quarta-feira, junho 26, 2019

REFLEXÃO PARA A SOLENIDADE DE SÃO PEDRO E SÃO PAULO – MATEUS 16,13-19




Todos os anos, na solenidade dos apóstolos Pedro e Paulo, a liturgia propõe Mateus 16,13-19 para o Evangelho, texto que contém a famosa confissão de fé de Pedro na região de Cesaréia de Filipe. Esse é um relato comum aos três Evangelhos Sinóticos (cf. Mt 16,13-19; Mc 8,27-30; Lc 9,18-21), embora a versão de Mateus apresente mais elementos próprios, o que lhe rendeu uma maior valorização na reflexão teológica ao longo dos séculos, sobretudo, no cristianismo católico.

A recordação dos apóstolos é sempre importante para a vida da Igreja, porque a ajuda a manter-se alinhada às suas origens, não obstante os desgastes históricos. Pedro e Paulo foram imprescindíveis para o cristianismo das origens conservar os ensinamentos de Jesus e, ao mesmo tempo, para se espalhar e crescer, extrapolando os limites culturais e geográficos do judaísmo e da Palestina. Olhando para o exemplo dos dois, a Igreja, de hoje e de sempre, é interpelada, cada vez mais, a renovar-se e edificar-se somente pela fé em Jesus Cristo, sem tomar como parâmetro nenhuma instituição terrena.

Antes de entrarmos na reflexão do texto em si, é necessário fazer algumas considerações a respeito do contexto do relato no conjunto do Evangelho. Esse trecho abre uma série de acontecimentos importantes da vida de Jesus e dos seus seguidores, como a transfiguração (cf. 17,1-7) e os dois primeiros anúncios da paixão (cf. 16,21-23; 17,22). Na verdade, podemos dizer que tais acontecimentos são consequência do episódio narrado no Evangelho de hoje, pois tanto a transfiguração quanto os anúncios da paixão são tentativas de Jesus revelar a sua verdadeira identidade, tendo em vista que os discípulos ainda não tinham tanta clareza dessa.

Recordamos o que sucede ao nosso texto no conjunto do Evangelho, mas também não podemos deixar de recordar o que lhe antecede: uma controvérsia com os fariseus, os quais pediam sinais a Jesus (cf. 16,1-4), e uma séria advertência aos discípulos para não se deixarem contaminar pelo fermento dos fariseus e saduceus (cf. 16,5-12). Esse fermento era a mentalidade equivocada sobre Deus e o futuro messias e, principalmente, a hipocrisia em que viviam. Mateus recorda tudo isso porque, certamente, a sua comunidade passava por uma crise de identidade: por falta de clareza da identidade de Jesus e falta de experiência autêntica com o Crucificado-Ressuscitado, o “fermento dos fariseus”, quer dizer a influência da sinagoga, estava atrapalhando a vivência das bem-aventuranças, e impedindo a realização do Reino dos céus naquela comunidade.

Agora podemos, portanto, direcionar nosso olhar para o texto que a liturgia nos oferece: “Jesus foi à região de Cesaréia de Filipe e ali perguntou aos seus discípulos: ‘Quem dizem os homens ser o Filho do homem?’” (v. 13). O texto começa com um indicativo espacial: Cesaréia de Filipe estava localizada no extremo norte de Israel, portanto, muito longe de Jerusalém. Como o próprio nome indica (homenagem a César), era um centro do poder imperial e, portanto, lugar de culto ao imperador romano. Certamente o evangelista e sua comunidade tinham um propósito muito claro ao narrar esse episódio e recordar a sua localização.

