sábado, agosto 26, 2023

MINHA IMPRESSÃO SOBRE CESARÉIA DE FILIPE, O CENÁRIO DA CONFISSÃO DE PEDRO






Em minha estadia na Terra Santa, durante o curso de arqueologia bíblica que fiz em 2022, um dos lugares visitados que mais me chamou a atenção foi o parque arqueológico de Banías, aos pés do famoso Monte Hermon, onde nasce o rio Jordão. É nesse parque onde estão as ruínas da antiga cidade romana de Cesaréia de Filipe, onde os evangelhos sinóticos localizam a confissão de Pedro, reconhecendo Jesus como o Messias (Mt 16,13-20; Mc 8,27-30; Lc 9,18-21).

Em geral, a Tradição fantasiou muito os lugares citados nos evangelhos, procurando determinar com precisão o espaço onde teriam ocorrido os eventos narrados. Houve certo exagero nessa tendência. No caso de Cesaréia de Filipe, me surpreendeu muito a ausência de qualquer demarcação para a cena da confissão de Pedro. Há apenas as ruínas da cidade, numa paisagem esplêndida, privilegiada pela natureza, com o verde da floresta, as pequenas cachoeiras do Jordão e o paredão de pedra que forma o Hermon.

Pela repercussão do episódio ao longo da história, e considerando o costume de supervalorizar certos espaços, imagino que poderiam ter fixado um espaço como o local preciso da confissão de Pedro e até construído uma igreja no local. A ausência disso me chamou muito a atenção, positivamente. Existe o lugar e, certamente, Jesus passou por lá com seus discípulos. Saber disso é suficiente. Quando há uma determinação precisa de certos espaços, percebe-se logo a superficialidade e a forçação de barra. Inclusive, existem espaços fixados como local preciso até de episódios comprovadamente não históricos.

Durante o curso, eu compartilhava essa impressão positiva com os professores e colegas. Cesareia de Filipe foi uma surpresa muito agradável. Na verdade, o curso todo foi uma experiência incrível, mas Cesareia de Filipe deu essa surpresa a mais. Lá, a gente não é forçado a assimilar um dado tradicional de precisão duvidosa, mas apenas convidado a contemplar e renovar as convicções do seguimento de Jesus, o Messias que é Filho do Deus vivente.

Pe. Francisco Cornelio – Diocese de Mossoró-RN

sexta-feira, agosto 25, 2023

REFLEXÃO PARA O 21º DOMINGO DO TEMPO COMUM – MATEUS 16,13-20 (ANO A)



Após uma pausa para a solenidade da Assunção de Nossa Senhora, a liturgia deste vigésimo primeiro domingo do tempo comum retoma a leitura semi-contínua do Evangelho de Mateus, como é próprio do ciclo litúrgico A. O texto proposto para este dia – Mt 16,19-20 – é muito rico e significativo, pois contém o relato do clássico episódio de Cesareia de Filipe, cujo ápice é a confissão de fé de Pedro, que reconhece e proclama Jesus como o Cristo, ou seja, o Messias. Trata-se de um episódio comum aos três evangelhos sinóticos (Mt 16,13-20; Mc 8,27-30; Lc 9,18-21), sendo que a versão de Mateus apresenta mais elementos próprios, como veremos no decorrer da reflexão. E foi exatamente por causa dos seus elementos próprios que o texto de Mateus foi mais valorizado, ao longo dos séculos, sobretudo, no cristianismo de tradição católica romana. Antes de entrarmos na reflexão do texto em si, é necessário fazer algumas considerações a respeito do contexto do relato no conjunto do Evangelho. Convém recordar que esse trecho abre uma série de acontecimentos importantes da vida de Jesus e dos seus seguidores, como a transfiguração (Mt 17,1-7) e os dois primeiros anúncios da paixão (Mt 16,21-23; 17,22). Na verdade, pode-se dizer que esses acontecimentos são consequência do episódio narrado no evangelho de hoje, pois tanto a transfiguração quanto os anúncios da paixão são tentativas de Jesus revelar a sua verdadeira identidade, tendo em vista que os discípulos ainda não tinham tanta clareza dessa.

Recordamos acima o que sucede ao texto no conjunto do evangelho, mas também não podemos deixar de recordar o que o antecede: houve uma controvérsia de Jesus com os fariseus, que lhe pediram um sinal do céu (Mt 16,1-4), e uma séria advertência aos discípulos para não se deixarem contaminar pelo fermento dos fariseus e saduceus (Mt 16,5-12). Esse fermento era a mentalidade equivocada sobre Deus e o futuro messias e, principalmente, a hipocrisia em que viviam. Mateus recorda tudo isso porque, certamente, a sua comunidade passava por uma crise de identidade: por falta de clareza da identidade de Jesus e falta de experiência autêntica com o Crucificado-Ressuscitado, o “fermento dos fariseus”, quer dizer a influência da sinagoga, estava atrapalhando a vivência das bem-aventuranças, síntese do programa de Jesus, e impedindo a realização do Reino dos céus naquela comunidade. Todos esses elementos introdutórios recordados, a nível de contexto, confirmam que o episódio narrado no evangelho de hoje constitui um verdadeiro divisor de águas no ministério de Jesus e, consequentemente, na vida dos seus primeiros discípulos.

Feita a contextualização, olhemos para o texto: «Jesus foi à região de Cesaréia de Filipe e ali perguntou aos seus discípulos: ‘Quem dizem os homens ser o Filho do homem?’» (v. 13). Como se vê, o texto começa com um indicativo espacial. Cesareia de Filipe estava localizada no extremo norte de Israel, portanto, muito longe de Jerusalém. Como o próprio nome indica (homenagem a César), era um centro do poder imperial e, portanto, lugar de culto ao imperador romano. Certamente o evangelista e sua comunidade tinham um propósito muito claro ao narrar esse episódio e recordar a sua localização. Ora, longe de Jerusalém, os discípulos estariam isentos da influência do fermento dos fariseus e, portanto, aptos a confessarem e professarem livremente a fé em Jesus, fora dos esquemas tradicionais da religião. O distanciamento físico, portanto, é sinal do distanciamento da ideologia que Jerusalém representa. Ao mesmo tempo, estando em uma região de culto ao imperador, a confissão da fé em Jesus se torna um sinal de convicção e adesão ao projeto do Reino dos Céus, e uma demonstração da coragem que deve marcar a vida da comunidade cristã, chamada a testemunhar a Boa Nova, e a continuar a obra de Jesus, mesmo em meio às hostilidades impostas pelo poder imperial. Portanto, pode-se dizer que professar a fé em Jesus é distanciar-se dos esquemas tradicionais do judaísmo e, ao mesmo tempo, desafiar qualquer sistema que não coloque a vida e o bem do ser humano em primeiro lugar, como o império romano. Isso torna a confissão de Pedro um ato extremamente subversivo.

A expressão “Filho do Homem” ao invés do pronome pessoal “eu” é a primeira particularidade de Mateus em relação às versões de Marcos e Lucas, deste episódio. Porém, o sentido aqui é o mesmo. A pergunta de Jesus sobre o que diziam a respeito de si, ou seja, do Filho do Homem, não é demonstração de preocupação com sua imagem pessoal, mas com a eficácia do anúncio da comunidade. Àquela altura da sua vida pública, ele já tinha realizado muitos sinais entre o povo e ensinado bastante, mas pouca gente o conhecia verdadeiramente. Muitos o seguiam pela novidade que ele trazia, uns pelo seu jeito diferente de acolher os mais necessitados e excluídos, outros para aproveitarem-se dos sinais que ele realizava. Foi como consequência disso que ele fez a pergunta: «Que dizem os homens ser o Filho do Homem?» (v. 13b). E a resposta dada pelos discípulos revela a falta de clareza que se tinha a respeito da sua identidade e, ao mesmo tempo, a boa reputação da qual ele já gozava diante do povo; certamente, o povo simples, com quem ele interagia e por quem lutava. Eis a resposta: «alguns dizem que é João Batista; outros, que é Elias, outros, ainda, que é Jeremias ou algum dos profetas» (v. 14). A menção a Jeremias entre os personagens com os quais o povo identificava Jesus é outra exclusividade de Mateus. Marcos e Lucas nomeiam apenas João Batista e Elias. O acréscimo de Mateus é significativo, pois Jeremias foi o profeta mais “parecido” com Jesus, em relação ao estilo de vida, o teor da pregação e a perseguição sofrida.

