sábado, abril 27, 2024

REFLEXÃO PARA O 5º DOMINGO DA PÁSCOA – JOÃO 15,1-8 (ANO B)

 


Todos os anos, a liturgia do quinto e do sexto domingo do tempo pascal utiliza textos do chamado “testamento de Jesus” do Quarto Evangelho (Jo 13–17). Esses capítulos, que correspondem à última ceia, contém o ensinamento mais precioso de Jesus no contexto narrativo do Evangelho de João. Trata-se de um conjunto de diversos discursos que o evangelista reuniu como se fosse apenas um grande discurso, apresentando-o como síntese de tudo o que Jesus fez e ensinou durante a sua vida. Por isso, o conjunto começa com o gesto do lava-pés (Jo 13,1-12), expressão máxima do agir serviçal, por amor, de Jesus, e é concluído com a chamada oração sacerdotal (Jo 17,1-26), na qual Jesus expressa sua intimidade com o Pai, marcada pela confiança e entrega, e seu cuidado com a humanidade, suplicando unidade e fraternidade. Do lava-pés à oração de Jesus, portanto, está a síntese de toda a sua vida. O evangelista faz isso como resposta às necessidades da sua comunidade, que passava por crises, deixando essa inseparabilidade entre a vida e a mensagem de Jesus como legado também para as comunidades de todos os tempos.

Na época da redação do Evangelho de João, provavelmente nos últimos anos do primeiro século, em decorrência das perseguições, havia fortes tendências ao desânimo e à falta de entusiasmo na vivência da fé em diversas comunidades. Na verdade, além das perseguições, também o conteúdo da pregação e os fundamentos da fé geravam dúvidas e questionamentos, sobretudo sobre a ressurreição de Jesus. E, como as pessoas que tinham convivido com Jesus em sua vida terrena já tinham morrido todas, isso fazia aumentar ainda mais os questionamentos. O texto lido hoje – Jo 15,1-8 – responde a alguns dos questionamentos suscitados naquele contexto. Diante da hostilidade do ambiente, alguns grupos sentiam-se cada vez mais necessitados de unirem-se a Jesus, mas tinham dificuldade de encontrar e assimilar a maneira de fazer isso. Também sentiam falta de sinais mais concretos da sua presença no mundo. Outros grupos, ao invés de unirem-se, distanciavam-se cada vez mais da comunidade, além das hostilidades externas, viam a unidade interna se dissolver, devido ao afastamento do amor e o surgimento de novas lideranças com tendência autoritária. A tudo isso, o evangelista responde afirmando que está unido a Jesus quem se deixa conduzir pela sua palavra, o que se verifica pelos frutos produzidos, ou seja, pelo agir no mundo. Por isso, as expressões “dar fruto” e “permanecer em mim” funcionam praticamente como refrões no texto de hoje. À medida em que os seguidores de Jesus dão frutos, confirma-se que ele continua presente e atuante no mundo, após a ressurreição.

Para conscientizar-se disso, a comunidade necessitava fazer um retorno ao essencial. E o evangelista encontrou na construção do relato da última ceia uma excelente oportunidade reforçar os ensinamentos de Jesus, retomando, com linguagem nova, a essência de tudo o que já tinha sido vivido e ensinado por ele. Ora, o contexto da ceia é carregado de emoção. Na verdade, tudo o que acontece no contexto mais amplo, que é o da paixão, possui uma expressiva carga emotiva, e João focalizou mais na ceia, tornando-a o momento mais dramático. Cada gesto e palavra de Jesus naquele momento se torna mais comovente, sobretudo depois do lava-pés (Jo 13,1-12) e dos anúncios da traição de Judas e das negações de Pedro (Jo 13,21-30.36-38). A partir dali os sentimentos de solidariedade, adesão e até de compaixão se tornam facilmente despertáveis. É quase impossível acompanhar tudo isso e permanecer indiferente, sobretudo quem já tinha sido iniciado na fé, embora vivesse momentos de crise. Portanto, o evangelista se serve desse contexto para recordar os ensinamentos de Jesus mais indispensáveis para a comunidade cristã, válidos para todos os tempos, mostrando como permanecer unidos a ele após a ressurreição.

Olhemos, então, para o texto, que é marcado pela autoapresentação de Jesus a partir da imagem da videira: «Eu sou a videira verdadeira e meu Pai é o agricultor» (v. 1). Com a afirmação “Eu sou” (em grego: Ἐγώ εἰμι – egô eimi), Jesus confirma sua identidade divina, como vimos no domingo passado, ao refletir sobre a sua apresentação como Pastor autêntico e bom. Essa é a fórmula clássica de revelação de Deus, como tinha se revelado a Moisés (cf. Ex 3,14). Portanto, a ação libertadora e salvífica de Jesus é a mesma do Deus libertador de sempre. A videira, juntamente com a oliveira e a figueira, está entre as plantas clássicas da tradição bíblica para representar a relação de Deus com o seu povo. A videira leva vantagem em relação às demais, por gerar a matéria-prima do vinho, símbolo da alegria, da felicidade e do amor. Tanto os profetas quanto a tradição sapiencial fizeram uso dessa imagem, referindo-se a Israel como destinatário do amor de Deus (Is 5,1-7; Jer 2,21; Ez 15,1-6; 17; 19,10-14; Sl 80), embora no Antigo Testamento prevalecesse mais a figura coletiva da vinha – a plantação de videiras – do que a figura individual da videira, ou seja, a planta mesma, como Jesus aplica a si. Recordar essa distinção é de fundamental importância para a compreensão de todo o texto e, mais ainda, da imagem aplicada a Jesus. Ora, seguindo a tradição profética e sapiencial do Antigo Testamento, os evangelhos sinóticos (Mt-Mc-Lc) aplicaram a imagem da vinha em diversas parábolas, como imagem de Israel. A recordação disso faz perceber e compreender melhor a singularidade e a relevância da imagem de Jesus como videira verdadeira.

É importante observar que Jesus não se apresenta simplesmente como videira, mas como «a videira verdadeira». Com isso, o evangelista ensina que pode existir outras videiras que não são verdadeiras e, por isso, a comunidade pode se enganar. E, de fato, na vinha na qual a videira verdadeira estava inserida – Israel – havia muitas videiras não autênticas, não verdadeiras. Prova disso era o degradante estado ético e moral das autoridades religiosas de Jerusalém na época de Jesus. É necessário, portanto, que a comunidade de discípulos e discípulas esteja atenta para unir-se somente à videira verdadeira. É importante também perceber o papel do Pai: ele é o agricultor da videira verdadeira. Ora, o Pai que assume a função de agricultor, é o mesmo que destituiu os maus pastores que tinham apascentado a si mesmos, deixando perecer o rebanho (Ez 34); por isso, o mesmo Pai enviou Jesus como pastor autêntico, para substituir os mercenários, a casta sacerdotal de Jerusalém. O mesmo aconteceu com os antigos agricultores que não cuidaram da vinha como deveriam, e o resultado foi a produção de “uvas azedas”, como atesta o profeta Isaías na “canção da vinha” (cf. Is 5,1-7). Por isso, o Pai assume pessoalmente a função de cuidar da videira verdadeira, o seu Filho Jesus e, nele, fazer frutificar um novo povo, correspondente às uvas boas que devem nascer da videira verdadeira. A imagem da videira era usada também para representar a Lei. Com isso, o evangelista contrapõe Jesus e seus ensinamentos à Lei de Moisés.

O Pai, como agricultor, tem um papel fundamental e inconfundível: «Todo ramo que em mim não dá fruto, ele o corta, e todo ramo que dá fruto, ele o limpa, para que dê mais fruto ainda» (v. 2). Isso quer dizer, acima de tudo, que a última palavra é sempre do Pai. Mas, sendo Jesus a revelação plena do Pai, tudo o que ele diz e faz tem o aval do Pai. Na verdade, o Pai age e fala em Jesus. Ora, as crises vividas pela comunidade do evangelista e outras comunidades da sua época, gerava dois efeitos principais: o desânimo, com a tendência à dispersão e ao abandono da fé; e o fechamento de mentalidade, com a tendência ao puritanismo, à hierarquização e autoritarismo das lideranças, o que terminava gerando exclusões e segregações na comunidade. Esse versículo funciona como resposta e advertência a tudo isso, sobretudo à segunda tendência. Ninguém pode ocupar o lugar do Pai. O único que foi autorizado a agir no seu lugar foi Jesus. A comunidade não é espaço de julgamentos nem acusações, afinal, todos os seus membros são apenas ramos da videira verdadeira. É o Pai que, como agricultor único, a seu tempo, corta e limpa os ramos conforme a capacidade e disponibilidade de produzir frutos em cada um. Cortar e limpar revela um agir pedagógico e humanizador, marcado sempre pelo cuidado. Quer dizer que todos os ramos, frutíferos ou não, necessitam da ação do Pai. É um chamado à confiança no Pai: não obstante os desafios e dificuldades, ele está sempre olhando e cuidado de cada pessoa, respeitando, obviamente, a liberdade de cada uma que pode aderir ao não ao seu projeto, unindo-se à videira ou separando-se dela.