Longe de Jerusalém, os discípulos estariam isentos de qualquer influência da tradição religiosa judaica, ou seja, livres do fermento dos fariseus e, portanto, aptos a confessarem e professarem livremente a fé em Jesus, fora dos esquemas tradicionais da religião. Ao mesmo tempo, estando em uma região de culto ao imperador, a confissão da fé em Jesus seria um sinal de convicção e adesão ao projeto do Reino dos céus e uma demonstração da coragem que deve marcar a vida da comunidade cristã, chamada a testemunhar a Boa Nova e continuar a obra de Jesus, mesmo em meio às hostilidades impostas pelo poder imperial. Podemos dizer que professar a fé em Jesus é distanciar-se dos esquemas religiosos do judaísmo e, ao mesmo tempo, desafiar qualquer sistema que não coloque a vida e o bem do ser humano em primeiro lugar, como o império romano.

A pergunta de Jesus sobre o que dizem a respeito de si, ou seja, do Filho do Homem, não é demonstração de preocupação com sua imagem pessoal, mas com a eficácia do anúncio da comunidade. Até então, Jesus já tinha realizado muitos sinais entre o povo e ensinado bastante, mas pouca gente o conhecia verdadeiramente. Muitos o seguiam pela novidade que Ele trazia, uns pelo seu jeito diferente de acolher os mais necessitados e excluídos, outros para aproveitarem-se dos sinais que Ele realizava. Ele percebia tudo isso e, por causa disso, fez essa pergunta: “Que dizem os homens ser o Filho do Homem?” (v. 13b).

A resposta dos discípulos à pergunta de Jesus revela a falta de clareza que se tinha a respeito da sua identidade e, ao mesmo tempo, a boa reputação da qual ele já gozava diante do povo, certamente o povo simples, com quem Ele interagia e por quem lutava. Eis a resposta: “alguns dizem que é João Batista; outros, que é Elias, outros, ainda, que é Jeremias ou algum dos profetas” (v. 14). Sem dúvidas, Jesus estava bem-conceituado pelo povo, pois era reconhecido como um grande profeta. Mas Jesus é muito mais. Embora continuem sempre atuais, os profetas de Israel são personagens do passado. A comunidade cristã não pode ver Jesus como um personagem do passado que deixou um grande legado a ser lembrado. Isso impede a comunidade de fazer sua experiência com o Ressuscitado, presente e atuante na história.

A pergunta sobre o que as outras pessoas diziam a seu respeito foi apenas um pretexto. Na verdade, Jesus queria saber mesmo era o que seus discípulos pensavam de si. Por isso, lhes perguntou: “E vós, quem dizeis que eu sou?” (v. 15), uma vez que longe do “fermento dos fariseus”, os discípulos poderiam dar uma resposta sincera, isenta e livre. O texto afirma que “Simão Pedro respondeu: “Tu és o Messias, o Filho do Deus vivo” (v. 16). Não resta dúvida que os demais discípulos componentes do grupo dos doze também responderam. O evangelista enfatiza a resposta de Pedro por ser uma síntese do pensamento dos doze. Essa é a resposta do grupo e, portanto, da comunidade.

A resposta é complexa e profunda: Jesus é Messias e Filho e do Deus vivo. É muito significativo que Ele seja reconhecido e acolhido como o Messias esperado, ou seja, o Cristo, o enviado de Deus para libertar o seu povo e a humanidade inteira. Como circulavam muitas imagens de messias entre o povo, principalmente a de um messias guerreiro e glorioso, o segundo elemento da resposta de Pedro é de extrema profundidade e importância: “o Filho do Deus vivo” (em grego: ό υίός τού Θεού τού ζώντος – hó hiós tú Theú tú zontos). Além de definir a qualidade e especificidade do messianismo de Jesus, essa expressão serve também para denunciar a falsidade do culto ao imperador romano, o qual exigia ser reverenciado como filho de uma divindade.

Com a resposta de Pedro, a comunidade cristã é chamada a proclamar que Jesus é, de fato, o Cristo (termo mais fiel ao texto grego do que Messias), é o Filho do Deus vivo, ou seja, seu Deus é o Deus da vida, enquanto os deuses pagãos cultuados no império romano e até mesmo o Deus oferecido pelo templo de Jerusalém eram privados de vida, eram agentes de morte, sobretudo para o povo simples e excluído. A convicção de que Jesus é o Filho do Deus vivo compromete a comunidade a denunciar e desafiar todos os sistemas religiosos e políticos que não favoreçam a promoção da liberdade e da vida plena e abundante para todos.