A resposta mostra o quanto Jesus estava bem-conceituado pelo povo, pois era reconhecido como um grande profeta. Mas ele era e é muito mais. Logo, trata-se de uma resposta incompleta. Ora, embora continuem sempre atuais, os profetas de Israel são personagens do passado. E a comunidade cristã não pode ver Jesus como um personagem do passado que deixou um grande legado a ser lembrado, pois isso a impede de fazer sua experiência com o Ressuscitado, presente e atuante na história. Apesar de importante, a pergunta de Jesus sobre o que as outras pessoas diziam a seu respeito foi apenas um pretexto. Na verdade, o que ele queria saber mesmo era o que os seus discípulos pensavam de si, qual imagem tinham a seu respeito. Por isso, lhes perguntou: «E vós, quem dizeis que eu sou?» (v. 15), uma vez que longe do “fermento dos fariseus”, os discípulos poderiam dar uma resposta sincera, isenta e livre. O texto afirma que «Simão Pedro respondeu: ‘Tu és o Messias, o Filho do Deus vivo’» (v. 16). Certamente, também os outros discípulos também responderam. O evangelista enfatiza a resposta de Pedro por ser uma síntese do pensamento dos doze. Essa é a resposta do grupo e, portanto, da comunidade, da qual Pedro se faz porta-voz.

A resposta de Pedro é complexa e profunda. Ele confessa que Jesus é «o Messias, o Filho e do Deus vivo». A tradução litúrgica traz a palavra “Messias”, no entanto, é mais apropriado o termo “Cristo”, conforme o texto na língua original (em grego: Χριστός – Christós). É muito significativo que Jesus seja reconhecido e acolhido como o Messias esperado, ou seja, o Cristo, o enviado de Deus para libertar o seu povo e a humanidade inteira. Como circulavam muitas imagens de messias entre o povo, principalmente a de um messias guerreiro e glorioso, o segundo elemento da resposta de Pedro é de extrema profundidade e importância: «o Filho do Deus vivo». Além de definir a qualidade da messianidade de Jesus, essa expressão serve também para denunciar a falsidade do culto ao imperador romano, o qual exigia ser reverenciado como filho de uma divindade. Por sinal, a expressão «Filho do Deus vivo», na resposta de Pedro, é outra exclusividade de Mateus. Em Marcos, a resposta é apenas «Tu és o Cristo!» (Mc 8,), e em Lucas é «Tu és o Cristo de Deus» (Lc 9,20). Logo, a resposta em Mateus é mais profunda e completa, sendo também mais universalista. Ora, o título “Cristo” (ou Messias) correspondia às mais profundas expectativas do judaísmo, bastante enraizado na comunidade de Mateus, o que seria um incentivo à preservação da ideologia nacionalista.

Com a expressão «o Filho do Deus vivo», o evangelista ensina que a messianidade de Jesus não corresponde às expectativas de Israel; trata-se de um Messias diferente, que não veio apenas para Israel, mas para a inteira humanidade. Assim, a resposta de Pedro compromete a(s) comunidade(s) cristã(s), em todos os tempos e lugares, a proclamar que Jesus é, de fato, o Cristo, é o Filho do Deus vivo, ou seja, o seu Deus é o Deus da vida, enquanto os deuses pagãos cultuados no império romano e até mesmo o Deus oferecido pelo templo de Jerusalém eram privados de vida, eram agentes de morte, sobretudo para o povo simples e excluído que era explorado diariamente. Portanto, a convicção de que Jesus é o Filho do Deus vivo compromete a comunidade a denunciar e desafiar todos os sistemas religiosos e políticos que não favoreçam a promoção da liberdade, e da vida plena e abundante para todos.

Jesus aprovou a resposta de Pedro, por isso o proclamou bem-aventurado: «Feliz és tu, Simão, filho de Jonas, porque não foi um ser humano que te revelou isso, mas o meu Pai que está no céu» (v. 17).  De agora em diante, até o versículo 19, o texto passa a ser exclusivo de Mateus. O paralelismo com Marcos e Lucas só volta no versículo 20. Considerando que Mateus teve Marcos como fonte para este episódio, os versículos 17-19 são um acréscimo da sua comunidade como resposta a necessidades concretas, sobretudo em relação à diferenciação da comunidade com a sinagoga. A bem-aventurança dirigida a Pedro não é um elogio por um mérito particular, até porque o conhecimento não é dele, mas do Pai que lhe revelou. O que Jesus faz, então, é uma constatação: parece que as coisas começam a funcionar bem na comunidade, pois a voz do Pai está sendo ouvida; e como o Pai só revela seus desígnios aos pequeninos (Mt 10,21), e Pedro estava falando a partir do que o Pai lhe revelou, logo ele estava demonstrando adesão plena ao projeto do Reino, inserindo-se no mundo dos pequeninos! O Reino de Deus ou dos céus, como Mateus prefere, é um projeto alternativo de mundo que só tem espaço para quem aceita a condição de pertencer ao mundo dos pequeninos. A bem-aventurança de Pedro, portanto, consiste em abrir-se à vontade do Pai e deixar-se conduzir por ela.

Na continuidade, Jesus declara: «Por isso eu te digo que tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja» (v. 18a). Jesus está declarando que Pedro está apto a participar da construção da sua comunidade – a Igreja –, por estar aberto às intuições do Pai. Ao contrário da antiga religião judaica que precisava de um templo de pedras, a comunidade cristã é uma construção sim, mas pela sua coesão e unidade, por isso, na sua construção são necessárias pedras vivas, pessoas de fé. E Pedro foi uma destas pedras escolhidas por Jesus, a primeira, sem dúvidas. A pedra fundamental da construção é a fé da comunidade. A força, o equilíbrio e a perseverança da comunidade dependem da solidez da sua fé. Por isso, é necessário que essa fé seja forte como uma rocha, comparável à fé que Pedro tinha acabado de professar. É importante esclarecer que Mateus usa duas palavras gregas muito parecidas para designar Pedro e pedra: (Πέτρος“Petros” (πέτρα“petra”. Embora muito próximas, é possível distingui-las: “Petros”que foi transformada no nome próprio Pedro, designa pedra, pedregulho ou tijolo, uma pedra pequena e removível, uma pedra de construção; “petra”, por sua vez, designa a superfície rochosa, base ideal para os fundamentos de uma construção segura. São estas as bases necessárias para a edificação da Igreja enquanto comunidade do Reino. Portanto, Jesus diz que Pedro (petros) é uma pedra-tijolo da construção, e a pedra-rocha (petra) é a fé que ele professou, a superfície rochosa sobre a qual a Igreja é edificada.

A proclamação de Jesus como Cristo e Filho de Deus é a base da comunidade cristã, a Igreja. Por sinal, essa é a primeira vez que aparece a palavra igreja (em gregoἐκκλησία – ekklesia) no Evangelho de Mateus, único que a emprega, e somente duas vezes (Mt 16,18; 18,17); o significado da palavra é assembleia convocada, reunião, comunidade. Ao contrário do templo de Jerusalém e dos templos pagãos que havia na região de Cesaréia de Filipe, construídos sobre pedras concretas e visíveis e, portanto, passíveis de destruição, a comunidade cristã não correrá esse risco se for edificada conforme Jesus pensou, ou seja, tendo a fé por fundamento. Por isso, ele declara: «e o poder do inferno nunca poderá vencê-la» (v. 18b). Aqui, ele se refere às hostilidades que a comunidade irá enfrentar em seu longo percurso até a instauração do Reino aqui na terra, razão da sua existência. O “poder do inferno”, portanto, significa as forças de morte manifestadas nos diversos sistemas de dominação, tanto políticos quanto religiosos. A comunidade precisa de uma fé muito consistente para resistir a tudo isso. Essas forças retardam a concretização do Reino, mas não impedirão a sua realização. Para superá-las é imprescindível uma fé viva e comprometida, como a fé de Pedro e Paulo, e de tantos outros irmãos que doaram a vida pelo Reino.

No último versículo temos mais uma declaração significativa de Jesus a Pedro e à comunidade dos discípulos: «Eu te darei as chaves do Reino dos céus: tudo o que ligares na terra será ligado nos céus; tudo o que desligares na terra será desligado nos céus» (v. 19). Mais do que delegando poderes, Jesus está responsabilizando a comunidade para fazer o Reino dos céus acontecer. No judaísmo, a imagem das “chaves” correspondia à capacidade de interpretação e aplicação da Lei pelos rabinos e escribas. Inclusive, o próprio Jesus vai denunciá-los por terem “fechado” o Reino dos Céus: «Ai de vocês, doutores da Lei e fariseus hipócritas! Vocês fecham o Reino do Céu para os homens. Nem vocês entram, nem deixam entrar aqueles que desejam!» (Mt 23,13). As chaves confiadas a Pedro e a toda a comunidade, portanto, são para abrir o Reino a todas as pessoas, a começar pelas marginalizadas e sofridas, os pobres, as vítimas das mais variadas formas de exclusão. Portanto, Mateus não emprega a imagem das chaves como símbolo de uma instituição nem conferimento de um poder, mas como sinal de uma nova relação com Deus, baseada na comunhão e na verdade. A antiga religião tinha bloqueado, escondido o rosto desse Deus, mas Jesus dá a chave de acesso a ele: a vivência das bem-aventuranças (Mt 5,1-12), que são a síntese de toda a sua mensagem. Logo, a função de “ligar e desligar” representa a responsabilidade da comunidade e a necessidade de comunhão, e não propriamente um poder instituído. Inclusive, no discurso sobre a comunidade, essa mesma função será atribuída a toda a comunidade (Mt 18,18). Isso exige profunda fidelidade da Igreja para viver em profunda comunhão com Jesus e o Pai, para que tudo o que essa venha a realizar e viver seja referendado por eles.

