sexta-feira, fevereiro 24, 2023

REFLEXÃO PARA O 1º DOMINGO DA QUARESMA – MATEUS 4,1-11 (ANO A)

 


Após uma sequência de seis domingos, a liturgia interrompe o tempo comum para viver e celebrar um de seus tempos mais fortes, a Quaresma, iniciada na Quarta-Feira de Cinzas, com o convite à conversão, em preparação à Páscoa do Senhor. Hoje, celebramos o primeiro domingo deste tempo especial. Como acontece todos os anos, o evangelho do primeiro domingo da Quaresma compreende a narrativa das tentações pelas quais passou Jesus no deserto, logo após ser batizado, como preparação para o início de seu ministério. Esse é um episódio presente nos três evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas), um dado que confirma a sua grande importância para as primeiras comunidades cristãs. Neste ano, por ocasião do ciclo litúrgico A, nós lemos a versão das tentações do Evangelho de Mateus –  4,1-11. Se trata de um texto bastante rico, muito bem elaborado, tanto do ponto de vista literário quanto teológico, com uso abundante de linguagem simbólica. 

Marcado por forte simbologia, o evangelho de hoje corre o sério risco de ser mal compreendido, devido a nossa tendência equivocada de considerar os evangelhos como livros de crônicas exatas da vida de Jesus, esquecendo o aspecto simbólico que predomina neste tipo de relato. Por isso, é necessário, a nível de introdução, fazer algumas considerações importantes para uma adequada compreensão. A fonte original deste relato é o Evangelho de Marcos, e não dá nenhum detalhe sobre o nível e a modalidade das tentações. Marcos apenas diz que «Jesus esteve no deserto durante quarenta dias sendo tentado por Satanás» (Mc 1,13); dessa informação simples e vaga, o evangelista Mateus, com muita criatividade, e atendendo às necessidades da sua comunidade, ilustrou a história que lemos hoje na liturgia, como fez também Lucas (cf.  Lc 4,1-13).

A nível de contexto, é imprescindível recordar que o relato das tentações segue, imediatamente, ao relato do batismo – cf. Mt 3,13-17 – e, por isso, ambos estão intrinsecamente relacionados. Ainda antes do batismo, João tinha anunciado Jesus como o Messias, em sua pregação. Ora, no batismo o Espírito Santo desceu sobre Jesus e, do céu, o próprio Pai o declarou como o seu “Filho Amado”. Logo, o principal objetivo do evangelista com este episódio de hoje é apresentar o comportamento de Jesus como o enviado de Deus, ou seja, o “Filho amado do Pai”, conforme a revelação no batismo, cena anterior ao texto de hoje. E ele vai mostrar que Jesus permanecerá fiel aos propósitos do Pai, rejeitando todas as propostas que não condizem com os valores do Reino, sintetizadas aqui pelas três tentações apresentadas pelo diabo. Portanto, esse é um texto programático para a comunidade cristã, pois indica como deve agir e resistir ao mal quem se deixa conduzir pelo Espírito Santo, missão comum a todos os batizados e batizadas.

Iniciamos nossa reflexão considerando os dois primeiros versículos do texto: «O Espírito conduziu Jesus ao deserto, para ser tentado pelo diabo. Jesus jejuou durante quarenta dias e quarenta noites, e, depois disso, sentiu fome» (vv. 1-2). Ora, o mesmo Espírito Santo que desceu em forma de pomba (cf. Mt 3,16) no batismo, acompanhará Jesus em todos os seus passos e ações; com o batismo, foi inaugurada sua vida pública, e essa, do início ao fim, será marcada pela presença do Espírito Santo, e não apenas quando Ele vai ao deserto. Aqui, o deserto não é um indicativo geográfico, mas teológico. A ida de Jesus ao deserto, antes de tudo, indica que ele está inserido na história do povo de Israel, fazendo parte desse e, portanto, estará sujeito aos mesmos riscos pelos quais Israel passou, desde a saída do Egito até a conquista da terra. Logo, também o caminho de Jesus, do nascimento à ressurreição, será marcado por riscos, perigos e provas, uma vez que Ele, mesmo sendo o “Filho Amado” de Deus, é verdadeiramente ser humano, assumiu a humanidade em todas as suas dimensões. Embora o deserto evoque a provação e a dificuldade, é também o lugar ideal para o bom relacionamento com Deus, por isso, quando o povo demonstrava infidelidade, os profetas apresentavam a necessidade de retornar ao deserto para voltar a viver o ideal da aliança (cf. Os 2,14; 9,10; 13,5; Am 2,10; 5,25). Uma vez que o deserto também é sinônimo de provação e perigo, o evangelista quer dizer que aquele que tem a sua vida conduzida pelo Espírito, não está imune aos perigos da vida, não é uma pessoa blindada. O autor das tentações é o diabo (em grego: διαβολος – diábolos), palavra grega que literalmente significa aquele que divide e atrapalha, como é tudo o que se opõe à concretização do Reino de Deus e ao caminho de Jesus. Logo, o diabo não é uma pessoa ou um ser específico, mas todo percalço posto diante do projeto de Deus; muitas vezes é a própria estrutura das comunidades que teimam em ofuscar o Evangelho.

Se o deserto não é um dado geográfico, assim também os “quarenta dias” que Jesus lá passou não podem ser considerados como um dado cronológico exato. Mais uma vez, trata-se de um dado teológico, e de grande relevância. São muitas as ocorrências do número quarenta relacionado ao tempo no Antigo Testamento: a duração do dilúvio foi de quarenta dias e quarenta noites (cf. Gn 7,4.12.17); Moisés passou quarenta dias sobre a montanha, antes de receber a Lei (cf. Ex 32,28); a caminhada do povo de Deus no deserto durou quarenta anos, sendo esse um tempo de fidelidade e infidelidade, idolatria e prova (Ex 44,28); e o profeta Elias caminhou durante quarenta dias rumo ao monte Horeb (cf. 1 Rs 19,8). Além de evocar acontecimentos e personagens importantes da história de Israel, esse número quer dizer também uma etapa completa, ou seja, uma vida inteira, uma geração (quarenta anos). Quando se trata de dias, é o tempo necessário para assimilar um grande ensinamento. Portanto, significa que toda a vida de Jesus foi marcada pela prova e, assim, é também a vida da comunidade cristã. Isso deve levar os cristãos e cristãs a uma vida vigilante sem, jamais, cair nos comodismos que podem surgir. Quer dizer que a Igreja não pode, em momento algum da história, aceitar qualquer sinal de conforto, principalmente quando ofertado pelos detentores do poder.