Jesus se alegra com a resposta de Pedro e o proclama bem-aventurado: “Feliz és tu, Simão, filho de Jonas, porque não foi um ser humano que te revelou isso, mas o meu Pai que está no céu” (v. 17).  Não se trata de um elogio por um mérito particular de Pedro, até porque o conhecimento não é dele, mas do Pai que lhe revelou. O que Jesus faz é uma constatação: as coisas começam a funcionar na comunidade, pois a voz do Pai está sendo ouvida; como o Pai só revela seus desígnios aos pequeninos (cf. 10,21), e Pedro está falando a partir do que o Pai lhe sugere, ele está demonstrando adesão plena ao projeto do Reino, inserindo-se no mundo dos pequeninos! O Reino de Deus ou dos céus, como Mateus prefere, é um projeto alternativo de mundo que só tem espaço para quem aceita a condição pertencer ao mundo dos pequeninos. A bem-aventurança de Pedro consiste em abrir-se à vontade do Pai e deixar-se conduzir por essa.

Na continuidade, Jesus declara: “Por isso eu te digo que tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja” (v. 18a). Jesus está declarando que Pedro está apto a participar da construção da sua comunidade, por estar aberto às intuições do Pai. Ao contrário da antiga religião judaica que precisava de um templo de pedras, a comunidade cristã é uma construção sim, mas pela sua coesão e unidade, por isso, na sua construção são necessárias pedras vivas. Pedro é uma destas pedras escolhidas por Jesus, a primeira, sem dúvidas. A pedra fundamental da construção é a fé da comunidade. A força, o equilíbrio e a perseverança da comunidade dependem da solidez da sua fé. Por isso, é necessário que essa fé seja forte como uma rocha, comparável a fé que Pedro tinha acabado de professar.

É importante esclarecer que Mateus usa duas palavras gregas muito parecidas para designar Pedro e pedra: Πέτρος– Petros e πέτρα - petra. Embora muito próximas, é possível distingui-las: “Petros”que foi transformada no nome próprio Pedro, designa pedra, pedregulho ou tijolo, uma pedra pequena e removível, uma pedra de construção; “petra”, por sua vez, designa a superfície rochosa, base ideal para os fundamentos de uma construção segura. São estas as bases necessárias para a edificação da Igreja enquanto comunidade do Reino. Portanto, Jesus diz que Pedro (petros) é uma pedra-tijolo da construção, e a pedra-rocha (petra) é a fé que ele professou, a superfície rochosa sobre a qual a Igreja é edificada.

Ao contrário do templo de Jerusalém e dos templos pagãos que haviam na região de Cesaréia de Filipe, construídos sobre pedras concretas e visíveis e, portanto, passíveis de destruição, a comunidade cristã não correrá esse risco se for edificada conforme Jesus pensou, ou seja, tendo a fé por fundamento. Por isso, Ele declara: “e o poder do inferno nunca poderá vencê-la” (v. 18b). Aqui Ele se refere às hostilidades que a comunidade irá enfrentar em seu longo percurso até a realização plena do Reino aqui na terra. São as forças de morte manifestadas nos diversos sistemas de dominação, tanto políticos quanto religiosos. A comunidade precisa de uma fé muito consistente para resistir a tudo isso.

No último versículo temos mais uma declaração significativa de Jesus a Pedro e à comunidade dos discípulos: “Eu te darei as chaves do Reino dos céus: tudo o que ligares na terra será desligado nos céus; tudo o que desligares na terra será desligado nos céus” (v. 19). Mais que delegando poderes, Jesus está responsabilizando a comunidade para fazer o Reino dos céus acontecer já aqui na terra. A comunidade recebe “as chaves do Reino dos céus” porque é nela que se faz a experiência da fé e da comunhão profunda com Deus, através da prática das bem-aventuranças (cf. 5,1-12), e é isso que torna alguém apto para entrar nos céus. Qualquer um que professa convictamente a fé em Jesus e vive seu programa de vida expresso nas bem-aventuranças tem a chave de acesso ao Reino. “Ligar e desligar” é, portanto, responsabilidade, e não poder. 

