha a respeito da sua identidade e, ao mesmo tempo, a boa reputação da qual Jesus já gozava entre o povo, certamente o povo simples, com quem Ele interagia e por quem mais lutava. Eis a resposta: “alguns dizem que tu és João Batista; outros, que és Elias, outros, ainda, que és algum dos profetas” (v. 28). Sem dúvidas, Jesus estava bem-conceituado pelo povo, pois era reconhecido como um grande profeta. De fato, os personagens citados foram grandes profetas, homens que acenderam a esperança de libertação, anunciando, denunciando e testemunhando. Mas Jesus é muito mais. Embora continuem sempre atuais, os profetas de Israel são personagens do passado. A comunidade cristã não pode ver Jesus como um personagem do passado que deixou um grande legado a ser lembrado. Isso impede a comunidade de fazer sua experiência com o Ressuscitado, presente e atuante na história.

A pergunta sobre o que as outras pessoas diziam a seu respeito foi apenas um pretexto. Na verdade, Jesus queria saber mesmo era o que seus discípulos pensavam de si. Por isso, lhes perguntou: “E vós, quem dizeis que eu sou?” (v. 29a). Que as pessoas de fora o conhecessem apenas superficialmente, seria tolerável, mas dos discípulos, esperava-se uma resposta mais profunda e convicta, como de fato aconteceu: “Pedro respondeu: ‘Tu és o Messias’” (v. 29b). Aqui, Pedro fala em nome do grupo. Essa é a resposta da comunidade. Embora correta, a resposta de Pedro e da comunidade não é satisfatória, por isso, “Jesus proibiu-lhes severamente de falar a alguém a seu respeito” (v. 30). Dizer que Jesus é o Messias, é o mesmo que dizer o Cristo, como de fato ele era. 

O que fez ele proibir Pedro de repetir essa fórmula foram as possibilidades de incompreensão que essa comportava. Ora, o messias esperado pelos judeus, cujas expectativas foram alimentadas por muitos séculos, desde a época do exílio, era um guerreiro, um restaurador do reino de Davi. Essas expectativas diziam respeito a um único povo e religião, enquanto a mensagem de Jesus é universalista e acessível a todos os seres humanos, independente de qualquer cultura, etnia e religião. Portanto, podemos afirmar que Pedro deu a resposta correta – Jesus é mesmo o Cristo – mas não tinha ainda a consciência ideal – Jesus não veio para restaurar o reino de Davi, mas para implantar o Reino de Deus, como realidade universal.

Diante do equívoco dos discípulos, representados por Pedro, Jesus inaugura uma nova etapa da sua catequese, buscando revelar a sua verdadeira identidade de messias “às avessas”: o messias descendente de Davi, esperado pelos judeus, era um guerreiro, viria ao mundo para combater e matar os inimigos de Israel, restaurando o trono outrora ocupado por Davi e Salomão; Jesus mostra que sua missão é o contrário de tudo isso: “o Filho do Homem devia sofrer muito, ser rejeitado pelos anciãos, pelos sumos sacerdotes e doutores da lei; devia ser morto, e ressuscitar depois de três dias” (v. 31). Esse é o primeiro dos três anúncios da paixão presentes no evangelho. Ao invés de matar, o Messias Jesus é quem padece e, por consequência, essa deveria ser também a sorte dos seus discípulos.

Fechado na mentalidade nacionalista, Pedro não aceita um messias sofredor, por isso, “tomou Jesus à parte e começou a repreendê-lo” (v. 32). Essa atitude de Pedro é absurda e inaceitável. O verbo repreender (em grego: επιτιμαω – epítimao) significa condenar por um erro, reprovar bruscamente; fazendo isso, Pedro nega a sua condição de discípulo, e é chamado por Jesus a assumir o seu verdadeiro lugar: “Jesus voltou-se, olhou para os discípulos e repreendeu a Pedro, dizendo: ‘Vai para longe de mim, Satanás! Tu não pensas como Deus, e sim como os homens’” (v. 33). Jesus, como mestre, tem autoridade para “repreender” e condenar a atitude absurda de Pedro. Ao chama-lo de satanás, Jesus está apenas dizendo que, com aquela postura, Pedro está sendo obstáculo para o Reino de Deus.

