sábado, abril 29, 2023

REFLEXÃO PARA O 4º DOMINGO DE PÁSCOA – JOÃO 10,1-10 (ANO A)

 


Todos os anos, a liturgia do quarto domingo da Páscoa utiliza um trecho do capítulo décimo do Evangelho de João, no qual Jesus se auto apresenta como o único, autêntico e bom pastor. Por isso, este domingo ficou conhecido como o «Domingo do bom pastor» e, oportunamente, instituído como o «Dia mundial de oração pelas vocações», pelo Papa Paulo VI, no ano de 1964. Embora o evangelho deste dia seja sempre tirado do mesmo capítulo – Jo 10 –, alternam-se os textos, conforme o ciclo litúrgico vigente. Neste ano, por ocasião do ciclo litúrgico A, faz-se a leitura da primeira parte do capítulo: Jo 10,1-10. Por sinal, nestes versículos Jesus ainda não é diretamente apresentado como o pastor, mas como a porta única por onde devem passar ovelhas e pastores. Ele só começa a ser apresentado como pastor a partir do primeiro versículo que sucede ao texto de hoje (Jo 10,11). Curiosamente, o termo ovelhas (em grego: πρόβατα – próbata) aparece sete vezes no texto de hoje, e é em função das ovelhas que o pastor existe.

Faremos hoje a contextualização em dois níveis: num nível mais amplo, considerando a imagem do pastor no cristianismo e em Israel e, em seguida, num nível mais literário, considerando a posição do texto no conjunto do Quarto Evangelho. A imagem de Jesus como bom pastor caiu na graça do cristianismo desde os seus primórdios. Tornou-se clássico representá-lo como um pastor carregando uma ovelha nos ombros, imagem bonita, mas que não corresponde exatamente em nada ao décimo capítulo do Evangelho de João. Ora, aquela bela imagem do pastor com a ovelha nos ombros corresponde ao personagem de Lucas na chamada «parábola da ovelha perdida» (Lc 15,1-7). A imagem de pastor presente no Quarto Evangelho é bem diferente: ele não carrega nem conduz ninguém nos ombros, pois isso é sinal de dependência e privação da liberdade. O pastor verdadeiro é aquele que aponta caminhos, é seguido porque conhece suas ovelhas e se deixa conhecer por elas. Jesus é um pastor que humaniza e educa para a liberdade.

Também é importante recordar que a figura do pastor sempre foi muito significativa para o povo de Israel. Desde o Antigo Testamento, essa imagem foi associada a Deus e também aos líderes que assumiram funções de guia e comando sobre o povo, como reis e sacerdotes, principalmente. Devido às infidelidades e descaso desses líderes, essa imagem foi se desgastando ao longo do tempo, sendo alvo de denúncias da parte dos profetas. Uma das denúncias mais fortes foi aquela do profeta Ezequiel: lamentando-se dos pastores de Israel que apascentavam a si mesmos, ao invés de apascentar o (povo) rebanho (Ez 34,1-2), Deus toma a iniciativa de destituí-los e cuidar ele mesmo do rebanho (Ez 34,11). Jesus atualiza a perspectiva do profeta: sendo ele o único e autêntico pastor, estão destituídos os sacerdotes do templo e os mestres da lei. Suas palavras tiveram grande repercussão porque mexiam com os privilégios da classe dirigente de Israel, composta por funcionários do sagrado, ao invés de pastores verdadeiros. A prova do incômodo causado pelas palavras de Jesus está na reação dos líderes judeus após esse discurso: uns diziam que ele estava endemoniado (Jo 10,20), outros queriam prendê-lo (Jo 10,39). A mensagem de Jesus foi uma ameaça aos dirigentes que apascentavam apenas a si e às suas economias, explorando o povo ao invés de protegê-lo.

A nível de contexto literário, é oportuno recordar que esse décimo capítulo do Quarto Evangelho é precedido pelo polêmico episódio da cura do cego de nascença, do qual surgiu um caloroso conflito entre Jesus e os fariseus (Jo 9,1-41). Por sinal, o episódio do cego de nascença – o sexto dos sete sinais realizados por Jesus no Evangelho de João – foi lido no quarto domingo da Quaresma deste ano, por ocasião do ciclo litúrgico A. Para os fariseus e os dirigentes judeus, o gesto libertador de Jesus, ao curar o cego, era uma ameaça aos seus privilégios, por isso, o rechaçaram veemente, mas Jesus não se deu por vencido e, por isso, continuou sua investida para desmascará-los. É clara a relação entre os dois textos: Jesus abre os olhos para que as pessoas não se deixem enganar pelos falsos pastores, e para que adquiram lucidez e conhecimento para seguirem ao único e verdadeiro pastor, entrando e saindo pela única porta que conduz à vida em plenitude. Isso era inadmissível para um sistema religioso que dominava a partir da imposição e do medo. O cenário do episódio é a cidade de Jerusalém, provavelmente as imediações do templo. Olhemos, pois, para o texto.

A fórmula solene de introdução empregada pelo autor, (em grego: αμήν, αμήν – amén, amén) traduzida por «Em verdade, em verdade» (v. 1), indica a importância do que será ensinado; é uma fórmula exclusiva do Quarto Evangelho, empregada sempre no início de declarações importantes de Jesus, funcionando como uma chamada de atenção aos interlocutores para a importância do que está para ser dito. Tudo o que é introduzido por essa fórmula deve ser levado muito a série pela comunidade cristã. É sempre um ensinamento com autoridade. Logo, o conceito de pastor apresentado no décimo capítulo de João é vital para a comunidade cristã; é algo não pode ser esquecido e nem distorcido. À introdução solene, segue a declaração: «Quem não entra no redil das ovelhas pela porta, mas sobe por outro lugar, é ladrão e assaltante» (v. 1). Com essa afirmação, Jesus está fazendo uma dura acusação e denúncia à ilegitimidade dos chefes religiosos do seu tempo, e aos seus interlocutores diretos, os fariseus (9,40-41); assim, ele aplica a imagem tradicional de ovelhas/rebanho ao povo, acusando seus dirigentes de ladrões e bandidos.

O termo que o texto do lecionário traduz por «redil» (em grego: αυλή – aulê), significa exatamente pátio ou átrio; com isso, percebe-se que Jesus se refere ao templo de Jerusalém, dominado por uma casta sacerdotal ilegítima, que tinha tomado o lugar do verdadeiro pastor, que é o próprio Deus e seu filho, Jesus. Também a palavra assaltante não corresponde à ideia do autor; inclusive a prática de assaltar já está contemplada na palavra ladrão. Ao invés de assaltante o termo mais adequado é «bandido», pois corresponde melhor à palavra grega empregado pelo autor (ληστής – lestês), a qual designa mais a pessoa que pratica violência. Essa observação é importante, pois evidencia ainda mais o teor da denúncia. Ora, as denúncias de Jesus às arbitrariedades do poder religioso de seu tempo foram iniciadas ainda no segundo capítulo de João, no episódio da chamada «purificação do templo» (Jo 2,13-22). Portanto, os ladrões e bandidos do texto de hoje são os mesmos que tinham ajudado a transformar «a casa do Pai em uma casa de negócio» no início do Evangelho (Jo 2,16). São ladrões e assaltantes porque assumiram uma função sem a designação do Pai, ou seja, estão ali, mas não entraram pela porta.