Com essas imagens tão fortes (chaves – ligar – desligar) Jesus convida a sua Igreja, comunidade do Reino, a viver sempre em perfeita sintonia com Ele mesmo e com o Pai, de modo que tudo aquilo que a comunidade experimentar será referendado pelos céus! Ele dá as chaves para a sua comunidade abrir a todos o Reino que os escribas e fariseus tinham trancado (cf. 23,13). Todo cristão e cristã possui as chaves do Reino, porque o seu testemunho pode abrir ou fechar o Reino para alguém! Que a memória dos apóstolos Pedro e Paulo renove na Igreja a fé autêntica no Crucificado-Ressuscitado, e a sua índole missionária.


Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, junho 22, 2019

REFLEXÃO PARA O XII DOMINGO DO TEMPO COMUM – LUCAS 9,18-24 (ANO C)




Com a retomada do tempo comum, também retomamos a leitura do Evangelho segundo Lucas, como prescreve a liturgia para o ano C, embora no próximo domingo já tenhamos uma nova interrupção, devido à solenidade dos apóstolos Pedro e Paulo. Neste domingo, o texto proposto é Lc 9,18-24. Embora curto, esse texto possui uma riqueza extraordinária; concentra muitos ensinamentos importantes para a compreensão de todo o Evangelho segundo Lucas e para o discipulado de Jesus em todos os tempos. Podemos dividi-lo em três pequenas unidades temáticas, embora interligadas: a) a pergunta de Jesus sobre a sua própria identidade, cuja resposta mais completa é a confissão de Pedro (vv. 18-21); b) o primeiro anúncio da paixão (v. 22); as exigências para o discipulado (vv. 23-24).

A nível de contexto, é necessário recordar alguns elementos fundamentais para uma boa compreensão do texto. O capítulo nono de Lucas tem uma importância singular no conjunto da obra, pois marca a transição entre as duas grandes seções do Evangelho, que são, respectivamente, o ministério de Jesus na Galileia (Lc 4,14 – 9,50) e o longo caminho em direção a Jerusalém (Lc 9,51 – 19,44). Esse capítulo foi iniciado com o envio missionário dos Doze, de povoado em povoado para proclamar o Reino de Deus e libertar (curar) as pessoas (cf. 9,1-6); a repercussão da missão foi tanta que chegou aos ouvidos de Herodes, deixando-o confuso (cf. 9,7-9). O retorno dos discípulos foi marcado pelo entusiasmo, fazendo aumentar ainda mais a multidão que seguia Jesus, culminando com o episódio da partilha dos pães (cf. 9,10ss).

A situação criada desde envio dos Doze até a partilha dos pães levou Jesus à reflexão. Ele não estava preocupado com a sua imagem ou reputação, porém se preocupava se a sua mensagem estava sendo bem compreendida, sobretudo pelos discípulos. Os momentos de reflexão de Jesus, em Lucas, são marcados pela oração, quando Ele expressa a sua intimidade e confiança no Pai. Para o autor do terceiro Evangelho, todos os momentos marcantes da vida de Jesus são precedidos pela oração (cf. 6,12; 9,28; 11,1-2; 22,40ss). A primeira afirmação do texto de hoje, portanto, é um indicativo da importância que esse episódio tem: “Jesus estava rezando num lugar retirado, e os discípulos estavam com ele. Então Jesus perguntou-lhes: “Quem diz o povo que eu sou?”  (v. 18). A oração é o meio para cultivar a intimidade com o Pai. Para Jesus, as relações com Deus e com o próximo são inseparáveis. Por isso, da oração, que é intimidade com o Pai, Ele passa a um diálogo confidencial, sincero e transparente com os discípulos, seus amigos.