Pedro queria evitar a cruz para Jesus e seus companheiros. Jesus, ao contrário, afirma que a cruz é condição para o seguimento (v. 34). Porém, ao contrário do que a tradução litúrgica do texto afirma, Jesus não manda Pedro para longe, mas apenas para trás de si. Aqui, ele usa a mesma expressão do chamado vocacional: “segue-me” – empregada em Mc 1,17; 8,34 (em grego: ovpi,sw mou – opísso mu). Jesus repreende Pedro, mas não o expulsa do grupo, apenas diz “vai para trás de mim”, “assume teu lugar de discípulo”, ou simplesmente “segue-me”. Com isso, o evangelista ensina que a última palavra na comunidade deve ser sempre a de Jesus. O discípulo nunca deve tomar o lugar do mestre, assim como, na comunidade cristã, nenhuma pessoa pode ter a última palavra, pois essa é sempre de Jesus.

Devido a tentação de Pedro, querendo suavizar o seguimento, diminuindo as suas consequências, Jesus aproveita para reforçar as convicções e a necessidade de disposição de dar a vida por sua causa e pelo Evangelho (vv. 34-35). De fato, o discipulado é incompatível com o egoísmo e a falta de coragem de dar a vida por causa do Evangelho. A comunidade se torna, de fato, cristã, ou seja, discípula, quando encontra o seu verdadeiro lugar: sempre atrás do mestre, no seguimento, não impondo os pensamentos humanos, mas apenas seguindo e fazendo o que Jesus pediu.

Pe. Francisco Cornelio Freire Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, setembro 08, 2018

REFLEXÃO PARA O XXIII DOMINGO DO TEMPO COMUM – MARCOS 7,31-37 (ANO B)




No vigésimo terceiro domingo do tempo comum, a liturgia oferece Marcos 7,31-37 para o Evangelho, texto que contém o relato da cura de um surdo-mudo por Jesus, em terras pagãs. Esse episódio é exclusivo do Evangelho segundo Marcos, e possui grande significado para a sua teologia, o que se evidencia pela riqueza de pormenores que traz, desde a dimensão espacial até a forma como se dá a relação de Jesus com o personagem por ele curado. O episódio do evangelho de hoje é, portanto, paradigmático. Nele, Jesus revela o máximo da sua pedagogia do cuidado e da atenção.

Tendo decretado a inutilidade e o fim das leis de pureza alimentar, como refletimos no domingo passado (cf. Mc 7), Jesus praticamente aboliu, pelo menos para os seus seguidores, qualquer obstáculo que impedisse a relação com os povos pagãos. Ora, como nada do que é externo pode tornar a pessoa humana impura, mas somente o que é gerado no coração, não pode mais haver impedimento para o contato físico e a convivência fraterna com as pessoas de outras etnias e religiões diferentes. Por isso, Jesus fez, logo em seguida, uma pequena campanha missionária em terras pagãs, cumprindo, também ali, sinais semelhantes aos já cumpridos na Galileia, com duas curas exemplares: a expulsão de um demônio da filha de uma mulher pagã, a siro-fenícia (cf. 7,24-30) – episódio saltado pela liturgia – e a cura de um surdo-mudo, episódio do evangelho de hoje: 7,31-37.

Os relatos de milagres de Jesus relacionados com os olhos, os ouvidos e a língua têm um significado simbólico muito relevante, sobretudo no Evangelho segundo Marcos. Mais que uma demonstração de poderes sobrenaturais de Jesus, é uma oportunidade para o evangelista chamar a atenção da comunidade cristã a respeito das suas necessidades concretas, com as deficiências que a impedem de um seguimento mais perseverante e fiel. É também uma forma de reforçar, entre os membros da comunidade, a responsabilidade na luta pela superação de todas as barreiras que impedem as pessoas de viver com a justa e necessária dignidade, bem como um convite à inclusão, tolerância e respeito às diferenças individuais e culturais.

