sexta-feira, janeiro 27, 2023

REFLEXÃO PARA O 4º DOMINGO DO TEMPO COMUM – MATEUS 5,1-12 (ANO A)

 


A liturgia deste quarto domingo do tempo comum propõe a leitura de um dos textos mais importantes do Novo Testamento: Mt 5,1-12. Trata-se da introdução do primeiro dos cinco discursos de Jesus no Evangelho de Mateus, conhecido como “discurso ou sermão da montanha” (Mt 5–7). Inclusive, a leitura desse discurso será continuada nos próximos domingos, uma vez que, na estrutura do ano litúrgico A, ele é distribuído numa sequência de  seis domingos do tempo comum: do quarto ao nono, além de algumas festas, como a solenidade de todos os santos, por exemplo, quando se lê também o texto das bem-aventuranças, como hoje, que corresponde à introdução do discurso. Essa introdução ficou conhecida como “bem-aventuranças”, devido à repetição contínua do termo grego makárioi (μακάριοι), cujo significado é benditos, felizes ou bem-aventurados. Sem dúvidas, essa é uma das passagens mais lidas e conhecidas de todo o Novo Testamento, apreciada por cristãos e não cristãos. Gandhi, por exemplo, definiu as bem-aventuranças como “as palavras mais altas que a humanidade já escutou”.

De todas as palavras atribuídas a Jesus que encontramos ao longo dos evangelhos, as bem-aventuranças são as mais interpelantes e revolucionárias, embora sejam as mais fáceis de serem deturpadas, passando de uma mensagem de transformação a uma de resignação. Por isso, é necessário compreendê-las bem, para que sua mensagem seja sempre de encorajamento e transformação, como exige o Reino dos Céus. E as bem-aventuranças são as condições para o ingresso nesse Reino. O Novo Testamento contém duas versões das bem-aventuranças: uma em Mateus e outra em Lucas. Certamente os dois evangelistas tiveram acesso à mesma fonte, e cada um adaptou de acordo com as necessidades de suas respectivas comunidades, tendo em vista as diferenças entre as versões, facilmente constatadas numa leitura paralela (cf. Mt 5,1-12a // Lc 6,20-26).

Na versão mateana, encontramos oito bem-aventuranças, embora alguns comentadores considerem nove, devido à ocorrência do termo grego makárioi (μακάριοι) por nove vezes. Porém, a nona ocorrência do termo (v. 11) não deve ser considerada como uma nova bem-aventurança, mas como uma recapitulação e síntese das oito, reforçando a exigência para que todas elas sejam intensamente vividas. Enquanto isso, a versão de Lucas contém apenas quatro bem-aventuranças, que são contrastadas com a fórmula de maldição “ai de vós”, aplicadas às situações de oposição às bem-aventuranças. Também o cenário é diferente nos dois evangelhos: enquanto em Mateus elas são proclamadas na montanha, em Lucas a proclamação se dá na planície. Essa diferença se deve à perspectiva teológica de cada evangelista. Mateus quer apresentar Jesus como o novo legislador e mestre que supera Moisés. Assim como foi na montanha que Moisés recebeu a Lei, também é da montanha que Jesus proclama as bem-aventuranças, que são consideradas a nova Lei para a comunidade cristã, infinitamente superior à antiga.

Para compreender melhor as bem-aventuranças em seu sentido original, é necessário fazer mais uma consideração semântica. Como já foi dito anteriormente, o termo grego empregado no Evangelho é makárioi (μακάριοι), o qual pode ser traduzido por benditos, felizes ou bem-aventurados; é uma fórmula que introduz uma mensagem de felicitação. É importante recordar que, embora escritos em grego, os evangelhos foram construídos segundo uma mentalidade semítica, principalmente o de Mateus. Por isso, é importante recordar o sentido da palavra na língua original de Jesus, o hebraico. Ora, o termo correspondente ao grego “makárioi” (μακαριοι) em hebraico (אשרי = asherêi), além de uma felicitação, corresponde também a uma forma imperativa do verbo caminhar, seguir em frente, avançar ou pôr-se em marcha. Há estudos recentes que vêem uma confluência dos dois sentidos no texto de Mateus. De fato, sem esse segundo sentido, as bem-aventuranças podem ser facilmente transformadas em mensagem de conformismo ou resignação; com ele, fica mais clara sua dimensão subversiva e transformadora, que caracteriza toda a mensagem de Jesus.  

Ainda a nível de contexto, é importante recordar a dinâmica do Evangelho de Mateus, que distribui os principais ensinamentos de Jesus em cinco grandes discursos, sendo que o discurso da montanha é o primeiro deles e o mais importante. Trata-se, portanto, do discurso inaugural de Jesus. Até então, o evangelista tinha feito duas breves referências ao ensinamento de Jesus, dizendo apenas que ele ensinava e qual era o tema da sua pregação: o Reino dos Céus (cf. Mt 4,17.23), mas sem mostrar o conteúdo propriamente. Por isso, o discurso da montanha é a primeira exposição do programa do Reino que Jesus anuncia. Isso se constata pelas diversas vezes em que o Reino (em grego: βασιλεία – basileia) é mencionado ao longo do discurso, mas o mais importante é a natureza desse Reino e seus destinatários primeiros: pobres, humildes, aflitos, injustiçados, perseguidos.

Iniciamos o estudo do texto propriamente considerando os dois primeiros versículos que funcionam como introdução às bem-aventuranças e ao inteiro discurso da montanha: «Vendo Jesus às multidões, subiu ao monte e sentou-se. Os discípulos aproximaram-se, e Jesus começou a ensiná-los» (vv. 1-2). O evangelista já tinha dito que Jesus ensinava e realizava curas, libertava as pessoas e, por isso, grandes multidões o acompanhavam (cf. Mt 3,17.23-25). E isso é surpreendente porque a vida pública de Jesus está apenas começando. Inclusive, só tinha chamado os quatro primeiros discípulos, até então (cf. Mt 3,18-22). Isso mostra a urgência do Reino. Ele tinha um núcleo de base para iniciar uma comunidade, sendo que o mais importante era a natureza da comunidade, cujo retrato é delineado nas bem-aventuranças. O gesto de sentar-se indica a autoridade de mestre que ele possuía. Mas, ao contrário dos mestres judeus da época, ele não abre um rolo de leis para transmitir. Simplesmente, ensina, sendo ele mesmo o conteúdo. Por isso, pode-se dizer que ele é o Reino em pessoa.

Olhemos, pois, para cada uma das situações contempladas por Jesus como necessitadas de transformação. Ao ler e contemplar cada uma delas, devemos recordar que elas retratam as situações vividas pelo próprio Jesus. Por isso, elas representam o retrato de Jesus e o ideal de discípulo e discípula. Eis a primeira bem-aventurança«Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o Reino dos Céus» (v. 3). De todas, tem sido essa a bem-aventurança que tem recebido as interpretações mais equivocadas ao longo da história, infelizmente. Longe de ser um convite ao conformismo, é um impulso à transformação. Na língua grega a palavra pobre (πτωχός – ptôkós) deriva do verbo acocorar-se de medo, dobrar-se, abaixar-se, encurvar-se; designa, portanto, uma condição de humilhação extrema.