Como tinham sido enviados há pouco tempo para anunciar o Reino de Deus, o projeto de vida de Jesus, os discípulos também ouviram a seu respeito. Por isso, Jesus quis saber o qual a imagem que o povo tinha dele. A preocupação de Jesus não era com sua popularidade, mas com a compreensão da sua mensagem. As respostas não demonstram fracasso, mas são insuficientes: “Eles responderam: “Uns dizem que és João Batista; outros que és Elias; mas outros acham que és algum dos antigos profetas que ressuscitou” (v. 19). Essa resposta mostra que, em geral, o povo tinha uma boa visão de Jesus; o considerava na linha dos grandes profetas, mas essa imagem é equivocada. Tanto João Batista quanto Elias foram profetas reformadores. João Batista, com a sua austeridade, preferiu isolar-se no deserto, ao invés de enfrentar diretamente as estruturas; inclusive, acreditava que apenas a passagem pelo rito do batismo já era suficiente para uma verdadeira conversão. Elias era muito zeloso, mas fanático e intolerante, pregava a violência e o extermínio dos adversários (cf. 1Rs 18,40; 19,1). Colocar Jesus nessa linha é um grande equívoco, inclusive porque Ele não veio propor reformas, mas uma mudança radical de mentalidades e de estruturas, na sociedade e na religião.

Como os discípulos já tinham feito um longo percurso com Ele, é de se esperar que tivessem uma visão mais aprofundada do que o povo. Por isso, “Jesus perguntou: “E vós, quem dizeis que eu sou?” Pedro respondeu: “O Cristo de Deus” (v. 20). Da resposta dos discípulos, Jesus sabia como tinha sido o anúncio deles. Pedro responde em nome de todo o grupo; a sua resposta é coletiva e sintetiza a opinião dos Doze. Que o povo conhecesse Jesus apenas superficialmente, seria tolerável, mas dos discípulos espera-se que o conheçam verdadeiramente. A resposta de Pedro é correta, mas também não é suficiente; Jesus é, de fato, o Cristo; confessá-lo assim é reconhecê-lo como o messias esperado. Ele é o messias sim, mas não conforme as expectativas do seu povo. O messias esperado pelos judeus era um personagem glorioso, um guerreiro nacionalista, alguém que iria restaurar o reino davídico-salomônico com o uso da força e da violência. Jesus não veio para restaurar a realeza em Israel, mas para instaurar o Reino de Deus. Sua mensagem não é direcionada a um povo apenas, mas a toda a humanidade.

Conhecendo a mentalidade dos discípulos, “Jesus proibiu-lhes severamente que contassem isso a alguém” (v. 21). É importante reconhecer a relevância dessa “proibição” para o discipulado de outrora e de hoje. Jesus não manda somente anunciar; manda também calar. A comunidade deve procurar todos os meios eficientes para o anúncio do Reino chegar a todas as pessoas e em todos os lugares, deve até pregar sobre os telhados (cf. Lc 12,3), mas quando o anúncio é distorcido, quando há proselitismo, quando há pretensões de glória e poder, é necessário calar-se. O desejo de glória e poder estava implícito na resposta de Pedro. Por isso, Jesus proibiu de anuncia-lo daquela forma. A urgência da evangelização, em qualquer época, não pode levar a comunidade a anunciar o Evangelho de qualquer forma, sem antes conhecê-lo em profundidade. Anunciar Jesus distorcendo ou omitindo a essência libertadora da sua mensagem é mais danoso do que o silêncio.