O ramo que dá fruto recebe cuidados especiais do agricultor para que produza ainda mais. O Pai chega a limpar esse ramo. Trata-se de uma atividade realizada com as próprias mãos, significa o cuidado especial de Deus, o Pai, por quem se abre ao projeto de Jesus. Essa imagem atualiza a atividade artesanal de Deus enquanto criador: aquele que moldou o ser humano com as próprias mãos, continua usando as mesmas mãos para cuidar da sua obra, que é uma criação contínua. Esse cuidado é o efeito da própria palavra de Jesus: «Vós estais limpos por causa da palavra que eu vos falei» (v. 3). É a mensagem de Jesus, sua palavra, o que torna uma pessoa limpa, pura. Quer dizer que na palavra ecoa o agir criador e cuidador do Pai. A pessoa que escuta Jesus sente a mão de Deus, o Pai, em sua vida. Quem o escuta se torna uma pessoa limpa; porém, não se trata de uma pureza ritual ou espiritualista, mas da capacidade de produzir frutos. É para isso que o Pai limpa, através das palavras de Jesus, ou seja, através do conjunto dos ensinamentos de Jesus. No sistema religioso judaico, a pureza era proporcionada pela ritualidade. E muitos na comunidade do evangelista insistiam em querer conciliar o ensinamento de Jesus com o conjunto de ritos judaicos, principalmente os de purificação. Assim, o evangelista ensina que os rituais de purificação são desnecessários na comunidade cristã. O que purifica é a adesão à Palavra, e isso é atestado pelos frutos produzidos, ou seja, pela prática do amor.

A necessidade da permanência em Jesus é vital para os discípulos e a comunidade: «Permanecei em mim e eu permanecerei em vós. Como o ramo não pode dar fruto por si mesmo, se não permanecer na videira, assim também vós não podereis dar fruto, se não permanecerdes em mim» (v. 4). Aqui aparece o verbo chave de todo o texto: permanecer (em grego: μένω – méno), que poderia ser traduzido também como morar, ficar dentro; entre os versículos 4 e 8, esse verbo aparece sete vezes. Daí, a importância da permanência dos discípulos e discípulas em Jesus, sendo que o próprio Jesus permanece, ou seja, mora em quem quer morar nele. Quem escuta as palavras de Jesus e produz frutos, quer dizer, quem age conforme os ensinamentos de Jesus torna-se a sua morada no mundo. No final do primeiro século, já não havia mais o templo de Jerusalém, mas os judeus contavam com as construções das sinagogas, espalhadas em todo o território do império romano. Nas sinagogas estavam guardadas cópias da Lei e, por isso, eram consideradas moradas de Deus. Em algumas comunidades cristãs, questionava-se o porquê de não terem templos, casas específicas para a morada de Deus.

O evangelista responde que a morada do Ressuscitado no mundo é toda pessoa que produz frutos, ou seja, quem age conforme o ensinamento de Jesus, e a síntese desse ensinamento é o mandamento do amor. E o exemplo do ramo ligado à planta – a videira – ilustra bem essa relação. Só produz frutos de amor e justiça quem permanece atento ao que Jesus ensinou. Os frutos que ele espera de seus discípulos e discípulos são basicamente estes: amor e justiça, compreendendo tudo o que deles deriva. É isso o que suas palavras ensinam, considerando o conjunto da sua mensagem. Ao convidar seus discípulos e discípulas à permanência em sua pessoa, Jesus convida todas as pessoas. Ninguém é excluído desse convite. E o convite em si já constitui uma notícia maravilhosa, independentemente da adesão. Ora, se ele convida a permanecer, quer dizer que já estamos todos nele e ele está em todos nós, por natureza. O fato de sermos criados à imagem e semelhança do Criador atesta isso. E Jesus e o Criador, que é Pai, são um só (Jo 10,30), sem que ele deixe de ser Filho nem o Pai deixe de ser Pai. São um só pela comunhão de amor vivida intensamente pelos dois. E todas as pessoas são chamadas a participar dessa comunhão, cuja exigência é a vivência do amor. Portanto, já estamos em Jesus e ele já está em nós e devemos permanecer nessa unidade, o que se faz amando.

Eis que chegamos ao centro do texto: «Eu sou a videira e vós os ramos. Aquele que permanece em mim, e eu nele, esse produz muito fruto; porque sem mim nada podeis fazer» (v. 5). Jesus tinha se apresentado como a videira verdadeira logo no primeiro versículo (v. 1), tinha falado dos ramos referindo-se aos discípulos (vv. 2.4), mas não de modo tão claro como agora. Novamente, destaca que a produção dos frutos – amor e justiça – dependem essencialmente desta relação recíproca: os discípulos morando nele, e ele morando nos discípulos. Arrancado da planta, nenhum ramo pode frutificar. Se o traço distintivo dos discípulos e discípulas é produzir frutos, isso só se faz estando unidos à videira que é Jesus. A produção de frutos constitui a identidade e a missão dos discípulos, logo, não pode ser compreendida segundo a lógica da meritocracia nem competitividade. O que ele espera é que os frutos sejam bons, não importa a quantidade. E para que os frutos sejam bons é necessário que a planta à qual devem estar unidos seja verdadeira. Por isso, é a Jesus que devem estar unidos, pois é ele é a única videira verdadeira. É por isso que, sem ele, a comunidade nada pode fazer. São os frutos, portanto, que atestam se uma comunidade está unida ou não a Jesus. Esses frutos são, acima de tudo, amor e justiça.

O sentido da vida depende da permanência em Jesus. Separar-se dele, como um ramo se separa da planta, equivale à destruição da própria existência, significa perder o sentido da vida. Por isso, ele declara: «Quem não permanecer em mim, será lançado fora como um ramo e secará. Tais ramos são recolhidos, lançados no fogo e queimados» (v. 6). Não temos aqui a ameaça de um castigo, mas a imagem de uma vida sem sentido, até porque o Evangelho de João não contém trechos apocalípticos, como nos sinóticos (Mt-Mc-Lc). Por sinal, essa é a única passagem em que aparece a palavra fogo (em grego: πῦρ – pyr) no Quarto Evangelho, o qual não contém mensagem ameaçadora em nenhum trecho. Às vezes, em algumas traduções aparece a palavra fogo em outras duas ocasiões, mas como tradução de um termo grego que corresponde a “braseiro” ou “fogaréu”, indicando aquecimento e brasas para assar alimentos (Jo 18,18; 21,9), sem qualquer conotação ameaçadora. O fogo aqui é imagem de uma existência inútil e sem sentido. Segundo o Evangelho de João, o que faz alguém perecer é sempre a falta vínculo com Jesus, o que se dá por falta de fé e ausência de amor, nunca pelos tradicionais “pecados morais” tão citados nas pregações ameaçadoras ao longo dos séculos. A falta de amor e justiça faz perecer a existência de qualquer pessoa. Quem ama, consciente ou não, está unido a Cristo; da mesma forma, quem não ama está separado, mesmo que tenha vínculos religiosos e participe de ritos e sacramentos.

A permanência do discípulo em Jesus, semelhante à do ramo à videira, garante a sintonia entre ambos, a ponto de a vontade de um ser confirmada pelo outro: «Se permanecerdes em mim e minhas palavras permanecerem em vós, pedi o que quiserdes e vos será dado» (v. 7) Não se trata de uma confiança ilusória ou quase mágica no poder da oração, mas de uma afinidade de sentimentos e de percepção das coisas. O discípulo e discípula que ama, vive com Jesus uma relação de tamanha transparência, semelhante àquela entre Jesus e o Pai: «Eu e o Pai somos um» (Jo 10,30). O que garante essa relação é a atenção às palavras de Jesus, que consistem no conjunto da sua mensagem, transmitida por ele mesmo aos discípulos e discípulas de primeira hora, e às futuras gerações pelo(s) evangelista(a). São palavras para serem, acima de tudo, vividas, praticadas no dia a dia. A escuta da oração, por Jesus e pelo Pai, passa pela sintonia entre a prece da comunidade e o ensinamento de Jesus. Quem vive conforme as palavras de Jesus, já faz da própria vida uma contínua oração; por isso, sabe também o que pedir e só pedirá o que estiver de acordo com a sua vontade.

Na conclusão, Jesus recorda que Deus, o seu Pai e nosso, não se sente glorificado pela ritualidade cultual, mas simplesmente pelos frutos de amor e justiça que os seus discípulos e discípulas produzem: «Nisto meu Pai é glorificado: que deis fruto e vos tornais meus discípulos» (v. 8). Como já tinham recordado os antigos profetas clássicos de Israel (Os 6,6), a verdadeira celebração da glória de Deus não se dá por meio de solenidades e ritos, mas pela vida conforme a justiça e o amor. E é importante perceber que não se torna discípulo para dar frutos, mas é dando frutos que se torna discípulo. Aqui o evangelista recorda à sua comunidade e às comunidades de todos os tempos que o discipulado é algo dinâmico, não é um status; ninguém nasce discípulo, mas se torna discípulo, à medida em que vai conduzindo a sua existência pelo amor e a justiça, ou seja, produzindo frutos conforme a vida de Jesus. E quanto mais pessoas se tornam discípulos ou discípulas, o amor de Jesus se espalha pelo mundo e, nisso, o Pai é glorificado.