O convite de Jesus é para que não desanimem, mas sigam em frente, não desistam, coloquem-se em marcha para alcançarem o Reino que foi criado para eles, o Reino dos Céus, mas não no céu, aqui mesmo na terra, como sinônimo de vida digna e plena. Aqui o termo espírito (em grego: πνεύμα – pneuma) é empregado como sinônimo de consciência da situação em que se encontram os pobres, encurvados de medo pela opressão do império romano e pela religião oficial da época. A esses, Jesus convida a perder o medo e, conscientemente, seguir em frente lutando pelo Reino. O pobre que se encontra encurvado pelo sistema, deve tomar consciência da sua situação insuportável e lutar, seguindo em busca de seus direitos de herdeiro do Reino.

segunda bem-aventurança diz: «Bem-aventurados os aflitos, porque serão consolados» (v. 4). Ora, jamais será consolado o aflito que se fecha em suas aflições, mas sim aquele que consegue mover-se, apesar do sofrimento. Ser consolado na mentalidade bíblica é ter o sofrimento eliminado por completo, por isso, consolar é diferente de confortar. De fato, confortar significa encorajar a suportar uma situação difícil, enquanto consolar é eliminar o sofrimento. A implantação do Reino dos Céus em um mundo tão hostil traz muitas aflições para os discípulos de Jesus. Mesmo assim, eles devem avançar, jamais recuar, para encontrar a consolação. Por isso, mais do que aceitação da aflição, essa bem-aventurança convida as pessoas aflitas a não se fecharem, não se acomodarem e buscarem a consolação. E isso não se faz sem mobilização e sem luta perseverante.

Na terceira bem-aventurança, Jesus diz: «Bem-aventurados os mansos, porque possuirão a terra» (v. 5). O termo manso equivale a humilde, e significa a pessoa que reivindica alguma coisa sem violência. Nesse caso particular, equivale às pessoas que lutam pela terra sem fazer uso da violência. A luta sem violência se torna mais lenta e, aparentemente, mais difícil de conseguir o objetivo. Por isso, Jesus encoraja, pede paciência, determinação e ação; em outras palavras, é como se ele dissesse: «não parem, continuem caminhando e lutando». Era muito comum os pequenos camponeses perderem suas terras por dívidas, com possibilidade de resgate. À medida que o tempo passava, as esperanças de resgate diminuíam e muitos desanimavam. Por isso, Jesus os consola e os encoraja. A terra é dom de Deus, mas sua posse pelos mansos e pequenos é conquista, fruto da confiança em Deus e da luta perseverante.

Como não poderia deixar de ser, Jesus coloca para os discípulos, conforme ele mesmo o fez em toda a sua vida, a justiça como uma busca incessante. Por isso, a quarta bem-aventurança é tão interpelante: «Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados» (v. 6). A fome e a sede são as necessidades básicas que mais incomodam o ser humano. Assim como o alimento e a bebida são essenciais para a vida, também deve ser a luta por justiça entre seus discípulos. A comunidade cristã não tem vida quando não se alimenta cotidianamente de justiça. Onde não há justiça, não há dignidade, não há paz. É preciso seguir em frente na luta por justiça.

Na quinta bem-aventurança, temos: «Bem-aventurados os misericordiosos, porque encontrarão misericórdia» (v. 7). É importante recordar que misericórdia, na Bíblia, não é um sentimento, mas uma ação em favor dos necessitados. Com isso, Jesus pede que seus discípulos prossigam sempre no caminho do bem. A misericórdia é uma das principais características do Deus de Jesus, por isso, deve ser também para os seus seguidores. Ser misericordioso, portanto, é reproduzir o agir de Deus no mundo, cuja misericórdia é destinada a todas as pessoas, embora tenha sempre as pessoas mais necessitadas como destinatárias primeiras. Portanto, seguir fazendo o bem ao próximo, com opção preferencial pelos mais necessitados, é uma das principais exigências do discipulado.

Com a sexta bem-aventurança, Jesus se contrapõe claramente aos ritos de purificação da religião judaica: «Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus» (v. 8). Os antigos ritos de purificação do judaísmo tinham escondido o rosto verdadeiro de Deus. Jesus proclama a nulidade daqueles ritos e pede para seus discípulos caminharem em outra direção, avançarem por outro caminho que não seja o da religião que divide, exclui e até mata. Só há um tipo de pureza: aquela interior, e essa não é proporcionada por nenhum rito, mas somente pela disposição do ser humano em seguir os propósitos de Deus. Vê a Deus quem olha para o próximo com os olhos de Deus. É nessa direção que o discípulo de Jesus deve marchar, avançar, pois a verdadeira pureza consiste em assimilar os sentimentos de Deus e transformá-los em ação, conforme as circunstâncias e as necessidades.

sétima bem-aventurança diz: «Bem-aventurados os que promovem a paz, porque serão chamados filhos de Deus» (v. 9). Na marcha da comunidade formada por discípulos e discípulas de Jesus, a promoção da paz é requisito básico e essencial. Não se trata de uma falsa paz como aquela imposta por Roma, intitulada “pax romana”. A paz que Jesus propõe não é uma mera ausência de conflitos, mas um retorno ao ideal hebraico expresso pela palavra (שלום) shalom: paz como bem-estar total do ser humano, harmonia com Deus, com o próximo e consigo mesmo. É por essa paz que a comunidade de discípulos e discípulas deve lutar enquanto caminha, fazendo dessa paz o rumo da caminhada. Não há prêmio para quem caminha promovendo a paz, mas há consequências: ser chamados filhos de Deus. Na tradição bíblica, ser filho é ser parecido com o pai. Quando alguém caminha promovendo a paz, se torna parecido com Deus, por isso, será chamado seu filho.

oitava bem-aventurança funciona como uma espécie de credencial para o reconhecimento do discípulo e sua pertença ao Reino: «Bem-aventurados os que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o Reino dos Céus» (v. 10). É claro que todas as bem-aventuranças estão interligadas, não se pode separar uma da outra. Mas esta oitava é uma recapitulação mais explícita da quarta: deve-se buscar a justiça como algo indispensável à vida, a exemplo do alimento cotidiano. Mas a justiça não apenas sacia, e sim traz perseguição, pois implica no combate às injustiças. E é certo que quem luta contra injustiças recebe perseguição como resposta. Quem adere plenamente à dinâmica do Reino será certamente perseguido(a), pois a busca pelo Reino é inseparável da busca por justiça, como vai dizer o próprio Jesus na sequência do discurso: «buscai, primeiro de tudo, o Reino de Deus e sua justiça» (Mt 6,33). Então, tendo em vista que a perseguição é consequência lógica da busca pelo Reino e a justiça, a palavra de Jesus continua sendo de ânimo e encorajamento: continuai caminhando, avançando, marchando em busca do Reino que é vosso! E foi isso o que ele mesmo fez.

Viver as bem-aventuranças é, portanto, abraçar um projeto de sociedade alternativa que, inevitavelmente, entra em conflito com os sistemas dominantes baseados na exploração, no lucro, na sobreposição de uns sobre os demais e pela violência. Mas é diante de tudo isso, ou seja, no conflito, que a comunidade cristã deve avançar, seguir em frente sem jamais desanimar. Por isso, Jesus reforçou todo o ensinamento anterior, direcionando diretamente para os discípulos a conclusão com as consequências do abraçar o seu projeto: «Bem-aventurados sois vós, quando vos injuriarem e perseguirem, e, mentindo, disserem todo tipo de mal contra vós, por causa de mim. Alegrai-vos e exultai, porque será grande a vossa recompensa nos céus» (vv. 11-12a). Alguns estudiosos vêem essa afirmação como uma nova bem-aventurança, enquanto outros –  a maioria – a vêem como um reforço e síntese conclusiva das oito anteriormente apresentadas. Aquelas oito são inseparáveis. Jesus não as apresenta como sugestões para os discípulos escolherem uma ou outra. É preciso viver todas elas para ser discípulo e discípula de Jesus, pois nelas ele traça o seu próprio retrato, diz como ele mesmo viveu, caminhou ou avançou; e o discípulo deve, inevitavelmente, viver como ele.