Ao contrário dos dirigentes e dos fariseus, «quem entra pela porta, é o pastor das ovelhas» (v. 2), e esse alguém é o próprio Jesus, como ele mesmo vai se autodefinir na continuação do discurso (vv. 11.14). De fato, somente Ele recebeu permissão do Pai para comunicar-se diretamente com as ovelhas, o povo. E a comunicação estabelecida entre Jesus e as ovelhas – a humanidade inteira – é altamente libertadora e humanizadora. A Jesus, o único pastor autêntico, «o porteiro abre, e as ovelhas escutam a sua voz; ele chama as ovelhas pelo nome e as conduz para fora» (v. 3). Obviamente, é o Pai quem envia e autoriza Jesus a entrar no recinto da falida instituição religiosa para libertar o povo oprimido pelo poder religioso. O porteiro, nesta imagem, é o próprio Deus, o Pai. O primeiro passo nesse processo de libertação é a escuta da voz de Jesus, contida somente no Evangelho; quem realmente escuta o Evangelho, não se permite ser aprisionado nem controlado por nenhum sistema religioso ou político, mesmo que esse se autodenomine cristão. Assim como a comunidade joanina, também as de hoje devem estar atentas ao que lhes é ensinado: quando não for a voz de Jesus, ou seja, o Evangelho, devem repulsar e rejeitar sem medo.

O pastor autêntico «chama as ovelhas pelo nome e as conduz para fora», ou seja, não trata o povo como massa de manobra, mas o tira do anonimato, valorizando a cada pessoa em sua individualidade e liberdade, por isso, chama pelo nome, criando um laço de intimidade. Como se sabe, chamar alguém pelo nome significa conhecer a sua identidade e reconhecer seu valor e dignidade. E chamar pelo nome pressupõe o conhecimento recíproco, marcado pela intimidade. A relação já não é mais entre dominador e dominado, mas entre pessoas que se conhecem e se amam reciprocamente. «Conduzir para fora» é libertar, tirar da opressão, livrar o povo de um poder arbitrário, inautêntico que usa o nome de Deus para explorar e até matar; é dessa situação que Jesus quer tirar todos os que escutam a sua voz. Inclusive, o evangelista emprega aqui o mesmo verbo do êxodo (em grego: ἐξάγω – exagô), indicando que a ação de Jesus conduzir as ovelhas para fora é semelhante a de Deus libertando o povo hebreu da escravidão do Egito. Jesus quer, portanto, promover um novo êxodo, denunciando que a elite religiosa do seu tempo era tão nociva para o povo quanto o faraó do Egito e seu regime de escravidão.

É interessante perceber o objetivo da libertação proposta por Jesus: a vivência plena da liberdade! Por isso, «ao fazer sair todas, caminha à sua frente, e as ovelhas o seguem, porque conhecem a sua voz» (v. 4); Jesus não quer tirar o povo de um sistema dominante opressor para começar a dominar também; domínio e imposição não fazem parte da sua práxis. Ele liberta e, após a libertação, apenas aponta caminhos, ou seja, Ele «caminha à frente» sem controlar e, obviamente, quem escutar verdadeiramente a sua voz, ou seja, quem aceitar o Evangelho como proposta de libertação, o seguirá tranquilamente por conhecer uma voz autêntica. Antes de tudo, é para a liberdade que ele aponta e conduz. Mais uma vez, ressaltamos o cuidado do evangelista para com a comunidade cristã, para que na mesma não surjam líderes impostores. Onde a voz do Evangelho é conhecida, não há dominadores e dominados, e será esse o traço característico da comunidade cristã. Destituindo o poder da antiga instituição religiosa, Jesus não propõe nenhuma forma de poder e dominação para sua comunidade. Ele quer apenas que a comunidade seja livre, autônoma e capaz de discernir e optar pelo bem, ou seja, pelo Evangelho, o qual, como única voz de Jesus, dispensa todo código ou sistema doutrinal e moral, mesmo que elaborado em seu nome.

Conforme Jesus já tinha denunciado no capítulo anterior (cf. 9,40-41), o sistema opressor é cego e leva os que estão sob seu domínio também à cegueira, por isso, «não entenderam o que Jesus queria dizer» (v. 6) com essa comparação ou parábola. Diante da cegueira e da falta de compreensão de seus interlocutores (9,40-41; 10,6), Jesus passa a falar de modo mais claro e objetivo, apresentando-se como a própria porta (v. 7). De fato, como único mediador entre a humanidade e o Pai, Ele pode mesmo reivindicar para si a função, embora simbólica, de porta, pois é Ele e seu Evangelho o critério único de pertença ao Pai. A denúncia aos que se auto intitulavam representantes de Deus na terra continua, ao chamá-los de ladrões e bandidos e anunciar o fim do antigo sistema (v. 8); esses estão sendo desmascarados e caindo em descrédito, à medida em que a voz de Jesus vai sendo ouvida, através do Evangelho. Portanto, quando mais o Evangelho for ouvido, mais emancipada se torna a comunidade, e mais humanas se tornam as pessoas que se deixam conduzir pela única Palavra que liberta e gera vida.

À medida em que repete sua autoafirmação como a porta (v. 9), Jesus ressalta a falência da instituição religiosa de Israel. Como o Evangelho e a lei são inconciliáveis, «só será salvo quem entrar por Ele»; somente assim alguém poderá «entrar e sair» encontrando a pastagem necessária para a vida. Seu programa de vida é marcado pela liberdade e só será plenamente livre quem ouvir sua voz, passando por Ele e vivendo a proposta de vida contida no Evangelho. O movimento de entrar e sair é a expressão máxima de liberdade e, ao mesmo tempo, oposição à Lei e ao sistema religioso que aprisionava e até matava em nome de Deus. A pastagem que se encontra quando passa por Ele é a liberdade e a vida plena e abundante que Ele quer nos comunicar (v. 10). A vida em abundância é, na verdade, a vida livre, digna e plena de amor, para a qual o Evangelho direciona e da qual a lei privava o ser humano. Não se trata de uma vida para o além, mas da realização plena do ser humano em sua vida neste mundo, a qual não será destruída pela morte.

Podemos dizer, à guisa de conclusão, que em nossas comunidades a voz do Pastor, o único, é ouvida quando a verdade e o amor superam qualquer código de normas e doutrinas pré-concebidas mesmo que em nome de Deus. Jesus é porta em nossas comunidades quando não há segregação, nem discriminação e nem exclusão. Somos comunidades guiadas por Jesus, quando a única proposta que nelas se apresentam está de acordo com o Evangelho e as pessoas podem entrar e sair livremente. Enfim, que nossas comunidades sejam espaço onde as pessoas possam viver em liberdade, caminhando com os próprios pés sob a orientação da única voz autêntica: o Evangelho de Jesus Cristo, o Crucificado que Ressuscitou e caminha à nossa frente. 

Pe. Francisco Cornélio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, abril 22, 2023

REFLEXÃO PARA O 3º DOMINGO DE PÁSCOA – LUCAS 24,13-35 (ANO A)

 


Do Evangelho de João, lido nos dois primeiros domingos de Páscoa, a liturgia do terceiro domingo passa para o Evangelho de Lucas, propondo a leitura de um dos seus textos mais profundos: Lc 24,13-35. O episódio narrado nesta passagem, conhecido popularmente como “os discípulos de Emaús”, retrata a experiência de encontro de dois discípulos com o Cristo Ressuscitado, enquanto retornavam de Jerusalém, desiludidos e tristes, após o drama da paixão e o escândalo da cruz. Além da profundidade teológica, esse texto se destaca também pela beleza; é uma verdadeira obra prima de Lucas, o autor do Novo Testamento mais refinado na arte de narrar. Por isso, é um texto que sempre despertou atenção entre os leitores e leitoras de todos os tempos. Nele, o autor esbanjou suas qualidades de teólogo, catequista e narrador. Pela extensão literária, não temos condições de comentá-lo versículo por versículo. Procuramos colher a mensagem central, destacando alguns versículos e informações mais relevantes.