A grande densidade simbólica do episódio narrado no evangelho de hoje já se evidencia no primeiro versículo, com a descrição de uma dimensão espacial completamente improvável: “Jesus saiu de novo da região de Tiro, passou por Sidônia e continuou até o mar da Galileia, atravessando a região da Decápole” (v. 31). A forma como o versículo está estruturado no texto litúrgico não denuncia a incoerência do percurso, mas em uma tradução melhor isso se torna muito evidente. Porém, como sabemos, os evangelhos não são livros de crônicas, mas de teologia. O importante nessa descrição é a passagem de Jesus por regiões pagãs, abrindo o horizonte da comunidade para essa necessidade. Tanto Tiro, quanto Sidônia e as dez cidades da Decápole eram terras pagãs. Com isso, o evangelista diz que, ao contrário da lei, o evangelho não é destinado apenas a Israel, mas ao mundo inteiro. Nenhuma barreira cultural ou religiosa pode impedir a difusão do evangelho, a boa notícia que, de fato, comunica vida.

Após os indicativos espaciais, o evangelista apresenta o personagem com quem Jesus irá interagir: um homem surdo, que falava com dificuldade. Além de mostrar a necessidade de inclusão das pessoas portadoras dessas necessidades, o evangelista quer descrever a situação da comunidade: fechada para ouvir a boa nova, essa se torna também incapaz de anunciar, ou seja, de falar do amor e da justiça propostos por Jesus. Essa precisa ser ajudada, como foi o personagem do evangelho: “Trouxeram então um homem surdo, que falava com dificuldade, e pediram que Jesus lhe impusesse a mão” (v. 32). O gesto de alguém ter levado o homem até Jesus revela a necessidade da comunidade para a experiência da fé. É importante que quem já conhece o evangelho facilite para que outras pessoas também possam conhece-lo, não obstante as dificuldades e barreiras. A surdez era sinônimo de maldição, conforme a mentalidade judaica, pois impedia a pessoa de ouvir a proclamação e a explicação da torá; ora, sem as normas da torá, o ser humano estava perdido, sem rumo, impedido de caminhar retamente. Ao colocar Jesus em contato com um homem surdo e que fala com dificuldade, o primeiro ensinamento transmitido pelo evangelista é a acolhida e a inclusão.

A acolhida de Jesus ao homem deficiente que lhe portaram, revela a grandeza da sua pedagogia: ele olha para cada um em particular, e age de acordo com as reais necessidades. A imagem da multidão no evangelho, tem um papel ambíguo e, na maioria das vezes, negativo; representa a indecisão, a falta de compromisso, a superficialidade e a indiferença ao evangelho. Por isso, um passo importante para a conversão é afastar-se da multidão, como mostra o evangelista: “Jesus afastou-se com o homem, para fora da multidão; em seguida, colocou os dedos nos seus ouvidos, cuspiu e com a saliva tocou a língua dele” (v. 33). Esse afastar-se não significa puritanismo nem exclusão, mas a profundidade da relação estabelecida por Jesus: o seu contato é pessoal, ele olha e toca em cada um e cada uma, olha nos olhos, interage, cria relação. Afastar-se da multidão é, também, o primeiro passo para se tornar discípulo e discípula.

Os gestos descritos pelo evangelista são muito significativos: toca nos ouvidos e cospe com a saliva. Esses gestos significam o cuidado ímpar que Jesus dispensa a cada necessitado. Ao tocar, ele deixa sua marca no outro, transmite a sua essência. Tocando nos ouvidos, ele doou o dom da escuta ao Evangelho. As palavras comprometedoras do Evangelho não conseguem ressoar em quaisquer ouvidos; antes de tudo, é um dom, como ele estava concedendo aquele homem. Do dom da escuta, nasce o do anúncio; é esse o sentido do tocar na língua com a saliva. Para a mentalidade semita, a saliva continha o espírito da pessoa; por isso, o evangelista quer afirmar que Jesus transmitiu seu espírito vivificador àquele homem, tornando-o apto também para o anúncio.