O último versículo apresenta uma proibição de Jesus aos discípulos: «Jesus, então, ordenou aos discípulos que eles não dissessem a ninguém que Ele era o Messias» (v. 20). A princípio, parece uma contradição, uma vez que a comunidade tem a missão de anunciar Jesus e sua boa nova. Ora, Jesus conhecia muito bem os seus discípulos e suas fragilidades. Essa confissão de Pedro já foi um grande passo, mas sabia ainda continuavam vulneráveis e aquela fé não se manteria tão sólida com o passar do tempo, como o próprio Evangelho vai mostrar na sua sequência. Espalhar que Jesus era o Messias seria muito arriscado para a continuidade do seu projeto, pois a ideia de Messias que circulava na época era completamente diferente do tipo de messianismo que estava revelando. Certamente, muitos mal-entendidos surgiriam. Essa ordem para que os discípulos não contassem a ninguém que ele era o Messias reforça na comunidade a necessidade que cada um tem de fazer uma experiência autêntica com Ele, seguindo cada passo da sua vida para, de fato, perceber a especificidade do seu messianismo e da sua vida: servir e amar, até dar a própria vida.

Se a comunidade/Igreja viver fielmente o Evangelho, sintetizado nas bem-aventuranças, que são as chaves de leitura de toda a obra de Mateus, e de acesso ao Reino, não resta dúvidas de que Jesus e o Pai confirmarão as suas decisões e pleitos lá nos céus. Por isso, é importante manter-se em comunhão perene com Jesus, aberta aos apelos do Espírito Santo e aos sinais dos tempos, como os meios privilegiados por meio dos quais Deus revela a sua vontade ao longo da história. A confissão de Pedro foi fruto de sua abertura à vontade de Deus, como deve abrir-se também a comunidade em todos os tempos. É essa abertura, sinal de comunhão, que possibilita a confirmação nos céus daquilo que se faz e se vive na terra.

Pe. Francisco Cornélio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sexta-feira, agosto 18, 2023

REFLEXÃO PARA A SOLENIDADE DA ASSUNÇÃO DE NOSSA SENHORA – LUCAS 1,39-56


 

Neste ano, a liturgia do vigésimo domingo do tempo comum é substituída pela solenidade da Assunção de Nossa Senhora. Independentemente do ano litúrgico, o evangelho desta festa é sempre o mesmo: Lc 1,39-56. Trata-se de um dos textos mais conhecidos do Evangelho de Lucas, que compreende a visitação de Maria à sua parenta Isabel, e o famoso cântico do MagnificatEmbora a assunção só tenha se tornado dogma em 1950, pelo papa Pio XII, as tradições relativas à festa em si são muito antigas. Inicialmente, celebrava-se essa festa com o nome de “dormição de Nossa Senhora”, título que as igrejas do Oriente preservam até hoje. Contudo, como sempre, concentramos a nossa reflexão exclusivamente a partir do texto do evangelho proposto, o qual possui grande importância para o conjunto da obra de Lucas. E é importante começar considerando o contexto narrativo, que é o chamado “Evangelho da Infância”, formado pelos dois primeiros capítulos do (Lc 1–2), que funcionam como introdução literária e síntese teológica de toda a obra.

É unanimidade entre os estudiosos que, no “Evangelho da Infância”, Lucas antecipa as principais linhas teológicas da sua grande obra, composta também pelo livro de Atos dos Apóstolos. E o trecho lido hoje é uma boa demonstração disso. De fato, os principais temas da obra lucana, como o protagonismo das mulheres, a opção pelos pobres, a força transformadora do Espírito Santo, a misericórdia de Deus, e a natureza missionária da Igreja estão bem presentes no evangelho de hoje. E o primeiro tema evidenciado é exatamente o protagonismo feminino: a cena é dominada pelo encontro de duas mulheres que, em diálogo, expressam suas impressões sobre os últimos acontecimentos, reconhecendo neles o agir de Deus, e apontando um futuro novo. Com isso, o evangelista preconiza o início de uma nova história para a humanidade, com novas perspectivas e esperanças; trata-se de uma história construída e escrita a partir dos pobres, desprezados e marginalizados da sociedade, como eram as mulheres na época em que Evangelho foi escrito. O que Deus sempre propôs à humanidade, começa a cumprir-se e realizar-se definitivamente a partir do sim de Maria. Como pessoas simples e humildes, Maria e Isabel, protagonistas do episódio, são uma prova de que o Deus de Israel tem um lado na história: o lado dos pobres, humildes e marginalizados, a quem ele dirige o seu olhar misericordioso (v. 48).

Certamente admirada com tudo o que estava acontecendo consigo e com Isabel, pois o anjo lhe informara (Lc 1,36), Maria tomou a firme decisão de ir visitar sua parenta. Assim diz o texto: «Naqueles dias, Maria partiu para a região montanhosa, dirigindo-se, apressadamente, a uma cidade da Judeia» (v. 39). Embora a maioria das interpretações apontem o desejo de servir a Isabel como o motivo da partida apressada de Maria, o texto não fornece nenhum indício. Sem dúvidas, o serviço ao próximo sempre fez parte do estilo de vida de Maria, sobretudo após o seu decisivo sim a Deus. Mas aqui se pode ver algo além disso. Ora, quando Maria questionou o anjo no momento do anúncio, sobre como poderia engravidar se não tinha relação com homem algum (Lc 1,34), o anjo disse que tudo seria obra do Espírito Santo, e ainda deu um exemplo concreto como sinal e prova de que nada é impossível para Deus: Isabel, uma anciã estéril estava grávida (Lc 1,36). A gravidez de uma anciã estéril seria tão surpreendente quanto a de uma jovem virgem. É, portanto, normal e compreensível que Maria tenha procurado Isabel para confirmar se o que anjo lhe dissera era verdade. Também é normal que tenha procurado sua parenta para partilhar a alegria do que estava acontecendo com ambas, como sinal da fidelidade de Deus ao seu povo, Israel, de quem as duas são imagens.

Ao conceder tanto espaço a Maria no início do seu Evangelho, Lucas está criando o modelo de discípulo e discípula ideal para Jesus. Por isso, é importante apresentá-la em movimento, disposta a proclamar, até nos lugares mais distantes, as maravilhas de Deus e a certeza de que ele está construindo uma nova história, a partir das pessoas humildes e marginalizadas. A partida de uma jovem grávida de Nazaré, na Galileia, para a Judeia antecipa os desafios e a necessidade dos discípulos de todos os tempos estarem sempre em estado de saída. Mesmo que a distância não fosse tão grande, as circunstâncias eram muito adversas para uma jovem mulher. É típico da obra lucana o movimento, o sair de si. Essa partida imediata de Maria faz dela um modelo de discípula e, ao mesmo tempo, inaugura o primeiro movimento de Jesus: ainda no ventre, Ele já estava inquieto e pronto a romper qualquer situação de estabilidade e tranquilidade, mesmo enfrentando adversidades e perigos, como Maria teria enfrentado no caminho, indo sozinha para uma região montanhosa e de difícil acesso.

O evangelista diz que, chegando ao destino, Maria «Entrou na casa de Zacarias e cumprimentou Isabel» (v. 40). Muito mais do que cumprimentar, o verbo “saudar” seria mais apropriado na tradução do texto. A expressão hebraica para a saudação é o desejo de paz – o hebraico shalom. Mais tarde, ao enviar seus discípulos em missão, Jesus ordenou que eles desejassem a paz em cada casa que entrassem (Lc 10,5). Aqui, mais uma vez, Maria antecipa a atitude de cada discípulo e discípula de Jesus: ser portador(a) da paz! E a paz que Jesus comunica é sempre inquieta; não é tranquilidade nem resignação; é o acesso aos bens messiânicos, como a libertação de todas as cadeias de morte impostas pelos sistemas dominantes, é a conquista de um mundo com igualdade e bem-estar para todos. E o evangelista sempre apresenta Maria quebrando paradigmas: como mulher inovadora e corajosa, ela ignora a tradição patriarcal e saúda a mulher ao invés do homem (v. 40). Assim, ela provoca uma verdadeira revolução e inversão de valores nas relações sociais, como aprofundará mais adiante, no seu hino, o Magnificat. Na sociedade do seu tempo, quem deveria ser saudado era o dono da casa; saudando a mulher, ela afirma que um tempo novo está surgindo, com novas relações e uma nova ordem.