As bem-aventuranças nos desafiam a compreender e reconhecer se, de fato, seguimos a Jesus, se somos seus discípulos e discípulas. Para seguir Jesus é preciso estar em estado permanente de marcha, caminhando contra tudo o que impede a realização do Reino já aqui na terra. A comunidade cristã não pode mais aceitar que uma mensagem tão encorajante e transformadora se transforme em sinal de resignação e aceitação passiva diante de tudo o que impede o advento do Reino. A mensagem das bem-aventuranças é libertadora porque convida o discípulo e a discípula a sair de si, colocar-se em movimento rumo a um mundo melhor, mais justo e mais fraterno.

 Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sexta-feira, janeiro 20, 2023

REFLEXÃO PARA O 3º DOMINGO DO TEMPO COMUM – MATEUS 4,12-23 (ANO A)

 


Com a liturgia deste terceiro domingo do tempo comum, iniciamos a leitura semi-contínua do Evangelho de Mateus, a qual será interrompida após o sétimo domingo, para a vivência dos tempos da Quaresma e da Páscoa, e retomada somente depois da solenidade da Santíssima Trindade, já no décimo primeiro domingo. Durante esse intervalo – quaresma, páscoa e solenidades pós-pascais – também serão lidos trechos do Evangelho de Mateus, mas de modo aleatório, como acontece também nos tempos do advento e do Natal, intercalando com os demais evangelhos. No ano de 2019, o papa Francisco instituiu o terceiro domingo do tempo comum como o “Domingo da Palavra de Deus”, com o objetivo de promover uma aproximação maior das pessoas com a Palavra de Deus, evidenciando sua centralidade na vida da Igreja e ainda visando despertar o interesse pelo estudo das Sagradas Escrituras. Na Igreja do Brasil, particularmente, o “Domingo da Palavra de Deus” ainda não foi bem assimilado como tal, pois já havia o “dia da Bíblia”, celebrado no último domingo de setembro, o mês da Bíblia, uma tradição bastante consolidada em nossas comunidades.

O texto lido hoje – Mateus 4,12-23 – marca, de fato, o início do ministério de Jesus na Galileia, tendo sido profundamente preparado pelos episódios anteriores: o batismo no Jordão (Mt 3,13-17) e as tentações no deserto (Mt 4,1-11). No contexto litúrgico da Igreja no Brasil, o que nos preparou para lermos o evangelho de hoje foi o testemunho de João, o Batista, apontando Jesus como “o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo” e como “o Filho de Deus”, conforme o trecho do Quarto Evangelho lido no domingo passado (Jo 1,29-34). O episódio das tentações (Mt 4,1-11) será lido somente no primeiro domingo da quaresma. O texto de hoje é programático; nele são delineadas as principais linhas de todo o ministério de Jesus, ficando muito claro quais serão os principais destinatários da sua missão libertadora e o conteúdo da sua pregação. Pela extensão do texto, não conseguiremos comentar de maneira minuciosa versículo por versículo, mas colheremos a mensagem central.

Partimos do primeiro versículo, pois além de nos situar no tempo e no espaço, ele apresenta elementos importantes para a compreensão do restante do texto: «Ao saber que João tinha sido preso, Jesus voltou para a Galileia» (v. 12). A prisão de João se torna um divisor de águas na vida de Jesus. Além de marco cronológico para o início da sua missão, é também um sinal de qual será o seu destino, assim como o de praticamente todos os profetas: a perseguição. Do ponto de vista geográfico, o retorno à Galileia está relacionado aos episódios do batismo e das tentações, vividos no Jordão e no deserto, ambos localizados na região da Judeia. Mas significa muito mais do que isso. Antes de tudo, significa que a missão de Jesus não será uma repetição da missão de João. Ora, se João pregou na Judeia e Jesus vai para a Galileia iniciar lá o seu ministério, significa que há descontinuidade entre os dois. O programa de vida de Jesus é completamente novo. A Galileia era uma região periférica, uma terra má afamada, conhecida pela pouca ortodoxia do seu povo. Logo, o início da missão de Jesus nessa região indica que os primeiros destinatários da sua mensagem são as pessoas excluídas e marginalizadas, gente sem boa reputação.

Mesmo ciente da novidade que Jesus inaugura, assim como fez no “evangelho da infância” (Mt 1–2), o evangelista apresenta a sua missão, desde o início, como cumprimento das profecias, por necessidade da sua comunidade. Por isso, ele explica o início na Galileia à luz das Escrituras: «Deixou Nazaré e foi morar em Cafarnaum, que fica às margens do mar da Galileia, no território de Zabulon e Neftali, para se cumprir o que foi dito pelo profeta Isaías» (v. 13-14). A mudança de Nazaré para Cafarnaum é estratégica. Nazaré era apenas um pequeno povoado, o que na linguagem bíblica representa fechamento de mentalidade, conservadorismo exagerado e apego às tradições. Com uma mensagem tão libertadora como a sua, dificilmente Jesus seria aceito e compreendido lá, como atesta, inclusive, o evangelista Lucas, ao dizer que após a primeira pregação de Jesus em Nazaré já quiseram matá-lo (cf. Lc 4,16-30). Já Cafarnaum, cujo nome significa “aldeia da consolação”, era uma cidade média e um importante entreposto comercial. Localizada às margens do lago de Genesaré, o que Marcos e Mateus chamam de mar da Galileia, provavelmente por questões teológicas, Cafarnaum era um centro de circulação de pessoas, de mercadorias e de ideias. Isso facilitava também os constantes deslocamentos de Jesus para pregar em outros lugares. Pessoas de diversas proveniências passavam constantemente por Cafarnaum. Num cenário assim, a Boa Nova de Jesus circularia melhor, o que não significa que tenha havido uma acolhida unânime. É interessante recordar que, embora todos os evangelistas apresentem Cafarnaum como um dos cenários da atuação de Jesus, somente Mateus diz que ele fixou morada lá.

Como a comunidade de Mateus era fortemente influenciada pelo judaísmo, ele foi buscar no profeta Isaías (Is 8,23 – 9,1) uma passagem que justificasse essa opção tão revolucionária de Jesus: «Terra de Zabulon, terra de Neftali, caminho do mar, região do outro lado do rio Jordão, Galileia dos pagãos! O povo que vivia nas trevas viu uma grande luz» (vv. 15-16). Zabulon e Neftali foram as primeiras tribos invadidas pelos assírios no séc. VIII a.C., onde começou a miscigenação da população, fazendo a Galileia toda ser chamada de “Galileia dos pagãos”. Ora, tanto o exército da Assíria deportou parte da população local, quanto levou povos estrangeiros para habitar na Galileia, fazendo nascer um grande sincretismo. Isso levou a população de Jerusalém e de toda a Judeia a criar um preconceito histórico contra os galileus, tratando-os como gente inferior, pessoas praticamente excluídas da salvação. No entanto, foram as pessoas dessa região que Deus escolheu para conhecerem primeiro a sua luz que brilha em Jesus. Isso é um fato bastante revolucionário: A grande luz de Deus não foi acesa para os judeus considerados puros, frequentadores assíduos do Templo de Jerusalém, mas para um povo desprezado, para as vítimas de preconceitos e exclusão, gente considerada impura. O começo do ministério de Jesus na Galileia significa, portanto, a sua identificação com os marginalizados em geral.