A sequência do episódio mostra, ainda mais, a sua importância; o evangelista diz que, Jesus “olhando para o céu, suspirou e disse: “Efatá!”, que quer dizer: “Abre-te!” (v. 34). Ora, o detalhe de Jesus olhar para o céu é raro ao longo dos evangelhos. Ele não faz isso em qualquer situação. Esse gesto significa a oração e a comunhão com Deus, o Pai. É o reconhecimento dos limites das forças humanas e a confiança no divino, o que revela ainda mais a importância desse sinal. O imperativo “abri-te” (em aramaico: efatá) é uma ordem dada não apenas aos órgãos deficientes (ouvidos e língua), mas a toda a pessoa. O verbo grego usado pelo evangelista (διανοιγω – dianóigo) significa abrir completamente, escancarar, como deve ser o ser humano diante do Evangelho, para que esse possa ser elemento transformador.

À ordem de Jesus, segundo o texto, “imediatamente seus ouvidos se abriram, sua língua se soltou e ele começou a falar sem dificuldade” (v. 35). Isso revela a mudança radical que a palavra de Jesus é capaz de provocar no ser humano. O evangelista insiste, com isso, na urgência com que a comunidade cristã deve estar atenta ao Evangelho. É preciso ter ouvidos abertos e atentos para ouvir, e a língua livre para anunciar. Sendo aquele homem um pagão, o evangelista quer dizer que o anúncio do Evangelho não é privilégio de um povo, como era a lei, mas um dom ofertado a todas as nações. Os critérios de etnia, religião e cultura não tem valor algum diante da palavra de Jesus. O que importa é ter coração disponível para o amor.
Como é praxe em Marcos, mais uma vez “Jesus recomendou com insistência que não contassem a ninguém. Mas, quanto mais ele recomendava, mais eles divulgavam” (v. 36). Embora nunca fosse atendido, Jesus costumava pedir segredo quando cumpria um gesto prodigioso. Ele temia que sua fama de messias se espalhasse com distorções, embora nesse episódio essa ordem não tenha muito sentido, pois a fama de messias se espalhava entre os judeus e, nesse caso, ele se encontrava em território pagão. A ênfase aqui é dada na difusão da sua atividade também em terras pagãs, ou seja, fora de Israel.

A conclusão é muito significativa, pois associa a obra de Jesus à criação: “Muito impressionados, diziam: “Ele tem feito bem todas as coisas: aos surdos faz ouvir e aos mudos falar” (v. 37). Ora, fazer bem todas as coisas é a característica do Deus Criador que, ao final de cada obra criada, contemplava que aquilo era muito bom (cf. Gn 1). Fazer bem as coisas é, portanto, agir como Deus. Fazer os surdos ouvir e os mudos falar é a realização das expectativas messiânicas anunciadas pelo profeta Isaías (cf. Is 35,5), o que significa uma nova criação. Assim, Jesus, restituindo a vida e a dignidade àquele homem, re-cria à imagem do Pai, fazendo bem, e elevando a criação ao sua máxima realização.

Como destinatários do evangelho, hoje, somos chamados, antes de tudo, a permitir que sejam escancarados nossos ouvidos a tudo o que Jesus ensinou, para que, vivendo tudo isso, seja autêntico o nosso anúncio. Como comunidade de fé, devemos promover a libertação em todas as instâncias, sobretudo, identificando na multidão, quem necessita de cuidado e atenção especiais, como fez Jesus com o homem surdo que falava com dificuldade. Que a ordem “abri-te” continue ecoando, para tornar nossas comunidades mais acolhedoras, compreensivas, inclusivas e abertas.

Pe. Francisco Cornelio Freire Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, setembro 01, 2018

REFLEXÃO PARA O XXII DOMINGO DO TEMPO COMUM – MARCOS 7,1-8.14-15.21-23 (ANO B)




Após uma interrupção de cinco domingos seguidos, a liturgia de hoje – o vigésimo segundo domingo do tempo comum – retoma a leitura do Evangelho segundo Marcos. O texto proposto é Mc 7,1-8.14-15.21-23, trecho que mostra mais uma controvérsia de Jesus com os fariseus e mestres da lei. Os devotos praticantes da religião oficial, fiéis guardiões da moral e dos bons costumes, observam que o comportamento de Jesus e seus discípulos não condiz com as tradições ensinadas e transmitidas pelos antepassados, por isso lhe questionam. A controvérsia presente no texto de hoje diz respeito às leis de pureza relacionadas às práticas alimentares.