A saudação de Maria irradia paz no ambiente, a ponto de fazer até mesmo a criança, ainda no ventre, agitar-se (v. 41a), o que confirma que a paz de Jesus, que ela antecipa, não combina com tranquilidade, mas provoca inquietude. Isso porque Isabel ficou «cheia do Espírito Santo» (v. 41b), como Maria já era. Trata-se do mesmo Espírito prometido pelo anjo a Maria no momento do anúncio: “O Espírito Santo descerá sobre ti” (Lc 1,35a). Como força vital, o Espírito Santo é luz irradiante e interpelante, que pode ser sentido quando transmitido por pessoas cheias dele, como Maria. Quem recebe o Espírito Santo, o irradia por onde passa e onde chega. A atitude de Isabel não poderia ser outra, senão exclamar, gritando: «Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre!» (v. 42). É a palavra profética que nela se atualiza. Sabendo que Maria carregava dentro de si o Messias, isso fazia dela a mais “bendita” entre todas as mulheres. Assim, Isabel torna-se a primeira a proclamar as “bem-aventuranças” no Evangelho de Lucas. Ora, gerar filhos na mentalidade bíblica, era sinal de bem-aventurança e bênção; uma confirmação de que se tinha Deus a seu favor. Logo, gerar o Messias seria prova de uma dignidade inigualável.

Tendo composto seu Evangelho com muita atenção para a Escritura hebraica, o Antigo Testamento, Lucas procura atualizá-lo no “evento Cristo”. Assim, na continuação da exclamação de Isabel, o evangelista desenha Maria como a nova “Arca da Aliança”. Como sabemos, na arca da aliança eram guardadas as tábuas da lei, sinal máximo da presença de Deus no meio do seu povo. Com a exclamação de Isabel: «Como posso merecer que a mãe do meu Senhor me venha visitar?» (v. 43), Lucas relembra e atualiza as palavras de Davi quando estava para receber a Arca em sua casa: «Como virá a Arca de Iahweh para minha casa?» (2 Sm 6,9). Portanto, Lucas percebe em Maria a arca da nova da aliança, não mais portadora da Lei escrita em tábuas de pedra, e sim portadora do amor e da misericórdia de Deus. A Lei que Maria carrega em si é o próprio Jesus com seu Evangelho libertador e o Espírito Santo, do qual ela estava cheia e, por isso, o irradiava, sendo a primeira a viver a experiência do Pentecostes. Diante da arca, Davi exclamou com medo (2 Sm 6,10), enquanto, diante de Maria, Isabel exclamou de alegria, o que mostra que a Lei escraviza, enquanto o Espírito, que é amor, liberta.

E, mais uma vez, Lucas faz Maria ser reconhecida como bem-aventurada«Bem-aventurada aquela que acreditou, porque será cumprido o que o Senhor lhe prometeu» (v. 45). O motivo do reconhecimento, desta vez, é a fé: ela é bem-aventurada porque acreditou. Além de exaltar a fé de Maria, as palavras de Isabel funcionam também como uma repreensão ao seu esposo Zacarias, o qual, ao contrário de Maria, não acreditou no anúncio do anjo (Lc 1,20), por isso ficou mudo até que o menino nascesse. Assim, Isabel combate a incredulidade do marido e reforça a sua fé renovada pela presença de Maria, como ela confessou: «Será cumprido o que o Senhor lhe prometeu» (v. 45b). Ao repreender a incredulidade do esposo Zacarias, um sacerdote, Isabel proclama a decadência da antiga religião oficial do templo, demonstrando que somente os pobres, simples e humildes são capazes de acolher as intuições do Espírito Santo, como Maria. Assim, a religião do rigor e da Lei estava superada, pois não capacitava o ser humano para perceber o agir de Deus na vida e na história. Isso quer dizer que, para o evangelista, o exemplo de fé não está nas autoridades religiosas, mas nas pessoas simples e humildes.

Na sequência do texto, finalmente, Maria toma a palavra, pois somente Isabel tinha falado até aqui. As entrelinhas apontam para um provável constrangimento de Maria, diante de tantos elogios. Por isso, o evangelista mostra ela praticamente interrompendo Isabel, para expressar a sua alegria e o louvor a Deus, com o magnífico cântico (vv. 46-54). Isto reflete, certamente, a preocupação do evangelista com a construção futura da imagem de Maria na Igreja: não é ela que deve ser louvada, mas o Deus que agiu nela. O centro do culto e da vida cristã é sempre Deus, pois é ele o autor das maravilhas operadas e, portanto, é a ele que o reconhecimento e o louvor devem ser dirigidos. O Magnificat é o primeiro dos cânticos que Lucas apresenta em seu Evangelho. Trata-se de uma composição que sintetiza todo o Antigo Testamento e, ao mesmo tempo, antecipa a missão de Jesus. Lucas faz uma construção nova com pedras antigas, pois o texto é um verdadeiro mosaico de citações do Antigo Testamento. A estrutura básica é tomada do cântico de Ana (1Sm 2,1-10), o que se explica pela semelhança das duas situações, uma vez que, assim como Isabel, também Ana era considerada estéril e concebeu um profeta, Samuel, como Isabel concebeu João Batista. Se Isabel estava maravilhada por contemplar grandes coisas (vv. 42-45), Maria lhe ajuda a compreender melhor tal situação, convidando-a a olhar para a história e perceber que, na verdade, esse Deus de Israel nunca esqueceu o seu povo, sempre fez grandes coisas em seu favor e, portanto, é a Ele que o louvor deve ser dirigido. Tudo o que estava acontecendo era dom de Deus e prova da sua fidelidade.

Em seu cântico, Maria personifica Israel e resume os grandes feitos de Deus na história, destacando, sobretudo, a sua predileção pelos pobres, humildes e humilhados. Quando reconhece que «o Todo-Poderoso fez e faz grandes coisas» (v. 49), também  se afirma que não há outros poderosos, exatamente porque devem ser derrubados de seus falsos tronos (v. 52). E essa é a primeira condição para o início da edificação do Reino de Deus: a queda dos poderosos, ou seja, de todos os detentores de poder que oprime e mata. Um só é o Poderoso, Deus, e este destina seu poder em favor da libertação dos pequenos. Temos, então, o início do cumprimento das antigas promessas, agora sob a responsabilidade de Jesus e da comunidade dos discípulos, da qual Maria é modelo. Aqui, mais uma vez, Lucas faz Maria antecipar o programa messiânico de Jesus, que será anunciado na sinagoga de Nazaré (Lc 4,16-18) e confirmado no sermão da planície: a expressão «Encheu de bens os famintos» (v. 53a), antecipa as bem-aventuranças dirigidas aos pobres (Lc 6,20-21); já a expressão «Despediu os ricos de mãos vazias» (v. 53b) antecipa as repreensões aos ricos – “ai de vós” (Lc 6,24-25). O Magnificat é, sem dúvidas, a síntese da oração de Israel que deverá ser continuada pela comunidade dos discípulos, a comunidade cristã. É clara, portanto, a intenção de Lucas de antecipar a missão de Jesus. Isso mostra também que ele é o evangelista que mais retoma a mensagem profética de denúncia às injustiças sociais. A predileção de Deus pelos pequenos, tão clara no ministério de Jesus, era central na mensagem dos profetas do Antigo Testamento. E o Magnificat evidencia bem essa continuidade.

A conclusão do texto reafirma a imagem de Maria como nova arca da nova aliança, mas com uma dimensão completamente nova. Diz o evangelista que «Maria ficou três meses com Isabel; depois voltou para casa» (v. 56). No Antigo Testamento há uma expressão muito parecida com essa, em 2Sm 6,11: «A Arca de Iahweh ficou três meses na casa de Obed-Edom de Gat, e Iahweh abençoou a Obed-Edom e a toda a sua família». A presença de Maria na casa de Isabel foi, com certeza, a confirmação da bênção de Deus sobre ela, seu esposo Zacarias e o filho esperado, João. Mas a bênção que a presença de Maria inaugura é infinitamente superior a tudo o que até então se tinha experimentado, pois é o início da plenitude da presença de Deus em meio ao seu povo. Na arca da nova aliança não há tábuas da Lei, não há norma nem preceito; há o Espírito Santo e Jesus, expressão máxima do amor e da misericórdia de Deus para com toda a humanidade. O tempo de permanência de quem irradia o Espírito Santo e a alegria do Evangelho, como fez Maria e assim devem fazer os discípulos de todas as épocas, é o suficiente para ressignificar a vida e ler os acontecimentos do presente à luz de tudo o que Deus tem realizado ao longo da história.