A primeira tentação diz respeito à maneira de relacionar-se com as coisas; a lógica do império incentivava o consumo e a satisfação dos desejos, o que Jesus rejeita. Eis o que diz a primeira tentação: «Então, o tentador aproximou-se e disse a Jesus: ‘Se és o Filho de Deus, manda que estas pedras se transformem em pães! Mas Jesus respondeu: ‘Está escrito: ‘Não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus’» (vv. 3-4). Embora faminto, Jesus percebe que não é suficiente saciar-se de pão naquele momento, pois a vida pede muito mais do que pão. Por isso, com base na Escritura (cf. Dt 8,3), Ele não dispensa o pão, mas diz que o homem não pode viver “somente” dele. A vida digna e plena não depende somente do alimento material, mas de todos os valores do Reino contidos na “Palavra que sai da boca de Deus”, que será explicitada no dec0rrer do seu ministério. O messianismo da época previa um messias milagreiro, ao que Jesus se opõe radicalmente; Ele não veio ao mundo para resolver os problemas de maneira fácil e cômoda, como queriam e ainda querem muitos grupos e movimentos religiosos. Por sinal, essa é única vez em que o evangelista Mateus dá ao diabo o nome de “tentador” (em grego: πειράζων – peirazón), uma derivação do verbo tentar (em grego: πειράζω – peirázo), o mesmo verbo que ele aplica aos líderes religiosos, especialmente os fariseus, que põe Jesus à prova durante o evangelho (16,1; 19,3; 22,18.35).

A segunda tentação chama a atenção para a relação com Deus: «Então o diabo levou Jesus à Cidade Santa, colocou-o sobre a parte mais alta do Templo, e lhe disse: ‘Se és Filho de Deus, lança-te daqui abaixo! Porque está escrito: ‘Deus dará ordens aos seus anjos a teu respeito, e eles te levarão nas mãos, mas para que não tropeces em alguma pedra’. Jesus lhe respondeu: ‘Também está escrito: ‘Não tentarás o Senhor teu Deus’» (v. 5-7). Ora, no templo de Jerusalém, onde a religião dizia que Deus morava, o que mais se podia esperar era milagres! Jesus resiste à tentação do milagre fácil, rejeitando o Deus vendido pelo templo; o seu Deus não é aquele que distribui anjos por todas as partes para guiar e proteger os seus “filhos bons” e castigar os maus, como afirmava a religião da época, não é o Deus das visões e aparições nem dos espetaculares prodígios, mas é o Deus da simplicidade, das coisas pequenas, porque age a partir de dentro do ser humano.

A terceira tentação diz respeito à relação com o próximo, sobretudo quanto à maneira de conceber e exercer o poder: «Novamente, o diabo levou Jesus para um monte muito alto. Mostrou-lhe todos os reinos do mundo e sua glória, E lhe disse: ‘Eu te darei tudo isso, se te ajoelhares diante de mim, para me adorar’. Jesus lhe disse: ‘Vai-te embora, Satanás, porque está escrito: ‘Adorarás ao Senhor, teu Deus, e somente a ele prestarás culto’» (vv. 8-10). A lógica religiosa-imperial incentivava a busca constante por prestígio e poder e, consequentemente, de domínio sobre o outro. Cada vez mais alimentavam-se as expectativas de um messias glorioso e poderoso, capaz de julgar e condenar todos os ‘inimigos’ de Israel. Para decepção de muitos, Jesus apresentou-se como messias servo e sofredor. Por isso, rejeita toda e qualquer forma de poder, pois, mesmo que esse seja exercido em nome de Deus, será sempre de origem diabólica, uma vez que impede a concretização de uma fraternidade universal. O diabo apresenta a Jesus todos os reinos do mundo; significa que há muitos, enquanto Jesus falará de um único Reino, o Reino dos Céus, como sinal de unidade e fraternidade. A multiplicidade de reinos do mundo significa a falta de concórdia e harmonia, decorrente das formas tirânicas e ilegítimas do exercício do poder.

Ao invés de poder, Jesus escolherá o serviço como meio de exercício de sua autoridade, e fruto de suas convicções de Filho Amado do Pai. Ele não quis e nem quer o domínio do universo; quis e quer apenas que o seu amor chegue, através dos seus seguidores e seguidoras, em todos os confins da terra e, assim, que a humanidade seja transformada por esse amor. É claro que o evangelista não descreve o diabo como dono do mundo; mas está denunciando que o poder exercido até então, em todos os reinos, marcado pela exploração, injustiça e opressão, segue a lógica diabólica, à qual o Evangelho se contrapõe com o Reino dos Céus anunciado por Jesus, marcado pelo amor, pelo serviço, a justiça e a fraternidade. 

Na conclusão, diz o evangelista: «Então o diabo o deixou. E os anjos se aproximaram e serviram a Jesus» (v. 11). O diabo se afastou porque não encontrou em Jesus um aliado. Devido à sua comunhão de amor com o Pai, Jesus sabia discernir e fazer opção pelo lado do amor e da justiça, inclusive, foi para isso que o Pai lhe enviou ao mundo. Ao falar do serviço dos anjos a Jesus, o evangelista emprega um verbo que significa especificamente o serviço de mesa, ou seja, o serviço do pão. É esse o sentido do verbo grego “diakonêo” (διακονέω), do qual deriva o termo diácono (em grego: διάκονος – diáconos). Ao invés de comer um pão fruto de uma mera demonstração de poder, Jesus recebe o pão como dom gratuito; e aquilo que é dom deve ser partilhado, como ele mesmo fará, seja partilhando o pão com as multidões famintas (cf. Mt 15,32-39), seja doando a sua própria vida como alimento (cf. Mt 26,26-30).