Diz o texto que “Os fariseus e alguns mestres da Lei vieram de Jerusalém e se reuniram em torno de Jesus. Eles viam que alguns dos seus discípulos comiam o pão com as mãos impuras, isto é, sem as terem lavado” (vv. 1-2). Já fazia algum tempo que Jesus era considerado uma pessoa perigosa para a religião judaica, devido a sua maneira autônoma e livre de interpretar os costumes e tradições do seu povo, colocando sempre o bem da pessoa humana acima de qualquer norma. Por isso, seu ministério era monitorado pelas autoridades religiosas de Jerusalém que, informadas pelos fariseus da Galileia, enviavam comitivas para fiscalizar e conferir o seu comportamento fora dos padrões estabelecidos pela religião e a cultura da época (cf. Mc 3,22). Dessa vez, o foco da denúncia é o comportamento de alguns discípulos, acusados de não observar as leis de pureza relativas à alimentação. Porém, é impossível separar a prática dos discípulos da prática do mestre e, portanto, também o comportamento de Jesus era alvo da denúncia. A acusação é de que os discípulos comiam sem antes lavar as mãos. A prática de lavar as mãos antes da refeição não era uma regra de higiene, como é hoje, mas um preceito religioso: deixar de lavar as mãos tornava a pessoa impura e, por isso, distante de Deus. A não observância desse preceito pelos discípulos e, certamente também por Jesus, era uma denúncia a essa mentalidade religiosa fundamentalista e excludente, que reduzia a relação com Deus à práticas ritualistas e exteriores.

Escrevendo seu evangelho fora da Palestina, provavelmente em Roma, e para uma comunidade que não conhecia tão bem as tradições judaicas de pureza alimentar, o evangelista, para informar melhor os seus leitores, oferece uma nota explicativa: “Com efeito, os fariseus e todos os judeus só comem depois de lavar bem as mãos, seguindo a tradição recebida dos antigos. Ao voltar da praça, eles não comem sem tomar banho. E seguem muitos outros costumes que receberam por tradição: a maneira certa de lavar copos, jarras e vasilhas de cobre” (vv. 3-4). Com essa explicação, o evangelista visa advertir seus leitores a não reproduzirem na comunidade cristã as atitudes que Jesus reprovou na religião judaica de seu tempo. Como já afirmamos acima, as motivações de tal comportamento imposto pela religião não eram higiênicas, mas religiosas. O motivo de ter de tomar banho ao voltar da praça, por exemplo, era que o contato com outras pessoas que não praticassem a mesma religião tornava o judeu impuro e, de consequência, longe de Deus. A praça (em grego: αγορα – agorá) era o espaço de circulação de pessoas, comercialização de produtos e propagação de doutrinas filosóficas e religiosas, onde se encontravam pessoas de diversas culturas; para os judeus mais fundamentalistas, era um lugar perigoso, pois o simples contato com uma pessoa de outra cultura já tornava o judeu impuro; por isso, ao retornar para casa, era necessário purificar-se o quanto antes, com o ritual do banho (ablução). Havia prescrições determinando até mesmo a maneira de lavar os objetos domésticos.

O mestre tinha o dever de responder pelo comportamento dos seus discípulos; por isso, vendo nesses um comportamento irregular, fora dos padrões estabelecidos, é ao mestre que os vigilantes da religião pedem satisfações: “Os fariseus e os mestres da Lei perguntaram então a Jesus: ‘Porque os teus discípulos não seguem a tradição dos antigos, mas comem o pão sem lavar as mãos?” (v. 5). Mais que um simples questionamento, essa pergunta contém uma grave acusação: os discípulos de Jesus não seguem as tradições dos pais! Ora, além dos numerosíssimos mandamentos da Torá, principalmente do Levítico, os judeus mais fiéis, como os fariseus, seguiam também as leis da “tradição oral”; a essa tradição, eles atribuíam o mesmo valor da lei escrita, a Torá, pois também consideravam proveniente de Deus e transmitida a Moisés, o qual a repetiu para Josué e depois aos sucessivos chefes religiosos. Deixar de cumprir um só daqueles preceitos era ofender a Deus e desonrar os antepassados.