Sendo um texto exclusivo de Lucas, esse episódio dos discípulos de Emaús funciona como síntese e conclusão do Terceiro Evangelho e já pode ser considerado também uma introdução ao segundo volume de sua obra, o livro de Atos dos Apóstolos. No contexto narrativo imediato, é apenas um episódio de transição entre a cena da descoberta do sepulcro vazio (Lc 24,1-12) e a manifestação do Cristo Ressuscitado aos discípulos reunidos em Jerusalém (Lc 24,36-49). Essa observação nos leva a reconhecer ainda mais a habilidade de Lucas, pois esse intervalo entre a descoberta do sepulcro vazio e a aparição do Ressuscitado aos discípulos reunidos constitui um vazio nos outros evangelhos. E Lucas, não apenas quis preencher um vácuo, mas o fez dando o melhor de si, construindo um episódio insuperável. É claro que ele fez isso pensando nas necessidades de suas comunidades e nos seus leitores e leitoras de todos os tempos. Primeiro, ele quis mostrar a intensidade daquele dia: não foi um dia qualquer, mas um dia especial, um dia repleto de novidades, enquanto começo de uma nova história. Um dia surpreendente em todos os sentidos, a ponto de ter sido reconhecido pelas primeiras gerações cristãs como o “Dia do Senhor”, o tão esperando “dia que o Senhor fez para nós” (Sl 117), tão cantado por séculos na liturgia de Israel e, finalmente realizado, com a ressurreição de Jesus de Nazaré, o Cristo e Filho de Deus.

É um texto que sintetiza todo Evangelho de Lucas porque resume o mistério da vida de Jesus, amplamente marcada pela dinâmica do caminho e pela continuidade com as profecias do Antigo Testamento. Desde a caminhada de Maria ao encontro de Isabel, no início do Evangelho (Lc 1,39-45), passando pelas andanças de Jesus na Galileia e seu longo caminho para Jerusalém com seus discípulos (Lc 9,51–19,44), Lucas apresentou o caminho como metáfora da história da salvação/libertação e de todo processo formativo e catequético. Agora, ele apresenta o caminho como meio indispensável para a experiência com o Ressuscitado. É um texto que pode ser considerado conclusão do Evangelho, não apenas por se tratar do último capítulo, literariamente falando, mas porque culmina com a experiência do encontro da comunidade reunida com o Ressuscitado e o cumprimento da missão de anunciá-lo. Depois dos eventos narrados neste episódio, a comunidade cristã, em todos os tempos, tem todas as chaves de leitura para experimentar o Ressuscitado em seu meio, sentindo a sua presença e compartilhando a experiência com ele. E o caminho é um meio indispensável para tudo isso. Por isso, percebemos nesse texto também uma introdução antecipada ao livro de Atos dos Apóstolos, no qual Lucas narra a expansão da experiência transformadora do encontro com o Ressuscitado até os confins da terra (At 1,8).

O texto começa com um indicativo temporal importante: «Naquele mesmo dia, o primeiro da semana» (v. 13a). Sobre o sentido deste dia, já acenamos um pouco na introdução. É importante perceber que o evangelista faz questão de apresentar momentos diferentes de um mesmo dia: a ida das mulheres ao sepulcro nas primeiras horas (24,1), e depois a ida de Pedro (24,12) e, no final do dia, a viagem dos dois discípulos, conforme o texto de hoje, até o encontro fraterno dos Onze e os demais discípulos em Jerusalém (24,33ss). Portanto, o dia do acontecimento é o dia mesmo da Páscoa, o domingo da ressurreição. Foi um dia intenso, único e irrepetível. Contudo, a comunidade tem a missão de estendê-lo para sempre, torná-lo perene. A vida cristã é um prolongamento contínuo daquele dia, que é hoje e todo novo dia; não a repetição, pois aquele dia não tem fim! Na sequência, diz o texto que, naquele mesmo domingo, «dois dos discípulos de Jesus iam para um povoado, chamado Emaús, distante onze quilômetros de Jerusalém» (v. 13); essa expressão também traz informações muito importantes: se dois discípulos tinham saído de Jerusalém, e quando voltam encontram os Onze reunidos (v. 33), logo, o grupo de discípulos era muito mais vasto que o grupo dos apóstolos propriamente ditos. Ao apresentar esses dois, Lucas resgata a grande missão dos setenta e dois, quando Jesus os enviou dois a dois (Lc 10,1-20). Esse é mais um passo em preparação aos Atos dos Apóstolos e um modo de dizer que a missão não é monopólio dos Doze menos um (os Onze após a saída de Judas), mas é aberta, inclusiva e universal.

Muito se tem discutido, na exegese atual, sobre a identidade desses dois discípulos. O texto vai informar o nome de um deles, apenas, chamado Cléofas (v. 18). Alguns estudiosos defendem a tese de que era um casal, logo, o outro discípulo seria uma mulher. Trata-se de uma hipótese considerável, mas não indispensável. Ao longo de todo o seu Evangelho, Lucas já deu demonstração suficiente da importância das mulheres na vida de Jesus e na missão da Igreja e, sobretudo, na sua perspectiva teológica. Por isso, essa suposição é indiferente para o valor do texto, sobretudo, porque não se trata de uma crônica, e sim de uma narrativa catequética. O lugar da mulher na teologia e visão de Igreja de Lucas já está assegurado. O destino dos discípulos antecipa o estado de ânimo em que se encontravam, e o texto vai revelar posteriormente: «iam para um povoado chamado Emaús, distante onze quilômetros de Jerusalém» (v. 13); após toda uma vivência com Jesus, o retorno ao povoado é sinal de incompreensão e decepção, pois o povoado significa o fechamento de mentalidade, é o lugar onde o que vale é aquilo que está na Lei. O nome Emaús significa «fonte quente»; esse povoado teve importância no tempo dos macabeus, pois fora palco de uma batalha dos judeus liderados por Judas Macabeu contra os pagãos, e vencida pelos judeus (1Mc 3,40 – 4,27). Se trata de um lugar que evoca nacionalismo, por isso, Lucas enfatiza esse povoado como antítese ao seu projeto missionário: em Emaús se cultivava o ideal tradicional e triunfalista do judaísmo; logo, não era lugar para os discípulos de Jesus! Isso se explica pelo fato de que eles não permanecerão em Emaús após o reconhecimento do Ressuscitado.

Nesse texto, Lucas preserva e reforça a função pedagógica do caminho, presente em toda a sua teologia e amplamente confirmada aqui. Por isso, ele diz que, enquanto caminhavam, os discípulos «Conversavam sobre todas as coisas que tinham acontecido» (v. 14). Caminhar é aprender e ensinar, é partilhar. Mais do que fazer um percurso físico, caminhar, na perspectiva de Lucas, significa assumir a condição de discípulo e discípula, aprendente. O caminho constitui um verdadeiro estilo de vida, por isso, em Atos dos Apóstolos será um dos nomes da Igreja. Obviamente, para quem tinha seguido Jesus, o assunto não poderia ser outro senão os últimos acontecimentos da sua vida. Para dizer que os discípulos conversavam, o evangelista emprega um verbo grego que significa literalmente «fazer homilia» (em grego: ὁμιλέω – homileô). Com isso, ele indica que é a vida de Jesus que deve ser o conteúdo do anúncio e de tudo o que se conversa na comunidade de fé. A vida de Jesus é o parâmetro. Os discípulos caminhavam tristes, certamente discutiam sobre as esperanças que imaginavam ter perdido e os sonhos frustrados, como gente que perdeu tempo seguindo a um fracassado que morreu na cruz; tudo isso fica claro na conversa a três, quando Jesus surge no caminho e passa a interagir com eles. O escândalo da cruz deixou os discípulos decepcionados, mas levavam as recordações, não tinham esquecido o que tinham vivido, apesar da desilusão e decepção.