As três tentações ou provas relatadas no evangelho de hoje são proposta e contraproposta de como o ser humano deve relacionar-se com as coisas, com Deus e com o próximo. São como uma parábola da vida de Jesus. O diabo apresenta a lógica da ordem vigente, seja religiosa ou política, e Jesus propõe um caminho alternativo, o que vai caracterizar o Reino dos Céus como uma sociedade alternativa a todas formas de organização social até então experimentadas pela humanidade, amparadas ou não pela religião. Diante disso, parece haver um debate ou disputa de conhecimento da Escritura entre o diabo e Jesus. É uma nítida antecipação do que ocorrerá em toda a vida de Jesus, sobretudo quando terá de enfrentar os líderes religiosos do seu tempo.

A resistência de Jesus, recorrendo sempre à Palavra de Deus é uma indicação para as comunidades cristãs de todos os tempos: a perseverança e a fidelidade ao projeto de Jesus dependem essencialmente da atenção à Palavra. Ao mesmo tempo, há uma clara denúncia ao perigo do uso fundamentalista das Escrituras e tradições religiosas, pois também os argumentos do diabo são fundamentados na Palavra de Deus. É um alerta de que o mal age na história camuflado de diversas aparências, inclusive de pessoas muito religiosas.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

 

 

sábado, fevereiro 18, 2023

REFLEXÃO PARA O 7º DOMINGO DO TEMPO COMUM – MATEUS 5,38-48 (ANO A)

 


A liturgia deste sétimo domingo do tempo comum continua a leitura do “discurso da montanha” de Mateus, iniciada há três domingos. O trecho lido neste dia – Mt 5,38-48 – é a conclusão da sequência dos seis casos específicos da Lei que Jesus usa para demonstrar que veio ao mundo para dar plenitude à Lei e aos Profetas, ao invés de abolir (cf. Mt 5,17), como foram acusados tanto ele quanto os cristãos da comunidade de Mateus, posteriormente. Destes seis casos, equivocadamente chamados de antíteses por alguns comentadores, quatro foram lidos no domingo passado, ficando para hoje a leitura dos dois últimos. É importante recordar que a leitura de qualquer trecho do “discurso da montanha” deve considerar sempre a sua parte introdutória, correspondente às “bem-aventuranças” (Mt 5,1-12), o programa de vida de Jesus, pois tudo o que é proposto ao longo do discurso deriva desse programa ou são exigências para a sua implantação.

Ainda a nível de introdução e contexto, também é importante recordar que a interpretação que Jesus apresenta dos seis casos concretos da Lei é uma demonstração de como os seus discípulos devem superar os fariseus e os mestres da Lei na prática da justiça (cf. Mt 5,20), inclusive, como condição para entrarem no Reino dos Céus. Por Reino dos Céus, Mateus compreende a sociedade alternativa que Jesus veio propor à humanidade, cujas relações devem ser motivadas somente pelo amor, resultando num mundo fraterno, justo, solidário e igual. Esse Reino é dos céus, porque sua origem é o amor de Deus, mas é destinado à terra, como superação dos sistemas de poder injustos até então experimentados. Os mestres da Lei e os fariseus eram irrepreensíveis na observância da Lei em seus mínimos detalhes, mas não estavam aptos ao Reino anunciado por Jesus, pois não é esse tipo de justiça que Jesus quer dos seus seguidores.

Em todos os seis casos que Jesus toma como exemplo de como a justiça dos seus seguidores deve ser superior à dos fariseus e mestres da Lei, está em jogo a relação com o próximo, pois é dessa que depende essencialmente a relação do ser humano com Deus. No primeiro caso, dos dois empregados na liturgia de hoje, Jesus toma como exemplo a chamada “Lei de Talião”: «Vós ouvistes o que foi dito: ‘Olho por olho e dente por dente!’» (v. 38). Embora não faça parte do decálogo, a “Lei de Talião”, que fazia parte dos códigos legislativos de outros povos da antiguidade, foi incorporada à legislação de Israel (cf. Ex 21,24; Lv 24,20; Dt 19,21; 25,11-12). A princípio, parece tratar-se de algo absurdo, pois é praticamente uma regulamentação da vingança; é uma recomendação a que se pague com a mesma moeda. No entanto, essa lei foi muito importante na antiguidade, pois as vinganças eram excessivas, sobretudo nas sociedades mais arcaicas, terminando sempre em morte. Inclusive, a própria Bíblia mostra alguns casos assim, como o de Lamec, um dos descendentes de Caim, o qual se vangloria de, ao vingar-se, ter matado um homem por causa de uma ferida e uma criança por causa de um arranhão (cf. Gn 4,23). Diante disso, a Lei de Talião propõe um equilíbrio, determinando a proporção entre o dano causado e a pena. Inclusive, o termo “Talião” é uma derivação da palavra latina “talis”, que significa tal, idêntico ou tal e qual. A expressão “olho por olho e dente por dente”, portanto, significa que se alguém fosse ferido num olho, ao vingar-se, não poderia ferir mais do que o olho daquele lhe tinha ferido primeiro; o mesmo valia para os demais membros do corpo e os bens materiais em geral. Por mais que pareça absurda, essa lei serviu para evitar muitas catástrofes na antiguidade, coibindo as vinganças excessivas. Por isso, acabou sendo incorporada em Israel, na Lei de Moisés.