Que possamos unirmo-nos cada vez mais a Jesus, videira verdadeira, deixando-nos podar pelo Pai, para que, produzindo frutos de amor, cheguemos realmente à condição de verdadeiros discípulos e discípulas de Jesus Cristo. Na condição de seus discípulos e discípulas, nos tornamos agentes de humanização do mundo, não com proselitismos e propaganda, mas com frutos de amor e justiça. E o amor e a justiça são os critérios determinantes para a nossa permanência nele e dele em nós.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

 

sábado, abril 20, 2024

REFLEXÃO PARA O 4º DOMINGO DA PÁSCOA – JOÃO 10,11-18 (ANO B)


O evangelho do quarto domingo da páscoa é sempre tirado do capítulo décimo do Evangelho de João, no qual Jesus se auto apresenta como o único, bom e autêntico pastor das ovelhas. Em cada ano, se lê um trecho diferente, mas sempre do mesmo capítulo, apresentando sempre a imagem do pastor a Jesus. Por isso, esse domingo ficou tradicionalmente conhecido como o «domingo do Bom Pastor». Por causa disso, de modo muito oportuno, o então Papa Paulo VI o instituiu também como o «dia mundial de oração pelas vocações». Neste ano, por ocasião do ciclo litúrgico B, o texto específico é Jo 10,11-18. Por sinal, de todo o capítulo, esses são os versículos que mais insistem na apresentação de Jesus como pastor. O cenário da narrativa é a cidade de Jerusalém, provavelmente as imediações do templo, durante uma das festas judaicas de peregrinação, embora não fique claro qual delas, se a festa das tendas ou a da dedicação do templo (cf. Jo 7,1-10; 10,22). É importante perceber que o evangelista João faz as principais manifestações de Jesus coincidirem com as festas de Israel para enfatizar sua condição de oposição e alternativa à estrutura religiosa do seu tempo.

Faremos hoje a contextualização em dois níveis: num nível mais amplo, considerando a imagem do pastor no cristianismo e em Israel e, em seguida, num nível mais literário, considerando a posição do texto no conjunto do Quarto Evangelho. A imagem de Jesus como bom pastor caiu na graça do cristianismo desde os seus primórdios. Tornou-se clássico representá-lo como um pastor carregando uma ovelha nos ombros, imagem bonita, mas que não corresponde exatamente em nada ao décimo capítulo do Evangelho de João. Ora, aquela bela imagem do pastor com a ovelha nos ombros corresponde ao personagem de Lucas na chamada «parábola da ovelha perdida» (Lc 15,1-7). A imagem de pastor presente no Quarto Evangelho é bem diferente: ele não carrega nem conduz ninguém nos ombros, pois isso é sinal de dependência e privação da liberdade. O pastor verdadeiro é aquele que aponta caminhos, é seguido porque conhece suas ovelhas e se deixa conhecer por elas. Jesus é um pastor que humaniza e educa para a liberdade.

Também é importante recordar que a figura do pastor sempre foi muito significativa para o povo de Israel. Desde o Antigo Testamento, essa imagem foi associada a Deus e também aos líderes que assumiram funções de guia e comando sobre o povo, como reis e sacerdotes, principalmente. Devido às infidelidades e descaso desses líderes, essa imagem foi se desgastando ao longo do tempo, sendo alvo de denúncias da parte dos profetas. Uma das denúncias mais fortes foi aquela do profeta Ezequiel: lamentando-se dos pastores de Israel que apascentavam a si mesmos, ao invés de apascentar o (povo) rebanho (Ez 34,1-2), Deus toma a iniciativa de destituí-los e cuidar ele mesmo do rebanho (Ez 34,11). Jesus atualiza a perspectiva do profeta: sendo ele o único e autêntico pastor, estão destituídos os sacerdotes do templo e os mestres da lei. Suas palavras tiveram grande repercussão porque mexiam com os privilégios da classe dirigente de Israel, composta por funcionários do sagrado, ao invés de pastores verdadeiros. A prova do incômodo causado pelas palavras de Jesus está na reação dos líderes judeus após esse discurso: uns diziam que ele estava endemoniado (Jo 10,20), outros queriam prendê-lo (Jo 10,39). A mensagem de Jesus foi uma ameaça aos dirigentes que apascentavam apenas a si e às suas economias, explorando o povo ao invés de protegê-lo.

A nível de contexto literário, é oportuno recordar que esse décimo capítulo do Quarto Evangelho é precedido pelo polêmico episódio da cura do cego de nascença, do qual surgiu um caloroso conflito entre Jesus e os fariseus (Jo 9,1-41). Para os fariseus e os dirigentes judeus, o gesto libertador de Jesus, ao curar o cego, era uma ameaça aos seus privilégios, por isso, o rechaçaram veemente, mas Jesus não se deu por vencido e, por isso, continuou sua investida para desmascará-los. É clara a relação entre os dois textos: Jesus abre os olhos para que as pessoas não se deixem enganar pelos falsos pastores, e para que adquiram lucidez e conhecimento para seguirem ao único e verdadeiro pastor, entrando e saindo pela única porta que conduz à vida em plenitude. Isso era inadmissível para um sistema religioso que dominava a partir da imposição e do medo. O cenário do episódio é a cidade de Jerusalém, provavelmente as imediações do templo. Olhemos, pois, para o texto.

Feita a contextualização, olhemos para o texto, cuja profundidade é evidenciada já a partir do primeiro versículo: «Eu sou o bom pastor. O bom pastor dá a vida por suas ovelhas» (v. 11). Com a expressão “Eu sou” (em grego: Ἐγώ εἰμι – egô eimí) Jesus recorda a sua condição divina, pois essa é a fórmula clássica de revelação de Deus, como tinha se revelado a Moisés (cf. Ex 3,14). O evangelista João tem um grande zelo por essa expressão, e só permite que ela seja pronunciada por Jesus, em sua obra. Assim, ele afirma que Jesus possui a identidade libertadora de Deus, e é a libertação e vida plena que ele está oferecendo, ao revelar-se como pastor autêntico. Por sinal, a expressão «bom pastor» não expressa tudo o que o texto diz na língua original. O evangelista emprega um termo que significa mais do que bondade, para expressar a qualidade de pastor que é Jesus. O termo empregado significa belo (em grego: καλός – kalós), não em relação às aparências, mas no sentido de completude, autenticidade, perfeição, realidade única; é o mesmo adjetivo empregado para qualificar o vinho novo das bodas de Caná (cf. Jo 2,10), que representa a superioridade da nova aliança em relação à antiga. Possui, portanto, uma função substitutiva. Isso quer dizer que só Jesus é pastor autêntico. Não existem outros pastores além dele; se existiram antes, perderam a validade depois dele. E a história mostra que os que vieram antes dele eram mais mercenários do que pastores.

E o que explica a qualidade única do pastoreio de Jesus é a capacidade de dar a vida pelas ovelhas, o que pressupõe um amor ilimitado. De fato, a primeira atitude que justifica a bondade ou beleza de Jesus enquanto pastor é a doação da vida. Ele é pastor belo/bom porque dá a vida, antes de tudo. E a palavra-chave de todo o texto é exatamente o verbo dar (em grego: τίθημι), repetido cinco vezes nesta passagem (vv. 11.15.17.18). Esse verbo pode ser traduzido também como doar, oferecer, entregar. No versículo 18, esse verbo aparece duas vezes, sendo que numa delas está traduzido por entregar. É importante recordar que, ao apresentar-se como aquele que dá a vida, Jesus não se refere apenas a sua morte de cruz. Na verdade, a morte na cruz foi o resultado ou consequência do seu doar vida continuamente. Durante toda a sua vida, ele deu vida às pessoas com quem se encontrou, principalmente as mais necessitadas. A sua vida foi uma doação contínua de vida. Ele doou vida aos pecadores e pecadoras a quem acolheu, aos doentes a quem curou, aos possuídos a quem libertou. Reduzir sua doação de vida à sua morte na cruz seria negligenciar sua missão de enviado do Pai para fazer plenamente sua vontade e revelar seu rosto com transparência. E o Pai o enviou para dar vida ao mundo. A morte na cruz, portanto, foi consequência de sua fidelidade, do seu dar-se plenamente, por amor. De fato, só o amor motiva alguém a fazer a da vida um dar-se contínuo, como ele fez. E a vida de quem dá vida não se acaba, se torna sempre mais viva, nem a morte consegue destruí-la, é vida que se eterniza. Por isso, dar a vida deve ser um imperativo também quem acredita em Jesus e recebeu vida em seu nome, quem vivificou-se pelo seu amor, pelas suas palavras.