Durante o caminho, o evangelista diz que «Enquanto conversavam e discutiam, o próprio Jesus se aproximou e começou a caminhar com eles» (v. 15). A novidade do texto começa exatamente aqui. O Cristo Ressuscitado é um caminhante, um peregrino, como foi Jesus de Nazaré durante o seu curto ministério. Porém, em seu curto ministério, os caminhos percorridos por Jesus de Nazaré também foram curtos, condicionados às circunstâncias de tempo e espaço. O caminho do Ressuscitado, pelo contrário, é ilimitado e universal. Em qualquer lugar e em qualquer tempo, ele se aproxima e caminha junto, sobretudo, de quem já caminhava por causa dele, como os dois que retornavam para Emaús. Mas a presença de Jesus não é reconhecida de imediato, o que se explica pela cegueira dos discípulos, recordada pelo evangelista (v. 16). Obviamente, não se trata de uma cegueira física, o que os impediria de caminhar sozinhos; é uma cegueira de mentalidade. É interessante perceber que, embora desiludidos e decepcionados, aqueles discípulos falavam de Jesus e tinham um bom conceito a seu respeito: «Jesus, o Nazareno, que foi um profeta poderoso em obras e palavras, diante de Deus e diante de todo o povo» (v. 19). Como se vê, os dois discípulos não estão longe da verdade. Lamentam ter de voltar ao “povoado”, pois já sabem que o mal está na tradição quando afirmam com muita clareza que foram «os sumos sacerdotes e os chefes que o entregaram para ser condenado à morte e o crucificaram» (v. 20); por isso, não querem mais submeter-se a ela. Estavam voltando por falta de perspectivas. Mas em nenhum momento foram pessoas fechadas, apesar da cegueira.

O motivo da decepção e do não reconhecimento de Jesus em seu meio está na concepção equivocada de messias, como eles mesmos afirmam: «Nós esperávamos que ele fosse libertar Israel» (v. 21). Ora, eles eram judeus nacionalistas e, por isso, esperavam o Messias restaurador, triunfalista e guerreiro. Como não tinham compreendido a mensagem libertadora de Jesus, também não compreenderam a sua morte de cruz. De fato, a cruz foi escândalo para eles e para todos os que alimentaram expectativas triunfalistas com a messianidade de Jesus. Ora, Jesus não veio ao mundo para libertar Israel, mas a humanidade inteira! Essa mentalidade equivocada só pode ser corrigida com uma boa interpretação da Escritura, como faz o próprio Jesus: «E, começando por Moisés e passando pelos profetas, explicava aos discípulos todas as passagens da Escritura que falavam a respeito dele» (v. 27). Aqui começa a reviravolta no episódio. Jesus passa a explicar as Escrituras para convencer os discípulos decepcionados a mudar a mentalidade. É necessário abrir o horizonte da consciência para compreender e aceitar que a mensagem libertadora de Jesus é universal, e não destinada a um único povo. Essa nova compreensão da Escritura não é tudo, mas é um passo importante no processo de reconhecimento do Ressuscitado; a ela, deve-se acrescentar a experiência comunitária da partilha, da comunhão de mesa, como se dará, finalmente (vv. 30-31).

É importante perceber que a explicação de Jesus compreende a totalidade da Escritura, e não passagens isoladas. Ele faz uma leitura do complexo que constitui a Escritura – Moisés e os Profetas – para mostrar a continuidade da sua mensagem e sua conformidade aos planos de Deus. O verbo grego empregado pelo evangelista e traduzido por “explicar” significa literalmente “fazer hermenêutica” (em grego: διερμηνεύω – diermenuô). Com isso, Lucas diz que Jesus é o verdadeiro hermeneuta da Escritura. A mensagem de Moisés e dos Profetas só tem sentido para a comunidade cristã se passar por Jesus, enquanto critério de interpretação. Ora, os chefes de Israel – escribas, anciãos e sacerdotes – condenaram Jesus, em conluio com o poder romano, também com base numa interpretação da Escritura. Isso serve de advertência para a comunidade cristã em todos os tempos: é preciso aplicar à Escritura uma hermenêutica libertadora, que gere vida, ou seja, uma explicação que conduza para o bem e suscite amor na comunidade. O mau uso, a má explicação da Escritura gera fundamentalismo, fechamento e, por consequência, gera morte. E a hermenêutica – explicação – de Jesus mexeu com os discípulos. Mesmo não reconhecendo ainda a presença do Ressuscitado naquele desconhecido companheiro de viagem, os discípulos parecem não ter perdido completamente a esperança; na verdade, a esperança parece que começou a renascer dentro deles depois que o forasteiro começou a caminhar com eles, tanto que “imploram” que permaneça com eles: «Fica conosco, pois já é tarde e a noite vem chegando!» (v. 29). Portanto, os discípulos perceberam que não podiam ficar sozinhos no povoado e, por isso, imploraram que o forasteiro permanecesse com eles, porque daquela conversa, a esperança estava voltando; por isso, queriam evitar o retorno às trevas da vida no povoado, que significa o retorno ao julgo da Lei. A expressão «a noite vem chegando», mais do que um dado cronológico, é um dado teológico: é a vida fechada, sem perspectivas e esperanças, da qual eles tinham saído e não queriam mais voltar.

Jesus, ainda como forasteiro, atende aos discípulos que imploram a sua presença e senta-se com eles à mesa (v. 30). A refeição tem um sentido muito profundo no Evangelho de Lucas e é, portanto, necessário perceber essa importância para não reduzirmos esse texto a uma mera descrição de uma celebração eucarística, como muitas interpretações reducionistas tem feito. Ao longo de todo o Evangelho, Lucas apresentou Jesus sentando à mesa com pessoas de diferentes classes sociais e religiosas: fez refeição na casa de um fariseu de nome Simão (cf. 7,36-50); outra vez foi na casa de um dos chefes dos fariseus (cf. 14,1-6); ao hospedar-se na casa de Zaqueu, pecador público, também se sentou com ele à mesa e fez refeição (cf. 19,1-10). É necessário, pois, ter em mente que a mesa-refeição é, ao longo de todo o Evangelho de Lucas, um espaço-momento de revelação da identidade de Jesus, pois significa, partilha, fraternidade, companheirismo e acolhida. Como tinham sido profundamente incomodados pela explicação da Escritura que Jesus tinha dado, o que os levou a uma revisão de conceitos e de compreensão da mesma, faltava pouco para seus olhos abrirem-se, ou seja, para saírem definitivamente da situação de trevas em que se encontravam. E, foi, portanto, a experiência da partilha que proporcionou a certeza da presença do ressuscitado no meio deles.

Essa é a resposta que Lucas quis dar às suas comunidades: o Ressuscitado está presente no dia-a-dia, quando a comunidade caminha, reflete sobre a Palavra, dialoga e partilha o pão; são essas as ocasiões propícias para a comunidade abrir os olhos (v. 31a). Quem segue esses passos, já não necessita mais de uma visão ou aparição (v. 31b). Finalmente, como último passo de uma comunidade que faz a experiência do encontro com o Ressuscitado, Lucas apresenta a missão, tema caro para a sua teologia e que será mais desenvolvido no livro dos Atos dos Apóstolos, antecipado no Evangelho de hoje pela iniciativa dos discípulos: «se levantaram e voltaram para Jerusalém» (v. 33). Para Lucas, contudo, Jerusalém não significa apenas chegada, mas o ponto de partida da missão universal. O retorno dos discípulos para lá, portanto, significa que eles abraçaram o projeto de salvação universal de Jesus.