Ao ressignificar toda a Lei, levando-a à plenitude e colocando-a totalmente a serviço do bem do ser humano, Jesus cancela esse preceito específico com uma proposta inovadora e revolucionária, propondo que se quebre o círculo da violência: «Eu, porém, vos digo: Não enfrenteis quem é malvado! Pelo contrário, se alguém te dá um tapa na face direita, oferece-lhe também a esquerda!» (v. 39). Ao mal, não se responde com o mal em nenhuma circunstância; em linhas gerais, é isso que significa essa afirmação. Jesus está propondo o fim da corrente da violência, mostrando que o mal só pode ser combatido e vencido pelo bem. A violência sempre gera mais violência; por isso, ela é inaceitável na comunidade cristã. A primeira parte do versículo não está bem traduzida; o mais correto seria «não enfrenteis violentamente o malvado». A forma como está traduzido passa a ideia de uma passividade da comunidade cristã diante do mal e da violência. É claro que o mal deve ser enfrentado e combatido, e é responsabilidade dos cristãos fazerem isso; porém, não com os mesmos métodos e meios do sistema opressor. A segunda parte do versículo indica como isso deve ser feito: propondo alternativas de paz que, de certo modo, desestabilizam o sistema opressor, ou seja, aquele que comete violência, seja individual ou todo o sistema. Oferecer a outra face é sinal de que não foi intimidado pela violência recebida, é uma forma sutil de denúncia, o que vem reforçado com mais três exemplos citados (vv. 40-42). Mais uma vez, está claro que não é um convite à aceitação passiva do mal e da violência, mas uma alternativa que leva o próprio praticante do mal a reconhecer a ineficácia de suas práticas, sentindo-se ele mesmo humilhado. Predominavam duas formas de responder ao mal e à violência: aceitar passivamente o mal sofrido ou reagir violentamente; Jesus propõe uma terceira via, a única capaz de fazer o opressor reconhecer a ineficácia e a covardia de suas práticas. É claro que não se trata de aceitar passivamente a injustiça, mas sim de combatê-la a ponto de desarmar os injustos.

No último dos seis exemplos que Jesus mostra como os seus discípulos devem superar os mestres da Lei e os fariseus na prática da justiça, ele fala diretamente do mandamento do amor, embora esse já estivesse presente nos casos anteriores, pelo menos implicitamente. Eis a afirmação de Jesus: «Vós ouvistes o que foi dito: ‘Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo!’» (v. 43). A base desta afirmação é o mandamento de Lv 19,18, o qual afirma: «amarás o teu próximo como a ti mesmo». De acordo com o evangelista, Jesus omite o “como a ti mesmo”, porque propõe o amor de Deus como parâmetro (v. 45), e não o amor das pessoas. A respeito do ódio aos inimigos, não havia nenhuma prescrição na Lei que recomendasse isso; porém, o evangelista não está inventando nada. As tradições orais de interpretação da Lei tinham valor semelhante ao das leis escritas em Israel. Porém, o mandamento escrito exigia somente o amor ao próximo, e era considerado o próximo em Israel somente o irmão, membro do mesmo clã, e o compatriota, membro da mesma tribo e do próprio país; daí, alguns rabinos mais radicais passaram a interpretar que quem não fizesse parte deste círculo de relação e pertença poderia ser odiado e tratado como inimigo. Em muitos ambientes essa interpretação foi recebida como vontade de Deus e componente da Lei; talvez até fosse ensinado nas sinagogas de onde a comunidade de Mateus estava inserida. Rompendo definitivamente com o judaísmo, os cristãos já não eram mais considerados membros do povo eleito, mas tratados como pagãos, pelas correntes mais radicais do judaísmo, sendo, por isso, odiados.

A advertência de Jesus é alerta para que os cristãos não façam a mesma coisa: «Eu, porém, vos digo: ‘Amai os vossos inimigos e rezai por aqueles que vos perseguem!’» (v. 44). A resposta cristã ao ódio é o amor e a oração. E essa se constitui como um dos principais diferenciais da mensagem cristã em relação a qualquer outra experiência de vida religiosa e social. O amor e a oração pelos inimigos vai muito além do rejeitar a violência ou ignorar aqueles que atacam e perseguem. Significa amá-los, apesar de tudo. O amor em si já é um modo de resistência ao mal, é uma denúncia à violência. E é o amor livre, ilimitado e incondicional, que tem como parâmetro o amor do próprio Deus, que deve caracterizar os seguidores de Jesus, dando-lhes a dignidade de filhos de Deus: «Assim, vos tornareis filhos do vosso Pai que está nos céus, porque ele faz nascer o sol sobre maus e bons, e faz cair a chuva sobre justos e injustos» (v. 45). De acordo com a mentalidade semítica, o filho é aquele que se assemelha ao pai, sobretudo no comportamento e no caráter. É preciso, portanto, sair do horizonte limitado da Lei, pois ela foi dada a um povo, exclusivamente, e recuperar a lógica da criação, que é universal. Justos e injustos ou maus e bons, aqui, significa a totalidade da humanidade e da criação, e quer dizer que tudo pertence a Deus. No entanto, é necessário ir além da simples pertença: é preciso tornar-se filho ou filha. E, para Jesus, o critério da filiação já não é a pertença a uma religião ou etnia, mas a disposição de amar.