Tendo apresentado o cenário e os destinatários primeiros do ministério de Jesus, o evangelista apresenta a sua mensagem, o conteúdo da sua pregação: «Daí em diante Jesus começou a pregar dizendo: ‘Convertei-vos, porque o Reino dos Céus está próximo’» (v. 17). O chamado à conversão e o anúncio do Reino são o centro da mensagem de Jesus. Mateus chama de “Reino dos Céus” a mesma realidade que os demais evangelistas chamam de “Reino de Deus”. Provavelmente, ele evita usar aqui o nome de Deus para não ferir a sensibilidade dos judeus, tão enraizada na sua comunidade. Esse Reino é uma sociedade alternativa, é o sonho de Deus para a humanidade. Ele é dos céus, porque foi todo pensado por Deus, mas seu destino é a terra, é a história. Não se trata de uma vida futura, mas é viver a vida presente conforme o projeto de Jesus. O Reino dos Céus é, portanto, um projeto de mundo e sociedade onde haja igualdade, fraternidade, amor, concórdia, solidariedade e paz; é um mundo sem preconceitos e nem exclusões.

A instauração desse Reino na terra é tão urgente e necessária que, um pouco mais adiante, o próprio Jesus ensinará os discípulos a pedirem ao Pai, em oração, que “Venha o teu Reino” (Mt 6,10), ao ensiná-los a rezar o Pai nosso. Toda a práxis de Jesus é manifestação desse Reino, porque ele mesmo é o Reino em pessoa. Por isso, ele diz que o Reino está próximo, pois ele está presente no mundo e está prestes a iniciar a sua missão libertadora, marcada pela prática do bem. E a sua práxis deve ser continuada pelos seus discípulos de todos os tempos. Para abraçar um projeto como esse é necessária uma mentalidade nova. Por isso, o anúncio do Reino é precedido do imperativo “convertei-vos” (em grego: μετανοεῖτε – metanoeite). Conversão significa uma mudança radical de mentalidade, e não uma simples intensidade nas práticas religiosas e devocionais; é olhar o mundo de maneira nova e adotar um novo estilo de vida. E a lógica do Reino exige isso.

A instauração do Reino é tão urgente, que Jesus chama logo seus primeiros quatro colaboradores, duas duplas de irmãos, cujos chamados se tornam paradigma vocacional válido para todos os tempos. Eis o relato dos dois primeiros: «Quando Jesus andava à beira do mar da Galileia, viu dois irmãos: Simão, chamado Pedro, e seu irmão André. Estavam lançando a rede ao mar, pois eram pescadores. Jesus disse a eles: ‘Segui-me, e eu farei de vós pescadores de homens’. Eles imediatamente deixaram as redes e o seguiram» (vv. 18-20). O cenário do chamado dos primeiros discípulos é o mar, embora se tratasse de um grande lago, apenas. O evangelista chama de mar por razões teológicas. Para a mentalidade bíblica, o mar era a morada do mal, sinônimo de perigo e morte. Propositalmente, é nesse ambiente que Jesus escolhe as primeiras pessoas para o seu seguimento: os irmãos Simão Pedro e André. Ele não vai a um ambiente cultual recrutar devotos, mas vai onde há gente sem reputação e sinais de perigo e morte. Embora não vivessem mal economicamente, pois a pesca era uma atividade rentável, os pescadores não gozavam de nenhum prestígio social, pois o contato com o mar tornava a atividade depreciativa.

Como se vê, o chamado de Jesus acontece no cotidiano: os pescadores são chamados enquanto lançam as redes. Isso serve para ilustrar a necessidade de adotar um novo estilo de vida para seguir Jesus e, consequentemente, inserir-se no Reino. O deixar as redes imediatamente para seguir Jesus (v. 20) significa exatamente a passagem de um estilo de vida para outro. O convite a ser “pescadores de homens” (v. 19) deve ser bem esclarecido, pois é muito fácil de ser deturpado, como tem sido, inclusive. Ora, muitas vezes, usa-se essa expressão para justificar proselitismos e até imposição de crenças, o que não combina com o projeto de Jesus. Como afirmamos anteriormente, o mar tem um sentido muito negativo para o mundo bíblico; é sinônimo de perigo, pois evoca o domínio do mal. Ser “pescador de homens” (de gente!), portanto, é ser sinal de vida, e assim é a missão dos seguidores de Jesus em todos os tempos: tirar homens e mulheres de condições desumanas; é restituir a dignidade às pessoas, combatendo todos dos tipos de mal que assolam o mundo, como a violência, a corrupção, a fome e as injustiças. O seguimento de Jesus exige o comprometimento com essa causa.

Na continuidade, o evangelista apresenta o chamado de mais uma dupla de irmãos: «Caminhando um pouco mais, Jesus viu outros dois irmãos: Tiago, filho de Zebedeu e seu irmão João. Estavam na barca com seu pai Zebedeu consertando as redes. Jesus os chamou. Eles imediatamente deixaram a barca e o pai, e o seguiram» (vv. 21-22). O cenário continua o mesmo, mas temos algumas novidades, principalmente nas renúncias. Enquanto Simão Pedro e André deixaram apenas as redes, o texto diz que Tiago e João deixaram a barca e o pai. Há, portanto, um crescendo nas exigências.  O primeiro chamado enfatiza a ruptura com a ordem socioeconômica, representada pelas redes (v. 20), enquanto o segundo destaca a ruptura com a estabilidade, representada pela barca, e o mundo cultural e religioso, simbolizado pelo pai, o chefe de família. Com isso, o evangelista quer dizer que a relação com Jesus deve ter precedência sobre todas as instâncias da vida. Também é um sinal de que, ao longo da história, as exigências para o seguimento de Jesus tendem a aumentar cada vez mais, conforme os sinais dos tempos.

Na conclusão, o evangelista apresenta um primeiro resumo da missão de Jesus, recordando o caráter itinerante do seu ministério: «Jesus andava por toda a Galileia, ensinando em suas sinagogas, pregando o Evangelho do Reino e curando todo tipo de doença e enfermidade do povo» (v. 23). Como se vê, é uma atividade dinâmica, própria de quem não vive acomodado, mas vai ao encontro das pessoas, onde há necessidade. Além de sintetizar a atividade de Jesus, esse versículo também exprime a natureza da “pesca de homens” para a qual ele chamou os discípulos: “curar todo tipo de doença e enfermidade do povo”, o que significa esforçar-se constantemente para que as pessoas sejam libertadas de todos os males que ferem a dignidade de filhos e filhas de Deus. E é para isso que aponta a Palavra de Deus em sua inteireza: o cuidado com a vida.

