sexta-feira, março 31, 2023

REFLEXÃO PARA O DOMINGO DE RAMOS DA PAIXÃO DO SENHOR – MATEUS 26,14–27,66 (ANO A)

 


Na liturgia do Domingo de Ramos, todos os anos se faz a leitura de uma das narrativas da paixão de Jesus. Neste ano, temos a oportunidade de ler e refletir a partir do relato de Mateus. Pela sua extensão, a liturgia salta alguns versículos, propondo a leitura já a partir da traição de Judas, e terminando com o sepultamento: Mt 26,14–27,66; mesmo assim, a leitura proposta continua longa, totalizando 128 versículos; essa longa extensão, obviamente, nos impede de fazer um comentário mais pormenorizado. Por isso, procuraremos colher a mensagem global do texto e, na medida do possível, enfatizar os aspectos mais relevantes, destacando alguns detalhes que pertencem exclusivamente ao relato de Mateus.

Os relatos da paixão e morte de Jesus constituem o núcleo de base da redação dos evangelhos. Embora o nosso foco nesse ano seja especificamente o relato de Mateus, os aspectos introdutórios que abordaremos valem também para os demais evangelhos. Ora, as primeiras páginas escritas dos livros que hoje conhecemos como evangelhos foram exatamente as narrativas da paixão e morte de Jesus. Como a catequese e a vida litúrgica das primeiras comunidades giravam em torno do anúncio do Cristo Ressuscitado, aos poucos, surgiram muitas dúvidas a seu respeito. Essas dúvidas se traduziam em perguntas deste tipo: «Como Jesus viveu e morreu? Como foi a morte daquele que ressuscitou?». Diante de tais questionamentos, a primeira necessidade foi contar como se deu a morte de Jesus, pois só ressuscita quem passa pela morte. Logo, era necessário contar como Jesus morreu. Por isso, os relatos da paixão ganharam tanta importância nos primórdios do cristianismo.

Com as primeiras perseguições, tanto das autoridades romanas quanto dos líderes religiosos judeus, a morte se tornava cada vez mais presente nas comunidades, e o anúncio e a adesão ao nome de Jesus passava a ser sinal de perigo. Para quem não tinha convivido com Jesus, tornava-se cada vez mais difícil perseverar na fé, acreditar no seu nome e na sua ressurreição. Para animar e fortalecer uma comunidade ameaçada pela perseguição, nada mais adequado do que reconstruir a história da perseguição e morte de Jesus, enaltecendo sua fidelidade aos propósitos do Pai e sua resistência. E os evangelhos, enquanto livros, surgiram como resposta às dúvidas e crises vividas pelas primeiras comunidades. É claro que toda a vida de Jesus, desde o início, com a pregação do Batista, é edificante para as comunidades cristãs. Mas, a memória da sua paixão foi a primeira necessidade para dar credibilidade ao anúncio da ressurreição. Ao ler o relato da paixão, portanto, estamos lendo o ponto de partida do evangelho escrito.

Tendo acesso hoje aos textos inteiros dos evangelhos, nos casos de Mateus e Lucas desde o anúncio do nascimento de Jesus, percebemos que o relato da paixão que estamos lendo mostra a conclusão de uma vida que não poderia ter um fim diferente. Ora, desde o início, a mensagem de Jesus foi uma alternativa aos sistemas vigentes, político e religioso. Logo, o seu desfecho final foi o rechaço da parte desses sistemas. Durante toda a sua trajetória terrena, Jesus praticou e pregou o que a religião e o sistema político da época não aceitavam: o amor ao próximo, a justiça, o cuidado com os mais necessitados, a solidariedade, a acolhida às mulheres e excluídos em geral, e o bem acima de tudo. Uma vida marcada por estas características não poderia ter outro fim, senão a condenação e morte precoces pelos sistemas que não toleravam essa mensagem. É importante recordar que a cruz, a pior das penas aplicadas na época, não foi predestinação, nem acidente, mas consequência de uma trajetória marcada pelo inconformismo diante das atrocidades do sistema. Jesus não se adequou aos padrões de comportamento da época: não foi um cidadão exemplar, como exigia o poder romano, nem um devoto fiel, como exigia a religião judaica, pois sua obediência e fidelidade estava toda voltada para o Pai do céu, tendo em vista a construção do seu Reino na terra.

O relato é situado em Jerusalém, onde Jesus já se encontrava com seus discípulos para a celebração da Páscoa, a festa dos judeus por excelência. Ao entrar em Jerusalém, Jesus foi acolhido triunfantemente como o profeta de Nazaré da Galileia (Mt 21,1-11). Ali, desenvolveu o seu ministério por alguns dias em meio à tensões e conflitos com os comerciantes do tempo (Mt 21,12-14) com os grupos e autoridades religiosas, especialmente os fariseus, saduceus, sacerdotes e escribas (Mt 21,23-27,45; 22,23-33; 23,13-36), como preparação para o confronto final. Foi, portanto, na cidade santa que Jesus foi condenado, o que não lhe surpreendera, pois ele mesmo já tinha alertado: «Jerusalém, Jerusalém, que matas profetas e apedrejas os que te são enviados» (Mt 23,37a). Inclusive, ele mesmo tinha prevenido os seus discípulos com os três anúncios da paixão, que seria condenado e morto em Jerusalém, pelos sumos sacerdotes e escribas (Mt 16,21; 17,22-23; 20,17-19).

Assim, a morte trágica de Jesus, foi consequência de uma inteira existência marcada por uma opção radical pelas causas do seu Pai, a quem foi fiel e obediente até às últimas consequências. Durante seu ministério na Galileia, houve conflitos doutrinais com os fariseus e outros grupos; mas é em Jerusalém que as disputas passam do campo doutrinal para a esfera do poder. A Páscoa, como sabemos, é a festa em que os judeus faziam memória da libertação da escravidão do Egito, tinha como ponto alto a ceia pascal, na qual comia-se o cordeiro imolado, símbolo da festa. Ciente de que era a sua última, estando à mesa com os discípulos, Jesus mesmo se apresenta como cordeiro, doando a sua existência (Mt 26,26-30).

Como um relato edificante para a comunidade, a narrativa da paixão serve de alerta e denúncia, não apenas às autoridades que executaram Jesus, mas também às incoerências da comunidade. Por isso, recordamos um dado bastante negativo que, certamente, levou a comunidade do evangelista a refletir e ponderar quando sofria perseguição, que é a dispersão e abandono dos discípulos no momento da sua prisão: «Então, todos os discípulos, abandonando Jesus, fugiram» (Mt 26,56). Os discípulos ficam com medo e sentem-se frustrados ao perceber que o projeto de Jesus não corresponde às suas expectativas. São os mesmos que, no início do Evangelho, deixaram barco, família, redes e até coletoria de impostos para segui-lo (Mt 4,20.22; 9,9). Agora, é a Jesus que eles abandonam. É uma advertência à comunidade e, ao mesmo tempo, um consolo: deve haver resistência e força para não desistir, mas sendo composta de seres humanos, a comunidade será sempre passível de medos e incoerências.

O duplo julgamento de Jesus, um religioso e outro político, ou seja, diante do sinédrio (26,57-68) e de Pilatos (27,11-26), mostra a covardia e a hipocrisia da união das forças hostis quando tem um inimigo em comum, pois os poderes romano e judaico não se suportavam. O sinédrio, órgão jurídico máximo do judaísmo, o acusa de blasfêmia, e ao poder romano ele será denunciado como subversivo e agitador, alguém que pretende ser rei. Esses dois poderes estavam viciados na corrupção, no suborno e na mentira; mantinham um relacionamento de conveniência, tendo o povo pobre como alvo de suas cobiças. O movimento de Jesus surgiu como alternativa a tudo isso; logo, a repressão seria inevitável. Aqui, é importante recordar um detalhe: como a comunidade de Mateus vivia mais tensões com o judaísmo do que qualquer outra, ele enfatiza mais a culpa do sinédrio do que a do poder romano. Um dado do texto que enfatiza isso é o fato de ser somente o seu evangelho a mencionar Pilatos lavando as mãos, querendo, com isso, isentar-se de culpa pela condenação de Jesus (27,24).

A cruz é decretada como pena exemplar para Jesus (27,26.35). Em plena Páscoa, sua festa máxima, a religião oficial não hesita em ser conivente com a condenação de um inocente e justo. Os líderes religiosos, mais do que nunca, colocaram a Lei e a doutrina acima da vida. Não obstante tanto sofrimento, Jesus manteve-se firme em seus propósitos e na confiança no Pai. Não hesitou, mesmo não escondendo a sua humanidade. Gritou de dor, lamentou-se, mas não abriu mão de suas convicções (27,46-48). Em meio ao suplício e ao abandono dos seus, Jesus faz prevalecer as convicções de seguir até o fim. Aquele projeto de vida nova, com justiça, igualdade e amor sem distinção não poderia ser jogado fora de repente. O rosto amoroso do Pai que ele veio revelar não poderia ser escondido.