Para reforçar a importância do amor ilimitado, incondicional e universal, são citadas duas novas categorias de pessoas: os cobradores de impostos (v. 46) e os pagãos (v. 47), as duas categorias mais desprezíveis pelos judeus. Recordar isso é importante, bem como recordar as duas categorias de pessoas citadas no início da sequência: os mestres da Lei e os fariseus (v. 20). Nem a maneira de interpretar a Lei dos fariseus e escribas é ideal, e nem o modo de viver dos pagãos e cobradores de impostos. Fechar-se aos limites do próprio grupo social ou religioso é imitar esses. Diante das perseguições, os cristãos corriam esse risco. Por isso, o evangelista insiste para que isso seja evitado. Diante disso, o evangelista Mateus procura abrir os horizontes da sua comunidade, para que os cristãos não desanimem e não desistam de viver o ideal proposto por Jesus, e imprimam no mundo um modelo de vida novo e original. Daí, o convite conclusivo: «Portanto, sede perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito!» (v. 48). Aqui, vem atualizado o mandamento de Lv 19,2: «Sede santos, como eu, o vosso Deus, sou santo». Ora, como santo significa “separado”, Israel usou esse mandamento para justificar o seu exclusivismo e fechamento diante dos outros povos. O Evangelho corrige: em Lucas o «ser santo» é substituído por «ser misericordioso» (cf. Lc 6,36), e aqui em Mateus por «ser perfeito». Cada evangelista adaptou conforme a sua própria teologia e as necessidades das suas respectivas comunidades. Aqui em Mateus, o adjetivo perfeito (em grego: τέλειος – téleios) significa pleno, completo, incluindo a sintonia com a vontade de Deus. Como a principal característica de Deus, o Pai celeste, é o amor ilimitado e incondicional, dirigido aos bons e aos maus, esse é o grau de perfeição que os cristãos devem alcançar. O amor parcial, dirigido aos que fazem parte do mesmo círculo de convivência e que compartilham de um mesmo ideal torna a comunidade semelhante aos fariseus e mestres da Lei ou aos cobradores de impostos e pagãos. É preciso, portanto, assimilar o amor indistinto e incondicional, ensinado por Jesus, para assemelhar-se ao Pai, ou seja, tornar-se filhos e filhas dele.

Como se vê, Jesus propõe um novo estilo de vida, com uma verdadeira revolução de valores. Ao propor o pleno cumprimento da Lei, o que ele quer mesmo é que todas as pessoas se sintam filhas de Deus e irmãs umas das outras. E a responsabilidade de iniciar essa transformação começa pelos seus discípulos e discípulas. A interpretação convencional da Lei visava uma relação servil com Deus, enquanto Jesus propõe uma relação filial. Por consequência, a relação entre os filhos e filhas deve ser fraterna, com as relações orientadas pelo amor e suas principais derivações: justiça e solidariedade. Isso é o resultado da vivência das bem-aventuranças, cujo resultado é a realização do Reino de Deus.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sexta-feira, fevereiro 10, 2023

REFLEXÃO PARA O 6º DOMINGO DO TEMPO COMUM – MATEUS 5,17-37 (ANO A)

 


A liturgia deste sexto domingo do tempo comum continua a leitura do discurso da montanha, o principal e mais longo dos cinco grandes discursos que Mateus atribui a Jesus em seu Evangelho, compreendendo três capítulos inteiros (Mt 5–7). O texto proposto para hoje – Mt 5,17-37 – é bastante longo, o que nos impede de comentar versículo por versículo. Procuraremos, portanto, colher a mensagem central, embora seja indispensável evidenciar alguns versículos em particular. De início, recordamos que só é possível compreender qualquer trecho do discurso da montanha tendo em mente a sua introdução, as bem-aventuranças (Mt 5,1-12), que correspondem ao programa de vida realizado plenamente por Jesus e proposto também para os discípulos. Tudo o que é apresentado ao longo do discurso da montanha é, portanto, desdobramento das bem-aventuranças.

A vivência das bem-aventuranças pressupõe uma maneira nova de interpretar a Lei de Moisés, bem como todo o conjunto das Escrituras hebraicas, sintetizadas no evangelho de hoje pela expressão “a Lei e os Profetas” (v. 17). De acordo com o evangelista, no discurso da montanha, Jesus apresenta uma interpretação nova de seis casos ou aspectos concretos da Lei, apresentados em sequência, diferente das interpretações vigentes na época, superando o mero legalismo e a interpretação literal tão defendida pelos fariseus e outras correntes mais rígidas do judaísmo. Destes seis casos, quatro são lidos hoje, enquanto os outros dois serão lidos no próximo domingo, o sétimo do tempo comum. É oportuno recordar que, assim como em todo o Evangelho de Mateus, a interpretação da Lei atribuída a Jesus e as controvérsias com os fariseus refletem mais as questões da época da redação do evangelho (década de 80 do primeiro século) do que propriamente o tempo do ministério de Jesus. Diante dos problemas vividos pela sua comunidade, o evangelista recorda qual teria sido a posição de Jesus. 

A sequência dos casos ou aspectos concretos da Lei tratados no discurso da montanha, logo após Jesus ter conferido aos discípulos a responsabilidade de “dar sabor ao mundo e iluminá-lo”, através das imagens do sal e da luz (cf. o evangelho do domingo passado, Mt 5,13-16) é precedida de uma pequena introdução (vv. 17-20) que, de certo modo, ajuda a compreender o contexto de todo o texto. Eis o primeiro versículo: «Não penseis que eu vim abolir a Lei e os Profetas. Não vim para abolir, mas para dar-lhes pleno cumprimento» (v. 17). Essa afirmação dá a entender que tanto Jesus quanto os cristãos da comunidade de Mateus eram acusados pelo judaísmo oficial de relativizarem a Lei e até de a revogarem. Para os grupos mais rígidos do judaísmo, Jesus, com a sua práxis, tinha destruído a Lei. Diante disso, a comunidade de Mateus reage afirmando que, com a sua atividade libertadora, Jesus levava a Lei à plenitude, uma vez que sua interpretação colocava o bem do ser humano acima de qualquer legalismo. É importante observar que “cumprimento”, aqui, não se refere à simples execução de uma tarefa, mas tem o sentido de aperfeiçoamento, tornar algo pleno e perfeito. Ou seja, Jesus não veio ao mundo para destruir a Lei, e nem tampouco para cumprir preceitos e executar normas, mas para tornar perfeita a Lei de Deus; é isso que significa o verbo grego empregado pelo evangelista: plerôo (πληρόω) = aperfeiçoar, dar acabamento, tornar pleno.