Pe. Francisco Cornelio Freire Rodrigues

sábado, janeiro 14, 2023

REFLEXÃO PARA O 2º DOMINGO DO TEMPO COMUM – JOÃO 1,29-34 (ANO A)



A liturgia do segundo domingo do tempo comum emprega sempre um texto do Quarto Evangelho, independentemente do ano litúrgico vigente (ano A: Jo 1,29-34; ano B: Jo 29-351; Ano C: Jo 2,1-11). Na prática, este domingo constitui uma espécie de “reforço” da festa do batismo do Senhor – normalmente celebrada no primeiro domingo –, funcionando ainda como introdução ao tempo comum. Como neste ano a festa do batismo foi transferida para uma segunda-feira, podemos considerar este segundo domingo como a verdadeira abertura do tempo comum, e o evangelho lido neste dia contribui para isso: Jo 1,29-34. Nesse texto, aparecem declarações bastante relevantes sobre a identidade e missão de Jesus, de grande profundidade teológica, que só serão bem compreendidas ao longo do tempo, acompanhando cada passo da sua vida pública, como propõe a dinâmica do ano litúrgico. É importante recordar que, ao contrário dos Sinóticos, o Quarto Evangelho não narra o batismo de Jesus, mas faz alusões implícitas a esse acontecimento, como se vê no evangelho de hoje.

O texto lido neste dia faz parte da primeira seção narrativa do Evangelho de João, convencionalmente chamada pelos estudiosos de “semana inaugural” (cf. Jo 1,19–2,21). Nesse intervalo, o evangelista introduz a vida pública de Jesus com indicações temporais que indicam a duração de uma semana. Com isso, o autor pretende apresentar a obra de Jesus como uma nova criação, em alusão à criação originária, desenvolvida também em uma semana (cf. Gn 1,1–2,3). O primeiro dia da “semana inaugural” do evangelho joanino foi marcado por uma comitiva fiscalizadora, enviada pelas autoridades religiosas de Jerusalém para interrogar João sobre sua identidade (cf. Jo 1,19-28), e o último dia ou sétimo é marcado pelas bodas de Caná (cf. Jo 2,1), o qual é introduzido pela expressão “no terceiro dia”, mas em relação aos quatro dias anteriores e, portanto, é o sétimo da primeira semana. O episódio narrado no evangelho de hoje corresponde ao segundo dia da semana. Porém, isso não se percebe na tradução do lecionário, que substituiu o dado temporal do texto original pela genérica fórmula de introdução “naquele tempo”.

Em sua versão original, o texto começa com a expressão “no dia seguinte” (em grego: τ παριον – tê apaurion). Desse modo, a forma correta do primeiro versículo é: «No dia seguinte, João viu Jesus aproximar-se dele e disse: ‘Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo’» (v 29). O Evangelho de hoje, portanto, apresenta o segundo dia da nova criação, ou seja, do novo tempo que o autor do Quarto Evangelho quer apresentar. Um dia após ter sido interrogado pelos comissários de Jerusalém, “João viu Jesus aproximar-se dele” (v. 29a). É necessário perceber a importância da ação de Jesus: vir, aproximar-se, caminhar em direção de alguém, no caso, de João. Uma nova ordem na história da salvação está sendo inaugurada, e João a contempla como testemunha privilegiada: é Deus quem vem ao encontro dos homens e mulheres, ou seja, ao encontro da humanidade. À humanidade, cabe o papel de reconhecer, acolher e testemunhar, como fez João.

A propósito de João, é importante recordar que, no Quarto Evangelho, ele é identificado como testemunha, bem mais do que que pela atividade batizadora, como acontece nos Sinóticos. Inclusive, no evangelho joanino ele não é sequer chamado de Batista, mas apenas de João, embora se afirme que ele batizava, como diz o evangelho de hoje (v. 33). Esse dado é bastante relevante, pois o testemunho (em grego: μαρτυρα – martyria) é uma categoria teológica de grande importância no Quarto Evangelho e, nesse sentido, a figura de João se torna paradigmática para o discipulado de Jesus em todos os tempos. João reconheceu Jesus. E os discípulos de Jesus, por sua vez, além de reconhecê-lo, devem também manifestá-lo por meio do testemunho, inclusive, reconhecendo-o nas situações mais adversas: nos pobres, pecadores e pessoas marginalizadas de um modo geral.

A reação de João diante do que estava contemplando foi decisiva e corajosa. Ao afirma que Jesus é «o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo!», ele fez uma das declarações mais revolucionárias de toda a Bíblia. Com essa afirmação, ele desmascarou e decretou a falência de todo um sistema religioso e político sustentado pela exploração que o sistema sacrifical do templo de Jerusalém promovia. Essa declaração revela um novo rosto de Deus e anuncia, acima de tudo, uma nova maneira de se relacionar com ele. E a maneira nova de se relacionar com Deus corresponde ao fim do sistema cultual centralizado no templo de Jerusalém, símbolo de corrupção e exploração. A expressão “Cordeiro de Deus” (em grego: μνς το θεοῦ – amnós tu Theú) é uma das maiores novidades do Evangelho de João; em toda a Bíblia, aparece somente duas vezes (Jo 1,29.36). Devido à novidade que comporta, muitas possibilidades de interpretação foram sugeridas para essa expressão, ao longo da história, umas convincentes e outras não, umas condizentes com a lógica do Quarto Evangelho e outras não. Portanto, diversas perspectivas podem ser apresentadas.

Uma primeira perspectiva para a compreensão da definição de Jesus como “Cordeiro de Deus” é a messiânica. Ora, estava consolidada no imaginário do judaísmo da época a imagem de um messias valente, guerreiro, rei forte e potente. Havia muita expectativa para a chegada desse personagem. João desconstrói completamente essa imagem, pois o cordeiro era símbolo da mansidão e fragilidade, o oposto das expectativas do povo. Com isso, o evangelista quer dizer que o messias autêntico não é um guerreiro lutador, mas homem manso e não violento. Porém, mansidão não quer dizer resignação, como Jesus vai mostrar ao longo de sua vida pública, lutando incessantemente pela ruptura total com os costumes e tradições que oprimem e matam, mas sem jamais empunhar as armas da violência. Outra perspectiva de leitura, que não exclui a primeira, mas a complementa, é a releitura da imagem do cordeiro no Antigo Testamento, especificamente em duas ocasiões: o cordeiro pascal (cf. Ex 12,1-28), e o Servo sofredor que é comparado a um cordeiro (cf. Is 53,6-7). E nessas duas ocasiões o cordeiro evoca libertação: na primeira, simboliza a libertação da escravidão no Egito; na segunda, indica que o sofrimento do povo no exílio da Babilônia estava acabando, ou seja, a libertação estava próxima. Em ambas as situações, a libertação simbolizada pelo cordeiro era parcial, destinada apenas ao povo de Israel. Em Jesus o horizonte é ampliado: ele traz libertação para o mundo inteiro.

Para a instituição religiosa de Israel, a função do Cordeiro Jesus apontada por João era um verdadeiro golpe mortal: tirar o pecado do mundo. Ora, todo o aparato religioso de Israel era sustentado “às custas do pecado” do povo. Quanto mais o povo pecasse, mais sacrifícios precisaria oferecer no templo, mais ofertas deveria dar e, assim, mais ricas ficariam as autoridades religiosas. Sendo Jesus o Cordeiro, é ele mesmo quem se oferece, quem se doa, logo, não há mais necessidade de oferecer cordeiros e touros no templo. Em Jesus, Deus veio ao encontro definitivo da humanidade, oferecendo-se por inteiro, fazendo-se carne e habitando no mundo (cf. Jo 1,1-18). Não há mais distância entre Deus e a humanidade, por isso, os sacrifícios do templo não mais necessários. E o Cordeiro Jesus não apenas “expia” pecados, mas elimina definitivamente o pecado do mundo. E a eliminação do pecado do mundo representa a falência total do templo. Jesus não veio para expiar os pecados, mas para abolir o pecado e, não apenas de Israel, mas da humanidade inteira, ou seja, o pecado do mundo.