A cruz veio, portanto, como consequência de uma vida toda marcada pelo amor. E, nele, ao invés de ser simplesmente sinal de condenação, a cruz se tornou sinal de salvação e de reconhecimento do seu amor e de sua pertença a Deus. Na cruz, ele foi escarnecido e humilhado, mas também reconhecido em sua mais profunda identidade: «Ele era mesmo era o mesmo Filho de Deus!» (27,54). Essa é uma das afirmações mais profundas do texto, do Evangelho e de todo o Novo Testamento. Surpreende que essa declaração não saiu de nenhum discípulo, mas daqueles que executaram a pena: o oficial e os soldados. Isso é significativo em dois aspectos, principalmente: primeiro, porque é na morte de cruz que a identidade de Jesus é plenamente revelada; segundo, porque daquele momento em diante, todos, independentemente da etnia e da religião, puderam conhecer o rosto verdadeiro de Deus revelado no seu filho amado. Morrendo como homem condenado e humilhado ao extremo, Jesus revela sua identidade divina.

O reconhecimento do oficial e dos soldados é mencionado logo após o evangelista dizer que «a cortina do santuário rasgou-se de alto a baixo, em duas partes, a terra tremeu e as pedras se abriram» (27,51). O rasgar-se do véu do santuário é um dado comum aos três sinóticos (Mt 27,51; Mc 15,38; Lc 23,45); já o sucessivo terremoto, cuja descrição continua nos versículos seguintes (Mt 27,51-53), é exclusividade de Mateus. Esse dado simbólico significa a falência completa da religião e do sistema político que tinham acabado de matar Jesus. A cortina ou véu do santuário marcava a divisória do espaço sagrado do templo: somente os sacerdotes podiam ultrapassar a divisória demarcada pelo véu. Jesus, mesmo morrendo, mostra sua força; consegue abolir as divisões e rótulos impostos pela religião. De agora em diante, conhece a Deus quem segue o seu filho até as últimas consequências, quem vê na cruz instrumento de libertação e não mais quem frequenta o templo e pratica a Lei. A imagem do terremoto, exclusiva de Mateus, simboliza a instauração de uma nova ordem no mundo; significa a renovação completa da humanidade, compreendendo a destruição das antigas estruturas e o surgimento de um mundo novo, fundado no amor de Deus revelado por Jesus. A instauração do mundo novo, com uma nova ordem, implica a destruição do mundo antigo. Por isso, a imagem do terremoto é tão frequente na linguagem apocalíptica; evoca destruição, mas comporta muita esperança, pois tudo o que é destruído dá lugar a realidades novas, com um mundo renovado e humanizado pelo amor.

Não poderia passar despercebida a presença das mulheres, uma das categorias sociais que recebeu mais atenção de Jesus ao longo de todo o seu ministério. Elas são apresentadas neste relato como as testemunhas mais fiéis e perseverantes (27,55-56). Por causa disso, serão também as primeiras testemunhas da ressurreição. O exemplo das mulheres contrasta completamente com o exemplo dos discípulos homens: eles abandonaram Jesus e fugiram logo após a prisão (26,56). Por sinal, os últimos discípulos homens mencionados neste relato, até aqui, foram Pedro e Judas, mas como contraexemplo: Pedro pelas negações, saiu de cena chorando (26,69-75); Judas, pelo remorso da traição, terminou se enforcando (26,3-5). As mulheres, que também eram discípulas, com igual dignidade, perseveraram até o fim. É importante ressaltar a condição de discípulas: desde a Galiléia, elas seguiam Jesus (27,55). A presença perseverante delas na paixão é mencionada em todos os evangelhos, mas, entre os sinóticos, Mateus é único evangelista que recorda algumas delas por nome, dentre elas Maria Madalena. Recordar pelo nome é sinal de importância, quer dizer que elas não eram meras figurantes no discipulado de Jesus, mas eram protagonistas também. Os nomes das que foram recordadas simboliza a totalidade delas, de ontem e de hoje. A presença das mulheres na paixão indica perseverança, fidelidade e também reconhecimento por tudo o que Jesus tinha feito por elas. Ora, até então, nenhum líder popular religioso tinha acolhido tanto às mulheres, promovido a emancipação e as aceitado como discípulas. Jesus deu vez e voz às mulheres, por isso elas não desistiram dele em nenhum momento: resistiram ao drama da paixão, participaram do sepultamento e testemunharão a ressurreição em primeira mão.

Para o sepultamento, entra em cena um novo personagem, surpreendente até, José de Arimateia, membro do sinédrio. É interessante esse detalhe, pois o sinédrio tinha sido o principal responsável pela condenação de Jesus; porém, mesmo ali, naquela instituição, tinha pessoas boas. Aqui, recordamos mais um dado exclusivo de Mateus, o único evangelista que diz que José de Arimateia se tornou até discípulo de Jesus (Mt 27,57). Isso mostra que as generalizações são sempre perigosas; ninguém pode ser julgado apenas pelo grupo ou movimento ao qual pertence. E o papel de José de Arimateia é muito importante. Ele alivia o drama, dando sepultura digna para Jesus (27,57-61), quando era costume deixar os condenados pregados na cruz, sofrendo até morrer e, depois de mortos, ainda continuavam crucificados até serem devorados pelas aves de rapina. A cruz era uma pena tão cruel, que quem passava por ela não tinha direito sequer à sepultura; por isso, o local da crucifixão se chamava “lugar da caveira”, pois era um ossuário a céu aberto. O gesto de José de Arimateia é tão importante que vai repercutir na ressurreição: o sepulcro aberto será reconhecido como o primeiro sinal pascal.

Compreendendo a fidelidade com que Jesus abraçou o projeto de tornar o Reino de Deus acessível a todos, é possível perceber que a morte não é capaz de destruir a vida de quem se dedica dessa maneira ao bem de todos. Em meio ao suplício e ao abandono dos seus, Jesus faz prevalecer as convicções de seguir até o fim. Aquele projeto de vida nova, com justiça, igualdade e amor sem distinção não poderia ser jogado fora de repente. O rosto amoroso do Pai que ele veio revelar não poderia ser escondido. A cruz veio, portanto, como consequência de uma vida toda marcada pelo amor. E, nele, ao invés de ser simplesmente sinal de condenação, a cruz se tornou sinal de salvação e de reconhecimento do seu amor e de sua pertença a Deus.

 

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, março 25, 2023

REFLEXÃO PARA O 5º DOMINGO DA QUARESMA – JOÃO 11,1-45 (ANO A)

 


Com a liturgia deste quinto domingo da Quaresma, concluímos a sequência de três domingos de leitura de episódios exclusivos do Quarto Evangelho. O texto proposto hoje é o relato do sétimo e último sinal cumprido por Jesus nesse Evangelho: a ressurreição – reanimação – de Lázaro, seu amigo – Jo 11,1-45. Esse é um episódio muito significativo para toda a obra joanina, pois é a conclusão do ciclo dos sinais realizados por Jesus. É importante recordar que João não chama as obras extraordinárias de Jesus de milagres, mas de sinais. Como se trata de um texto de grande extensão, totalizando quarenta e cinco versículos, não analisaremos todos os versículos, mas procuramos colher a mensagem central e destacar apenas os versículos principais. Os sete sinais narrados por João foram criteriosamente escolhidos, como ele mesmo afirma no final do Evangelho, para despertar a fé em Jesus e transmitir a vida em plenitude que dessa emana (Jo 20,30-31), sendo esse da ressurreição de Lázaro o maior de todos. Por isso, é o sétimo, cuja número evoca perfeição, e prefigura a ressurreição do próprio Jesus, o sinal por excelência.

Logo de início, é importante recordar que o sinal realizado por Jesus neste episódio de Lázaro não é propriamente uma ressurreição, mas uma “reanimação” do corpo, considerando que ressurreição é a passagem da morte para uma vida definitiva e plena, graças à ressurreição de Cristo. O que João narra aqui é Jesus realizando a reanimação de um corpo que já se encontrava em estado de decomposição, foi recuperado, mas que continuou corruptível. A vida de Lázaro que Jesus recuperou continuou sendo uma vida limitada, sujeita à morte, mas ressignificada, obviamente. Jesus apenas prolongou os dias de Lázaro com esse sinal extraordinário. Lázaro voltou à vida, graças à intervenção de Jesus, mas morreu de novo. Esse não é o único milagre do gênero narrado na Bíblia. Ainda no Antigo Testamento, Elias e Eliseu realizaram prodígios semelhantes: Elias restituíra a vida ao filho da viúva de Sarepta (1Rs 17,17-24), e Eliseu fizera o mesmo com o filho da sunamita (2Rs 4,8-37). Nos demais evangelhos, temos outros dois episódios semelhantes: Jesus reanima o filho da viúva de Naim (Lc 7,11-17) e a filha de Jairo (Mc 5,22-43).