Após apresentar-se como pastor bom/belo, capaz de dar vida, Jesus mostra o seu oposto, o que não deve ser seguido nem imitado entre os seus seguidores: «O mercenário, que não é pastor e não é dono das ovelhas, vê o lobo chegar, abandona as ovelhas e foge, e o lobo as ataca e dispersa» (v. 12). O termo mercenário, que se tornou tão pejorativo, equivale simplesmente a empregado, assalariado; aqui, representa a hierarquia religiosa de Jerusalém. Enquanto o pastor cuida das ovelhas por amor, a ponto de dar a vida por elas, o mercenário cumpre suas funções por pagamento e não chega a arriscar a vida por elas. Em situação de perigo, ele deixa o rebanho a mercê, «pois ele é apenas um mercenário que não se importa com as ovelhas» (v. 13). Aqui, Jesus chega ao ponto alto de sua crítica à hierarquia religiosa de Jerusalém. Aos sacerdotes do templo não importava a situação do povo, pois eles pensavam apenas nas ofertas que recebiam. Viviam uma relação meramente mercantilista, sem nenhuma sensibilidade para o cuidado do povo, pois não eram movidos pelo amor. Por isso, deixavam as ovelhas à mercê dos lobos. O lobo é imagem das forças de morte, exploração e injustiça que ameaçam a comunidade e a humanidade de um modo geral. Nesse contexto específico, representa o império romano. Ao invés de combatê-lo, a religião comandada por mercenários prefere aliar-se ou fugir dele. No caso da religião praticada no tempo de Jesus na Palestina, havia conivência e conveniência entre as autoridades religiosas e o império romano, de modo que mercenário e lobo conviviam muito bem, espoliando as pobres ovelhas de Israel. É importante recordar que as denúncias de Jesus às estruturas da sua época são válidas para todos os tempos.

Na sequência, Jesus explica como se dá sua relação de pastor com as ovelhas: “Eu sou o bom pastor. Conheço as minhas ovelhas, e elas me conhecem” (v. 14). Esse conhecimento recíproco sempre foi desejado por Deus ao longo da história: ele conheceu a Israel e deixou-se conhecer por ele, mas Israel rejeitou o conhecimento (Os 2,22; 4,1; 6,3.6; Na 1,8; Jr 31,34), por isso perdeu o seu rumo. Conhecer, na linguagem bíblica, não se trata de um ato cognitivo, mas de uma relação íntima e recíproca, motivada pelo amor, semelhante a de Jesus com o próprio Pai«Eu sou o bom pastor. Conheço as minhas ovelhas, e elas me conhecem, assim como o Pai me conhece e eu conheço o Pai. Eu dou minha vida pelas ovelhas» (vv. 14-15). A intimidade de Jesus com as suas ovelhas é atestada pela sua capacidade de amar até dar a vida. Enquanto os sacerdotes do templo pensavam relacionar-se com Deus através do sangue de animais derramado em sacrifício, Jesus se relaciona através do conhecimento recíproco, ou seja, mediante o amor. E esse modelo de relação, ele quer universalizar: «Tenho ainda outras ovelhas que não são deste redil: também a elas devo conduzir» (v. 16a). Aqui está a abertura de horizonte. Pelas circunstâncias, o pastoreio de Jesus começa por Israel – o redil ao qual o texto se refere –, libertando o povo dos mercenários (dirigentes religiosos) e enfrentando o lobo (império romano). Mas é necessário, através da comunidade cristã, estender essa missão a todo o universo, ao longo da história.

A abertura universalista recorda que nenhuma religião pode delimitar o alcance do amor de Deus: também as pessoas que não fazem parte do redil pertencem a Deus e são amadas por ele. E, como diz Jesus, também «elas escutarão a minha voz, e haverá um só rebanho e um só pastor» (v. 16b). Temos aqui o “sonho da unidade” sendo plantado por Jesus. A expressão «um só rebanho e um só pastor» não significa simplesmente a adesão de todo o mundo a um único sistema religioso, submetendo-se a uma única liderança. Significa, acima de tudo, um projeto de fraternidade universal, com inclusão, tolerância, justiça e solidariedade; é um mundo novo, construído a partir do amor. Par isso, é necessário que a voz inconfundível de Jesus ressoe em todo o universo e seja ouvida, mas expressa pela linguagem do amor, jamais através de proselitismos e imposição. De fato, a voz de Jesus não é um som, não é um eco, mas é o seu estilo de vida, seu jeito de amar, enfim, é a sua própria pessoa. Espalha essa voz no mundo, portanto, quem vive e ama à sua maneira, e não quem faz proselitismos em templos, praças e esquinas, repetindo fórmulas e mensagens ameaçadoras. A voz de Jesus só pode ser ouvida se pronunciada com amor. Por isso, não é tão difícil, nos dias atuais, identificar onde essa voz deixa de ser pronunciada.

Jesus volta a ressaltar sua unidade com o Pai: «É por isso que o Pai me ama, porque dou a minha vida, para depois recebê-la novamente» (v. 17). Ora, é esse amor recíproco e incondicional que fundamenta e sustenta a relação entre Jesus e o Pai, e que é oferecido a toda a humanidade. Ao Pai, agrada a generosidade de Jesus: ele dá a sua vida livremente; a recebe novamente porque sabe que dar a vida por amor é, na verdade, estendê-la, torná-la eterna. E a vida eternizada pelo amor se torna indestrutível, resiste até mesmo à morte. Por isso, de modo bastante categórico, Jesus declara: «Ninguém tira a minha vida, eu a dou por mim mesmo» (v. 18a). Não se trata de um mero entreguismo, nem de destino, nem de acidente; é consequência e consciência de suas escolhas, e sua grande escolha foi viver ilimitadamente o amor, e o amor incondicional não mede consequências. A expressão «tenho o poder de entregá-la e de recebê-la novamente» (v. 18b) significa a plena consciência de estar amando com um amor igual ao do Pai. Inclusive, foi isso que o próprio Pai lhe pediu: «essa é a ordem que recebi do meu Pai» (v. 18c). Como se vê, Jesus recebeu do Pai a ordem de amar até dar a vida. É isso o que ele pede aos seus seguidores e seguidoras de todos os tempos: viver em profundo amor entre si e com ele, de modo que a comunidade cristã seja, de fato, a primeira instância do sonho de «um só rebanho e um só pastor», como embrião de um mundo novo.

Que o Pastor Bom, autêntico e único, inspire vocações que façam ressoar a sua voz no mundo, suscitando colaboradores e colaboradoras para o seu pastoreio. Em tempos tão difíceis, é essencial que sua voz seja ouvida, sobretudo no combate aos mercenários e lobos que se tornam cada vez mais agressivos e numerosos. E para colaborar com o pastoreio de Jesus é necessário deixar-se conhecer por ele, deixar-se amar e segui-lo.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró- RN

sábado, abril 13, 2024

REFLEXÃO PARA O 3º DOMINGO DE PÁSCOA – LUCAS 24,35-48 (ANO B)


O evangelho deste terceiro domingo do tempo pascal é tirado da Evangelho de Lucas, interrompendo uma série de leituras do Evangelho de João, que será retomada no próximo domingo. O trecho lido hoje é precisamente Lc 24,35-48. Trata-se da sequência imediata do conhecido episódio dos “Discípulos de Emaús” (Lc 24,13-35). Esse dado já é suficiente para nos situar no contexto do evangelho. Ora, cronologicamente, esse texto situa-se ainda naquele “primeiro dia da semana”, ou seja, o dia mesmo da ressurreição. Conforme o relato evangélico, aquele fora um dia tenso para a comunidade, marcada por dúvidas, medos e desilusões, mas também por novas descobertas, com alegria, esperança e renovação da fé. Para perceber isso, basta olhar o texto em seu conjunto, compreendendo o inteiro capítulo 24. Ora, a série de acontecimentos dos quais o evangelho de hoje faz parte começa ainda com a visita das mulheres ao túmulo, logo de madrugada (Lc 24,1), depois a ida também de Pedro ao túmulo, passando pela caminhada triste e desiludida dos dois discípulos para Emaús, até a manifestação de Jesus Ressuscitado à comunidade reunida em Jerusalém, já à noite. Essa visão de conjunto é essencial para compreender o texto lido neste dia. São muitos acontecimentos para um único dia, dos quais o evangelho de hoje é ápice.

Antes de comentar diretamente o texto, convém recordar que a preocupação do evangelista – falamos de Lucas, mas vale para todos – não é propriamente descrever eventos, mas, através da sua narrativa, responder às perguntas das comunidades destinatárias primeiras. E a principal pergunta respondida pelo trecho lido hoje pode ser reconstruída da seguinte maneira: «tendo Jesus de Nazaré ressuscitado mesmo, onde e como encontrar-se com ele?»  Ora, a síntese e essência da pregação cristã primitiva consistia no anúncio de Jesus de Nazaré como aquele que passou a vida fazendo o bem, morreu na cruz e ressuscitou ao terceiro dia (At 10,36-40). Obviamente, muita gente questionava esse anúncio, pedindo evidências e provas para dar credibilidade e, assim, aderir com mais convicção. Muitos queriam conhecê-lo e encontrar-se com ele, e o relato evangélico de oferece as pistas. À medida em que se passavam os anos após a ressurreição, esses questionamentos aumentavam, principalmente depois que morreu a primeira geração de discípulos e discípulas. Por isso, os evangelhos que apresentam os relatos de manifestações do Ressuscitado de maneira mais elaborada são os dois escritos por último, Lucas e João, respectivamente. E as respostas dadas aos questionamentos de outrora são válidas para todos os tempos. Lucas, de um modo particular, é quem responde com mais precisão: o Ressuscitado pode ser encontrado em qualquer situação, em qualquer espaço e em qualquer época: ele está na estrada, caminhando com os peregrinos desiludidos (Lc 24,13-35), está na mesa durante as refeições, quando o alimento é partilhado, está no meio da comunidade reunida e nas pessoas necessitadas, principalmente as famintas e feridas, com chagas expostas para serem cuidadas. Porém, para reconhecê-lo, é necessário compreender as Escrituras e ter abertos os olhos, a mente e o coração.