Na sequência, ainda em preparação à apresentação dos casos concretos da interpretação da Lei, temos mais afirmações que reforçam o apreço de Jesus pela Lei, afirmando inclusive a sua perenidade (v. 18), bem como a exclusão do Reino a quem deixar de observá-la e ensinar os outros a fazer o mesmo (v. 19), culminando com o confronto direto com os mestres da Lei e os fariseus: «Porque eu vos digo: Se a vossa justiça não for maior que a justiça dos mestres da Lei e dos fariseus, vós não entrareis no Reino dos Céus» (v. 20). Ora, os mestres da Lei e os fariseus eram exemplo de fidelidade à Lei, obedecendo, quase cegamente, preceito por preceito. Para eles, a Lei era um fim em si mesma, pouco importando o bem das pessoas e as situações concretas do dia-a-dia. Dos seus discípulos, porém, Jesus espera muito mais, começando por uma adesão interior à vontade de Deus, o que corresponde à verdadeira justiça: conformidade à vontade de Deus, compreendendo a predileção pelos pecadores, pobres e marginalizados; é fazer o bem em qualquer circunstância, independentemente se há ou não um preceito que determine, e sem deixar de fazer, mesmo quando for necessário contrariar certos preceitos.

Os seis exemplos (casos concretos) que seguem, dos quais leremos somente quatro hoje, mostram como é que a justiça dos discípulos e discípulas de Jesus deve superar a dos mestres da Lei e dos fariseus. Conforme o evangelista, Jesus apresenta um ponto específico da Lei que os fariseus interpretavam literalmente, e em seguida apresenta a sua interpretação pessoal que ultrapassa a interpretação convencional. Alguns comentadores intitulam estes casos de “antíteses”, já que são construídos segundo a fórmula “Vós ouvistes o que foi dito...; Eu, porém vos digo...”. No entanto, não se trata propriamente de antíteses, pois o ensinamento de Jesus não contradiz o convencional, mas alarga o horizonte, inclusive, propondo uma interpretação até mais radical, ao invés de relativizar a Lei.

O primeiro caso diz respeito ao quinto mandamento do decálogo (cf. Ex 20,13): «Vós ouvistes o que foi dito aos antigos: ‘Não matarás! Quem matar será condenado pelo tribunal» (v. 21). De acordo com uma interpretação literal, como faziam os fariseus, bastava não cometer homicídio para observar este mandamento. Para Jesus e a dinâmica do seu Reino, não é suficiente não tirar a vida de outra pessoa para transgredir o mandamento, mas há muitas outras maneiras, as quais devem ser radicalmente observadas para agir em conformidade com a vontade de Deus, superando, assim, a justiça dos fariseus e mestres da Lei. Alimentar ódio e preconceitos contra o próximo, bem como dirigir-lhe palavras ofensivas (v. 22), são também maneiras de transgredir o mandamento; na verdade, são maneiras diferentes de ameaçar a vida e a dignidade do outro e, por isso, é inadmissível que aconteça, especialmente na comunidade cristã. Uma boa relação com Deus passa necessariamente pela relação com o próximo. Na verdade, a relação com o próximo é tão indispensável, que tem primazia até mesmo sobre o culto e os ritos religiosos (vv. 23-24). Portanto, não basta não matar; é necessário amar, respeitar e viver reconciliado com o outro para estar bem com Deus. Assim, de um mandamento que apenas proibia assassinatos, Jesus amplia o seu significado e faz uma ampla catequese sobre a importância de se cultivar relações harmoniosas e fraternas na comunidade.

O segundo caso também parte de um mandamento do decálogo, o sexto (cf. Ex 20,14): «Ouvistes o que foi dito: ‘Não cometerás adultério’. Eu, porém, vos digo: Todo aquele que olhar para uma mulher, com o desejo de possuí-la, já cometeu adultério com ela no seu coração» (vv. 27-28). Novamente, a interpretação de Jesus excede a prescrição, superando, assim, a justiça dos fariseus e dos mestres da Lei. Para Jesus, o adultério não consiste somente na consumação do ato, mas os pensamentos e desejos, mesmo que não levem a nenhuma ação concreta, são também transgressão do mandamento. Novamente, é evidenciada a necessidade de relações saudáveis entre todas as pessoas, com pureza de coração, segundo o espírito das bem-aventuranças (cf. Mt 5,8). A perspectiva de Jesus também denuncia a cultura machista e patriarcal predominante na época; a mulher não pode ser tratada como um objeto de consumo. O reconhecimento da dignidade da mulher é indispensável na comunidade cristã. Os olhares e pensamentos maliciosos devem ser evitados. É necessário cortar o mal pela raiz; a ordem para arrancar ou cortar os membros do corpo que levam a pessoa a pecar é simbólica (vv. 29-30), uma vez que é do coração que saem os desejos e as más intenções. Significa que a vida não tem sentido quando é marcada pelo mal.

O terceiro caso está relacionado ao segundo. Não é tirado do Decálogo, mas do chamado “código deuteronômico” (Dt 12 – 26), precisamente da lei sobre o divórcio (cf. Dt 24,1-4), que dava liberdade ao homem para divorciar-se da mulher por qualquer motivo, inclusive se a achasse “sem graça”, ou seja, “feia” (cf. Dt 24,1). Era uma lei totalmente favorável ao homem e danosa para a mulher. De todos os exemplos levantados por Jesus, esse é de mais difícil compreensão, pois não é muito claro: «Foi dito também: ‘Quem se divorciar de sua mulher, dê-lhe uma certidão de divórcio’. Eu, porém, vos digo: Todo aquele que se divorcia de sua mulher, a não ser por motivo de união irregular, faz com que ela se torne adúltera; e quem se casa com a mulher divorciada comete adultério» (v. 32). Aqui, infelizmente, a tradução litúrgica não favorece uma interpretação adequada; ao invés da expressão “faz com que ela se torne adúltera”, o correto seria “faz com que ela cometa adultério”, sendo o homem culpado por isso. Dando a certidão de divórcio por qualquer motivo, o culpado pelo adultério da mulher é o homem, na perspectiva da comunidade de Mateus, contrariando a interpretação dos fariseus e as práticas vigentes na época. Visando manter a sacralidade do matrimônio, a interpretação de Jesus alivia o peso e a culpabilidade da mulher, responsabilizando também o homem. Em outras palavras, o homem deixa de ter poderes absolutos no matrimônio.