Ainda a nível de contextualização, é importante recordar o lugar que este episódio ocupa no conjunto do Quarto Evangelho. Conforme já afirmamos, trata-se do ápice dos sinais realizados por Jesus, inclusive, o fato de ser o sétimo sinal já indica a sua importância. Desde o primeiro sinal – mudança da água em vinho (Jo 2,1-11) – até o sexto – a cura do cego de nascença (Jo 9,1-41) – Jesus revelou sua condição de Messias e Filho de Deus com poder sobre a natureza e sobre certas dimensões da vida humana. Com o sétimo sinal, portanto, ele se revela como o Senhor da vida toda, aquele que tem poder sobre a morte. Além de ser o ponto alto do “livro dos sinais”, como convencionalmente é chamada a primeira parte do Evangelho de João (Jo 1–12), merece atenção a localização interna deste episódio da reanimação de Lázaro: está inserido entre duas ameaças de morte a Jesus da parte dos dirigentes ou chefes da religião oficial. Isso confirma uma certeza muito relevante: à morte, Jesus responde com o dom da vida. Ora, no capítulo anterior, por ocasião da festa da dedicação do templo, os judeus quiseram apedrejar Jesus, acusando-o de blasfemador (Jo 10,31-33), mas Ele conseguiu escapar e fugiu (10,39-40). Após restituir a vida de Lázaro, os chefes judeus, incluindo o Sumo Sacerdote, fizeram o plano definitivo para o aniquilamento de Jesus, pois Ele tinha ido longe demais dessa vez (Jo 11,46-54). Portanto, em meio a duas situações de morte, Jesus manifesta a vida e a apresenta como resposta a toda e qualquer situação em que essa é ameaçada.

Olhemos então para o texto, partindo do primeiro versículo: «Havia um doente, Lázaro, de Betânia, povoado de Maria e de sua irmã Marta» (v. 1). O evangelista apresenta Betânia, cujo nome significa “casa da aflição”, como o espaço de uma comunidade cristã ideal, onde a fraternidade, de fato, reinava. Essa fraternidade é evidenciada pela apresentação que o evangelista faz de seus membros: Lázaro, Maria e Marta são apresentados apenas como irmãos, não há hierarquia entre eles, não há pai nem mãe, marido ou esposa, mas apenas pessoas irmão e irmãs, ou seja, pessoas iguais; essa é a comunidade ideal para o cultivo do amor e das relações fraternas e sinceras. O único laço que une os membros da comunidade é a fraternidade. Um dos membros da comunidade estava doente, por causa disso, toda a comunidade estava abalada, como se vê pelo desespero das irmãs, mais adiante. Por sinal, o desespero das irmãs diante da doença e da morte, injustificável do ponto de vista teológico, como o próprio Jesus irá corrigi-las, era bastante compreensível a nível econômico e social, pois, sendo Lázaro o único homem na família, e considerando o contexto patriarcal daquela sociedade, a sua morte era uma ameaça também à vida das duas irmãs.

Apesar de desesperadas diante da situação, as irmãs sabiam com quem contar, e isso é um sinal positivo. Não era um desespero total, pois havia sinais de esperança. Elas tinham confiança em Jesus, sabiam que ele poderia fazer algo por elas e, sobretudo, por Lázaro, a quem ele amava. Na verdade, Jesus amava toda a família (v. 5). Por isso, elas mandaram dizer a Jesus o que se passava na família: «Senhor, aquele que amas, está doente» (v. 3). Sentir-se amado ou amada por Jesus é condição indispensável para fazer parte da sua comunidade, do seu discipulado. A família de Betânia tinha essa consciência. E isso faz toda a diferença, pois gera confiança. As irmãs não se dirigiram a Jesus como um estranho, mas como alguém próximo, um amigo íntimo com que se pode contar sempre, principalmente nas horas mais difíceis. O desenrolar do relato mostra que as irmãs tinham muito a ser corrigido em relação à fé e à compreensão do poder de Jesus, em relação à própria vida, com seus limites em potencialidades. Mas elas tem muito também a ensinar, até hoje, sobretudo, na maneira de se relacionar com Jesus, tendo-o como um pessoa próxima, acessível, humana, enfim, como um companheiro, embora seja Senhor e Filho de Deus.

Ao recado das irmãs, Jesus reage com uma naturalidade tão grande, que beira à indiferença (vv. 4.6). Tudo o que ele deseja ensinar às irmãs de Lázaro e aos seus discípulos de todos os tempos é que a morte não tem a última palavra e, por isso, não se deve viver em função dela. Por isso, ele permaneceu mais dois dias no local onde se encontrava, após receber o recado (v. 6). Finalmente, Jesus tomou a decisão de ir ao encontro dos amigos de Betânia, que ficava na Judeia, convocando seus discípulos a irem com ele: «Vamos de novo à Judeia» (v. 7b). Naquele momento, ele se encontrava no outro lado do rio Jordão, praticamente escondido, devido à última ameaça de morte sofrida (Jo 10,39-40). A decisão de ir de novo à Judeia, mais do que um deslocamento, significa, portanto, a decisão corajosa de enfrentar a morte, entregando a vida. Por isso, houve resistência nos discípulos, o que ocasionou um diálogo com eles (vv. 8-16). Nesse diálogo, os discípulos demonstraram mais incompreensão do que as próprias irmãs de Lázaro. Sobressai-se, entre eles, a figura de Tomé que, mesmo não compreendendo ainda o sentido da passagem da morte à vida, pelo menos demonstrou mais coragem do que os demais, ao afirmar: «Vamos nós também para morrermos com ele» (v. 16b). Nenhum dos discípulos aceitava a entrega da vida por amor. Tomé compreendia essa entrega como um mero ato de heroísmo, os outros nem desse modo concebiam. Neste sentido, a morte de Lázaro é uma preparação para a morte de Jesus, assim como a sua reanimação prefigura a ressurreição de Jesus. A reanimação de Lázaro foi uma vitória parcial sobre a morte, enquanto a ressurreição de Jesus foi a vitória definitiva.

Tendo tomado a decisão de ir ao encontro da família amiga de Betânia, dois dias após receber o recado, quando Jesus chegou ao destino já fazia quatro dias que Lázaro tinha sido sepultado (v. 17). Parece que Jesus foi o último amigo a ir ao encontro da família. Inclusive, os judeus de Jerusalém tinham ido consolar as irmãs. Mas a chegada de Jesus junto às irmãs enlutadas já no quarto dia foi proposital: Ele tinha consciência do que deveria fazer e já tinha expressado isso aos discípulos mais próximos: «o nosso amigo Lázaro dorme» (v. 11). A chegada após quatro dias tinha como objetivo desmascarar uma falsa crença judaica de que até três dias após a morte, ainda era possível que o defunto voltasse a viver, pois acreditava-se que o espírito do morto ainda sobrevoava ao redor do cadáver. A partir do quarto dia, começava a decomposição e, portanto, o espírito ia embora. Realizando o sinal até o terceiro dia, a «glória do Filho de Deus» não seria manifestada, pois os presentes reconheceriam como algo natural, conforme a crença. Jesus foi ao encontro da família amiga porque amava e não abandona sua comunidade na aflição.

Ao saber da chegada de Jesus, Marta foi ao seu encontro, enquanto Maria ficou sentada em casa (v. 20), duas atitudes diferentes que refletem um pouco o comportamento das duas no Evangelho de Lucas (Lc 10,38-42). Com as duas, abre-se um novo diálogo, também bastante revelador da identidade de Jesus e da sua visão sobre a morte e a vida. Em momentos diferentes, as duas irmãs começam lamentando o fato de Jesus não ter chegado antes, pois acreditavam que Lázaro não teria morrido, se ele tivesse chegada em tempo (vv. 21.32). É um lamento em forma de desabafo e de reprovação ao comportamento lento de Jesus, na perspectiva delas. Assim, como fizera um pouco antes com os discípulos, Jesus aproveita o diálogo com as irmãs enlutadas para catequiza-las sobre o triunfo da vida sobre a morte e sobre toda forma de mal. Antes de tudo, Jesus garante a vida: «Teu irmão ressuscitará» (v. 23). Embora seja uma garantia, não é fácil de assimilar, sobretudo, no momento de dor, como era a situação das irmãs naquelas circunstâncias. E elas tinham a fé judaica na ressurreição no final dos tempos, no último dia (v. 24), mas naquele momento pouca importância tinha, pois, a dor era mais forte; essa era uma afirmação doutrinal, defendida pelos fariseus, inclusive, mas na aflição causada pela morte, pouco peso tem a doutrina; o que importa é a vida e a presença de quem realmente pode comunicar vida, como Jesus (v. 24). E é exatamente como ressurreição e vida que Jesus se apresenta à Marta (v. 25).