Feitas as devidas considerações contextuais, olhemos então para o texto, partindo do início: «os dois discípulos contaram o que tinha acontecido no caminho, e como tinham reconhecido Jesus ao partir o pão» (v. 35). Os dois discípulos referidos pelo evangelista, obviamente, são aqueles dois de Emaús que retornaram a Jerusalém assim que reconheceram o Ressuscitado na partilha do pão, após uma longa caminhada marcada pela tristeza e desilusão. Após o reconheceram, se levantaram e voltaram imediatamente para Jerusalém e contaram tudo o que tinham acabado de experimentar aos Onze e aos que estavam com eles (Lc 24,33), que certamente eram em grande número, uma vez que em Lucas o discipulado de Jesus é mais amplo do que nos outros evangelhos, inclusive com mais participação das mulheres. O fato de estarem reunidos demonstra esperança na comunidade, apesar das tantas desilusões experimentadas até aquele momento. Ao recordar que o Ressuscitado foi reconhecido ao partir o pão, o evangelista ensina que ele está no cotidiano das pessoas, é alguém de casa, faz parte da família, é uma pessoa acessível. Assim, ele prepara as gerações futuras de discípulos e discípulas: as visões se perdem com o tempo; os cristãos futuros não devem esperar manifestações extraordinárias; se quiserem reconhecer o Ressuscitado, devem partilhar o pão em comunidade, não como mera perpetuação de um rito, mas como doação de si e do que se tem. Só é possível encontro autêntico com o Ressuscitado onde há partilha e solidariedade.

Eis que os dois que tinham retornado de Emaús «ainda estavam falando quando o próprio Jesus apareceu no meio deles e lhes disse: “A paz esteja convosco!”» (v. 36). Quer dizer, foram interrompidos pelo próprio Jesus, em sinal de aprovação. Ora, falar de Jesus já é um modo de torná-lo presente na comunidade; partilhar a experiência feita com ele, portanto, é atualizar e expandir a sua presença. Ele se manifestou aos demais quando os dois contavam o que tinham vivido com ele. Logo, a comunidade reunida, mesmo insegura, se torna o lugar privilegiado de encontro com o Ressuscitado, sobretudo quando é dele que se fala. Ao se falar dele e da experiência feita com ele, recorda-se também a sua mensagem, o seu estilo de vida, e é disso que a comunidade mais necessita. E no interior da comunidade, o lugar dele é o centro, por isso, ele apareceu “no meio” deles. Com essa informação, o evangelista está fazendo uma advertência: a comunidade cristã não pode ter outro ponto de referência senão o Ressuscitado; só ele pode ser o centro. É claro que a presença dele compreende todo o seu ser e o seu projeto de libertação; tê-lo no centro, portanto, significa aderir a esse projeto e empenhar-se pela sua plena realização, o que corresponde à construção do Reino de Deus.

Tendo o Ressuscitado presente em seu meio, a comunidade passa a gozar dos seus dons, do quais o primeiro é a paz. O Ressuscitado diz «paz esteja convosco», e não se trata de uma simples saudação ou um tranquilizante, mas de uma força reconciliadora e revigorante. A tradicional saudação hebraica “shalom”, cujo significado é paz, aponta para um bem almejado, mas ainda não realizado, enquanto a saudação do Ressuscitado comporta um dom já realizado. A paz era almejada como um bem messiânico futuro, pelos judeus. Para tanto, esperava-se um messias glorioso, cheio de poderes militares, que vencesse os inimigos, dando tranquilidade ao povo, o que seria apenas o outro lado da moeda da “pax romana”. De fato, a paz veio por meio do Messias, mas um messias sofredor, crucificado. Por isso, também a paz que ele oferta é diferente. Trata-se de uma paz inquieta, que não tranquiliza, mas vence o medo e fortalece a busca pela realização plena do Reino de Deus. Por isso, era tão necessária, pois apesar das evidências da presença do Ressuscitado, o medo continuava entre os discípulos, e isso os impedia de reconhecê-lo, como denuncia o evangelista: «Eles ficaram assustados e cheios de medo, pensando que estavam vendo um fantasma» v. 37). O medo, além de acuar a comunidade em seus fechamentos, faz distorcer a imagem do Ressuscitado no meio da comunidade. De fantasma a juiz vingativo, o Ressuscitado pode ser confundido quando a comunidade não absorve a sua paz e nem compreende as Escrituras. Na verdade, o evangelista não emprega a palavra fantasma propriamente, e sim o termo espírito (em grego: πνεῦμα – pneuma).

É claro que Jesus compreendia as razões do medo, das dúvidas e preocupações da comunidade reunida. Mas, para fazê-la superar, ele a questiona: «Por que estais preocupados, e por que tendes dúvidas no coração?» (v. 38). Com isso, o evangelista ensina que só reconhece o Cristo Ressuscitado quem aceitar Jesus de Nazaré, aquele que morreu na cruz. Daí, a demonstração: «Vede minhas mãos e meus pés: sou eu mesmo! Tocai em mim e vede!» (v. 39a). Ora, se o anúncio da ressurreição encontrava dificuldade de aceitação, muito mais tratando-se de um crucificado. Ora, havia uma crença entre os judeus que, em caso de morte natural, até o terceiro dia, o espírito do morto rondava pelos arredores do túmulo, o que alimentava certa esperança de que a pessoa poderia voltar a viver. Mas isso não era crença na ressurreição, e sim uma intuição que a pessoa poderia não ter morrido totalmente. Mas no caso de morte na cruz, essa possibilidade era totalmente descartada. Por isso, o evangelista insiste em recordar as marcas da paixão – os sinais da cruz – para acentuar a certeza de que Jesus ressuscitou mesmo, ou seja, sua ressurreição não poderia ser invenção. O Ressuscitado é uma pessoa real com quem a comunidade deve relacionar-se, e a constatação da sua corporeidade reforça isso. Além das marcas da paixão, mãos e pés são sinais também da sua identidade e da sua missão: mãos que serviram, que curaram feridas, pés que percorreram tantos caminhos levando amor, justiça e perdão. Para a obra de Lucas, particularmente, os pés possuem um significado muito especial. Ora, Lucas é o evangelista do caminho e sua obra toda aponta para a missão – Evangelho e Atos dos Apóstolos. Na cena paralela a essa no Evangelho de João, Jesus mostra as mãos e o lado (20,20.27). Em Lucas substitui-se o lado pelos pés porque os pés são altamente significativos para a sua teologia da missão.

O convite que Jesus faz para os discípulos tocar-lhe é totalmente comprometedor. Não foi feito apenas a testemunhas privilegiadas do passado; é feito aos cristãos e cristãs de todos os tempos: não existe fé verdadeira no Ressuscitado sem experiência, sem relação, sem toque. Hoje, tocamos o Ressuscitado quando tocamos nas feridas dos pobres, dos doentes, das pessoas necessitadas em geral. O seguimento de Jesus exige que se toque em feridas, em todos os tempos. Tocar as feridas das pessoas necessitadas, sanando suas dores, é fazer experiência com o Ressuscitado. Isso faz da ressurreição uma realidade contínua, ao invés de um simples evento do passado, pois o Ressuscitado é um ser eternamente vivente. É uma pessoa viva, não um fantasma ou um espírito, como ele mesmo diz, continuando sua demonstração de estar vivo no meio da comunidade: «Um fantasma não tem carne, nem ossos, como estais vendo que eu tenho» (v. 39b). No texto original, aparece literalmente a expressão “carne e osso”, com as palavras assim juntas (em grego: σάρκα καὶ ὀστέα – sárka kaí ostéa). É uma expressão única em toda a Bíblia, para descrever a concretude de uma pessoa viva; possui valor enfático, suficiente para refutar qualquer tendência de negação da corporeidade da ressurreição de Jesus. É a oposição total a um fantasma, embora o texto grego não apresente a palavra fantasma propriamente, e sim o termo espírito, como recordamos anteriormente (v. 37).