Mais do que um reforço à devoção, o evangelho deste dia é, portanto, um convite e advertência à comunidade cristã a reencontrar-se com suas origens, com sua identidade missionária e sinodal, e o compromisso de ser presença do Reino, promovendo igualdade e fraternidade. Para isso, é necessário renovar a confiança no Espírito Santo, que é aquele que dá impulso à força transformadora dos pequenos e humildes. Um trecho do evangelho tão significativo como este, no qual apenas duas mulheres falam, discutindo um novo rumo para a humanidade, não pode deixar de ser visto também como um sinal de que a voz feminina precisa ser mais ouvida e valorizada na Igreja.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, agosto 12, 2023

REFLEXÃO PARA O 19º DOMINGO DO TEMPO COMUM – MATEUS 14,22-33 (ANO A)



A liturgia deste décimo nono domingo do tempo comum propõe, para o evangelho, a leitura de Mt 14,22-33. Trata-se do relato da manifestação de Jesus andando sobre o mar, indo ao encontro dos seus discípulos que corriam perigo na barca, devido à agitação das ondas. É um episódio narrado também por Marcos e João (Mc 6,45-52; Jo 6,12-21), sendo que a versão de Mateus se sobressai sobre as demais, possuindo mais elementos exclusivos. O fato de ser um episódio comum a Mateus, Marcos e João já constitui uma primeira novidade, pois, geralmente, quando uma cena é narrada apenas por três evangelhos, esses são Mateus, Marcos e Lucas, conhecidos como os três sinóticos. É sempre importante recordar que os evangelhos enquanto livros escritos não são relatos cronísticos da vida de Jesus, mas narrativas catequéticas para a formação do discipulado e a edificação das comunidades cristãs de todos os tempos, começando por aquelas onde atuavam os respectivos evangelistas (autores). No caso específico do Evangelho de Mateus, escrito cerca de cinco décadas após a morte e ressurreição de Jesus, ele visa responder a uma comunidade profundamente marcada por crises, causadas tanto por aspectos externos quanto internos. E o evangelista responde às crises da sua comunidade recordando momentos de crise vividos pelo próprio Jesus junto com seus primeiros discípulos, e ilustrando conforme a sua própria criatividade e o uso de tradições disponíveis. O evangelho de hoje é uma boa demonstração desse processo.

O capítulo quatorze de Mateus começa relatando a morte de João, o Batista, que fora decapitado a mando de Herodes (Mt 14,1-12). Apesar das divergências de mentalidade, Jesus e João eram muito próximos afetivamente, e eram conscientes da continuidade entre os dois. Inclusive, há fortes indícios de que, antes de constituir o seu próprio grupo de seguidores, Jesus fora discípulo de João. Contudo, apesar dessa proximidade, é certo que Jesus não correspondeu às expectativas de João, que esperava um messias guerreiro, justiceiro e até violento (Mt 3,1-12), conforme a ideologia nacionalista vigente, ancorada no messianismo davídico. Contudo, os dois eram próximos. Por isso, inevitavelmente, a morte trágica do Batista abalou profundamente a Jesus e seus seguidores, tanto pelo afeto que os unia, quanto pela certeza de que ele tinha tudo para ser a próxima vítima da fúria imperial. Diante disso, Jesus sentiu a necessidade de um momento sozinho para rezar, meditar e, talvez, até chorar. Por isso, o evangelista diz que ele «foi a um lugar deserto para estar a sós» (Mt 14,13). Porém, ele não conseguiu de imediato esse desejado momento para estar sozinho porque as multidões o seguiam e até chegavam antes dele ao destino, pela ânsia que tinham de libertação e já tinham percebido que Jesus, de fato, era sinal de libertação e esperança, como agente humanizador no mundo, mediante o amor misericordioso de Deus que ele revelava.

O drama era total: comovido pela morte do seu mentor, o Batista, e sabendo ele também não demoraria muito a ser condenado e morto, Jesus encontra-se no deserto diante de uma grande multidão faminta que foi ali somente para vê-lo e ouvi-lo. Diante disso, seu sentimento não poderia ser outro: «teve compaixão» (Mt 14,13). A compaixão em Jesus não era um mero sentimento; era motivação para uma ação concreta que restabelecesse a dignidade e a vida em plenitude nas pessoas, essa vida em plenitude pressupõe a saúde do corpo e da alma. A compaixão de Jesus era força humanizante para as pessoas, sobretudo as mais vulneráveis, marginalizadas e pobres. Essa situação, inclusive, gerou um pequeno atrito entre Jesus e os discípulos: as multidões sentiram fome, pois encontravam-se numa região deserta, e os discípulos, por comodismo, sugeriram a Jesus que as mandasse embora e, assim, cada um se virasse por conta própria. Jesus, ao contrário, diz que são os discípulos que devem providenciar o alimento para as multidões famintas: «Dai-lhes vós mesmos de comer» (Mt 14,16); os discípulos reclamam que aquilo que eles têm é muito pouco para tanta gente: apenas cinco pães e dois peixes; Jesus mostra que é exatamente daquilo que é pouco e pequeno que a mudança pode acontecer (Mt 14,21). Quando o pouco é colocado em comum, surge a abundância. Por isso, o milagre aconteceu e todos ficaram saciados. A partilha é sempre um milagre, sobretudo quando é motivada pelo amor. Certamente, o clima entre Jesus e os discípulos ficou pesado e o momento de solidão para a oração e reflexão se tornou ainda mais necessário. É esse o contexto do Evangelho de hoje: crise pessoal em Jesus, crise na sua relação com os discípulos e, sobretudo, crise entre os discípulos.

Feitas as devidas observações a nível de contexto, olhemos para o texto de hoje, partindo do primeiro versículo, que diz: «Jesus mandou que os discípulos entrassem na barca e seguissem à sua frente, para o outro lado do mar, enquanto ele despedia as multidões» (v. 22). Nossa primeira observação é a respeito da tradução do texto litúrgico: ao invés de “Jesus mandou”, é mais correto e mais fiel ao texto original que “Jesus obrigou” os discípulos a entrar na barca. Jesus não está dando uma sugestão, mas impondo uma condição para a comunidade: ir «para o outro lado do mar», ou seja, para a outra margem. Ora, ir para a outra margem significa abandonar o comodismo e expor-se aos perigos, aos riscos. A outra margem do mar da Galileia era o território dos pagãos, e essa ordem de Jesus significa a universalidade do seu Evangelho. A barca é a imagem da comunidade cristã, sobretudo no Evangelho de Mateus; ela só tem razão de existir se estiver em estado de travessia, enfrentando perigos e levando a mensagem de Jesus a todos os lugares, sem distinção. A uma situação de crise na comunidade, Jesus responde com novos desafios, não suavizando nem enganando. Com isso, o evangelista recorda que ser Igreja é estar sempre em saída. Sem movimentos de travessia não existe fidelidade ao projeto de Jesus. Talvez, os discípulos esperassem até um reconhecimento ou comemoração, após o milagre da partilha dos pães, afinal, eles tinham colaborado diretamente, pois o próprio Jesus ordenou que eles providenciassem o alimento das multidões, com a ordem «Dai-lhes vós mesmos de comer» (Mt 14,16). Mas o que Jesus faz é encaminhá-los para novos desafios, como enfrentar o mar e chegar nas terras dos pagãos, o que todo judeu observante queria evitar.

Jesus não renunciou ao seu momento de oração pessoal, por isso, tendo despedido as multidões e os discípulos, el «subiu ao monte para orar a sós. A noite chegou, e Jesus continuava ali, sozinho» (v. 23). A oração pessoal de Jesus é um tema bem menos frequente em Mateus, comparando-o a Lucas, por exemplo, mas indispensável. Na verdade, na narrativa de Mateus, Jesus só se retira para rezar duas vezes: aqui, e já no contexto da paixão, quando reza no Monte das Oliveiras (Mt 26,36). Trata-se de um dado que pode parecer simples, mas é muito significativo. Quer dizer que a oração, na perspectiva de Mateus, está sempre associada a momentos dramáticos da vida de Jesus, marcados por crises e necessidade de renovação das convicções da missão. Isso significa que o evangelista não ignora nem torna secundária a oração na vida de Jesus, mas a valoriza tanto, a ponto de reservá-la para momentos de grande relevância. Nesse primeiro momento, a oração está associada à crise provocada pela morte do Batista e o confronto com os discípulos; no segundo, já no contexto da paixão, está associada à própria morte de Jesus, que também ocasionará crise entre os discípulos, tanto durante o processo e condenação quanto até mesmo nos primeiros momentos após a ressurreição. A oração acontece no monte que, na tradição bíblica, é o lugar do encontro com Deus, lugar da intimidade com o Pai e Criador. Embora a fé cristã seja essencialmente comunitária, a necessidade de momentos para estar sozinho e em silêncio é indispensável. Jesus sentiu essa necessidade e nada lhe fez renunciar. É importante recordar essa dimensão, até para evitar ativismos desenfreados. E ele tinha acabado de fazer um “milagre” maravilhoso: junto com os discípulos, tinha alimentado uma grande multidão de pessoas famintas. Certamente, sua oração foi também um agradecimento ao Pai por isso.

Logo nos dois primeiros versículos do evangelho de hoje, portanto, percebemos duas posturas indispensáveis para a comunidade cristã, ensinadas por Jesus e tão bem recordadas pelo evangelista: o cultivo da vida de oração e o colocar-se em estado de saída, em alto mar, enfrentando os riscos que isso comporta. Por isso, na continuidade do relato, o evangelista diz que, quando a barca já estava longe da terra, ou seja, em alto mar, ela «era agitada pelas ondas, pois o vento era contrário» (v. 24). Essa imagem da barca agitada pelas ondas é exclusiva de Mateus. Nos outros evangelhos que possuem versão paralela do episódio, fala-se apenas do vento contrário e da dificuldade de os discípulos remarem na adversidade. Apenas Mateus diz que a barca estava agitada. Embora a barca seja imagem da Igreja em praticamente todas as tradições literárias e teológicas da Igreja nascente, é em Mateus que ela é mais valorizada. A barca agitada pelas ondas representa a situação da Igreja em saída em todos os momentos da história. O termo vento (em grego: άνεμος – ánemos), merece uma consideração especial: ele aparece três vezes no texto de hoje (vv. 24. 30. 32), e representa os três principais obstáculos que atrapalhavam a comunidade cristã no anúncio do Reino, na época da redação do Evangelho de Mateus, em meados dos anos 80 do primeiro século: 1) a oposição das lideranças da sinagoga (judaísmo oficial); 2) as forças do império romano, 3) o medo/comodismo dos próprios discípulos. São três obstáculos a serem enfrentados para o Evangelho alcançar a outra margem e chegar no mundo inteiro.