Tirar o pecado do mundo significa restabelecer na humanidade a sua capacidade de comunicação com Deus e imprimir nela o amor. A visão de pecado do Quarto Evangelho é completamente diferente daquela que a religião impôs; não é a transgressão individual de preceitos criados pela própria religião, mas a falta de comunicação com Deus. E, quem tinha distanciado Deus da humanidade e, portanto, impossibilitado essa comunicação, tinha sido a própria religião. A novidade que Jesus veio trazer ao mundo, ou seja, o seu “Evangelho”, é um projeto de vida plena, marcado pela igualdade, fraternidade, justiça, solidariedade e amor; é nesse projeto que Deus se revela e, portanto, faz desaparecer o pecado. Onde se vive à maneira de Jesus, Deus se faz presente e, por isso, o pecado desaparece, o mal perde o vigor. Logo, os sistemas cultuais expiatórios perdem seu sentido e seu valor quando o projeto de Jesus é assimilado. Para quem vivia “às custas do pecado” do povo, como o templo de Jerusalém, essa nova ordem é altamente prejudicial; na verdade, é destruidora.

E o evangelista continua mostrando o testemunho de João. E é um testemunho importante porque reconhece a necessidade de vir depois dele alguém que já existia antes (v. 30). Assim, João reconhece o quanto são maravilhosos os desígnios de Deus: a humanidade não poderia permanecer nem perecer daquela forma e naquele estágio em que se encontrava antes do Cordeiro se manifestar. O que preexistia, como fora evidenciado pelo evangelista no prólogo (cf. Jo 1,1-18), deveria se manifestar, e João teve a graça de testemunhar essa manifestação que marcou o início de uma nova humanidade ou nova criação. João tinha consciência de que, embora a salvação agora contemplada, tivesse um alcance universal, seria manifestada primeiro a Israel, através do sinal exterior do seu batismo com água (v. 31). Portanto, no momento da eleição por privilégio, no tempo de João por necessidade, Israel não poderia deixar de ser o primeiro campo de manifestação dessa nova ordem ou etapa da história da salvação. O desenrolar do Evangelho, contudo, vai mostrar que, embora tenha sido o primeiro destinatário, Israel não reconheceu.

A continuidade do testemunho de João atesta sua autenticidade: ele mesmo fez a experiência e viu «O Espírito descer como uma pomba, do céu e permanecer sobre ele» (v. 32). Com essa imagem, João atesta a provisoriedade do seu batismo e da religião: o Espírito desceu do céu e permaneceu em Jesus; logo, a morada do divino na terra não é mais o templo, mas todo ser humano que acolhe e assimila o jeito de viver de Jesus, uma vez que, após a ressurreição, esse mesmo Espírito será enviado a toda a humanidade. João proclama que Jesus é a morada do Espírito e, assim, a humanidade é transformada e reordenada. É a contemplação da descida e permanência do Espírito em Jesus (v. 33) que dá a João a certeza de que Jesus é, inclusive, mais do que Cordeiro: «Eu vi e dou testemunho: Este é o Filho de Deus!’» (v. 34).

Afirmação de que Jesus é o Filho de Deus não revela apenas um traço da sua identidade, mas aponta para um novo jeito de se relacionar com Deus. Revela a comunhão e o amor recíprocos entre os dois. Sendo Filho de Deus, Jesus é “igual” ao Pai e, portanto, herdeiro; por ter em si o Espírito, somente ele poderá doá-lo, transmitindo-o a toda a humanidade, como fará após a ressurreição. Assim, acolhendo esse Espírito, todos podem tornar-se também filhos de Deus (cf. Jo 1,12) e, consequentemente, também doadores do Espírito Santo. O reconhecimento de Jesus como Filho de Deus é o objetivo de todo o Quarto Evangelho, como vem afirmado na primeira conclusão: «Esses sinais foram escritos para crerdes que Jesus é o Filho de Deus» (Jo 20,31a). Por isso, logo no início apresenta uma testemunha privilegiada, João (cf. Jo 1,6-8.19.29.32.34), e no final, toda a comunidade dos discípulos e discípulas (cf. Jo 20,1-31).

Esperava-se um Messias valente para exterminar os pecadores... Deus enviou um, manso como um cordeiro, para tirar o pecado do mundo, através de uma proposta nova de vida para todos, principalmente os pecadores e todas as pessoas marginalizadas. A condição de Jesus como Cordeiro e Filho de Deus representam a humanização completa que ele veio oferecer ao mundo. É a superação do Deus distante e rígido que exigia sacríficos pelo Deus manifesta sua glória na fragilidade da carne humano, como celebramos no natal e cujos ecos se sentem ainda na liturgia de hoje.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, janeiro 07, 2023

REFLEXÃO PARA A SOLENIDADE DA EPIFANIA DO SENHOR – MATEUS 2,1-12

 


Neste domingo, a Igreja no Brasil celebra a solenidade da Epifania do Senhor, uma festa que pode ser considerada um verdadeiro prolongamento do Natal. Epifania quer dizer manifestação, deriva do verbo grego “epifaino” (πιφανω), cujo significado literal é manifestar, aparecer, resplender. Nesta solenidade celebramos, então, a manifestação de Deus em Jesus como luz, guia e Senhor de todo o universo. O evangelho desta festa é o mesmo para todos os anos: Mt 2,1-12, texto que compreende o episódio da visita dos magos do Oriente, os primeiros personagens do Evangelho segundo Mateus a reconhecer Jesus como rei; eles saíram de longe para adorar à criança recém-nascida, configurando-se como uma das primeiras surpresas da obra de Mateus. É importante observar que, embora a celebração recorde a manifestação de Deus, o texto apresenta um movimento inverso: é o mundo com sua pluralidade de raças e culturas, representado pelos magos do Oriente, que manifesta sua adesão e aceitação ao senhorio de Jesus, indo ao seu encontro.

O texto evangélico referido é muito rico em teologia e simbologia, além da grande beleza que possui. É um dos textos que melhor revela as habilidades teológicas e literárias do evangelista. Certamente, é o episódio mais recordado de todo o evangelho da infância de Mateus (Mt 1–2). Infelizmente, ao longo da história, foi interpretado mais folcloricamente do que teologicamente. Daí a dificuldade de termos uma interpretação mais fidedigna ao sentido real do texto, tendo em vista que as interpretações folclóricas, inclusive adotadas pelo cristianismo oficial, estão muito enraizadas no imaginário popular, a começar pela transformação dos magos em reis. O primeiro passo para uma compreensão mais adequada, considerando a necessidade de recuperar o sentido teológico original do texto, é distanciar-se da romântica imagem do presépio, por mais encantador que seja.