Na sequência, o evangelista alerta que, assim como o medo, também a euforia pode paralisar e bloquear a comunidade, impedindo-a de fazer o autêntico encontro com o Ressuscitado: «Mas eles ainda não podiam acreditar, porque estavam muito alegres e surpresos» (v. 41a). Ora, a alegria é uma das características da pessoa que tem fé, especialmente no evangelho de Lucas. Por isso, deve ser um traço distintivo da própria comunidade cristã. O anúncio do anjo a Maria, por exemplo, foi introduzido pelo convite à alegria (Lc 1,28), bem como a notícia dada aos pobres pastores sobre o nascimento de Jesus foi anunciada como uma “grande alegria” (Lc 2,10). Porém, a euforia desmedida pode ser prejudicial, porque pode tornar invisíveis os problemas, as dores e as feridas presentes no dia-a-dia da comunidade. É preciso, portanto, buscar um equilíbrio de modo que o Ressuscitado não passe despercebido com sua identidade, ou seja, com suas feridas de crucificado. Logo, as reações muito eufóricas, entusiastas e intimistas devem ser vistas com precaução, pois podem dificultar o reconhecimento das reais necessidades da comunidade. Diante disso, o próprio Ressuscitado dá mais um passo para ser encontrado e reconhecido como vivente: «Então Jesus disse: “Tendes alguma coisa para comer?”» (v. 41b). Além de evidenciar ainda mais a sua identidade de pessoa viva, comendo ele reforça a comunhão com os discípulos. A refeição compartilhada é o sinal mais concreto de comunhão. Por isso, essa pergunta-pedido enfatiza também a abertura à convivialidade de Jesus ressuscitado com a comunidade dos seus seguidores e seguidoras. Ele quer estreitar cada vez mais os laços de comunhão.

Em resposta ao pedido de Jesus, os discípulos «deram-lhe um pedaço de peixe assado. Ele o tomou e comeu diante deles» (vv. 42-43). Além de ajudar a superar as dúvidas nos discípulos, a comida partilhada é sinal de fraternidade e comunhão. Ora, comer, é, indiscutivelmente, uma das demonstrações mais consistentes de alguém estar vivo. Se a comunidade reunida tinha alimento disponível naquele momento, quer dizer que ela já tinha compreendido que a partilha, a comunhão e comensalidade eram elementos vitais da sua existência. E o Ressuscitado come o que lhe dão, e se solidariza com todos os famintos e necessitados de pão, em todos os momentos da história; esse é mais um dos significados oferecidos pelo evangelista, além da intenção de evidenciar que o Ressuscitado é uma pessoa viva e concreta. Com isso, ele ajuda os discípulos a superar as dúvidas sobre a ressurreição, e ainda gera a solidariedade da comunidade para com as pessoas necessitadas. É interessante recordar que foi o Ressuscitado mesmo quem pediu algo para comer (v. 41); daí, os discípulos e discípulas em todos os tempos devem concluir que nas pessoas famintas e necessitadas está presente o Ressuscitado. Muito se tem discutido entre os exegetas a respeito do sentido do peixe neste episódio. Como era um alimento comum na época, provavelmente o evangelista o recordou para diferenciar do pão. Quando se fala de pão, geralmente tende-se a espiritualizá-lo. O peixe, embora posteriormente tenha se tornado também um símbolo eucarístico, não dá tanta margem para um discurso espiritualista, aponta sempre para um alimento concreto, recordando a necessidade da partilha concreta na vida da comunidade.

No encontro com o Ressuscitado não podem faltar refeição e catequese, partilha do pão e da palavra; esses elementos são imprescindíveis na comunidade cristã. Por isso, são os componentes básicos da celebração eucarística que, no entanto, deve ultrapassar os limites do rito e tornar-se vida, prática constante na comunidade. Nesse episódio, há uma inversão na ordem: enquanto na cena dos “Discípulos de Emaús” a catequese precedeu à partilha do pão, aqui acontece o contrário, ou seja, a catequese vem depois da refeição. Assim, podemos concluir que o evangelista não preconiza um rito, mas ensina à comunidade quais são os seus elementos essenciais: a partilha do pão e da Palavra. Por isso, tendo já comido, Jesus começou o ensinamento: «São estas as coisas que vos falei quando ainda estava convosco: era preciso que se cumprisse tudo o que está escrito sobre mim na Lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos» (v. 44). A interpretação e compreensão adequadas das Escrituras são essenciais para a vida da comunidade. Essa é uma das principais preocupações de Lucas, ao longo de sua dupla obra – Evangelho e Atos dos Apóstolos. Jesus é o intérprete e princípio interpretativo de toda a Escritura, ou seja, da Bíblia inteira. E interpretação autêntica se dá num contexto de partilha, como ao redor da mesa de refeição.

A Lucas, diferente de Mateus, por exemplo, não interessa colher citações avulsas, mas a Escritura em seu conjunto: «Lei, Profetas e Salmos» (v. 44); tudo isso aponta para Jesus e deve ser lido à luz da sua vida, morte e ressurreição. Inclusive, nessa citação única no Novo Testamento, Lucas rompe o tradicional binômio “Lei e Profetas”, como compêndio do Antigo Testamento, e inclui também os Salmos, como síntese de todos os demais escritos que não fazem parte do Pentateuco nem dos livros proféticos. É uma das grandes novidades deste episódio que, certamente, reflete a consolidação do uso litúrgico do Antigo Testamento nas comunidades lucanas do final do primeiro século. Desde o princípio, a Palavra de Deus revelada nas Escrituras aponta para o triunfo da vida e a derrocada de todos os projetos de morte. A ressurreição de Jesus é o ponto culminante dessa trajetória. Sem a Palavra, a comunidade perde o rumo da história. Dos Discípulos de Emaús o evangelista diz que se abriram os olhos (24,31); dos Onze e demais reunidos com eles, diz que «Jesus abriu a inteligência dos discípulos para entenderem as Escrituras» (v. 45). Essa é também uma exigência para as comunidades de todos os tempos: as Escrituras, se bem compreendidas, abre mentes, olhos e horizontes, fazem parte do processo de conversão contínuo pelo qual deve passar toda comunidade cristã. Por outro lado, sem abertura de mente, pode tornar-se também instrumento de morte.

Um dos temas mais caros a Lucas, a universalidade da salvação, é evidenciado pelo próprio Ressuscitado: «no seu nome, serão anunciados a conversão e o perdão dos pecados a todas as nações, começando por Jerusalém» (v. 46). Não apenas Israel, mas todos os povos são destinatários da paz e do amor do Ressuscitado. A reconciliação da humanidade com Deus é acessível a todas as pessoas, de todos os lugares e em todos os tempos; ninguém pode ser excluído dessa oferta de amor. Essa dinâmica começa por Jerusalém, a sede do poder religioso e, por isso, a primeira necessitada de conversão; a cidade que mata profetas (Lc 13,34). No Antigo Testamento, a universalidade da salvação previa um movimento contrário: eram as nações quem seriam atraídas a Jerusalém (Is 60; Zc 8,22); Jesus inverte essa ordem. Surge, portanto, um novo tempo, uma nova etapa na história que começa por Jerusalém, mas não por privilégio, e sim por necessidade. Quanta reviravolta na história: a terra dos considerados justos é a mais necessitada de perdão! Foi Jerusalém com suas forças de poder que matou Jesus; o mal estava radicado lá e amparado pela religião e o império. São as pessoas religiosas as primeiras necessitadas de conversão.

Dos discípulos e da comunidade cristã de todos os tempos, Jesus pede apenas uma coisa: «Vós sereis testemunhas de tudo isso» (v. 48). Em Lucas, Jesus não confere uma doutrina nem uma regra; não envia os discípulos como pregadores e batizadores, como em Mateus, mas como testemunhas, o que é muito mais comprometedor e exigente. Ser testemunha implica a coragem de dar a vida. Somos, portanto, hoje e sempre, interpelados pelo evangelista Lucas a fazer um esforço constante para reconhecer o Ressuscitado em nosso meio, com disponibilidade para a partilha, e mente aberta para o conhecimento das Escrituras. 

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

 

sexta-feira, abril 05, 2024

REFLEXÃO PARA O SEGUNDO DOMINGO DE PÁSCOA – JOÃO 20,19-31



Como acontece no primeiro Domingo de Páscoa, também no segundo domingo o evangelho é o mesmo para todos os anos. No caso do segundo, o trecho lido é Jo 20,19-31. Este texto narra a continuação dos eventos envolvendo a comunidade de discípulos no dia mesmo da ressurreição, e a sua quase repetição uma semana depois. Para compreendê-lo melhor, é necessário recordar alguns elementos do texto da liturgia do domingo passado, que apresentava a comunidade completamente desnorteada, não apenas porque o Senhor e mestre fora morto, mas porque até mesmo o seu cadáver parecia ter sido roubado (Jo 20,1-3). Naquela ocasião, o evangelista dava sinais de uma nova criação, embora ainda estivesse na fase do caos, simbolizado pelo escuro da madrugada (Jo 20,1). Três personagens protagonizaram aquele relato: Maria Madalena, Pedro e o Discípulo Amado; ambos fizeram a constatação do sepulcro vazio, mas somente um deles interpretou, de imediato, a ausência do corpo como sinal da ressurreição: o Discípulo Amado (Jo 20,8). Maria Madalena foi a segunda a acreditar, mas já durante o dia, após confundir o Senhor com o jardineiro (Jo 20,16-18), porém esse episódio já não constava no texto que fora lido no domingo.