Dos três obstáculos que a ameaçavam a comunidade em sua “travessia”, o principal era o medo/comodismo dos discípulos, ou seja, a resistência e a tentação do comodismo ou até mesmo a desistência. Isso quer dizer que a comunidade é desafiada constantemente por forças externas e internas, sendo as internas as mais perigosas. Mas, quando a comunidade está prestes a sucumbir, eis que Jesus se manifesta e vai ao seu encontro «andando sobre o mar» (v. 25). O mar, na mentalidade bíblica, evoca perigo, morte, domínio do mal, é sinônimo do que é caótico, algo que o ser humano não tem forças para controlar. Porém, conforme essa mesma mentalidade, Deus tem o controle de tudo e pode, de fato, controlar até o mar, como fizera outrora, ao libertar o seu povo da escravidão do Egito (Ex 14,24ss; Sl 77,16-20). Essa cena é um recado para a comunidade de Mateus, sufocada pelos três ventos mencionados anteriormente, e para a Igreja em todos os tempos: em Jesus, o Reino dos céus em pessoa, é possível superar o mal e todas as forças contrárias. Porém, só é possível vencer as hostilidades do mundo se enfrentá-las. Só vence o mar quem se arrisca nele. A imagem de Jesus andando sobre o mar, portanto, não é a crônica de mais um milagre, e sim a demonstração de ele não se intimida diante do mal; ele enfrenta e vence. Por isso, esse texto é altamente carregado de ressonâncias pascais: faz memória do primeiro êxodo e antecipa o êxodo definitivo, que é a Ressurreição de Jesus, quando ele venceu definitivamente o mal e sua principal consequência, que é a morte.

Com a falta de confiança e convicção, a hostilidade só faz crescer na comunidade, como aconteceu com os discípulos: «Quando avistaram Jesus andando sobre o mar, ficaram apavorados e disseram: ‘É um fantasma!’. E gritaram de medo» (v. 26). O medo (em grego: φόβος – fóbos) tem sido o maior obstáculo da Igreja em todos os tempos. O medo constrói fantasmas e gera terror. Foi esse medo que fez a Igreja criar “inimigos” para si ao longo da história, distanciando-se do Evangelho. O medo é o tipo de vento que mais impede a Igreja de alcançar a outra margem, ou seja, de chegar onde ninguém chega, onde estão os excluídos e marginalizados. Por isso, ao medo dos discípulos, Jesus responde com uma declaração e um imperativo: «Coragem! Sou eu. Não tenhais medo!» (v. 27). É preciso coragem e confiança no Deus que, simplesmente, É! De fato, com a afirmação «Sou eu» (em grego: έγώ είμι – egô eimí), Jesus recorda e atualiza a ação do Deus libertador do Êxodo (Ex 3,14), o qual também fez o seu povo passar para a outra margem do mar, conquistando a libertação da escravidão. A libertação só pode ser alcançada quando o medo for superado. Toda vez que Jesus pronuncia a fórmula «Sou eu/Eu sou» ele está afirmando sua identidade divina. No Evangelho de Mateus, essa afirmação possui uma relevância ainda maior, pois recorda, além da identidade de Jesus, também a sua presença constante na vida da comunidade. No início do Evangelho, ele fora apresentado como «Deus é conosco» ou «Deus está conosco», e trata-se do mesmo Deus libertador e do êxodo. É o Deus que liberta e humaniza, não porque faz grandes prodígios, mas porque está presente, caminha e é.

Diante da presença de Jesus que anda sobre as águas, Pedro assume o papel de porta-voz do grupo e se manifesta: «Senhor, se és tu, manda-me ir ao teu encontro, caminhando sobre a água» (v. 28). É exatamente nessa passagem que Pedro assume o protagonismo entre os discípulos, especialmente no Evangelho de Mateus. A partir de agora, sempre que ele falar, será como síntese do grupo. Sua fé é parâmetro da fé da comunidade. Ele assume um protagonismo único, mas que nem sempre será um protagonismo positivo; na verdade, é cheio de contradições, cuja demonstração maior será a tríplice negação. De agora em diante, ele será sempre o primeiro a agir, a responder e a propor, e quase sempre será repreendido por Jesus. Mas é exatamente por isso que ele se torna modelo de discípulo válido para todos os tempos, pois as suas atitudes mostram que Jesus não busca pessoas perfeitas para o seu seguimento, mas homens e mulheres normais, com qualidades, defeitos e contradições. Inclusive aqui, nessa primeira intervenção como como porta-voz dos discípulos, Pedro já começa de maneira bastante negativa, pondo Jesus à prova. A sua proposta aqui é a mesma do diabo no episódio das tentações (Mt 4,1-11), e dos zombadores no calvário (Mt 27,40): «se tu és...». Essa forma condicional de pedir sinais a Jesus é sempre uma tentação, além de ser também uma demonstração de falta de convicção e de fé sólida. Por isso, o próprio Pedro se sentirá afundando, como dirá a sequência do texto.

A resposta de Jesus ao pedido absurdo e tentador de Pedro é muito clara: «Vem!» (v. 29). É uma resposta-convite para o próprio Pedro perceber a sua fé imatura e contraditória. Jesus não chamou Pedro para dar uma prova do seu poder, mas para mostrar o quanto aquele discípulo ainda estava equivocado. Caminhar sobre as águas era, para Pedro, prova de poder sobre o mal e vitória sobre os obstáculos, uma ideia de triunfalismo, pois ele queria vencer sem lutar, como se a palavra de Jesus fosse mágica. Ao convidar Pedro a andar sobre a água, Jesus queria que ele se conscientizasse de sua vulnerabilidade, como, de fato, aconteceu: «Quando sentiu o vento, ficou com medo e, começando a afundar, gritou: ‘Senhor, salva-me’!» (v. 30). Pedro ainda estava incapacitado para enfrentar os ventos contrários. Por isso, queria vencê-los milagrosamente. Essa passagem específica também reforça a importância e a necessidade da comunidade na vivência da fé. Pedro começou a afundar porque deixou a barca, fez uma proposta individual, deixando os demais discípulos na barca, a mercê. No meio da tempestade, a barca se agitou pela força das ondas, mas resistiu, não afundou. Quando saiu da barca, Pedro começou a afundar. Os momentos de Jesus a sós com os discípulos são sempre ocasião para catequese e aprofundamento. E essa oportunidade não poderia passar desperdiçada. Por isso, ao ver Pedro afundar em sua falta de fé, «Jesus logo estendeu a mão, segurou Pedro e lhe disse: ‘Homem fraco na fé, porque duvidaste?’» (v. 31). A repreensão de Jesus a Pedro, chamando-o de homem de “pouca fé” ou “fraco na fé” (em grego: όλιγόπιστος – oligópistos), não foi porque ele começou a afundar enquanto caminhava, pois era impossível não afundar, mas pela mesquinhez de necessitar de um sinal para crer. Assim, Jesus repreende a Igreja e seus membros quando buscam sinais extraordinários e não se esforçam para contornar situações adversas, ou seja, quando se recusam a ir em direção à outra margem por medo e comodismo, apoiando-se em falsos triunfalismos. Quando a comunidade valoriza mais os sinais extraordinários e milagres do que a luta pela justiça, a inclusão, e a superação das desigualdades, ela está, como Pedro, desempenhando a função de tentadora de Jesus, ao invés de ser edificadora do Reino.

Ao subirem no barco, Jesus e Pedro, diz o texto que «O vento se acalmou» (v. 32). É a confiança que foi recuperada, a certeza de que, com Jesus, seguindo a sua palavra, a comunidade pode superar os obstáculos, vencer as barreiras e conseguir chegar à outra margem. Assim, «Os que estavam no barco prostraram-se diante dele, dizendo: ‘Verdadeiramente, tu és o Filho de Deus!’»  (v. 33). Temos aqui uma atitude importante que mostra a necessidade de uma conversão contínua na vida da comunidade cristã, marcada pela renovação das convicções. A prostração, especialmente no Evangelho de Mateus, é a atitude de adoração, de reconhecimento da divindade de Jesus. Inclusive, os primeiros a fazer isso foram os magos estrangeiros (Mt 2,11), os quais também têm a oferecer e a ensinar. No encontro com o Ressuscitado, no final do Evangelho, os discípulos repetirão o gesto e, também ali, dirá o evangelista que alguns ainda duvidaram (Mt 28,17). Logo, a dúvida sempre estará presente na vida da comunidade; porém, não pode levar os discípulos a trocarem o compromisso de superar as adversidades com responsabilidade por sinais extraordinários e fantasiosos. As situações de perigo e provação devem levar a Igreja à autocrítica e, assim, perceber qual é o seu verdadeiro papel no mundo e qual o rumo que Jesus quer que ela tome. Com essa confissão comunitária, a qual será retomada por Pedro no episódio de Cesaréia de Filipe (16,16), Mateus está mostrando um progresso na fé da sua comunidade: em um episódio anterior, quando também Jesus e os discípulos estavam num barco e foram ameaçados pela tempestade, Jesus agiu, salvou-os do perigo, e os discípulos, admirados, perguntaram: «Quem é este a quem até os ventos e o mar obedecem?» (8,27). A resposta foi dada agora, seis capítulos depois: é o Filho de Deus, aquele que é e está sempre presente, oferecendo amor e misericórdia, dando a mão aos necessitados, humanizando o mundo.