Mesmo sem compreender e sem ter a dor aliviada, ainda, Marta demonstrou confiança e fé em Jesus, reconhecendo-o como o Cristo, o Filho de Deus (v. 27). Trata-se de uma das confissões de fé mais profundas do Evangelho de João e muito significativa, pois é feita antes mesmo da realização do sinal. Lázaro continua no túmulo, já cheirando mal, e Marta reconhece quem Jesus é. Jesus antecipou para Marta a catequese do seu último discurso diante dos discípulos, na última ceia, e ela já se convence ali mesmo, antes do sinal realizado. Os discípulos terão muito mais dificuldade de assimilação; após o longo discurso de despedida, na última ceia, eles ainda recuarão, seja negando, seja traindo. Desde a primeira – a mãe –, as mulheres se antecipam sempre no reconhecimento da messianidade de Jesus, por isso são modelos para o discipulado. Também Maria, a outra irmã, foi ao encontro de Jesus (v. 32). Diante das duas irmãs, Jesus revela sua profunda humanidade, ficando abalado interiormente, ou seja, comovido (v. 33), e também chorando (v. 35). Essa é a única vez que um evangelista diz que Jesus literalmente chorou. Quer dizer que Jesus participa e experimenta plenamente as dores e lágrimas da humanidade sofredora. Fazendo-se humano, ele age humanamente, para revelar plenamente a glória de Deus. Porém, o choro de Jesus não é desesperado; é um choro de dor, sim, pois é consequência de um amor incondicional pela humanidade. Ele experimentou a dor da perda de uma pessoa querida, sendo ao mesmo tempo solidário com quem mais sentiria as consequências daquela perda: as irmãs Marta e Maria. O choro de Jesus aqui simboliza o choro de Deus por todo tipo de morte. O Deus da vida não evita a morte, mas chora quando a vida é destruída. Mesmo que a morte de Lázaro tenha sido “natural”, conforme a dinâmica narrativa do texto, ela serve de catequese para o evangelista mostrar o quanto a vida deve ser valorizada e vivida intensamente.

Comovido, envolvido completamente na situação, Jesus age em favor da vida do seu amigo Lázaro e de todas as pessoas. Na dor da perda causada pela morte, ele manifesta, paradoxalmente, a glória de Deus, e ordena que Lázaro saia: «Lázaro, vem para fora!» (v. 43). Mas, antes de ordenar que Lázaro saísse, ele ordenara aos presentes que retirassem a pedra que fechava o sepulcro. Quem tem o poder sobre a vida é Deus, e a vida de Jesus foi a maior demonstração disso. Mas ele quer que nos interessemos pela vida dos outros, tirando as pedras que sufocam, fecham, bloqueiam o florescimento da vida. É Deus quem dá a vida, mas precisamos remover os obstáculos que impedem a vida de florescer. E a último imperativo é ainda mais decisivo: «Desatai-o e deixai-o caminhar!» (v. 44c). Ora, Lázaro tinha saído vivo do sepulcro, mas ainda com sinais de morte que o impediam de caminhar, como as faixas que enrolavam seu corpo. A vida com sentido passa pela liberdade, por isso, as últimas palavras de Jesus no texto visam a libertação e o mover-se. Desatar significa tirar os sinais de morte, deixar caminha significa a liberdade e o ser sujeito da própria história, com dignidade.

O texto em seu conjunto, é uma catequese sobre a vida e a ressurreição, que visava a preparação de catecúmenos para o batismo na vigília pascal. Ente e a vida e a ressurreição, obviamente, aparece a morte, como parêntese. É uma realidade que precisa ser ressignificada à luz da vitória definitiva de Jesus sobre ela, com a ressurreição. A reanimação de Lázaro, portanto, enquanto sinal, não é uma demonstração espetacular do poder de Jesus, mas uma catequese sobre a vida. Por isso, é um convite a retirar as pedras que ofuscam o florescimento da vida e a desatar as amarras que impedem o ser humano de viver com liberdade e dignidade. É uma demonstração clara de que a glória de Deus é que o ser humano viva.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sexta-feira, março 17, 2023

REFLEXÃO PARA O 4º DOMINGO DA QUARESMA – JOÃO 9,1-41 (ANO A)


Na liturgia deste quarto domingo da Quaresma, continuamos a sequência da leitura de textos do Quarto Evangelho, iniciada no domingo passado com o episódio do encontro de Jesus com a mulher samaritana. Para hoje, é proposta a leitura do relato da cura do cego de nascença (Jo 9,1-41), um episódio exclusivo do Evangelho segundo João, e detentor de uma grande riqueza literária e teológica. Convém recordar que os evangelhos sinóticos também trazem relatos de cura de cegos (Mt 12,22-23; Mc 8,22-26; 10,46-52; Lc 18,35-43), mas em nenhum deles há uma riqueza de detalhes tão grande como este de João. Pela extensão do texto, quarenta e um versículos, não comentaremos versículo por versículo, mas procuraremos colher a mensagem central e enfatizar alguns aspectos e trechos mais importantes.

Antes de adentrarmos diretamente no conteúdo do texto, é importante fazer uma breve contextualização. O cenário do relato é a cidade de Jerusalém. Ora, Jesus tinha ido à “cidade santa” para a festa das tendas (Jo 7,1-2.14), uma das três grandes festas de peregrinação dos judeus, juntamente com a Páscoa e Pentecostes; foi com receio, certamente, uma vez que já estava “jurado de morte” (cf. Jo 7,1) pelas autoridades judaicas, devido à fama que se tinha propagado em decorrências de sua mensagem e, principalmente, por causa dos sinais que estava cumprindo. Por falar em sinais, a cura do cego de nascença, relatada no evangelho de hoje, é o sexto dos sete sinais que Jesus realiza no Quarto Evangelho, a saber: 1) a mudança da água em vinho – Jo 2,1-12; 2) a cura do funcionário real – Jo 4,46-54; 3) a cura do enfermo (paralítico) de Betesda – Jo 5,1-18; 4) a multiplicação dos pães – Jo 6,1-15; 5) a caminhada sobre o mar – Jo 6,16-21; 6) a cura do cego de nascença – Jo 9,1-41; 7) a ressurreição de Lázaro (reanimação) – Jo 11,1-44.

Ao realizar os sinais, Jesus manifestava a glória de Deus, ganhava adesão ao seu projeto e confirmava ser o Cristo, o Filho de Deus (cf. Jo 2,1; 21,30-31). Com isso, o poder religioso o via cada vez mais como uma ameaça e, por isso, queria eliminá-lo. Os sinais de Jesus mostravam que Deus não se deixava manipular pela instituição religiosa. As autoridades religiosas viam desmoronar seus poderes e privilégios; queriam eliminar Jesus porque ele era uma pessoa perigosa para o sistema. Durante a festa das tendas, Ele tinha passado dos limites ao se autoproclamar a “luz do mundo” (cf. Jo 8,12) e o “Filho eterno do Pai” (cf. 8,54-58). Por essa sua ousadia, as autoridades religiosas o consideraram “um samaritano e endemoniado” (cf. Jo 8,48) e, por isso, queriam apedrejá-lo. É, portanto, recordando o último versículo do capítulo anterior que devemos ler o texto de hoje: «Eles pegaram, então, pedras para atirar em Jesus. Mas Jesus se escondeu e saiu do templo» (Jo 8,59).

Uma vez contextualizados, voltemos a atenção para o texto de hoje, o qual começa assim: «Ao passar, Jesus viu um homem cego de nascença» (v. 1). Mesmo apressado, pois estava fugindo da tentativa de apedrejamento, Jesus vê a necessidade do outro e age com solidariedade e compaixão. Ele não fica indiferente a nenhuma situação em que uma pessoa humana não esteja vivendo com dignidade. Sua missão humanizante tinha primazia sobre tudo. Para a mentalidade da época, todo o tipo de doença e deficiência era sinal de maldição e castigo, pois tudo isso era considerado consequência do pecado, ou da pessoa mesmo ou dos antepassados. Acreditava-se também que uma criança pudesse pecar ainda no ventre materno. Inclusive, os próprios discípulos de Jesus comungavam dessa mentalidade: «Os discípulos perguntaram a Jesus: ‘Mestre, quem pecou para que nascesse cego: ele ou os seus pais?’» (v. 2). A cegueira se destacava entre todas as deficiências, pois impedia que a pessoa pudesse estudar e conhecer a Lei. Teologicamente, a cegueira era pior até do que a lepra. Ora, o leproso devia isolar-se completamente da sociedade, mas devido às aparências e a exposição das feridas; porém, um leproso poderia ter conhecido a Lei antes de contrair a lepra; já um cego de nascença, não. Como o homem visto por Jesus era cego de nascença, significa que ele nunca tinha tido contado com a Lei, portanto, era um condenado; não vivia, mas apenas vegetava, mesmo não sendo necessário o isolamento do convívio social, por não ter feridas expostas, como os leprosos.