Começamos o estudo do texto partindo dos primeiros versículos: «Tendo nascido Jesus na cidade de Belém, na Judéia, no tempo do rei Herodes, eis que alguns magos do Oriente chegaram a Jerusalém, perguntando: ‘Onde está o rei dos judeus que acaba de nascer? Nós vimos a sua estrela no Oriente e viemos adorá-lo’» (v. 1-2). Ao contrário de Lucas, Mateus não narra o momento do nascimento de Jesus, mas apenas o menciona como um fato já acontecido, dando, porém, informações muito importantes de tempo e espaço: nasceu em Belém, no tempo do rei Herodes. A princípio, já é possível perceber a intenção do autor com essa informação: está surgindo uma alternativa de poder e realeza diferente do sistema vigente; há um deslocamento do centro para a periferia; começa uma descentralização, o que vem a indicar que o poder exercido até então na capital Jerusalém é um poder ilegítimo e, por isso, está desmoronando.

É claro que é necessário o complemento da informação para termos clareza da oposição que o autor quer apresentar entre o poder centralizado em Jerusalém e o projeto alternativo que surge em Belém: «nasceu um rei para os judeus» (v. 2); esse dado indica que alguém estava reinando de maneira ilegítima, no caso, Herodes e o poder imperial em geral. As indicações de tempo e espaço também servem para legitimar a historicidade do homem Jesus de Nazaré. Ora, os cristãos da comunidade de Mateus não tinham conhecido o homem Jesus e, por isso, poderiam questionar a sua existência. Com esses dados, o evangelista quer reforçar que Jesus foi um homem concreto, gente de carne e osso que nasceu e viveu em um período histórico determinado.

A outra grande novidade do relato, percebida ainda no primeiro versículo, está na peculiaridade dos personagens apresentados pelo autor: «alguns magos do Oriente» (v. 1). Ora, os magos (em grego: μγοι mágoi), eram estudiosos orientais, responsáveis pela interpretação dos sonhos e pela leitura dos fenômenos da natureza e dos astros. No mundo greco-romano, e sobretudo em Israel, os magos eram vistos como feiticeiros e charlatões, operadores da magia. Eram os sacerdotes de cultos pagãos da Pérsia e Babilônia; pertenciam a uma categoria condenada pelo judaísmo e pelo cristianismo das origens. De fato, dois episódios nos ajudam a perceber o quanto a magia era condenada na Bíblia: a saga de Balaão, no Antigo Testamento (cf. Nm 22–24), e a tentativa de compra do dom do Espírito Santo pelo mago Simão, no Novo Testamento (cf. At 8,9-24). Portanto, os magos eram pessoas abomináveis à luz da religião de Israel e dos primeiros cristãos.

Para encobrir a rejeição que estes personagens tão controversos poderiam sofrer, a tradição cristã dos primeiros séculos resolveu caricaturá-los, atribuindo-lhes características que o texto bíblico não cita, como a realeza. Ao invés de ajudar na compreensão do texto, esse tratamento real aos magos terminou distorcendo o sentido aplicado pelo evangelista. É importante reforçar que esses personagens são fruto da inteligência e criatividade teológica do evangelista, ou seja, os magos não são personagens reais, mas simbólicos. A intenção do evangelista e de sua comunidade ao apresentá-los era exatamente mostrar que também aos distantes e sem reputação Deus se revela, e são exatamente esses os que com mais sinceridade buscam o verdadeiro rosto de Deus, tão difícil de ser reconhecido na pessoa de uma frágil e pobre criança, como as elites religiosa e política não foram capazes de reconhecer. Ainda sobre o revestimento dado pela tradição, é importante recordar que o texto bíblico não faz menção alguma ao número dos magos; não diz que eram três, como propagou a tradição, com base apenas no número dos dons por eles oferecidos: ouro, incenso e mirra. Além do número três, sem fundamento no texto bíblico, a tradição também lhes deu nomes (Gaspar, Baltasar e Melchior) e meio de transporte (camelos). Por isso, como afirmamos no início, é necessário distanciar-se da imagem fantasiosa do presépio para compreender bem o texto de Mateus.

Está mais do que clara a oposição: os magos vieram de longe para adorar o Deus verdadeiro. Foram a Jerusalém, mas lá não era possível encontrar o verdadeiro Deus porque a elite religiosa o tinha monopolizado e distorcido a sua imagem; como gentios, os magos eram barrados pelas paredes do templo que separava os pagãos dos judeus piedosos. Com a pergunta «Onde está o rei dos judeus que acaba de nascer?» (v. 2a), os magos afirmam que não reconhecem a autoridade de Herodes, ou seja, o consideram um rei ilegítimo; com a afirmação «nós vimos sua estrela no Oriente e viemos adorá-lo» (v. 2b), eles desafiam também a elite religiosa, mostrando que as paredes do templo já não conseguem mais conter esse Deus que se revela em todo o universo e a todos os povos. Portanto, os poderes político e religioso vigentes são desmascarados com o nascimento de Jesus, e os magos são os primeiros a constatarem esse fato.

Enquanto Herodes exercia o poder pela força e a violência, Jesus exercerá a sua autoridade pelo serviço; enquanto a relação com Deus, monopolizado pela elite religiosa, era mediada por uma casta sacerdotal corrompida e através de sacrifícios e ofertas, em Jesus é Deus quem se manifesta plenamente, sendo Ele mesmo quem à humanidade se oferece, ao invés de exigir oferendas. Por isso, «o rei Herodes ficou perturbado, assim como toda Jerusalém» (v. 3), pois viam que um novo tempo estava surgindo, novas relações estavam sendo gestadas, uma sociedade alternativa estava nascendo, enfim, o Reino de Deus estava começando e, portanto, todos os reinos humanos deveriam desaparecer. Como sempre, a força dos pequenos gera desconforto nos grandes.

As preocupações de Herodes e de “toda Jerusalém”, compreendida como a elite política, religiosa e intelectual predominantes, ou seja, sacerdotes e escribas, leva-os a um medíocre pacto (vv. 4-6), o qual se repetirá posteriormente e levará Jesus à morte de cruz, com as mesmas motivações: o medo que as autoridades tinham de um autêntico “Rei dos Judeus” (cf. Mt 27,11). Isso significa que exerciam poder de modo ilegítimo, em favor de seus próprios interesses, sem preocupação alguma com o bem do povo. Era um poder usurpado. A pedido de Herodes, a elite religiosa usa as Escrituras em favor de um projeto de morte, e isso serve de advertência para as comunidades cristãs de todos os tempos: a Palavra não pode ser instrumentalizada para interesses pessoais nem projetos de poder. Portanto, a reunião de Herodes com os sacerdotes e mestres da Lei prefigura o conluio que levará Jesus à morte, no final do Evangelho. No nascimento, o pacto é feito entre Herodes e toda Jerusalém; na paixão será entre Pilatos e o sinédrio, mas são as mesmas forças, com as mesmas práticas. Como último recurso, Herodes tenta a fraude e o suborno, exigindo que os magos retornem a ele quando encontrarem o menino (vv. 7-8).