Somos, portanto, hoje e sempre, interpelados por Lucas a fazer um esforço constante de reconhecimento do ressuscitado, percebendo sua presença na comunidade para que jamais falte esperança, amor, partilha, solidariedade e companheirismo. Para isso, é necessário caminhar, se aprofundar no conhecimento da Escritura e viver, acima de tudo, a partilha. De fato, o critério último e definitivo de reconhecimento da experiência com o Ressuscitado é a partilha do pão; essa, não pode ser reduzido a um rito ou gesto, mas deve ser o resultado de um estilo de vida.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró

sexta-feira, abril 14, 2023

REFLEXÃO PARA O SEGUNDO DOMINGO DE PÁSCOA – JOÃO 20,19-31

 


A exemplo do primeiro Domingo de Páscoa, também no segundo domingo o evangelho é o mesmo para todos os anos: Jo 20,19-31. Este texto narra a continuação dos eventos envolvendo a comunidade de discípulos no dia mesmo da ressurreição, e a sua quase repetição uma semana depois. Para compreendê-lo melhor, é necessário recordar alguns elementos do texto da liturgia do domingo passado, que apresentava a comunidade completamente desnorteada, não apenas porque o Senhor e mestre fora morto, mas porque até mesmo o seu cadáver parecia ter sido roubado (Jo 20,1-3). Naquela ocasião, o evangelista dava sinais de uma nova criação, embora ainda estivesse na fase do caos, simbolizado pelo escuro da madrugada (Jo 20,1). Três personagens protagonizaram aquele relato: Maria Madalena, Pedro e o Discípulo Amado; ambos fizeram a constatação do sepulcro vazio, mas somente um deles interpretou, de imediato, a ausência do corpo como sinal da ressurreição: o Discípulo Amado (Jo 20,8). Maria Madalena foi a segunda a acreditar, mas já durante o dia, após confundir o Senhor com o jardineiro (Jo 20,16-18), porém esse episódio já não constava no texto que fora lido no domingo.

Da madrugada do primeiro dia, a liturgia de hoje passa para o anoitecer do mesmo dia, como diz o texto: «Ao anoitecer daquele dia, o primeiro da semana, estando fechadas, por medo dos judeus, as portas do lugar onde os discípulos se encontravam, Jesus entrou e pondo-se no meio deles, disse: ‘A paz esteja convosco’» (v. 19). Não obstante as frustrações e decepções com o final trágico de seu líder, condenado e morto na cruz, a reunião dos discípulos mostra que a comunidade está se recompondo, após uma normal dispersão. Certamente, o anúncio de Maria Madalena – «Eu vi o Senhor!» (Jo 20,18) – influenciou nesse processo de recomposição, junto à fé do Discípulo Amado, ao constatar o sepulcro vazio em companhia de Pedro, ainda na madrugada daquele dia. Embora se recompondo, a comunidade continuava em crise, o que se evidencia pela situação de medo informada pelo evangelista. Por “medo dos judeus” entende-se o medo das lideranças religiosas que condenaram Jesus em conluio com o império. É típico de João usar o termo “judeus” em referência aos líderes, e não a todo o povo. O medo é preocupante, é um impedimento à missão; é fruto da angústia, da desilusão e do remorso de alguns. O principal motivo do medo era a possibilidade clara de perseguição; os discípulos temiam ter o mesmo final trágico do mestre, ou seja, a condenação à morte de cruz.

Manifestando-se no meio dos discípulos, o Ressuscitado inicia neles um processo de transformação, oferecendo o primeiro antídoto ao medo: o dom da paz, que, nesse texto, não significa apenas a típica saudação dos judeus (shalom), mas o cumprimento de uma promessa que, por sinal, responde às necessidades reais da comunidade acuada pelo medo. Ora, durante a ceia, vendo seus discípulos angustiados (Jo 14,1), Jesus encorajou-os e prometeu-lhes a paz: «Eu vos deixo a paz, eu vos dou a minha paz» (Jo 14,27a). Na verdade, todo este relato deve ser lido na perspectiva da dinâmica promessa–cumprimento: a própria manifestação (aparição) do Ressuscitado à comunidade é cumprimento de uma promessa: «Vou e volto a vós» (Jo 14,28), como também é a doação do Espírito Santo. O Ressuscitado não retorna ao mundo para fazer um julgamento ou prestação de contas, mas para continuar a sua obra, cumprindo suas promessas. O encontro com a paz de Jesus levanta o ânimo da comunidade que parecia fracassada. Ele comunica a sua paz e, ao mesmo tempo, reforça o modelo de comunidade ideal: uma comunidade igualitária e livre, tendo um único centro: o Cristo Ressuscitado. É esse o significado do seu colocar-se no meio deles. Para uma comunidade viver realmente os propósitos do Evangelho é necessário, antes de tudo, que no centro do seu existir esteja o Ressuscitado; é Ele o único ponto de referência e fator de unidade.

Na continuidade da experiência, diz o texto que Jesus «mostrou-lhes as mãos e o lado. Então os discípulos se alegraram por verem o Senhor» (v. 20). Ao mostrar as mãos e o lado, Jesus mostra a continuidade entre o Ressuscitado e o Crucificado: trata-se da mesma pessoa. Geralmente, esse gesto é interpretado apenas como uma demonstração física da ressurreição: as chagas do Crucificado continuam no Ressuscitado. No entanto, aqui, as mãos e o lado não são apenas as marcas da paixão; são os sinais da identidade de Jesus de Nazaré que continuam no Cristo Ressuscitado, porque é a mesma pessoa. E os principais traços da identidade de Jesus são o serviço e o amor; foi isso que ele demonstrou em toda a sua vida terrena. Portanto, Jesus diz, com esse gesto, que continua servindo e amando, e sua comunidade deve também viver dessa forma. As mãos são sinais do serviço, e o lado é sinal do amor, pois representa o coração. E a certeza da presença do Ressuscitado faz a comunidade superar definitivamente o medo, passando à alegria.

Já estabelecido como centro da comunidade, «novamente Jesus disse: ‘A paz esteja convosco’» (v. 21a). A paz é novamente oferecida, porque a passagem do medo à alegria poderia tornar-se uma simples euforia nos discípulos; por isso a paz é doada novamente para enfatizar a serenidade e o equilíbrio que devem existir na comunidade. Só é possível acolher os dons pascais estando realmente em paz. Aqui, a paz não significa alívio ou tranquilidade, mas sinal de liberdade e vida plena; é a capacidade de assumir livremente as consequências das opções feitas. Tendo plenamente comunicado a paz como seu primeiro dom, o Ressuscitado os envia, como fora ele mesmo enviado pelo Pai: «Como o Pai me enviou, também eu vos envio» (v. 21b). Ao contrário de Mateus e Lucas que determinam as nações e até os confins da terra como destinos da missão (Mt 28,19; Lc 24,47; At 1,8), em João isso não é determinado: «Como o Pai me enviou, também eu vos envio». Jesus simplesmente os envia. Sem diminuir a importância da missão em sua dimensão universal, João pensa na comunidade, em primeiro lugar. É essa a primeira instância da missão, porque é nessa onde estão as situações de medo, de desconfiança, de falta de entusiasmo, por isso é a primeira a necessitar da paz do Ressuscitado.  