Da madrugada do primeiro dia, a liturgia de hoje passa para o anoitecer do mesmo dia, como diz o texto: «Ao anoitecer daquele dia, o primeiro da semana, estando fechadas, por medo dos judeus, as portas do lugar onde os discípulos se encontravam, Jesus entrou e pondo-se no meio deles, disse: ‘A paz esteja convosco’» (v. 19). Não obstante as frustrações e decepções com o final trágico de seu líder, condenado e morto na cruz, a reunião dos discípulos mostra que a comunidade está se recompondo, após uma normal dispersão. Certamente, o anúncio de Maria Madalena – «Eu vi o Senhor!» (Jo 20,18) – influenciou nesse processo de recomposição, junto à fé do Discípulo Amado, ao constatar o sepulcro vazio em companhia de Pedro, ainda na madrugada daquele dia. Embora se recompondo, a comunidade continuava em crise, o que se evidencia pela situação de medo informada pelo evangelista. Por “medo dos judeus” entende-se o medo das lideranças religiosas que condenaram Jesus em conluio com o império. É típico de João usar o termo “judeus” em referência aos líderes, e não a todo o povo. Do início ao fim do Quarto Evangelho, eles são apresentados como verdadeiros antagonistas de Jesus, buscando impedir sua a realização da sua missão libertadora a qualquer custo. Porém, não conseguiram, mesmo tendo contribuído para sua morte na cruz. Por isso, o medo deles da parte dos discípulos é até compreensível, apesar de inaceitável. De fato, o medo é preocupante, é um impedimento à missão; é fruto da angústia, da desilusão e do remorso de alguns. O principal motivo do medo era a possibilidade clara de perseguição; os discípulos temiam ter o mesmo final trágico do mestre, ou seja, a condenação à morte de cruz.

Manifestando-se no meio dos discípulos, o Ressuscitado inicia neles um processo de transformação, oferecendo o primeiro antídoto ao medo: o dom da paz, que, nesse texto, não significa apenas a típica saudação dos judeus (shalom), mas o cumprimento de uma promessa que, por sinal, responde às necessidades reais da comunidade acuada pelo medo. Ora, durante a ceia, vendo seus discípulos angustiados (Jo 14,1), Jesus encorajou-os e prometeu-lhes a paz: «Eu vos deixo a paz, eu vos dou a minha paz» (Jo 14,27a). Naquele contexto, no entanto, os discípulos não assimilaram esse dom, devido à angústia pela qual passavam. Na verdade, todo este relato do evangelho de hoje deve ser lido na perspectiva da dinâmica promessa–cumprimento: a própria manifestação (aparição) do Ressuscitado à comunidade é também cumprimento de uma promessa: «Vou e volto a vós» (Jo 14,28), como é a doação do Espírito Santo. O Ressuscitado não retorna ao mundo para fazer um julgamento ou prestação de contas, mas para continuar a sua obra de amor, cumprindo suas promessas e continuando a mostrar com gestos e palavras que o Pai lhe enviou ao mundo para, acima de tudo, amar sem medidas. O encontro com a paz de Jesus levanta o ânimo da comunidade que parecia fracassada. Ele comunica a sua paz e, ao mesmo tempo, reforça o modelo de comunidade ideal: uma comunidade igualitária e livre, tendo um único centro: o Cristo Ressuscitado. É esse o significado do seu colocar-se no meio deles. Para uma comunidade viver realmente os propósitos do Evangelho é necessário, antes de tudo, que no centro do seu existir esteja o Ressuscitado; é Ele o único ponto de referência e fator de unidade.

Na continuidade da experiência, diz o texto que Jesus «mostrou-lhes as mãos e o lado. Então os discípulos se alegraram por verem o Senhor» (v. 20). Ao mostrar as mãos e o lado, Jesus mostra a continuidade entre o Ressuscitado e o Crucificado: trata-se da mesma pessoa. Geralmente, esse gesto é interpretado apenas como uma demonstração material da ressurreição: as chagas do Crucificado continuam no Ressuscitado. No entanto, aqui, as mãos e o lado não são apenas as marcas da paixão; são os sinais da identidade de Jesus de Nazaré que continuam no Cristo Ressuscitado, porque é a mesma pessoa. E os principais traços da identidade de Jesus são o serviço e o amor; foi isso que ele demonstrou em toda a sua vida terrena. Portanto, Jesus diz, com esse gesto, que continua servindo e amando, e sua comunidade deve também viver dessa forma. As mãos são sinais do serviço, e o lado é sinal do amor, pois representa o coração. Estes sinais revelam elementos essenciais da identidade e missão da comunidade: amar e servir, servir e amar, não importa a ordem das palavras. O importante é que serviço e amor não podem faltar numa comunidade cristã. E a certeza da presença do Ressuscitado faz a comunidade superar definitivamente o medo, passando à alegria. De fato, os discípulos se alegram por verem o Senhor. Essa alegria é carregada de alívio e esperança, tornando-se também um sinal de encorajamento no processo de superação do medo.

Já estabelecido como centro da comunidade, «novamente Jesus disse: ‘A paz esteja convosco’» (v. 21a). A paz é novamente oferecida, porque a passagem do medo à alegria poderia tornar-se uma simples euforia nos discípulos; por isso a paz é doada novamente para enfatizar a serenidade e o equilíbrio que devem existir na comunidade. Só é possível acolher os dons pascais estando realmente em paz. Aqui, a paz não significa alívio ou tranquilidade, mas sinal de liberdade e vida plena; é a capacidade de assumir livremente as consequências das opções feitas. Tendo plenamente comunicado a paz como seu primeiro dom, o Ressuscitado os envia, como fora ele mesmo enviado pelo Pai: «Como o Pai me enviou, também eu vos envio» (v. 21b). Ao contrário de Mateus e Lucas que determinam as nações e até os confins da terra como destinos da missão (Mt 28,19; Lc 24,47; At 1,8), em João isso não é determinado: «Como o Pai me enviou, também eu vos envio». Jesus simplesmente os envia. Sem diminuir a importância da missão em sua dimensão universal, João pensa na comunidade, em primeiro lugar. É essa a primeira instância da missão, porque é nessa onde estão as situações de medo, de desconfiança, de falta de entusiasmo, por isso é a primeira a necessitar da paz do Ressuscitado.  

O texto mostra, como sempre, a coerência de Jesus: «E depois de ter dito isso, soprou sobre eles e disse: Recebei o Espírito Santo» (v. 22). Ora, ele tinha prometido o Espírito Santo aos discípulos durante a ceia (Jo 14,16.26; 15,26). Ao soprar sobre eles, o Espírito é comunicado e a promessa é cumprida. O evangelista usa o mesmo verbo/gesto do relato da primeira criação do ser humano (Gn 2,7). O Evangelho do domingo passado mostrava a nova criação em sua primeira fase; hoje, essa criação chega ao seu ponto alto com o sopro de vida comunicado pelo Ressuscitado. Nessa nova criação, o “Criador” já não age como um vigilante, olhando de cima, mas se faz presente no meio da comunidade, deixando-se tocar, vivendo como um igual entre as pessoas. O verbo soprar (em grego: έμφυσάω – emfysáo) significa doação de vida. Literalmente, quer dizer soprar para dentro do outro, como fez Deus na criação, soprando dentro das narinas da escultura de barro e, assim, transformando-a em ser vivo. Desse modo, podemos dizer que Jesus, ao soprar sobre os seus discípulos, transmitiu-lhes vida, recriando a comunidade e, nessa, a humanidade inteira. Ao receber o Espírito, a comunidade se torna também comunicadora dessa força de vida. E é o Espírito quem mantém a comunidade alinhada ao projeto de Jesus, porque é Ele quem faz a comunidade sentir, viver e prolongar a presença do Ressuscitado como seu único centro. E isso se faz através do amor e o serviço. Ao contrário da perspectiva de Lucas, que aguarda para o dia de Pentecostes (cinquenta dias após a páscoa), em João o Espírito Santo é doado no dia mesmo da ressurreição, o que parece mais lógico, tendo em vista a situação da comunidade paralisada pelo medo. A força do Espírito Santo era uma necessidade urgente para reanimar a comunidade.

O dom do Espírito Santo fortalece a comunidade e lhe confere uma grande responsabilidade: «A quem perdoardes os pecados eles lhes serão perdoados; a quem não perdoardes, eles lhes serão retidos» (v. 23). Por muito tempo, essa passagem foi usada apenas para fundamentar o sacramento da penitência. Mas Jesus não está dando um poder aos discípulos, e sim confiando-lhes uma responsabilidade: reconciliar o mundo, levar a paz e o amor do Ressuscitado a todas as pessoas, de todos os lugares e em todos os tempos. Não se trata, portanto, de um poder para determinar se um pecado pode ser perdoado ou não. É a responsabilidade da obrigatoriedade da presença cristã para que, de fato, o mundo seja reconciliado com Deus e, assim, humanizado.  Os discípulos têm a missão de ser comunicadores desse Espírito em todas as realidades. Ora, Jesus fora definido pelo Batista como o «Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo» (Jo 1,29); para isso fora enviado pelo Pai. E é à maneira do Pai que ele envia seus discípulos em todos os tempos: «Como o Pai me enviou, também eu vos envio» (v. 21). Portanto, os pecados são perdoados à medida em que o amor de Jesus vai se espalhando no mundo, e isso se dá pelo testemunho dos seus discípulos e pela força do Espírito Santo. Ficam pecados sem perdão, portanto, quando há omissão dos discípulos, quando eles deixam de amar e servir à maneira de Jesus.