Ajudados pela Escritura e pelo próprio Herodes, os magos foram a Belém e lá, de fato, encontraram o que estavam procurando: Jesus, Deus e luz que ilumina todos os povos, inclusive eles, operadores de práticas abomináveis aos olhos do judaísmo. A reação deles não poderia ser outra: «Ao verem de novo a estrela, os magos sentiram uma alegria muito grande» (v. 10). A luz de Deus, até então sufocada por uma religião ritualista e segregadora, agora ilumina o universo inteiro e o convida a alegrar-se com isso, pois significa o fim de todas as barreiras, o desmoronamento de todos os muros e sinais de separação. É neste versículo que aparece pela primeira vez a palavra alegria no Evangelho de Mateus. É importante recordar que, enquanto o “evangelho da infância” de Lucas (Lc 1–2) é um relato alegre do começo ao fim, inclusive as primeiras palavras que o anjo dirige a Maria são um convite á alegria – “alegra-te cheia de graça!” –, o relato da infância de Mateus (Mt 1–2) é totalmente dramático, marcado por angústia, dúvida e medo (cf. Mt 1,19.13-13). Por isso, é muito relevante perceber a primeira alegria e, ainda mais, considerando que ela parte de pessoas sem credibilidade para os padrões religiosos de Israel.

Se os magos se alegraram por verem a estrela, a alegria deles deve ter aumentado ainda mais «Quando entraram na casa, viram o menino com Maria, sua mãe» (v. 11a). Por serem pagãos e magos, eles não podiam adentrar além do pátio do templo reservado para os gentios e, portanto, não podiam contemplar nem adorar verdadeiramente a divindade nacional dos judeus. Agora, é tudo diferente: na casa, eles entram e vêem porque é o próprio Deus quem se deixa ver e conhecer em Jesus e na comunidade cristã, personificada em Maria, a mãe. Essa passagem é muito importante, pois em todo o primeiro capítulo de Mateus houve uma centralidade e importância dadas à figura de José. Nesta cena, ele não é mencionado, mas apenas Maria, como imagem da comunidade cristã, lugar privilegiado do encontro com Jesus e da verdadeira adoração. Certamente, Mateus teve uma intenção especial com esse detalhe: quis mostrar que Deus se deixa conhecer parcialmente na criação, representada pela estrela (vv. 2.9.10), de maneira mais clara ele se revela na Escritura (vv. 4-6), mas para fazer uma autêntica experiência com ele é necessário reunir-se em comunidade, personificada em Maria (v. 11).

É necessário recordar o que o texto diz, desde o início, sobre o objetivo dos magos: «adorar o rei dos judeus» (v. 2). Para isso, eles tinham empreendido um longo caminho, inclusive errando a rota, pois foram primeiro a Jerusalém, mas lá não o encontraram, devido à estrutura rígida e decadente da religião oficial aliada ao poder político tirano de Herodes e do império romano. Ao contrário de Lucas, Mateus tem uma visão extremamente negativa sobre Jerusalém e o templo. Para Mateus, Jerusalém é sinônimo de trevas, é sinal de morte e ameaça para o reinado de Deus. Inclusive, pós a ressurreição, para encontrarem o Ressuscitado, os discípulos deverão retornar à Galileia (Mt 28,16-20). Por isso, somente deslocando-se para a periferia os magos puderam, de fato, experimentar o Deus que tanto buscavam. Aqui, está o ápice do contraste que o evangelista quer apresentar: o templo perdeu seu sentido, Deus não habita mais nele; é necessário retirar-se para a periferia, inserir-se na comunidade e, assim, adorar e experimentar a beleza desse Deus que quer apenas misericórdia e amor, e não mais sacrifícios.

Quando perceberam que encontraram aquele que tanto buscavam, os magos «ajoelharam-se diante dele e o adoraram» (v. 11). Essa atitude mostra que, finalmente, os magos se saciaram, encontraram sentido para suas vidas e, portanto, esvaziaram-se de si, oferecendo tudo o que tinham. Não ofereceram porque lhes fora exigido, como acontecia na religião do templo, mas porque sentiram-se confortados e correspondidos. Enquanto os poderes oficiais se uniam para matar, os magos, como figuras dos marginalizados, se prostram unidos para adorar. A adoração verdadeira, ou seja, o autêntico culto, não depende mais de um espaço específico delimitado pela religião; é feita na própria casa; a única exigência é que seja feita em «espírito e em verdade» (cf. J 4,24). Ajoelhar-se em adoração será a atitude das mulheres e dos discípulos no primeiro encontro com o Ressuscitado (cf. Mt 28,9.17). Com isso, o evangelista apresenta os magos como inauguradores do novo e autêntico culto.

Os presentes oferecidos pelos magos, ouro, incenso e mirra (v. 11b) são simbólicos e revelam, por um lado a identidade de Jesus e, por outro, a nova relação entre a humanidade e Deus. O ouro, revela que Jesus é rei enquanto o recebe, mas ao mesmo tempo diz que todas as nações podem participar do seu reino, enquanto foi oferecido por pagãos; assim, o privilégio de Israel como povo escolhido perde o seu sentido, pois a pertença ao Reino de Deus não é determinada por raça ou cultura, mas pela sinceridade de coração. O incenso representa a divindade de Jesus, ou seja, é o reconhecimento de que Ele é Deus, mas a humanidade não precisa mais dos sacerdotes do templo para se comunicar com Ele, pois qualquer pessoa e em qualquer lugar pode fazer isso. A mirra é o mais ambíguo dos três presentes: é, antes de tudo, o sinal da humanidade de Jesus, uma vez que era um perfume usado pelos judeus para embalsamar os cadáveres, como acontecerá com o corpo do próprio Jesus, quando morrer; porém, no Cântico dos Cânticos, em diversas passagens, a mirra é citada como o perfume da esposa amada (cf. Ct 5,5.13) e, com muita probabilidade, Mateus quis dizer que a esposa amada de Deus deixou de ser Israel e passou a ser toda a humanidade.

Na conclusão do texto, encontramos uma afirmação muito significante para a comunidade cristã de todos os tempos: «Avisados em sonho para nãos voltarem a Herodes, os magos retornaram para sua terra seguindo outro caminho» (v. 12). Seguir outro caminho é a primeira atitude de quem faz um encontro autêntico com Jesus. Desse encontro, surge uma nova maneira de relacionar-se com Deus e com o próximo. Consequentemente, brota uma nova mentalidade que rejeita qualquer forma de poder que oprime e mata, inclusive amparado pela religião, como o complô de Herodes com os sacerdotes do templo. Para viver bem a nova relação com Deus é necessário desviar-se das antigas rotas e estruturas, como fizeram os magos, ao perceberem que Jerusalém só oferecia exploração e perigo. A experiência autêntica com Deus, portanto, provoca no ser humano a necessidade de percorrer novos caminhos, o que pode ser compreendido como uma nova maneira de viver, com novas atitudes parecidas com as de Jesus.

À guisa de conclusão, podemos nos questionar sobre quais caminhos que o Natal nos instiga a percorrer de agora em diante. Se serão os caminhos de sempre, ou seja, se continuarmos com as mesmas maneiras de pensar e compreender as coisas, principalmente a nossa relação com Deus e o próximo, é sinal de Jesus não nasceu em nós, ou seja, o Natal não aconteceu em nossas vidas. E Jesus se não nasceu em nós, não poderemos manifestá-lo ao próximo. Também é importante recordar o atual contexto eclesial: que o “outro caminho” seguido pelos magos estimule a reflexão sinodal em curso e que cada vez mais caminhos sejam abertos em nossas comunidades. Quanto mais disposição de “caminhar juntos” houver, mais a luz de Cristo iluminará o mundo.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

REFLEXÃO PARA O 4º DOMINGO DA PÁSCOA – JOÃO 10,11-18 (ANO B)

O evangelho do quarto domingo da páscoa é sempre tirado do capítulo décimo do Evangelho de João, no qual Jesus se auto apresenta como o ún...