O texto mostra, como sempre, a coerência de Jesus: «E depois de ter dito isso, soprou sobre eles e disse: Recebei o Espírito Santo» (v. 22). Ora, ele tinha prometido o Espírito Santo aos discípulos durante a ceia (Jo 14,16.26; 15,26). Ao soprar sobre eles, o Espírito é comunicado e a promessa é cumprida. O evangelista usa o mesmo verbo/gesto do relato da primeira criação do ser humano (Gn 2,7). O Evangelho do domingo passado mostrava a nova criação em sua primeira fase; hoje, essa criação chega ao seu ponto alto com o sopro de vida comunicado pelo Ressuscitado. Nessa nova criação, o “Criador” já não age como um vigilante, olhando de cima, mas se faz presente no meio da comunidade, deixando-se tocar, vivendo como um igual entre as pessoas. O verbo soprar (em grego: έμφυσάω – emfysáo) significa doação de vida. Assim, podemos dizer que Jesus recria a comunidade e, nessa, a humanidade inteira. Ao receber o Espírito, a comunidade se torna também comunicadora dessa força de vida. E é o Espírito quem mantém a comunidade alinhada ao projeto de Jesus, porque é Ele quem faz a comunidade sentir, viver e prolongar a presença do Ressuscitado como seu único centro. E isso se faz através do amor e o serviço. Ao contrário da perspectiva de Lucas, que aguarda para o dia de Pentecostes (cinquenta dias após a páscoa), em João o Espírito Santo é doado no dia mesmo da ressurreição, o que parece mais lógico, tendo em vista a situação da comunidade paralisada pelo medo. A força do Espírito Santo era uma necessidade urgente para animar a comunidade.

O dom do Espírito Santo fortalece a comunidade e lhe confere uma grande responsabilidade: «A quem perdoardes os pecados eles lhes serão perdoados; a quem não perdoardes, eles lhes serão retidos» (v. 23). Por muito tempo, essa passagem foi usada apenas para fundamentar o sacramento da penitência. Mas Jesus não está dando um poder aos discípulos, e sim confiando-lhes uma responsabilidade: reconciliar o mundo, levar a paz e o amor do Ressuscitado a todas as pessoas, de todos os lugares em todos os tempos. Não se trata, portanto, de poder para determinar se um pecado pode ser perdoado ou não. É a responsabilidade da obrigatoriedade da presença cristã para que, de fato, o mundo seja reconciliado com Deus e, assim, humanizado.  Os discípulos têm a missão de ser comunicadores desse Espírito em todas as realidades. Ora, Jesus fora definido pelo Batista como o «Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo» (Jo 1,29); para isso fora enviado pelo Pai. E é à maneira do Pai que ele envia seus discípulos em todos os tempos: «Como o Pai me enviou, também eu vos envio» (v. 21). Portanto, os pecados são perdoados à medida em que o amor de Jesus vai se espalhando no mundo, pelo testemunho dos seus discípulos e pela força do Espírito Santo. Ficam pecados sem perdão, portanto, quando há omissão dos discípulos, quando eles deixam de amar e servir à maneira de Jesus.

A comunidade não estava completa naquele primeiro dia: assim como Judas não fazia mais parte do grupo, também «Tomé, chamado Dídimo, que era um dos Doze, não estava com eles quando Jesus veio» (v. 24). É necessário destacar algumas características desse discípulo, considerando que ele foi bastante rotulado negativamente ao longo da história. Ora, o motivo pelo qual os discípulos estavam reunidos com portas fechadas era o medo. Provavelmente, Tomé não estava trancado com eles porque não tinha medo. A evidência maior da coragem de Tomé aparece no relato da reanimação de Lázaro. Jesus estava ameaçado de morte, e quando decidiu ir à Judeia, onde ficava Betânia, a cidade de Lázaro, Tomé foi o único que se dispôs a ir para morrer com ele: «Tomé, chamado Dídimo, disse então aos condiscípulos: ‘Vamos também nós, para morrermos com ele!’» (Jo 11,16). Por isso, ele não tinha nenhum motivo para esconder-se. Essa sua coragem foi ofuscada pelo rótulo de incrédulo. Quanto à fé no Ressuscitado, a diferença de Tomé para os demais deve-se ao intervalo de uma semana. Não estava reunido no primeiro dia e não acreditou no testemunho da comunidade: «Os outros discípulos contaram-lhe depois: ‘Vimos o Senhor!’. Mas Tomé disse-lhes: ‘Se eu não vir a marca dos pregos em suas mãos, se eu não puser o dedo nas marcas dos pregos e não puser a mão no seu lado, não acreditarei’» (v. 25). Não dar credibilidade ao testemunho da comunidade foi o grande erro de Tomé, mas ao exigir evidências da ressurreição, ele agiu como os demais. Ora, à exceção do Discípulo Amado, o qual viu e acreditou logo ao contemplar o sepulcro vazio (Jo 20,8), os demais também só acreditaram após a manifestação do Senhor entre eles.

E mesmo sem acreditar ainda na ressurreição pelo primeiro anúncio dos companheiros, Tomé se reintegrou à comunidade. Assim, «Oito dias depois, encontravam-se os discípulos novamente reunidos em casa, e Tomé estava com eles. Estando fechadas as portas, Jesus entrou, pôs-se no meio deles e disse: ‘A paz esteja convosco’» (v. 26). Embora a reunião ainda aconteça às portas fechadas, o medo não é mais mencionado; certamente, fora superado, graças à paz e ao Espírito Santo comunicados pelo Ressuscitado comunicados no primeiro dia. Também é importante indicativo temporal «oito dias depois»; essa expressão significa uma semana depois; é explícita a referência ao domingo – o qual pode ser contado como o primeiro ou o oitavo dia da semana – como dia de reunião dos discípulos, como sinal de que a comunidade cristã já não está mais presa aos esquemas do judaísmo, e não necessita mais do sábado para fazer a sua experiência com o Senhor. Temos aqui um dado claro de ruptura entre a comunidade cristã e a sinagoga, embora nas primeiras décadas, por falta de clareza, muitos cristãos frequentavam as duas reuniões: a da sinagoga, no sábado, e a da comunidade de discípulos no domingo, na casa de um dos membros da comunidade. Mas o texto deixa claro que, no final da última década do primeiro século, dada provável da redação deste evangelho, o domingo já estava consolidado como o dia de reunião e encontro da comunidade.

O Senhor se pôs de novo no meio dos discípulos, com a presença de Tomé, conferindo novamente o dom da paz, sem o qual a comunidade não se sustenta. Assim como fez com os demais, uma semana antes, também a Tomé Jesus dá os sinais da sua identidade de Ressuscitado-Crucificado, que só sabe servir e amar: «Depois disse a Tomé: ‘Põe o teu dedo aqui e olha as minhas mãos. Estende a tua mão e coloca-a no meu lado. E não sejas incrédulo, mas fiel!’» (v. 27). Quando, assim como os demais, Tomé teve certeza da ressurreição, superou aos demais na intensidade e na convicção da fé; provavelmente, não tocou as mãos e o lado, como aparece na maioria das pinturas. Certamente, não precisou disso. É mais provável que tenha se jogado aos pés de Jesus, com essa solene declaração de fé: «Tomé respondeu: ‘Meu Senhor e meu Deus!’» (v. 28). Essa é a mais profunda profissão de fé de todos os evangelhos. Jesus já tinha sido reconhecido como Mestre, como Messias, Filho de Davi, Filho do Homem e Filho de Deus, mas como Deus mesmo, essa foi a primeira vez. Com isso, o evangelista ensina que não importa o tempo em que alguém adere à fé; o que importa é a intensidade e a convicção dessa fé. Neste sentido, Tomé é o discípulo modelo.

Ainda sobre Tomé, diz o evangelista que ele era chamado Dídimo (em grego: Δίδυμος – dídimos), cujo significado é gêmeo. No entanto, o evangelista não apresenta o irmão gêmeo de Tomé, mas deixa no anonimato. E os personagens anônimos do Quarto Evangelho têm função paradigmática para a comunidade e os leitores de todos os tempos. Na verdade, o primeiro gêmeo de Tomé é o próprio Jesus, não biologicamente, mas teologicamente. Daí o convite aos leitores e discípulos de todos os tempos a também tomarem Tomé como irmão gêmeo: questionador, corajoso, atento, sincero, perspicaz e convicto. É claro que se ele estivesse com a comunidade logo no primeiro dia, teria antecipado a sua profissão de fé. Mas é importante ser prudente e esperar, principalmente nos tempos atuais, com tantas visões, aparições e falsas certezas imediatas. Se muitos(a) videntes dos tempos atuais, assumissem a sua consanguinidade com Tomé, ou seja, se o reconhecessem como gêmeo, teríamos um cristianismo mais evangélico e autêntico, com mais convicção e menos fantasia.