A comunidade não estava completa naquele primeiro dia: assim como Judas não fazia mais parte do grupo, também «Tomé, chamado Dídimo, que era um dos Doze, não estava com eles quando Jesus veio» (v. 24). É necessário destacar algumas características desse discípulo, considerando que ele foi bastante rotulado negativamente ao longo da história. Ora, o motivo pelo qual os discípulos estavam reunidos com portas fechadas era o medo. Provavelmente, Tomé não estava trancado com eles porque não tinha medo. A evidência maior da coragem de Tomé aparece no relato da reanimação de Lázaro. Jesus estava ameaçado de morte, e quando decidiu ir à Judeia, onde ficava Betânia, a cidade de Lázaro, Tomé foi o único que se dispôs a ir para morrer com ele: «Tomé, chamado Dídimo, disse então aos condiscípulos: ‘Vamos também nós, para morrermos com ele!’» (Jo 11,16). Por isso, ele não tinha nenhum motivo para esconder-se. Essa sua coragem foi ofuscada pelo rótulo de incrédulo. Quanto à fé no Ressuscitado, a diferença de Tomé para os demais deve-se ao intervalo de uma semana. Não estava reunido no primeiro dia e não acreditou no testemunho da comunidade: «Os outros discípulos contaram-lhe depois: ‘Vimos o Senhor!’. Mas Tomé disse-lhes: ‘Se eu não vir a marca dos pregos em suas mãos, se eu não puser o dedo nas marcas dos pregos e não puser a mão no seu lado, não acreditarei’» (v. 25). Não dar credibilidade ao testemunho da comunidade foi o grande erro de Tomé, mas ao exigir evidências da ressurreição, ele agiu como os demais. Ora, à exceção do Discípulo Amado, o qual viu e acreditou logo ao contemplar o sepulcro vazio (Jo 20,8), os demais também só acreditaram após a manifestação do Senhor entre eles.

E mesmo sem acreditar ainda na ressurreição pelo primeiro anúncio dos companheiros, Tomé se reintegrou à comunidade. Assim, «Oito dias depois, encontravam-se os discípulos novamente reunidos em casa, e Tomé estava com eles. Estando fechadas as portas, Jesus entrou, pôs-se no meio deles e disse: ‘A paz esteja convosco’» (v. 26). Embora a reunião ainda aconteça às portas fechadas, o medo não é mais mencionado; certamente, fora superado, graças à paz e ao Espírito Santo comunicados pelo Ressuscitado comunicados no primeiro dia. Também é importante indicativo temporal «oito dias depois»; essa expressão significa uma semana depois; é explícita a referência ao domingo – o qual pode ser contado como o primeiro ou o oitavo dia da semana – como dia de reunião dos discípulos, como sinal de que a comunidade cristã já não está mais presa aos esquemas do judaísmo, e não necessita mais do sábado para fazer a sua experiência com o Senhor. Temos aqui um dado claro de ruptura entre a comunidade cristã e a sinagoga, embora nas primeiras décadas, por falta de clareza, muitos cristãos frequentavam as duas reuniões: a da sinagoga, no sábado, e a da comunidade de discípulos no domingo, na casa de um dos membros da comunidade. Mas o texto deixa claro que, no final da última década do primeiro século, dada provável da redação deste evangelho, o domingo já estava consolidado como o dia de reunião e encontro da comunidade.

O Senhor se pôs de novo no meio dos discípulos, com a presença de Tomé, conferindo novamente o dom da paz, sem o qual a comunidade não se sustenta. Assim como fez com os demais, uma semana antes, também a Tomé Jesus dá os sinais da sua identidade de Ressuscitado-Crucificado, que só sabe servir e amar: «Depois disse a Tomé: ‘Põe o teu dedo aqui e olha as minhas mãos. Estende a tua mão e coloca-a no meu lado. E não sejas incrédulo, mas fiel!’» (v. 27). Quando, assim como os demais, Tomé teve certeza da ressurreição, superou aos demais na intensidade e na convicção da fé; provavelmente, não tocou as mãos e o lado, como aparece na maioria das pinturas. Certamente, não precisou disso. É mais provável que tenha se jogado aos pés de Jesus, com essa solene declaração de fé: «Tomé respondeu: ‘Meu Senhor e meu Deus!’» (v. 28). Essa é a mais profunda profissão de fé de todos os evangelhos. Jesus já tinha sido reconhecido como Mestre, como Messias, Filho de Davi, Filho do Homem e Filho de Deus, mas como Deus mesmo, essa foi a primeira vez. Com isso, o evangelista ensina que não importa o tempo em que alguém adere à fé; o que importa é a intensidade e a convicção dessa fé. Neste sentido, Tomé é o discípulo modelo.

Ainda sobre Tomé, diz o evangelista que ele era chamado Dídimo (em grego: Δίδυμος – dídimos), cujo significado é gêmeo. No entanto, o evangelista não apresenta o irmão gêmeo de Tomé, mas deixa no anonimato. E os personagens anônimos do Quarto Evangelho têm função paradigmática para a comunidade e os leitores de todos os tempos. Na verdade, o primeiro gêmeo de Tomé é o próprio Jesus, não biologicamente, mas teologicamente. Daí o convite aos leitores e discípulos de todos os tempos a também tomarem Tomé como irmão gêmeo: questionador, corajoso, atento, sincero, perspicaz e convicto. É claro que se ele estivesse com a comunidade logo no primeiro dia, teria antecipado a sua profissão de fé. Mas é importante ser prudente e esperar, principalmente nos tempos atuais, com tantas visões, aparições e falsas certezas imediatas. Se muitos(a) videntes dos tempos atuais, assumissem a sua consanguinidade com Tomé, ou seja, se o reconhecessem como gêmeo, teríamos um cristianismo mais evangélico e autêntico, com mais convicção e menos fantasia.

A bem-aventurança proclamada por Jesus: «Bem-aventurados os que creram sem terem visto» (v. 28), reflete a preocupação do evangelista com as novas gerações de discípulos, após a morte dos apóstolos e das demais testemunhas de primeira hora. Os novos membros da comunidade joanina eram muito questionadores e chegavam a duvidar do anúncio, exigindo provas concretas da ressurreição. Por isso, o evangelista quis responder a essa realidade, mostrando que não há necessidade de visões e aparições; basta integrar-se a uma comunidade de fé para experimentar a presença do Ressuscitado. Na verdade, o evangelista usou Tomé como personagem simbólico da transição entre duas fases distintas na vida da comunidade: a geração dos que viram pessoalmente o Senhor, e a dos que aderiram a ele pela fé e o anúncio-testemunho. E não há supremacia de uma sobre a outra. O que importa é crer, o que significa plena adesão ao Evangelho. A presença do Ressuscitado pode ser verificada quando uma comunidade tem o serviço e o amor como sinais distintivos; a ausência desses sinais significa que o Ressuscitado não é o centro da comunidade.

Os versículos finais mostram que esse texto é a conclusão original do Evangelho de João: «Jesus realizou muitos outros sinais diante dos discípulos, que não estão escritos neste livro. Mas estes foram escritos para que acrediteis que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais a vida em seu nome» (vv. 30-31). Aqui está também a chave de leitura para todo o Evangelho: a promoção da vida; vida que para ser plena de sentido necessita do encontro com Jesus, o Cristo, o Ressuscitado que foi crucificado. O objetivo do Evangelho, portanto, é despertar a fé de pessoas e comunidades no Cristo que viveu para servir e amar. Animada pelo dom do Espírito Santo, a Igreja, em todos os tempos só pode se apresentar como pertencente a Jesus Cristo, o Filho de Deus Ressuscitado, com mãos abertas para servir e um coração capaz de sangrar por amor à humanidade. O capítulo seguinte (c. 21) é um acréscimo posterior da comunidade para responder a uma outra necessidade: o resgate da imagem de Simão Pedro, que tinha ficado bastante comprometida na comunidade devido à negação e outras incoerências; e para mostrar que sempre há a possibilidade de reabilitação e admissão à comunidade, não obstante os momentos de infidelidade e incoerência. 

A comunidade reunida é o lugar privilegiado de manifestação do Ressuscitado. Não importa o tempo e o lugar da adesão à fé; o que importa é acolher a paz que o Ressuscitado oferece e viver animado(a) pelo Espírito que ele transmite. E que o esse mesmo Espírito ajude a reconhecê-lo nos crucificados de sempre, ao longo da história: os pobres, feridos e marginalizados nas mais diversas situações. A fé no Ressuscitado é autêntica, de fato, quando há disponibilidade para de amar e servir, como ele fez. A exigência de Tomé foi, na verdade, uma advertência do evangelista: o seguimento de Jesus exige que se toque em feridas. Tocar as feridas das pessoas necessitadas, sanando suas dores, é fazer experiência com o Ressuscitado.

Pe. Francisco Cornélio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

REFLEXÃO PARA O 5º DOMINGO DA PÁSCOA – JOÃO 15,1-8 (ANO B)

  Todos os anos, a liturgia do quinto e do sexto domingo do tempo pascal utiliza textos do chamado “testamento de Jesus” do Quarto Evangel...