É claro que Jesus não concordava com a mentalidade vigente. Por isso, corrige seus discípulos e expressa a sua pressa em sanar a situação de marginalização vivida pelo homem cego (vv. 3-4). A cegueira não é vontade de Deus e nem punição a possíveis pecados cometidos. Também não é condição para que a glória de Deus se manifeste, como poderia ser interpretada sua afirmação no v. 3. No entanto, onde a vida é escassa, quer dizer, onde a criação não encontrou sua plenitude, há espaço para que a glória de Deus se manifeste sanando a deficiência. Para isso, é necessário que toda a comunidade participe, juntando forças. Por isso, Jesus compartilha com os discípulos a sua responsabilidade de trabalhar para realizar as obras do Pai que o enviou (v. 4), aprimorando a criação. E isso deve ser feito com urgência, ou seja, «enquanto é dia» (v. 4). Considerando que seus dias estavam praticamente contados, depois de tantas ameaças, já não havia mais tempo a perder. A «chegada da noite» (v. 4) significa a sua morte que se tornava cada vez mais próxima. Quando está em questão a liberdade e a dignidade do ser humano, os discípulos de Jesus devem agir com pressa, como Ele mesmo agia, mesmo tendo de contrariar códigos e regras morais, sejam civis ou religiosos.

Destaca-se neste episódio, especialmente, a bondade e a compaixão de Jesus: o cego não pede nada, não lhe faz nenhuma súplica, ao contrário de outras curas em que as pessoas necessitadas lhe suplicam a cura. Para João, o olhar de Jesus já é suficiente para perceber a necessidade do outro, sentir compaixão e intervir, como faz aqui: «Jesus cuspiu no chão, fez lama com a saliva e colocou-a sobre os olhos do cego, e disse-lhe: ‘Vai lavar-te na piscina de Siloé’ (que quer dizer: enviado). O cego foi, lavou-se e voltou enxergando» (vv. 6-7). O gesto de cuspir no chão e fazer lama com a saliva é carregado de um forte simbolismo: o barro alude à criação, é a matéria-prima do ser humano, conforme a mentalidade bíblica. De acordo com essa mesma mentalidade, a saliva é gerada pelo hálito, e esse é o sopro, o espírito. Com isso, o evangelista quer dizer que Jesus repete o gesto criador de Deus (cf. Gn 2,7), ou seja, aperfeiçoa a criação do Pai. O homem que até então vegetava, passou a viver de verdade a partir do encontro com Jesus que lhe deu vida. A ordem para o homem lavar-se na piscina de Siloé significa a participação e a responsabilidade humana na criação e na salvação. Deus não quer o ser humano passivo, mas participante ativo de sua obra. Como «luz do mundo» (v. 5), Jesus aponta o caminho e quem o segue encontra a luz, como o cego «voltou enxergando» da piscina ao cumprir a sua ordem. Quem segue a palavra de Jesus encontra luz e sentido para a vida. Ao ir à piscina, conforme a ordem de Jesus, o cego demonstrou adesão ao Evangelho; por isso, passou a enxergar. O relato poderia ser encerrado aqui, mas o evangelista pretende muito mais.

Entre aqueles que conheciam o cego, o espanto é geral: ao invés de um homem miserável e considerado amaldiçoado, eles passam a ver um homem novo, restaurado e íntegro (vv. 8-12). A admiração começa entre os vizinhos, passa pelos que o viam mendigando, até chegar nos fariseus e autoridades religiosas. O motivo de tamanho espanto é compreensível, considerando a afirmação do próprio homem ao defender-se das acusações: «Jamais se ouviu dizer que alguém tenha aberto os olhos a um cego de nascença» (v. 32). De fato, em toda a Bíblia, não há registro de nenhum outro milagre de um cego de nascença. Há curas de cegos, sim, mas não com essa indicação. Os fariseus, como representantes do sistema de dominação, reagem com rigor e até com violência, porque vêem que a luz de Deus, que eles e todo o sistema ofuscavam, brilha em Jesus e em quem cumpre a sua palavra. A face de Deus, que a religião tinha ofuscado e transformado em mercadoria, é restituída gratuitamente ao povo por Jesus. Por isso, inconformados, os líderes religiosos judeus submetem o homem curado a um longo interrogatório, sem aceitar nenhuma das respostas. E, tudo isso, por causa da rejeição a Jesus e o medo que o seu projeto libertador representava para as elites.

O fato de Jesus ter curado em dia de sábado já era, por si só, motivo de escândalo, ainda mais da forma como fez: «era sábado, o dia em que Jesus tinha feito lama e aberto os olhos do cego» (v. 14). Ao tocar na terra para fazer lama, Jesus realizou um trabalho braçal em dia de sábado, um pecado abominável para os judeus. Esse foi o principal motivo do cerco contra o homem e contra o próprio Jesus. Os judeus consideravam o mandamento do sábado como o maior de todos, pois é o único que até mesmo Deus observou (cf. Ex 20,110); era assim que eles ensinavam sobre a sacralidade do sábado. Com isso, eles passaram a ter ainda mais motivos para rejeitar Jesus e o seu programa. É importante recordar que João usa o termo “judeus” referindo-se às autoridades religiosas, e não a todo o povo. Neste episódio ele varia entre judeus e fariseus (vv. 13; 15; 16; 18; 22; 24; 34; 40), mas sempre em referência às lideranças, e não a todo o povo.

O ex-cego é literalmente encurralado pelos líderes religiosos porque deixou de ser um dominado; tornou-se um sujeito autônomo, um homem livre. A situação chega ao ponto de ser necessário o depoimento dos seus pais (vv. 18-23). Com medo da repressão, os pais passam a responsabilidade para o filho: é ele quem tem que responder por seus atos (v. 21). Reconhecendo-se incapazes de convencer com argumentos e testemunho, os chefes judeus apelam para a violência, como acontece com todos os sistemas opressores. Por isso, «expulsaram-no da comunidade» (v. 34b), ou seja, o baniram da sinagoga. É a religião agindo com tirania, banindo a vida, ao invés de protegê-la. É claro que não havia espaço para Jesus e seu projeto libertador numa religião como aquela. Na verdade, esse conflito reflete o ambiente das comunidades joaninas, e não propriamente o tempo de Jesus. Escrito no final dos anos 90 d.C., o Evangelho segundo João testemunha a separação das comunidades cristãs da sinagoga. Os cristãos foram, de fato, expulsos da sinagoga ao declararem Jesus como o Messias (v. 22). E esse episódio foi a melhor oportunidade que João encontrou para retratar essa realidade, uma vez que «dar vista aos cegos» era um dos principais sinais messiânicos anunciados pelos profetas (cf. Is 29,18; 42,7).

Jesus se manifesta novamente, ao saber que o homem tinha sido expulso da comunidade sinagogal e vem ao seu encontro (v. 35). Embora a versão litúrgica afirme que Jesus «encontrou» o homem, a tradução correta seria «foi encontrá-lo» (v. 35), o que significa que Jesus foi procurá-lo, saiu em busca do homem. Como sempre, Jesus resgata o que a religião descartou. A religião exclui e Jesus inclui; os sistemas dominantes separam e Jesus junta; a religião do templo oprime e Jesus liberta, humaniza. No final da discussão, Jesus mostra a grande inversão de valores e de papéis: os verdadeiros cegos são os fundamentalistas que, apegados à Lei e aos mais diversos códigos de conduta, sufocam a vida do ser humano, privando-o da liberdade e da dignidade. Para esse tipo de cegueira, não há justificativa (v. 41).

Assim como João escreveu pensando na sua comunidade, também devemos pensar nas comunidades de atualmente: se essas não promovem a vida e a liberdade do ser humano, estão distantes da proposta de Jesus. Se prevalece a norma sobre a caridade, o Evangelho é esquecido. Se o conhecimento continua concentrado em um pequeno grupo que controla tudo, está mais para a sinagoga do que para a comunidade cristã. Se há imposição de ideias, decisões e normas, continua-se a gerar cegos, ao invés de pessoas conscientes e iluminadas.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, março 11, 2023

REFLEXÃO PARA O 3º DOMINGO DA QUARESMA – JOÃO 4,5-42 (ANO A)



Com a liturgia de hoje, abre-se uma sequência de três domingos de leitura de textos do Evangelho de João. Para este domingo, o primeiro da série e o terceiro da Quaresma, o texto proposto é Jo 4,5-42, o relato do episódio do encontro e o diálogo de Jesus com a mulher samaritana, um episódio exclusivo do Quarto Evangelho. Trata-se de um dos textos mais ricos de todo o Novo Testamento, tanto do ponto de vista literário quanto teológico, considerado a obra-prima de João. Devido à sua extensão, não o comentaremos versículo por versículo; procuraremos colher a mensagem central, destacando apenas alguns versículos e dados particulares mais significativos. É um texto que corresponde muito bem aos propósitos da Quaresma, enquanto itinerário catequético e processo de descobrimento da identidade de Jesus para dar-lhe adesão decidida e convicta. Nesse texto, o evangelista João mostra, mais do que nunca, o quanto o encontro com Jesus humaniza e liberta as pessoas.