A bem-aventurança proclamada por Jesus: «Bem-aventurados os que creram sem terem visto» (v. 28), reflete a preocupação do evangelista com as novas gerações de discípulos, após a morte dos apóstolos e das demais testemunhas de primeira hora. Os novos membros da comunidade joanina eram muito questionadores e chegavam a duvidar do anúncio, exigindo provas concretas da ressurreição. Por isso, o evangelista quis responder a essa realidade, mostrando que não há necessidade de visões e aparições; basta integrar-se a uma comunidade de fé para experimentar a presença do Ressuscitado. Na verdade, o evangelista usou Tomé como personagem simbólico da transição entre duas fases distintas na vida da comunidade: a geração dos que viram pessoalmente o Senhor, e a dos que aderiram a ele pela fé e o anúncio-testemunho. E não há supremacia de uma sobre a outra. O que importa é crer, o que significa plena adesão ao Evangelho. A presença do Ressuscitado pode ser verificada quando uma comunidade tem o serviço e o amor como sinais distintivos; a ausência desses sinais significa que o Ressuscitado não é o centro da comunidade.

Os versículos finais mostram que esse texto é a conclusão original do Evangelho de João: «Jesus realizou muitos outros sinais diante dos discípulos, que não estão escritos neste livro. Mas estes foram escritos para que acrediteis que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais a vida em seu nome» (vv. 30-31). Aqui está também a chave de leitura para todo o Evangelho: a promoção da vida; vida que para ser plena de sentido necessita do encontro com Jesus, o Cristo, o Ressuscitado que foi crucificado. O objetivo do Evangelho, portanto, é despertar a fé de pessoas e comunidades no Cristo que viveu para servir e amar. Animada pelo dom do Espírito Santo, a Igreja, em todos os tempos só pode se apresentar como pertencente a Jesus Cristo, o Filho de Deus Ressuscitado, com mãos abertas para servir e um coração capaz de sangrar por amor à humanidade. O capítulo seguinte (c. 21) é um acréscimo posterior da comunidade para responder a uma outra necessidade: o resgate da imagem de Simão Pedro, que tinha ficado bastante comprometida na comunidade devido à negação e outras incoerências; e para mostrar que sempre há a possibilidade de reabilitação e admissão à comunidade, não obstante os momentos de infidelidade e incoerência. 

A comunidade reunida é o lugar privilegiado de manifestação do Ressuscitado. Não importa o tempo e o lugar da adesão à fé; o que importa é acolher a paz que o Ressuscitado oferece e viver animado(a) pelo Espírito que ele transmite. E que o esse mesmo Espírito ajude a reconhecê-lo nos crucificados de sempre, ao longo da história: os pobres, feridos e marginalizados nas mais diversas situações. A fé no Ressuscitado é autêntica, de fato, quando há disponibilidade para de amar e servir, como ele fez. A exigência de Tomé foi, na verdade, uma advertência do evangelista: o seguimento de Jesus exige que se toque em feridas. Tocar as feridas das pessoas necessitadas, sanando suas dores, é fazer experiência com o Ressuscitado.

Pe. Francisco Cornélio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, abril 08, 2023

REFLEXÃO PARA O DOMINGO DA RESSURREIÇÃO – JOÃO 20,1-9

 


Todos os anos, o evangelho proposto para a liturgia do Domingo de Páscoa é João 20,1-9. Ao invés de ser um relato da ressurreição, como normalmente vem chamado, esse é, na verdade, um relato do «sepulcro encontrado vazio», pois a ressurreição em si não é relatada, uma vez que é acontecimento indescritível, ao contrário da paixão e da morte de Jesus, as quais são descritas minuciosamente pelos evangelhos. Esse fato pode parecer estranho, considerando que é a ressurreição o evento fundante do cristianismo e, por isso, o centro da fé cristã, e foi exatamente em função dessa que os evangelhos foram escritos. Mesmo assim, os evangelistas não conseguiram descrevê-la. O texto proposto hoje – Jo 20,1-9 – é apenas a introdução daquilo que o Quarto Evangelho dedica à ressurreição, sem, no entanto, descrevê-la: a descoberta do sepulcro vazio, o que pode significar muita coisa ou quase nada, a depender de quem faz a constatação. Três personagens entram em cena nesse texto: Maria Madalena, Simão Pedro e o Discípulo amado. O número três já é, por si, um grande e rico sinal; se trata de um indicativo teológico: significa uma comunidade que, embora se encontre profundamente abalada, devido ao final trágico de seu líder, aos poucos vai sendo recomposta, à medida em que a esperança será recuperada.

O primeiro versículo apresenta o retrato da comunidade antes de vivenciar a experiência da ressurreição: «No primeiro dia da semana, Maria Madalena foi ao túmulo de Jesus, bem de madrugada, quando ainda estava escuro, e viu que a pedra tinha sido retirada do túmulo» (v. 1). O “primeiro dia da semana” é o dia seguinte ao sábado, último dia da antiga criação. Com essa expressão, o evangelista indica que há uma nova criação em curso; um novo tempo e um novo mundo estão sendo gestados, mas ainda está na etapa primordial, o caos, simbolizado pela expressão «quando ainda estava escuro»; o escuro, como sinônimo de caos, fora constatado também na primeira criação (Gn 1,1-2). Na verdade, o indicativo temporal «bem de madrugada» e seu complemento enfático «quando ainda estava escuro» não é apenas uma indicação temporal; significa o estado da comunidade naquelas circunstâncias. A ausência de Jesus e a procura pelo seu corpo na morada dos mortos – o túmulo – reflete uma realidade de trevas na comunidade. Essa situação de trevas não se deve à ausência da luz física, mas significa que a vida não está triunfando na comunidade, ou seja, a morte está prevalecendo. Trevas é ausência de vida e de esperança, sobretudo na teologia de João. E a primeira atitude de inconformismo diante das trevas é de Maria Madalena. Sua atitude vai despertar toda a comunidade a buscar uma saída para a superação das trevas.

Sem a experiência do Ressuscitado, a situação da comunidade é caótica, pois essa fica sem rumo, sem saber o que fazer, como vemos na postura de Maria Madalena: «Então, ela saiu correndo e foi encontrar Simão Pedro e o outro discípulo, aquele que Jesus amava, e lhes disse: ‘Tiraram o Senhor do túmulo e não sabemos onde o colocaram’» (v. 2). A pressa e as palavras de Maria Madalena indicam uma situação de quase desespero. Embora o texto de João registre apenas a ida de Maria Madalena ao sepulcro, é mais provável que tenha sido um grupo de mulheres, como consta nos evangelhos sinóticos (Mt 28,1; Mc 16,1; Lc 24,1); João cita somente a Madalena para recordar o protagonismo dela na comunidade primitiva e para delimitar o número três com os dois discípulos mencionados (Pedro e o Discípulo Amado), dando uma ênfase teológica maior ao fato, indicando uma comunidade, pois o número três significa completude.