O último caso lido hoje diz respeito aos juramentos. No mundo antigo, onde prevalecia a cultura oral, como em Israel, os juramentos tinham muita importância. Embora não esteja diretamente no Decálogo, havia muitas prescrições sobre os juramentos em toda a Lei (cf. Lv 19,12; Nm 30,3-15; Dt 5,20; 23,21), sobretudo exigindo fidelidade e cumprimento da palavra quando fosse feito um juramento. Era uma prática recorrente fazer juramentos como sinal de compromisso com Deus e com o próximo, em Israel. Isso acontecia em todos os âmbitos da vida: relações interpessoais, política, negócios e religião. A posição de Jesus é de total repúdio à prática dos juramentos: «Vós ouviste também o que foi dito aos antigos: ‘Não jurarás falso’, mas cumprirás os teus juramentos feitos ao Senhor’. Eu, porém, vos digo: Não jureis de modo algum: nem pelo céu, porque é o trono de Deus» (v. 34). É importante recordar que a Lei não determinava que as pessoas jurassem; porém dava permissão para tal, exigindo, no entanto, que, uma vez feitos, os juramentos fossem cumpridos. A necessidade de jurar, porém, pressupõe a desconfiança. Por isso, Jesus repudia completamente essa prática (vv. 35-37). Ora, na comunidade cristã, embrião do Reino dos céus, cuja regra de vida é as bem-aventuradas, todas as relações devem ser sinceras. Necessita-se de juramentos onde não há confiança absoluta; onde predomina a fraternidade, as relações são todas transparentes, fala-se somente a verdade em todas as circunstâncias. Por isso, não há necessidade de juramentos, pois todos devem viver segundo o amor recíproco.

No próximo domingo teremos a continuidade da leitura dos casos ou exemplos concretos que Jesus apresenta como demonstração de como a justiça dos seus discípulos e discípulas deve superar a dos fariseus e mestres da Lei. Como vimos, isso não se faz cumprindo com mais rigor os mínimos detalhes da Lei, mas superando-a, indo além daquilo que é prescrito, considerando sempre que o bem do ser humano deve estar acima de tudo. A assimilação das bem-aventuranças torna as normas da Lei até desnecessárias; é a vivência delas que permite faz a Lei chegar à sua plenitude, a ponto de não ser mais transgredida, pois, interiorizando as bem-aventuranças, já não há mais necessidade sequer de olhar para as normas e regras da Lei. Quem absorve no coração os ensinamentos de Jesus, torna-se incapaz de fazer o mal, por isso, nada lhe pode ser proibido.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sexta-feira, fevereiro 03, 2023

REFLEXÃO PARA O 5º DOMINGO DO TEMPO COMUM – MATEUS 5,13-16 (ANO A)

 


Na liturgia deste quinto domingo do tempo comum, continuamos a leitura do grande discurso programático de Jesus no Evangelho de Mateus, conhecido como o “discurso da montanha” (Mt 5–7). No domingo passado, fora lida a introdução desse discurso, que corresponde às bem-aventuranças (Mt 5,1-12), um texto que é considerado o coração do primeiro evangelho. O texto proposto para hoje – Mt 5,13-16 – é exatamente o que sucede imediatamente às bem-aventuranças. De acordo com o evangelista Mateus, continuando um ensinamento vital para a comunidade de seus seguidores, Jesus emprega duas imagens bastante fortes e interpelantes, o sal e a luz, para demonstrar o quanto a vivência das bem-aventuranças é indispensável na vida dos seus discípulos e, consequentemente, para a comunidade cristã. Por isso, é importante recordar que tudo o que é desenvolvido ao longo do discurso da montanha é, na verdade, consequência ou desdobramento das bem-aventuranças.

Consideradas pela maioria dos exegetas como o autorretrato de Jesus, as bem-aventuranças são, ao mesmo tempo, o programa de vida que ele propõe para os seus discípulos e discípulas de todos os tempos. A vivência delas devem ter um efeito transformador no mundo, comparável aos efeitos do sal e da luz, empregados para suas finalidades mais básicas: dar sabor e iluminar, respectivamente. Ora, é da vivência das bem-aventuranças que depende a instauração do Reino dos Céus na terra. Para que esse Reino, de fato, aconteça, é necessário que as pessoas, começando pelos discípulos, assumam um estilo de vida semelhante ao de Jesus, ou seja, que pratiquem as bem-aventuranças. Por isso, o emprego das imagens do sal e da luz são seguidos de advertência sobre o perigo de que estes elementos não sejam bem utilizados.

As imagens do sal e da luz são, assim, uma síntese da missão dos seguidores de Jesus e, ao mesmo tempo, uma demonstração do efeito dessa missão. Eis, pois, a primeira imagem com a consequente advertência: «Vós sois o sal da terra. Ora, se o sal se tornar insosso, com que salgaremos? Ele não servirá para mais nada, senão para ser jogado fora e ser pisado pelos homens» (v. 13). Embora seja possível identificar diversas funções para o sal, sobretudo na antiguidade, o texto deixa muito claro que faz referência ao seu uso para a alimentação, seja como condimento, quanto como conservante. Mesmo assim, é importante recordarmos também outras funções atribuídas ao sal ao longo da Bíblia. Era símbolo de qualquer coisa duradoura e preciosa, tornando-se, inclusive, sinal da indissolubilidade da aliança, de modo que uma aliança eterna era chamada de “aliança de sal” (cf. Nm 18,19). Outro significado para o sal é a purificação, sendo um elemento utilizado nos sacrifícios cultuais (cf. Lv 2,13; Ez 43,24), e empregado também por Eliseu para purificar as águas das fontes de Jericó (cf. 2Rs 2,19-22).