Como sempre, é imprescindível recordar o contexto, tanto literário quanto histórico, para chegarmos a uma compreensão mais adequada do texto. Do ponto de vista literário, convém recordar que o episódio contado no texto faz parte de uma série de acontecimentos importantes do início do ministério de Jesus no contexto do Quarto Evangelho, desde as bodas de Caná (Jo 2,1-22), passando pelo desmascaramento do templo, transformado em casa de comércio (Jo 2,13-21), até o encontro noturno com Nicodemos, um judeu ilustre e reto (Jo 3,1-30), culminando com o encontro, em plena luz do dia, com uma mulher sem reputação, como era aquela samaritana (Jo 4,1-42), que corresponde ao evangelho de hoje. Este episódio, portanto, é o coroamento de uma sequência de eventos significativos do Evangelho de João que visam revelar a identidade de Jesus enquanto Filho de Deus e Messias. Não pode passar despercebido o fato que essa série de eventos começa e termina tendo uma mulher como principal interlocutora de Jesus: a mãe, em Caná, e a samaritana, na Samaria. Em nenhum dos casos o nome da mulher é mencionado, porque em ambas as situações ela é personificação da comunidade, tanto num estágio já de maturidade na fé – a mãe, nas bodas de Caná – quanto num processo ainda de descoberta – o caso da samaritana.

A nível de contexto histórico, é importante recordar a rivalidade que havia entre judeus e samaritanos, como o próprio texto menciona: “De fato, os judeus não se dão com os samaritanos” (v. 9b). Essa rivalidade teve a sua origem com o cisma que dividiu o único reino de Israel em dois, ficando Samaria como capital do reino do Norte, e Jerusalém como capital do reino do Sul. Após o cisma, Jeroboão I, o primeiro rei de Israel do Norte, construiu vários santuários em seu reino, para competir com o culto do templo de Jerusalém, inclusive, proibindo que sua população se dirigisse a Jerusalém para participar das liturgias do grande templo. O culto praticado nestes santuários era, obviamente, considerado ilegítimo pelos judeus. Essa ilegitimidade se acentuou ainda mais após a invasão assíria em 722 a.C.. Ora, além de deportar parte da população local, a Assíria levou povos de suas outras colônias para repovoar a Samaria e todo o reino do Norte, constituindo assim um povo mestiço, plural e sincrético. Os povos estrangeiros levaram seus costumes e tradições para a Samaria, juntamente com suas diversas práticas cultuais (cf. 2Rs 17,24-28). Tudo isso levou os judeus a considerarem os samaritanos como impuros e heréticos. É, portanto, considerando este contexto que devemos ler o evangelho de hoje. E Jesus veio para superar esse abismo histórico-ideológico, quebrando as barreiras, abrindo comunicação, ao revelar o verdadeiro rosto de Deus.

O texto começa afirmando que “Jesus chegou a uma cidade da Samaria, chamada Sicar, perto do poço que Jacó tinha dado ao seu filho José” (v. 5). A recordação dos patriarcas em si, já é sinal de que se trata de um local importante para o povo de Israel. É um lugar que representativo, com significado expressivo para a fé do povo. O poço possui uma rica simbologia na Bíblia; é o lugar do encontro e da renovação das forças, símbolo de vida fecunda e transformação. E o evangelista acrescenta uma informação muito importante sobre o estado em que Jesus se encontrava, para enfatizar ainda mais a importância do poço no contexto do episódio: Jesus estava “cansado da viagem” (v. 6b). Essa é a única vez que um evangelista retrata explicitamente o cansaço de Jesus, o que João faz empregando o termo grego “kekopiakos” (κεκοπιακώς) para cansado. É um dado relevante pois expressa a humanidade de Jesus em sua dimensão mais profunda: um homem cansado e sedento, embora portador de uma água viva, que ao final do episódio será reconhecido como o salvador do mundo (v. 42). Cansado e sedento, Jesus não tem medo de pedir ajuda nem de relacionar-se com as pessoas, mesmo as sem reputação, que a sociedade da época excluía. Por isso, pede de beber a uma mulher samaritana que também se encontrava no poço (v. 7), demonstrando que não estava condicionado às barreiras impostas pela sociedade e a religião. Para os padrões da época, não era aconselhável para um homem conversar com uma mulher sozinha, ainda mais com uma mulher samaritana, personagem duplamente marginalizada: primeiro, por ser mulher, numa sociedade patriarcal; segundo, por ser samaritana, uma raça de gente desprezível, como os judeus consideravam.

A sede de Jesus indica sua mais intensa humanidade. E mais: numa terra quente, em pleno meio-dia, a sede é também sinal de fragilidade, impotência. A princípio, parece ser mais pretexto para abrir um diálogo transformador com aquela mulher, como ele mesmo revela que tinha uma água viva para dar, mas é acima de tudo uma demonstração da sua humanidade (v. 10). Com isso, o evangelista revela a harmonia entre o humano e o divino na pessoa de Jesus: o homem que sente sede e pede água é o mesmo que possui uma água viva, capaz de saciar eternamente. É um paradoxo desconcertante que o evangelista João mostra com uma habilidade brilhante. À medida em que o diálogo flui, a mulher chega a reconhecer Jesus como portador de um dom de Deus, a ponto de pedir-lhe da sua água viva: “Senhor, dá-me dessa água para que eu não tenha mais sede e nem tenha de vir até aqui para tirá-la” (v. 15). Quanto mais o diálogo se estende, mais Jesus ganha a confiança da mulher, levando-a à sinceridade, inclusive, reconhecendo a ilegitimidade de sua união com um esposo ilegítimo, o sexto marido, o que é imagem das diversas divindades com as quais a Samaria já entrou em relação (vv. 16-18). De fato, entre os cinco maridos anteriores daquela mulher e o da época do encontro com Jesus, os estudiosos identificam a idolatria da Samaria, associando os países dominantes e as divindades adoradas. Revelando sua identidade pecadora, a mulher demonstra também o desejo de conversão, embora a religião não lhe seja favorável, causando-lhe confusão acerca da verdadeira adoração; ela não sabe onde e nem como prestar o culto verdadeiro (vv. 19-20). Jesus se interessa cada vez mais pela causa da mulher samaritana, como se interessa pela causa de toda pessoa marginalizada; declara que não importa o lugar do culto, mas a qualidade (vv. 21-24).

Independentemente do lugar de culto que frequentasse, aquela mulher seria vítima de preconceitos e discriminações. Consciente disso, Jesus lhe indica o culto verdadeiro: a “adoração em espírito e verdade” (v. 24). Ao contrário do que muitas interpretações afirmam, essa adoração não significa um culto intimista, pessoal e sincero, mas sim um culto ao Pai que passe pelo Espírito Santo e pelo próprio Jesus, e culmina em obras de amor. O “Espírito”, aqui, é o dom de Deus, a água viva que Jesus possui e a destina à toda a humanidade, é o mesmo Espírito que ele, ressuscitado, soprará sobre os discípulos; a “verdade” é a sua própria pessoa enquanto plenitude da revelação, ou seja, de tudo o que o Pai tem a dizer à humanidade inteira. A adoração em Espírito e em verdade, portanto, é a relação nova que se inaugura entre Deus e a humanidade: não mais intermediada pela Lei e nem pelos sacerdotes dos templos, mas pelo Espírito Santo e Jesus. Esse culto é acessível a todas as pessoas, de todos os tempos e lugares, e terá como sinal de autenticidade as obras de amor geradas a partir dele.

Enquanto a mulher samaritana dava adesão a Jesus, por meio do diálogo fluente, os discípulos que já conviviam com ele há mais tempo continuavam presos à mentalidade antiga, certamente imposta pela religião, por isso, se admiraram com sua atitude dele falar com uma mulher (v. 27). Por sinal, o diálogo é a principal chave de leitura deste episódio e de toda mensagem e vida de Jesus. Enquanto Palavra eterna (Jo 1,1-18), ele veio ao mundo para o Pai dialogar com a humanidade de modo transparente, claro. E ele demonstrou isso com sua práxis, da qual o evangelho de hoje pode ser considerado uma síntese. Os discípulos ainda estavam condicionados aos preceitos da Lei e fechados ao Espírito. Andavam com Jesus, mas não tinham ainda sido saciados pela água viva que ele tinha a oferecer, certamente porque não tinham ainda tanta disponibilidade para dialogar, pois só conhece Jesus quem dialoga com ele. A samaritana dialogou, por isso conheceu e se transformou. Convicta de ter encontrado sentido para a sua vida no encontro com Jesus, a mulher toma uma atitude decisiva e fundamental: “deixou o seu cântaro e foi à cidade” (v. 28) para anunciar a experiência vivida. Deixar o cântaro significa abandonar a Lei para aderir ao Espírito e ao programa de vida de Jesus. É a passagem ao discipulado; de mulher rejeitada e excluída, ela se tornou discípula e anunciou, convidando os demais a fazerem a mesma experiência que ela tinha acabado de fazer, convencendo toda a cidade a buscarem o mesmo (v. 28-30). A fé autêntica e verdadeira é contagiante, inevitavelmente se espalha. É importante recordar que em momento algum Jesus a repreendeu pelos erros passados; levou-a a reconhecer quantos maridos teve, porém, sem incriminá-la; o resultado foi uma conversão autêntica, o que os discípulos pareciam ainda não ter experimentado, como dá a entender pela sutil advertência que Jesus lhes faz com uma pequena parábola da colheita (vv. 34-38). A colheita abundante é a fé dos samaritanos, a adesão dos que estavam distantes, confirmando que Jesus rompe barreiras e todos os muros de separação, religiosos e ideológicos, para quem se deixa encantar pela sua pessoa e a sua mensagem.