Ir ao túmulo é a atitude de quem acredita que a morte triunfou, pois o túmulo é a morada dos mortos, é um depósito de cadáver, mas é também uma manifestação de amor por aquele que julgava estar morto. A surpresa e o espanto de Maria Madalena são causados exatamente pela ausência do cadáver no túmulo. A cultura da morte e o desânimo estavam tão presentes na mente dos discípulos que nem mesmo a pedra removida do túmulo fora suficiente para animá-los. De fato, a remoção da pedra e a ausência do corpo de Jesus causaram, inicialmente, preocupação e espanto, ao invés de alegria e esperança. Na fala de Maria Madalena vem expressa a falência da comunidade: mesmo reconhecendo Jesus como “Senhor”, ela sente a falta de um cadáver; quer saber onde está o corpo morto para reverenciá-lo, provavelmente com os perfumes, e chorar junto dele. É a situação de quem ainda estava agindo na escuridão, sem reconhecer o novo dia que estava para nascer.

Com o aviso de Maria Madalena, também Pedro e o Discípulo Amado tomam a iniciativa de ir ao túmulo para conferir a veracidade da informação, uma vez que a palavra da mulher não era digna de credibilidade naquela sociedade: «Saíram, então, Pedro e o outro discípulo e foram ao túmulo» (v. 3). Continuando, diz o texto que «Os dois corriam juntos, mas o outro discípulo correu mais depressa que Pedro e chegou primeiro ao túmulo» (v. 4). A pressa do Discípulo Amado revela sua fidelidade, testada e comprovada aos pés da cruz (19,25-27), característica da pessoa amada. Somente quem fez uma autêntica e profunda experiência de amor com o Senhor é capaz de opor-se ao clima de morte reinante na comunidade, por isso, esse discípulo é anônimo; o evangelista não lhe dá um nome, mas apenas um adjetivo: amado.

Os personagens anônimos no Evangelho segundo João têm a função de paradigmas para a sua comunidade e os seus leitores de todos os tempos; assim, todo aquele que ler esse evangelho deve tornar-se um “discípulo amado” também. Ele, o Discípulo Amado chegou primeiro e comprovou que a informação da Madalena era verídica: «viu as faixas de linho no chão, mas não entrou» (v. 5). À pressa do Discípulo Amado opõe-se a lentidão e o desânimo de Pedro, após ter sido tão incoerente com o Mestre na fase final de sua vida: opôs-se a ele na ceia, no momento do lava-pés (Jo 13,6-8), e o negara durante o processo (Jo 18,15-27). A falta de motivação de Pedro foi, certamente, marcada pelo remorso da negação e outras incoerências, o que será transformado quando experimentar o Ressuscitado em sua vida.

O Discípulo Amado, embora tenha chegado primeiro, espera que Pedro também chegue e faça ele mesmo a sua experiência: «Chegou também Simão Pedro, que vinha correndo atrás, e entrou no túmulo. Viu as faixas de linho no chão» (v. 6). Tendo entrado no túmulo, Pedro comprova a ausência do corpo de Jesus e, certamente, faz uma longa reflexão a respeito de tudo o que tinha acontecido nos últimos dias. Embora a tradução litúrgica diga que ele “viu” as faixas de linho, o evangelista emprega um verbo de significado muito mais profundo: “contemplar” (em grego: θεωρέω theorêo), o que significa mais que simplesmente ver; inclusive, desse verbo grego deriva a palavra teoria, como consequência de uma observação profunda: um olhar contemplativo, processado na mente e no coração.

Depois de Pedro, entra também o Discípulo Amado no túmulo. Tendo chegado primeiro, poderia ter entrado logo, mas preferiu esperar que Pedro chegasse e entrasse logo. Não se trata de uma preeminência de Pedro, como sugerem algumas interpretações, uma vez que na comunidade joanina não ainda havia espaço para hierarquia, como Jesus mesmo deixou claro no lava-pés; era na verdade uma questão de necessidade: quem, de fato, necessitava de uma experiência mais forte era Pedro, pois, depois de Judas, foi o discípulo que mais tinha fracassado até então, impondo sempre resistências aos propósitos de Jesus, além da negação durante o processo. Já o Discípulo Amado tinha feito uma experiência autêntica com o Senhor durante toda a sua vida, por isso, «viu e acreditou» (v. 8); não se deixou vencer pelos sinais de morte vistos dentro do túmulo, mas reforçou ali a sua fé.

Para Pedro, foi necessário um pouco mais de tempo, pelo menos algumas horas, para convencer-se de que o Senhor ressuscitou e vive (Jo 20,19ss). Mas, os sinais estão apontando para isso: interiormente, ele já estava “teorizando” sua fé, reconstruindo-a lentamente, uma vez que os acontecimentos do lava-pés ao julgamento de Jesus foram muito fortes e deixaram suas expectativas bastante comprometidas. Será o próprio Senhor Ressuscitado a ajudá-lo no processo de reconstrução da fé, posteriormente, com a tríplice pergunta: «Pedro, tu me amas?» (Jo 21,15-19). Sem amor, não há discipulado e, muito menos, experiência pascal. As percepções diferentes do sepulcro vazio por Maria, Pedro e o Discípulo Amado são sinais da diversidade que marca comunidade cristã desde os seus primórdios. Os três viram o mesmo fenômeno, mas cada um reagiu à sua maneira: Maria com espanto e choro (Jo 20,11), Pedro com silêncio, e o Discípulo Amado com fé. Embora a dimensão comunitária da fé seja indispensável, as experiências de percepção e reação diante do mistério são sempre pessoais e devem ser respeitadas.

É o conhecimento da Escritura que, gradativamente, vai habilitando a comunidade a crer na ressurreição (v. 9), pois é na Escritura que os planos de Deus são indicados e conhecidos. A fé de Pedro, de Maria Madalena e dos demais será reformulada aos poucos, a cada “primeiro dia” quando se reunirem para a comunhão fraterna, compreendendo a partilha do pão e a leitura da Escritura. A comunidade que não coloca a Escritura no centro da sua existência, tende a repetir a situação inicial desanimadora de Maria Madalena, pois sem a Escritura «não sabemos onde está o Senhor» (v. 2). A propósito de Maria Madalena, é necessário considerar o fato de todos os evangelistas mencionarem as mulheres como as primeiras personagens dos acontecimentos do “primeiro dia”; mesmo não acreditando em primeira hora, é a partir da visão e das palavras delas que a ressurreição vai se tornando realidade na vida da comunidade. Ora, se os evangelistas, e João em particular, pretendem apresentar uma nova criação, a gestação de um novo mundo e um novo tempo, é imprescindível que o papel da mulher seja evidenciado. Mulher é sinônimo de vida nova, pois ela é, por excelência, geradora de vida. Mesmo quando a vida nova não é gerada no ventre de uma mulher, como no caso extraordinário da ressurreição, mas é da intuição e da perspicácia de uma mulher (ou de várias, como nos evangelhos sinóticos) que brotam as razões para a constatação dessa nova vida. Se na antiga criação a mulher não passava de uma companheira para o homem, na nova criação ela assume um protagonismo ímpar: é a primeira a ver e a falar.

Além da compreensão da Escritura, é necessária a experiência do amor autêntico para a fé e o encontro com o Ressuscitado. O Discípulo Amado já tinha completado essas duas etapas, por isso, somente Ele acreditou em primeira mão, pois foi capaz de ler os sinais do sepulcro aberto e o corpo ausente à luz do amor e das Escrituras. Só crê num primeiro momento quem ama e sente-se amado, como aquele Discípulo sem nome, ao qual o evangelista quer que todos os seus leitores se assemelhem! Assim, concluímos voltando para o nosso início: a ressurreição não pode ser descrita, pode apenas ser experimentada. Para isso, é necessário fazer a experiência do amor profundo e do conhecimento da Escritura. 

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

REFLEXÃO PARA O 4º DOMINGO DA PÁSCOA – JOÃO 10,11-18 (ANO B)

O evangelho do quarto domingo da páscoa é sempre tirado do capítulo décimo do Evangelho de João, no qual Jesus se auto apresenta como o ún...