 O evangelho deste dia interpela a Igreja a tomar atitudes que podem colocá-la em perigo, mas essa é a razão da sua existência. É preciso alcançar outras margens, as periferias existenciais, os lugares onde só é possível chegar se perder o medo. Para isso, é necessário ter muita convicção da presença de Jesus em seu meio, mesmo que seja difícil reconhecê-lo, muitas vezes; e, na certeza dessa presença, enfrentar os mares com seus ventos, buscando uma fé madura para não se contentar com sinais ou espetáculos, mas buscar sempre a construção do Reino de Deus, que também é nosso.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues - Diocese de Mossoró-RN

sábado, agosto 05, 2023

REFLEXÃO PARA A FESTA DA TRANSFIGURAÇÃO DO SENHOR – MATEUS 17,1-9 (ANO A)



Devido à coincidência com o dia seis de agosto, neste ano, a liturgia do décimo oitavo domingo do tempo comum é substituída pela da festa da Transfiguração do Senhor. O evangelho dessa festa é sempre um dos relatos da transfiguração, obviamente. Trata-se de um episódio narrado pelos três evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas), o que possibilita à liturgia oferecer um texto para cada ano, conforme o ciclo litúrgico (A, B e C), sem necessariamente repetir, uma vez que, mesmo se tratando do mesmo episódio, cada evangelista o narra à sua maneira, conforme as suas intenções teológicas, suas habilidades literárias e, sobretudo, respondendo às necessidades de suas respectivas comunidades. Isso faz com que os três relatos apresentem diferenças entre si, apesar de serem muito parecidos e narrarem o mesmo acontecimento. Por ocasião do ciclo litúrgico A, o texto proposto para este ano é o relato de Mateus: 17,1-9. Além da festa homônima, o evangelho da transfiguração é lido também no segundo domingo da Quaresma, todos os anos, e ocorre o mesmo processo: a cada ano, se lê o relato do evangelista corresponde ao ciclo litúrgico vigente. Isso quer dizer que o evangelho de hoje já foi lido neste ano.

O relato da transfiguração é um texto muito rico em teologia e simbologia, o que torna indispensável uma breve contextualização, para uma compreensão mais adequada. E começamos recordando a localização do texto na estrutura do evangelho. Talvez esse seja o elemento mais decisivo para uma boa compreensão. A transfiguração é precedida por três importantes momentos interligados: a confissão de fé de Pedro (Mt 16,13-20); o primeiro anúncio da paixão (Mt 16,21-23) e a declaração das exigências para o discipulado (Mt 16,24-28). Se trata de uma sequência narrativa reveladora da messianidade e do destino de Jesus, cuja conclusão é exatamente o episódio da transfiguração. Ora, com o primeiro anúncio da paixão, Jesus deixou os discípulos assustados, pois a concepção de messias que eles tinham em mente não era compatível com o sofrimento e a cruz, como Jesus havia predito (Mt 17,21). Os discípulos esperavam um messias glorioso, valente e guerreiro, conforme as expectativas da época, fruto da ideologia nacionalista davídica, enquanto Jesus anunciou a doação da vida, comportando sofrimento e cruz, se necessário, para alcançar a glória e a vida em plenitude. Inclusive, impôs a disposição para carregar a cruz e doar a própria vida como condição para fazer parte do seu discipulado. A transfiguração é, portanto, a resposta de Jesus à incompreensão dos discípulos acerca da sua identidade, e uma demonstração de que cruz e glória fazem parte de um mesmo caminho: o destino do ser humano é a glória, mas essa passa pela cruz.

Uma vez contextualizados, vamos olhar para o texto, começando pelo primeiro versículo: «Naquele tempo, Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João, seu irmão, e os levou a um lugar à parte, sobre uma alta montanha» (v. 1). Aqui, a versão litúrgica omitiu um indicativo temporal importante, substituindo-o pela genérica expressão “naquele tempo”. O texto original começa com a indicação cronológica “seis dias depois”, como sinal de relação e continuidade com o último episódio narrado: o primeiro anúncio da paixão e a contestação de Pedro, com as exigências para o discipulado (Mt 16,21-28). Ora, Pedro professou sua fé em Jesus como Messias, mas ao mesmo tempo não aceitou o caminho doloroso da cruz, fazendo Jesus repreendê-lo duramente, chamando-o de satanás, por tornar-se um empecilho à realização do projeto de Deus. Portanto, “Seis dias depois” de ter anunciado a sua morte, Jesus mostra aos discípulos a vida em plenitude. O sexto dia foi o dia da criação do homem e da mulher (Gn 1,26-31), e é nesse dia que Jesus manifesta o ser humano em sua máxima dignidade e realização. Logo, ele é o modelo de humanidade. É o ser humano plenamente realizado e humanizado. E a plenitude humana consiste na semelhança com o criador. E é Jesus quem ensina a humanidade a reencontrar essa semelhança, começando pelo seu estilo de vida, do qual a transfiguração é o resultado final.

Jesus tomou consigo três discípulos: Pedro, Tiago e João. A escolha desses três discípulos não significa privilégio, como às vezes se diz, mas necessidade. Eles não eram os melhores, mas sim os três mais difíceis de lidar e os que mais tinham dificuldade de assimilar os ensinamentos de Jesus enquanto Messias sofredor. Pedro é sinônimo de dureza e fechamento; é o discípulo que Jesus mais repreende durante todo o seu itinerário. Como ele sempre se antecipa, sendo o primeiro a responder às perguntas de Jesus, é aquele que mais se expõe e, por isso, é o primeiro a ser corrigido. João e Tiago, conhecidos como “filhos do trovão” (Mc 3,17), eram os mais fanáticos, ambiciosos (Mc 10,35-45; Mt 20,20-28), de temperamento difícil, eram também os mais intolerantes. Pouco tempo após este episódio da transfiguração, Jesus repreenderá João por proibir a um homem que não fazia parte do grupo de pregar e expulsar demônios em seu nome (Mc 9,38-39). Os dois, João e Tiago, também foram repreendidos quando quiseram tocar fogo nos samaritanos que os rejeitaram (Lc 9,51-55). Portanto, Jesus os chama para estarem mais perto de si pela necessidade de cada um e por não desistir do ser humano, apesar das fraquezas e debilidades. Eles necessitavam estar mais próximos a Jesus e aprender mais com ele, como de fato estarão. Na Paixão, esses três – Pedro, João e Tiago – serão as testemunhas de Jesus durante a agonia no Getsêmani (Mt 26,36-37). Isso significa que eles mudaram com o tempo, não se tornando perfeitos, mas aprendendo a cada dia com Jesus, à medida em que conviviam com ele e ouviam seus ensinamentos. 

Na tradição hebraica, a montanha é, por excelência, o lugar do encontro do ser humano com Deus. Tanto em Israel quanto nas culturas circunvizinhas, imaginava-se que para comunicar-se com a divindade, o ser humano precisava escalar um monte. Assim, a montanha funcionava como um espaço intermediário e necessário: o ser humano era incapaz de subir aos céus, e Deus era grande demais para descer até a terra; daí a necessidade de um lugar intermediário para os dois se comunicarem. Por isso, a montanha tornou-se o lugar da revelação no Antigo Testamento (Ex 19,16; 24,15). Embora a tradição tenha identificado essa montanha com o monte Tabor, esse dado não possui fundamento nos evangelhos. Essa denominação começou com Cirilo de Jerusalém e foi consolidada por São Jerônimo, mas hoje é considerada sem fundamento. É preferível mantê-la anônima, como fizeram os evangelistas, porque não se trata de um dado geográfico, mas teológico; toda ocasião de encontro e intimidade com Deus é uma subida à montanha. E é justamente no Evangelho de Mateus que a montanha tem mais relevância no Novo Testamento, sendo o lugar onde ele diz que Jesus viveu momentos importantes do seu ministério: proclamou as bem-aventuranças (5,1), multiplicou os pães (15,29), e como Ressuscitado, aparecerá aos discípulos pela primeira vez (28,16).