O desfecho da história é uma grande adesão causada, inicialmente, pelo testemunho da mulher (v. 39) e, em seguida, pela experiência pessoal que cada um fez (v. 42), culminando com o reconhecimento de Jesus como o Salvador do mundo. Os judeus esperavam um messias nacionalista, restaurador do reino de Israel; os samaritanos reconhecem Jesus como Salvador do mundo. São duas visões bem diferentes entre si, que revelam as diferenças entre quem permanece preso aos preceitos da Lei, sem coragem de abandonar o cântaro, ou seja, de mudar de vida, e quem reconhece a necessidade de beber da água viva que Jesus doa. Enquanto o cântaro da Lei aprisiona, a água viva que Jesus doa liberta e sacia. Os samaritanos, povo marginalizado e impuro para os judeus, proporcionam a primeira adesão comunitária à pessoa de Jesus: o testemunho da mulher contagiou a cidade inteira. Sentindo o peso da rejeição e marginalização impostas pela religião, os samaritanos acolheram o dom de Deus revelado por Jesus e destinado a todos e todas, especialmente aos mais rejeitados.

O encontro transformador de Jesus com a samaritana, portanto, deve ser parâmetro para nossa relação com ele e para todo processo de descoberta e crescimento na fé. A mulher samaritana progrediu na fé gradualmente. Inicialmente, Jesus era apenas um judeu viajante cansado e com sede, visto com suspeitas por ela, inclusive. Com a fluência do diálogo, ela foi transformando sua percepção sobre ele, chegando a reconhecê-lo como um profeta (v. 19), um homem de conhecimentos excepecionais (v. 29) e, finalmente, como o Messias. Ela fez a própria descoberta porque abriu diálogo e Jesus se deixa conhecer por quem dialogo com ele. Que a Quaresma nos ajude a encontrar Jesus e nos abra ao diálogo transformador, deixando-nos humanizar por ele.

Pe. Francisco Cornélio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, março 04, 2023

REFLEXÃO PARA O 2º DOMINGO DA QUARESMA – MATEUS 17,1-9 (ANO A)

 


Todos os anos, a liturgia do segundo domingo da Quaresma utiliza um dos relatos do episódio chamado, tradicionalmente, de “Transfiguração do Senhor”. Esse é um episódio narrado pelos três evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas), o que possibilita à liturgia oferecer um texto para cada ano, conforme o ciclo litúrgico (A, B e C), sem necessariamente repetir, uma vez que, mesmo se tratando do mesmo episódio, cada evangelista o narra à sua maneira, conforme as suas intenções teológicas, suas habilidades literárias e, sobretudo, respondendo às necessidades de suas respectivas comunidades. Isso faz com que os três relatos apresentem diferenças, apesar de serem muito parecidos. Por ocasião do ciclo litúrgico A, o texto proposto para este ano é o relato de Mateus: 17,1-9. É um texto muito rico em teologia e simbologia, o que torna indispensável uma breve contextualização, para uma compreensão mais adequada.

A nível de contexto, é importante recordar a localização do texto na estrutura do evangelho. Esse episódio é precedido por três importantes momentos interligados: a confissão de fé de Pedro (Mt 16,13-20); o primeiro anúncio da paixão (Mt 16,21-23) e a declaração das exigências para o discipulado (Mt 16,24-28). Se trata de uma sequência narrativa reveladora da messianidade e do destino de Jesus, cuja conclusão é exatamente o episódio da transfiguração. Ora, com o primeiro anúncio da paixão, Jesus deixou os discípulos assustados, pois a concepção de messias que eles tinham em mente não era compatível com o sofrimento e a cruz, como Jesus havia predito (Mt 17,21). Os discípulos esperavam um messias glorioso, valente e guerreiro, conforme as expectativas da época, fruto da ideologia nacionalista davídica, enquanto Jesus anunciou a doação da vida, comportando sofrimento e cruz, se necessário, para alcançar a glória e a vida em plenitude. Inclusive, impôs a disposição para carregar a cruz e doar a própria vida como condição para fazer parte do seu discipulado. A transfiguração é, portanto, a resposta de Jesus à incompreensão dos discípulos acerca da sua identidade, e uma demonstração de que cruz e glória fazem parte de um mesmo caminho: o destino do ser humano é a glória, mas essa passa pela cruz.

Uma vez contextualizados, vamos olhar para o texto, começando pelo primeiro versículo: «Naquele tempo, Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João, seu irmão, e os levou a um lugar à parte, sobre uma alta montanha» (v. 1). Aqui, a versão litúrgica omitiu um indicativo temporal importante, substituindo-o pela genérica expressão “naquele tempo”. O texto original começa com a indicação cronológica “seis dias depois”, como sinal de relação e continuidade com o último episódio narrado: o primeiro anúncio da paixão e a contestação de Pedro, com as exigências para o discipulado (cf. Mt 16,21-28). Ora, Pedro professou sua fé em Jesus como Messias, mas ao mesmo tempo não aceitou o caminho doloroso da cruz, fazendo Jesus repreendê-lo duramente, chamando-o de satanás, por tornar-se um empecilho à realização do projeto de Deus. Portanto, “Seis dias depois” de ter anunciado a sua morte, Jesus mostra aos discípulos a vida em plenitude; o sexto dia foi o dia da criação do homem e da mulher (Gn 1,26-31), e é nesse dia que Jesus manifesta o ser humano em sua máxima dignidade e realização. Logo, ele é o modelo de humanidade.

Jesus tomou consigo três discípulos: Pedro, Tiago e João. A escolha desses três discípulos não significa privilégio, como às vezes se diz, mas necessidade. Eles não eram os melhores, mas sim os três mais difíceis de lidar e os que mais tinham dificuldade de assimilar os ensinamentos de Jesus enquanto Messias sofredor. Pedro é sinônimo de dureza e fechamento; é o discípulo que Jesus mais repreende durante todo o seu itinerário. Como ele sempre se antecipa, sendo o primeiro a responder às perguntas de Jesus, é aquele que mais se expõe e, por isso, é o primeiro a ser corrigido. João e Tiago, conhecidos como “filhos do trovão” (Mc 3,17), eram os mais fanáticos, ambiciosos (Mc 10,35-45; Mt 20,20-28), de temperamento difícil, eram também os mais intolerantes. Pouco tempo após este episódio da transfiguração, Jesus repreenderá João por proibir a um homem que não fazia parte do grupo de pregar e expulsar demônios em seu nome (Mc 9,38-39). Os dois, João e Tiago, também foram repreendidos quando quiseram tocar fogo nos samaritanos que os rejeitaram (Lc 9,51-55). Portanto, Jesus os chama para estarem mais perto de si pela necessidade de cada um e por não desistir do ser humano, apesar das fraquezas e debilidades. Eles necessitavam estar mais próximos a Jesus e aprender mais com ele, como de fato estarão. Na Paixão, esses três – Pedro, João e Tiago – serão as testemunhas de Jesus durante a agonia no Getsêmani (Mt 26,36-37). Isso significa que eles mudaram com o tempo, não se tornando perfeitos, mas aprendendo a cada dia com Jesus, à medida em que conviviam com ele e ouviam seus ensinamentos.

Na tradição hebraica, a montanha é, por excelência, o lugar do encontro do ser humano com Deus. Tanto em Israel quanto nas culturas circunvizinhas, imaginava-se que para comunicar-se com a divindade, o ser humano precisava escalar um monte. Assim, a montanha funcionava como um espaço intermediário e necessário: o ser humano era incapaz de subir aos céus, e Deus grande demais para descer até a terra; daí a necessidade de um lugar intermediário para os dois se comunicarem. Por isso, a montanha tornou-se o lugar da revelação no Antigo Testamento (Ex 19,16; 24,15). Embora a tradição tenha identificado essa montanha com o monte Tabor, esse dado não possui fundamento nos evangelhos. Essa denominação começou com Cirilo de Jerusalém e foi consolidada por São Jerônimo, mas hoje é considerada sem fundamento. É preferível mantê-la anônima, como fizeram os evangelistas, porque não se trata de um dado geográfico, mas teológico; toda ocasião de encontro e intimidade com Deus é uma subida à montanha.