Aqui no texto de Mateus, no entanto, como já acenamos anteriormente, e considerando o inteiro versículo, a referência ao sal está relacionada ao seu uso no alimento, pois o texto indica o dar sabor como função primordial. É importante perceber também o universalismo atribuído aos seguidores de Jesus: ser sal de toda a terra, ou seja, marcar presença e fazer a diferença em todo o mundo, e não apenas dentro das fronteiras de Israel. Essa dimensão universalista da missão cristã será evidenciada ao longo de todo o Evangelho de Mateus, e encontrará o seu ápice no envio missionário pós-pascal, quando o Ressuscitado ordenará que seus discípulos devem ir a todas as nações para ensinar, batizar e discipular (cf. Mt 28,19-20). Seja para dar sabor, seja para conservar alimentos, o sal é indispensável na vida dos ser humano. Assim também é indispensável a presença de cristãos e cristãs no mundo, para que o projeto libertador de Jesus seja realizado e o Reino se instaure. Ao falar do risco de o sal tornar-se insosso e, consequentemente, inútil, se faz uma advertência ao risco de omissões e falta de testemunho dos cristãos no mundo. Assim como não tem sentido um sal sem sabor, também não tem sentido cristãos sem a prática das bem-aventuranças, ou seja, sem fome e sede de justiça, sem mansidão no coração, sem misericórdia e sem amor.

A segunda imagem empregada ocupa todo o restante do texto e, aparentemente, é mais simples ou, pelo menos, mais compreensível, já que é uma imagem mais frequente ao longo da Bíblia: «Vós sois a luz do mundo. Não pode ficar escondida uma cidade construída sobre um monte» (v. 14). A imagem da luz, de fato, atravessa toda a Bíblia, muito mais do que a do sal, bem como o seu efeito é muito mais visível. Inclusive, a própria missão de Jesus na Galileia foi apresentada por Mateus como luz, como refletimos há dois domingos (cf. evangelho do terceiro domingo do tempo comum: Mt 4,12-23). Como extensão e continuação da missão de Jesus, também a missão dos seus discípulos é apresentada como luz. Isso mostra que a missão dos discípulos é a mesma de Jesus. Novamente, a dimensão universalista da missão é recordada: os cristãos não devem ser luz somente para um determinado grupo de pessoas ou de uma determinada região, mas de todo o mundo. A segunda parte do versículo é, certamente, uma crítica à cidade de Jerusalém e às autoridades de Israel, como um todo. Ora, Jerusalém fora construída sobre um monte (cf. Is 2,1) exatamente para de lá resplandecer a luz de Deus; porém, fora corrompida pelos poderes religioso e político, ofuscando a luz de Deus. Temos aqui, portanto, uma clara denúncia a Israel e, especialmente, a Jerusalém que falhara na sua missão de ser luz das nações (cf. Is 42,6; 49,6). Por isso, Deus transferiu sua luz para a marginalizada Galileia, onde Jesus iniciou seu ministério como uma luz que brilha nas trevas (cf. Mt 4,12-23). Como consequência, Jesus transfere a missão que outrora fora de Israel para os seus discípulos.

Na continuidade do texto, vemos novamente o tom de advertência, como no uso do sal: «Ninguém acende uma lâmpada e a coloca debaixo de uma vasilha, mas sim, num candeeiro, onde brilha para todos, que estão na casa» (v. 15). Tão inútil quanto um sal sem sabor e uma lâmpada escondida é a vida cristã sem testemunho, ou seja, sem a prática das bem-aventuranças. Aliás, isso nem vida cristã seria, mas apenas um teatro, um fingimento. Seria hipocrisia, como Jesus vai mostrar, com outras palavras, ao advertir a comunidade dos seus seguidores sobre a necessidade de diferenciar-se dos fariseus. Temos aqui mais um alerta sobre o risco da omissão dos cristãos no mundo, diante das injustiças e de todas as formas de manifestação do mal. O cristão não pode se omitir onde há trevas, onde há negação da vida.  Uma lâmpada debaixo da mesa é a imagem do discípulo omisso e medroso, incapaz de denunciar as injustiças que estão ao seu redor, e conivente com as situações de opressão e negação da vida. Uma vez que a luz acesa não tem outra função que não seja iluminar, também os cristãos não podem omitir-se de testemunhar o Evangelho, cuja condição é a vivência das bem-aventuranças, que são o programa de Jesus.

O versículo conclusivo consiste em mais uma exortação e advertência. Assim como houve com Israel, também havia na comunidade cristã uma tendência ao envaidecimento e ao orgulho, o que é totalmente incompatível com o ensinamento de Jesus. É necessário que os discípulos sejam sinal de luz diante das outras pessoas, mas que não sejam recompensados ou elogiados por isso, pois é ao Pai que está nos céus que devem ser dirigidos todos os louvores; é esse o sentido do versículo: «Assim também brilhe a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e louvem o vosso Pai que está nos céus» (v. 16). Os cristãos de todos os tempos devem cumprir boas obras, devem “fazer o bem” como fez Jesus (cf. At 10,38), de modo que revelem o Deus em quem acreditam. Em outras palavras, o versículo quer dizer que o reconhecimento e o louvor de Deus pela humanidade dependem essencialmente do estilo de vida dos cristãos. E isso é uma grande responsabilidade. O mundo conhece Deus à medida em que os cristãos dão sabor ao mundo e o iluminam com as ações e os gestos concretos que praticam. O Deus que é Pai, portanto, não se torna conhecido pelo ensino de uma doutrina, e sim pelo testemunho dos cristãos.

Pe. Francisco Cornélio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

REFLEXÃO PARA O 4º DOMINGO DA PÁSCOA – JOÃO 10,11-18 (ANO B)

O evangelho do quarto domingo da páscoa é sempre tirado do capítulo décimo do Evangelho de João, no qual Jesus se auto apresenta como o ún...