À pergunta acusatória dos fariseus e mestres da lei, “Jesus respondeu: ‘Bem profetizou Isaías a vosso respeito, hipócritas, como está escrito: ‘Este povo me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim. De nada adianta o culto que me prestam, pois as doutrinas que ensinam são preceitos humanos. Vós abandonais o mandamento de Deus para seguir a tradição dos homens” (v. 6-7). A resposta de Jesus se fundamenta na herança mais autêntica da religião de Israel: a profecia! Ele cita explicitamente Isaías 29,13, denunciando a falsidade da religiosidade dos fariseus e mestres da lei, ao mesmo tempo provocando-os a buscar uma religião autêntica, vivida a partir de dentro, ou seja, do coração. Mesmo que tenha sido cultivada e transmitida durante muitos séculos, a tradição que separa, segrega e condena, não passa de preceito humano, não pode ser de origem divina. A chamar os fariseus e mestres da lei de hipócritas (u`pokrithj – hipocrites), termo grego que significa ator de teatro, Jesus denuncia que toda aquela religiosidade não passava de encenação, era um mero espetáculo, como é toda religião que, independente da época histórica, prioriza o rito e o preceito ao invés do amor, da justiça e da misericórdia. Jesus atualizou a denúncia profética de Isaías e o evangelista Marcos convida os seus leitores de todos os tempos a fazer o mesmo.

Jesus troca de interlocutores, considerando o risco que era a mentalidade dos fariseus para a multidão. Por isso, à multidão, transmite um ensinamento solene e importante: “Jesus chamou a multidão para perto de si e disse: “Escutai, todos, e compreendei: o que torna impuro o homem não é o que entra nele vindo de fora, mas o que sai do seu interior” (vv. 14-15). Com esse ensinamento, Jesus decreta a inutilidade e ineficiência dos ritos judaicos de purificação e proclama que a relação do ser humano com Deus não depende de fatores externos, mas simplesmente do interior, ou seja, do coração. O mal não entra de fora no ser humano por contato com pessoas, coisas, lugares e alimentos, mas pode nascer de dentro quando o amor não é cultivado no coração, como ele mesmo afirma, na sequência: “Pois é de dentro do coração humano que saem as más intenções, imoralidades, roubos, assassínios, adultérios, ambições desmedidas, maldades, fraudes, devassidão, inveja, calúnia, orgulho, falta de juízo” (vv. 21-22). Esses treze elementos citados constituem o que pode realmente tornar o ser humano impuro, ou seja, longe de Deus, e são típicos de quem se fecha ao amor e à justiça; não são ocasionados por situações exteriores, mas depende somente do coração da própria pessoa. Por “falta de juízo”, o último dos males elencados, entende-se o egoísmo desenfreado que faz a pessoa pensar somente em si.

Assim, como “todas estas coisas más saem de dentro, e são elas que tornam impuro o homem” (v. 23), a boa religião para Jesus é aquela ajuda o ser humano a promover o bem e a ser, a cada dia, uma pessoa melhor. O ser humano é impuro quando não permite que de seu coração saiam coisas boas. Nenhum rito ou norma é capaz de determinar a relação com Deus, nem de determinar a bondade do ser humano, mas somente a disposição interior de fazer o bem.

Pe. Francisco Cornelio Freire Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

REFLEXÃO PARA O 4º DOMINGO DA PÁSCOA – JOÃO 10,11-18 (ANO B)

O evangelho do quarto domingo da páscoa é sempre tirado do capítulo décimo do Evangelho de João, no qual Jesus se auto apresenta como o ún...