E é justamente no Evangelho de Mateus que a montanha tem mais relevância no Novo Testamento, sendo o lugar onde ele diz que Jesus viveu momentos importantes do seu ministério: proclamou as bem-aventuranças (5,1), multiplicou os pães (15,29), e como Ressuscitado, aparecerá aos discípulos pela primeira vez (28,16). O texto de hoje diz que, no alto da montanha, Jesus «foi transfigurado diante deles; o seu rosto brilhou como o sol e as suas roupas ficaram brancas como a luz» (v. 2). quer dizer que passou por uma transformação no seu aspecto, uma metamorfose. É esse o significado do verbo empregado pelo evangelista (em grego: μεταμορφόομαι – metamorfóomai). Diante da incredulidade e resistência dos discípulos em aceitar a morte, Jesus antecipa para eles o resultado da paixão: a manifestação gloriosa do Filho do Homem e, portanto, de Deus nele. Não apenas o rosto brilhou, mas todo o seu ser, inclusive suas vestes. As mesmas imagens e cores da glória de Deus ao longo da história são reveladas em Jesus; a luz é também sinal do que é novo: à medida em que o Reino de Deus vai sendo implantado, o universo todo se renova.

Os personagens do Antigo Testamento mais venerados na tradição judaica entram em cena: «Nisto, apareceram-lhe Moisés e Elias, conversando com Jesus» (v. 3). Estes personagens representam a Lei e os Profetas, obviamente. Temos, com isso, mais uma iniciativa de Deus para conscientizar os discípulos de que o ensinamento de Jesus está em consonância com tudo o que a Lei e os Profetas tinham afirmado a respeito do Messias. Embora o programa de Jesus seja repleto de novidades, não contradiz as Escrituras; é o seu pleno cumprimento. Os discípulos contemplam, mas somente Jesus conversa com Moisés e Elias. Esse é mais um dado de grande importância revelado pelo texto. Ora, a comunidade cristã, representada no episódio pelos três discípulos, não depende mais do Antigo Testamento; em Jesus, a Lei e os profetas encerram-se, chegam ao fim enquanto cumprimento e plenitude. Jesus é o critério de interpretação da Escritura: o Antigo Testamento só tem sentido se passar por Ele. Por isso, Moisés e Elias nada tem a dizer para a comunidade cristã senão através de Jesus. Moisés e Elias entregam a Jesus a revelação parcial que tinha recebido, própria da antiga aliança, e Jesus aperfeiçoa, completa. Por isso, é necessário passar por ele.

Pedro, ousado como sempre, tomou a palavra e, mais uma vez, disse coisas reprováveis, apesar das boas intenções: «Então, Pedro tomou a palavra e disse: ‘Senhor, é bom ficarmos aqui. Se queres, vou fazer aqui três tendas: uma para ti, outra para Moisés, e outra para Elias’» (v. 4). Três elementos são reprováveis na fala de Pedro: a primeira, é a nova tentação sugerida a Jesus através do comodismo; permanecer na montanha é ignorar o mundo real com seus problemas e contradições, é mostrar-se indiferente às situações desafiadoras e fechar os olhos às injustiças que assolam o mundo. Mais uma vez, Pedro procura uma maneira de tirar a cruz do caminho de Jesus; na primeira vez, foi Jesus quem o repreendeu, agora será o próprio Pai, ao interrompê-lo. O segundo elemento reprovável na fala de Pedro é o seu apego à tradição e o não reconhecimento de Jesus como o centro da vida: «uma para ti, uma para Moisés, e outra para Elias». Jesus ainda não ocupava o centro da vida de Pedro, mas sim Moisés. Para a tradição hebraica, o personagem mais importante é aquele que é citado em posição central; Pedro insiste com a antiga tradição: está seguindo Jesus, mas ainda coloca Moisés e a Lei no centro da vida; resiste em aceitar Jesus e o seu evangelho como centro. O terceiro elemento reprovável na fala de Pedro é o não reconhecimento de Jesus como a verdadeira tenda. Ora, no Antigo Testamento, sobretudo no contexto do êxodo, a tenda é a o lugar do encontro com Deus, o que agora é a pessoa de Jesus. A ideia de fazer tendas revela incompreensão e não aceitação de Jesus como o pleno revelador e lugar do encontro com Deus.

Diante do absurdo da fala de Pedro, o próprio Deus intervém e interrompe: «Pedro ainda estava falando, quando uma nuvem luminosa os cobriu com sua sombra. E da nuvem uma voz dizia: ‘Este é o meu Filho amado, no qual eu pus todo o meu agrado. Escutai-o!’» (v. 5). A nuvem luminosa, ao longo da tradição bíblica é também sinal da manifestação e presença de Deus. Essa cena é, praticamente, uma repetição da cena do batismo de Jesus: o Pai se manifesta, fala e dá testemunho do Filho. Diante das dúvidas e falta de convicção nos discípulos sobre a identidade de Jesus, quem tem mais propriedade para esclarecer é o seu Pai. Essa voz reitera a autoridade de Jesus: o Pai o credencia como o único que tem autoridade para falar e ser ouvido pela comunidade. Pedro ainda estava propenso a ouvir Moisés e Elias e o Pai lhe corrige. Moisés e Elias já disseram o que tinham de dizer; à comunidade cristã, só interessa o Evangelho, ou seja, o que Jesus ensina e vive.

A primeira reação dos discípulos diante das palavras do Pai é de completa falência: «Quando ouviram isto, os discípulos ficaram muito assustados e caíram com o rosto em terra» (v. 6). Ao longo da Bíblia, é normal o medo e o temor dos seres humanos diante da presença Deus. Mas nesse caso o medo tem outra causa: as implicações e consequências de escutar. Ora, escutar Jesus significa aderir plenamente ao seu projeto de vida e libertação, o que comporta até mesmo a doação da vida. É isso o que causa medo nos discípulos que imaginavam seguir um messias guerreiro e glorioso. Diante do medo dos discípulos, eis a reação de Jesus: «se aproximou, tocou neles e disse: ‘Levantai-vos e não tenhais medo’» (v. 7). É próprio de Jesus dar força aos caídos e encorajar os amedrontados. O gesto de tocar é o mesmo que ele faz ao curar os enfermos, restituindo-lhes vida e saúde (8,3.15; 9,25.29). O medo de assimilar e viver o Evangelho torna a comunidade doente, necessitada da força de Jesus que a impele a levantar-se. Para superar o medo, duas coisas são necessárias: escutar Jesus, como o Pai ordenou, e deixar-se tocar por ele.

O toque de Jesus, que é a sua própria palavra, levanta e transforma a comunidade dos discípulos: «Os discípulos ergueram os olhos e não viram mais ninguém, a não ser somente Jesus» (v. 8). Moisés e Elias desapareceram para que a atenção dos discípulos se voltasse somente para Jesus, o centro da vida e da comunidade que já não precisa mais deles, mas somente de Jesus. Já não sai mais nenhuma voz de Deus pela nuvem, porque quem vê Jesus, vê o Pai (cf. Jo 14,9) e, portanto, quem o escuta, escuta também ao Pai! A comunidade precisa sempre olhar em volta de si mesma e perceber que seu único referencial é Jesus Cristo com seu evangelho. Não vendo mais ninguém como referencial além de Jesus, a comunidade renovada é convidada a descer da montanha e novamente encarar a realidade, continuar o caminho com seus percalços e desafios até enfrentar o maior deles: a cruz! A ideia do comodismo não combina com a comunidade cristã, como soou absurda para Deus a sugestão das tendas por Pedro.

Jesus pede que não contem nada a ninguém daquilo que experimentaram (v. 9), por respeito aos propósitos do Pai, pois deveriam esperar a Ressurreição, e também por prudência, pois se a notícia daquela experiência se espalhasse, novamente grandes multidões emotivas e curiosas se aproximariam dele em busca de sinais e milagres, quando na verdade o verdadeiro sinal estava se aproximando: a cruz e a ressurreição. Eles deveriam anunciar Jesus, o Evangelho, mas da maneira certa, sem alimentar falsas ilusões, nem omitir as suas verdades. E somente à luz da ressurreição é que esse anúncio se torna eficaz e perfeito. É melhor silenciar do que anunciar de modo equivocado. O anúncio distorcido é, sem dúvidas, consequência de uma escuta superficial. Aqui está um dos ensinamentos mais importantes para as comunidades de todos os tempos: a necessita da escuta de Jesus, o Filho Amado.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

REFLEXÃO PARA O 4º DOMINGO DA PÁSCOA – JOÃO 10,11-18 (ANO B)

O evangelho do quarto domingo da páscoa é sempre tirado do capítulo décimo do Evangelho de João, no qual Jesus se auto apresenta como o ún...