O texto de hoje diz que, no alto da montanha, Jesus «foi transfigurado diante deles; o seu rosto brilhou como o sol e as suas roupas ficaram brancas como a luz» (v. 2). Isso quer dizer que ele passou por uma transformação no seu aspecto, uma metamorfose. É esse o significado do verbo empregado pelo evangelista (em grego: μεταμορφόομαι – metamorfóomai). Diante da incredulidade e resistência dos discípulos em aceitar a morte, Jesus antecipa para eles o resultado da paixão: a manifestação gloriosa do Filho do Homem e, portanto, de Deus nele. Não apenas o rosto brilhou, mas todo o seu ser, inclusive suas vestes. As mesmas imagens e cores da glória de Deus ao longo da história são reveladas em Jesus; a luz é também sinal do que é novo: à medida em que o Reino de Deus vai sendo implantado, o universo todo se renova. Os personagens do Antigo Testamento mais venerados na tradição judaica entram em cena: «Nisto, apareceram-lhe Moisés e Elias, conversando com Jesus» (v. 3). Estes personagens representam a Lei e os Profetas, obviamente. Temos, com isso, mais uma iniciativa de Deus para conscientizar os discípulos de que o ensinamento de Jesus está em consonância com tudo o que a Lei e os Profetas tinham afirmado a respeito do Messias. Embora o programa de Jesus seja repleto de novidades, não contradiz as Escrituras; é o seu pleno cumprimento. Os discípulos contemplam, mas somente Jesus conversa com Moisés e Elias. Esse é mais um dado de grande importância revelado pelo texto. Ora, a comunidade cristã, representada no episódio pelos três discípulos, não depende mais do Antigo Testamento; em Jesus, a Lei e os profetas encerram-se, chegam ao fim, enquanto cumprimento e plenitude. Jesus é o critério de interpretação da Escritura: o Antigo Testamento só tem sentido se passar por Ele. Por isso, Moisés e Elias nada tem a dizer para a comunidade cristã senão através de Jesus. Moisés e Elias entregam a Jesus a revelação parcial que tinha recebido, própria da antiga aliança, e Jesus aperfeiçoa, completa. Por isso, é necessário passar por ele.

Pedro, ousado como sempre, tomou a palavra e, mais uma vez, disse coisas reprováveis, apesar das boas intenções: «Então, Pedro tomou a palavra e disse: ‘Senhor, é bom ficarmos aqui. Se queres, vou fazer aqui três tendas: uma para ti, outra para Moisés, e outra para Elias’» (v. 4). Na versão de Marcos, que serviu de fonte para Mateus e Lucas, se diz que «Pedro não sabia o que estava dizendo, pois estava fora de si» (Mc 9,6); estar «fora de si» na linguagem bíblica significa um estado de loucura; esse detalhe só reforça o absurdo da sua proposta. Três elementos são reprováveis na fala de Pedro: a primeira, é a nova tentação sugerida a Jesus através do comodismo; permanecer na montanha é ignorar o mundo real com seus problemas e contradições, é mostrar-se indiferente às situações desafiadoras e fechar os olhos às injustiças que assolam o mundo. Mais uma vez, Pedro procura uma maneira de tirar a cruz do caminho de Jesus; na primeira vez, foi Jesus quem o repreendeu, agora será o próprio Pai, ao interrompê-lo. O segundo elemento reprovável na fala de Pedro é o seu apego à tradição e o não reconhecimento de Jesus como o centro da vida: «uma para ti, uma para Moisés, e outra para Elias». Jesus ainda não ocupava o centro da vida de Pedro, mas sim Moisés. Para a tradição hebraica, o personagem mais importante é aquele que é citado em posição central; Pedro insiste com a antiga tradição: está seguindo Jesus, mas ainda coloca Moisés e a Lei no centro da vida; resiste em aceitar Jesus e o seu evangelho como centro. O terceiro elemento reprovável na fala de Pedro é o não reconhecimento de Jesus como a verdadeira tenda. Ora, no Antigo Testamento, sobretudo no contexto do êxodo, a tenda (em grego: σκηνή – skenê) é a o lugar do encontro com Deus, o que agora é a pessoa de Jesus. A ideia de fazer tendas revela incompreensão e não aceitação de Jesus como o pleno revelador e lugar do encontro com Deus.

Diante do absurdo da fala de Pedro, o próprio Deus intervém e o interrompe: «Pedro ainda estava falando, quando uma nuvem luminosa os cobriu com sua sombra. E da nuvem uma voz dizia: ‘Este é o meu Filho amado, no qual eu pus todo o meu agrado. Escutai-o!’» (v. 5). A nuvem luminosa, ao longo da tradição bíblica é também sinal da manifestação e presença de Deus. Essa cena é, praticamente, uma repetição da cena do batismo de Jesus: o Pai se manifesta, fala e dá testemunho do Filho. Por sinal, o batismo e a transfiguração são os únicos episódios dos evangelhos em que Deus fala diretamente. Atribuir palavras diretamente a Deus é um recurso teológico e literário frequente no Antigo Testamento, mas muito raro no Novo. Isso porque é Jesus, o Filho, quem revela Deus e fala em seu nome, no Novo. Aqui, a voz de Deus ocupa o lugar central do texto, o que evidencia ainda mais a importância da sua intervenção. Diante das dúvidas e falta de convicção nos discípulos sobre a identidade de Jesus, quem tem mais propriedade para esclarecer é o seu Pai. Essa voz reitera a autoridade de Jesus: o Pai o credencia como o único que tem autoridade para falar e ser ouvido pela comunidade. Pedro ainda estava propenso a ouvir Moisés e Elias e o Pai lhe corrige. Moisés e Elias já disseram o que tinham de dizer; à comunidade cristã, só interessa o Evangelho, ou seja, o que Jesus ensina e vive.

A primeira reação dos discípulos diante das palavras do Pai é de completa falência: «Quando ouviram isto, os discípulos ficaram muito assustados e caíram com o rosto em terra» (v. 6). Ao longo da Bíblia, é normal o medo e o temor dos seres humanos diante da presença Deus. Mas nesse caso o medo tem outra causa: as implicações e consequências de escutar. Ora, escutar Jesus significa aderir plenamente ao seu projeto de vida e libertação, o que comporta até mesmo a doação da vida. É isso o que causa medo nos discípulos que imaginavam seguir um messias guerreiro e glorioso. Diante do medo dos discípulos, eis a reação de Jesus: «se aproximou, tocou neles e disse: ‘Levantai-vos e não tenhais medo’» (v. 7). É próprio de Jesus dar força aos caídos e encorajar os amedrontados. O gesto de tocar é o mesmo que ele faz ao curar os enfermos, restituindo-lhes vida e saúde (8,3.15; 9,25.29). O medo de assimilar e viver o Evangelho torna a comunidade doente, necessitada da força de Jesus que a impele a levantar-se. Para superar o medo, duas coisas são necessárias: escutar Jesus, como o Pai ordenou, e deixar-se tocar por ele. O toque de Jesus, que é a sua própria palavra, levanta e transforma a comunidade dos discípulos: «Os discípulos ergueram os olhos e não viram mais ninguém, a não ser somente Jesus» (v. 8). Moisés e Elias desapareceram para que a atenção dos discípulos se voltasse somente para Jesus, o centro da vida e da comunidade que já não precisa mais deles, mas somente de Jesus. Já não sai mais nenhuma voz de Deus pela nuvem, porque quem vê Jesus, vê o Pai (Jo 14,9) e, portanto, quem o escuta, escuta também ao Pai! A comunidade precisa sempre olhar em volta de si mesma e perceber que seu único referencial é Jesus Cristo com seu evangelho. Não vendo mais ninguém como referencial além de Jesus, a comunidade renovada é convidada a descer da montanha e novamente encarar a realidade, continuar o caminho com seus percalços e desafios até enfrentar o maior deles: a cruz! A ideia do comodismo não combina com a comunidade cristã, como soou absurda para Deus a sugestão das tendas por Pedro.

Jesus pede que não contem nada a ninguém daquilo que experimentaram (v. 9), por respeito aos propósitos do Pai, pois deveriam esperar a Ressurreição, e também por prudência, pois se a notícia daquela experiência se espalhasse, novamente grandes multidões emotivas e curiosas se aproximariam dele em busca de sinais e milagres, quando na verdade o verdadeiro sinal estava se aproximando: a cruz e a ressurreição. Eles deveriam anunciar Jesus, o Evangelho, mas da maneira certa, sem alimentar falsas ilusões, nem omitir as suas verdades. E somente à luz da ressurreição é que esse anúncio se torna eficaz e perfeito. É melhor silenciar do que anunciar de modo equivocado. O anúncio distorcido é, sem dúvidas, consequência de uma escuta superficial. Aqui está um dos ensinamentos mais importantes para as comunidades de todos os tempos: a necessita da escuta de Jesus, o Filho Amado.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

REFLEXÃO PARA O 4º DOMINGO DA PÁSCOA – JOÃO 10,11-18 (ANO B)

O evangelho do quarto domingo da páscoa é sempre tirado do capítulo décimo do Evangelho de João, no qual Jesus se auto apresenta como o ún...