Diante da compreensão ainda não muito clara que os discípulos tinham do seu messianismo, Jesus acrescentou, alertando-os: “O Filho do Homem deve sofrer muito, ser rejeitado pelos anciãos, pelos sumos sacerdotes e doutores da Lei, deve ser morto e ressuscitar no terceiro dia” (v. 22). A expressão “Filho do Homem” nos evangelhos sinóticos (Mt; Mc; Lc) significa a humanidade autêntica de Jesus; mesmo sendo o Filho de Deus, Ele viveu intensamente a condição humana, inclusive o sofrimento e a morte. Aqui, Jesus antecipa o seu destino dramático, fazendo o primeiro dos três anúncios da paixão (cf. 9,22; 9,43-45; 18,31-34). Esses anúncios são formas de dizer que Ele não é um Messias conforme as expectativas do povo e da religião. Um messias sofredor era inadmissível para a tradição. Ele deve morrer porque levará a cumprimento o projeto do Pai. Não é a vontade do Pai que seu Filho seja assassinado; a vontade de Deus é que seu Reino se instaure na terra, mesmo que isso custe o sangue do seu Filho. A morte de Jesus na cruz, portanto, é fruto da cobiça e da maldade humana, sobretudo das lideranças religiosas; mas o Pai reverterá essa situação em salvação para a humanidade, com a ressurreição. Para Lucas, os responsáveis pela morte de Jesus são as autoridades religiosas.

Tendo esclarecido que não é um messias conforme as expectativas do povo, Jesus esclarece as exigências para o seu seguimento. Ele está terminando o seu ministério na Galileia; em pouco tempo irá iniciar o caminho para Jerusalém, onde viverá o drama da paixão. Para continuar no seu seguimento, é necessário que os discípulos tenham clareza do destino e dos riscos que estão correndo, como discípulos de um messias ao revés. Por isso, o esclarecimento: “Depois Jesus disse a todos: “Se alguém me quer seguir, renuncie a si mesmo, tome sua cruz a cada dia, e siga-me. Pois quem quiser salvar a sua vida, vai perde-la; e quem perder a sua vida por causa de mim, esse a salvará” (vv. 23-24). Antes de tudo, Jesus deixa claro que o discipulado é uma adesão pessoal e livre: “se alguém me quer seguir”; Ele não obriga e nem impõe; apenas propõe.

Seguir Jesus exige rupturas. A primeira ruptura é com a própria pessoa. Renunciar a si mesmo não significa odiar-se, mas é deixar de lado o egoísmo e todas as convicções pessoais que não estão em sintonia com a mensagem libertadora do Evangelho; pretensões de poder, conquista e bem-estar pessoal, devem ser deixadas de lado. A cruz de cada dia corresponde às consequências de tal escolha. A cruz, como a mais temida das penas na época, era sinal de perigo; com essa afirmação, Jesus deixa claro que os seus discípulos, à medida em que viverem o Evangelho com fidelidade, estarão em perigo constante, pois as opções do Evangelho contradizem os pretensões dos detentores de poder deste mundo.

Somos convidados hoje, de modo especial, a procurar conhecer cada vez mais a identidade autêntica de Jesus, para poder continuar no seu seguimento. Segui-lo é confrontar-se com as estruturas do mundo que impedem a realização, desde já, do Reino de Deus. O seguimento e o anúncio devem ser frutos de uma relação de intimidade com Ele e com o Pai. Sem convicção e conhecimento da sua pessoa, o anúncio tende a ser distorcido. É preciso romper com estruturas e mentalidades para continuar o seu seguimento.


 Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, junho 15, 2019

REFLEXÃO PARA A SOLENIDADE DA SANTÍSSIMA TRINDADE – JOÃO 16,12-15 (ANO C)



O texto evangélico proposto para a liturgia da solenidade da Santíssima Trindade, neste ano C, é Jo 16,12-15. Como de costume, a nossa reflexão se concentra exclusivamente no texto bíblico, sem entrar nas questões relativas ao dogma trinitário propriamente. Hoje é a última vez em que lemos um trecho do Evangelho segundo João na liturgia dominical deste ano litúrgico, após uma sequência de leituras durante todo o tempo pascal, com exceção da solenidade da Ascensão, quando lemos um texto de Lucas (cf. Lc 24,46-53). Portanto, já estamos familiarizados com o Quarto Evangelho, embora os enigmas que lhe são próprios continuem indecifráveis.

O contexto do Evangelho de hoje ainda é o da última ceia, ambientada no cenáculo em Jerusalém, e vivenciada por Jesus com seus discípulos, às vésperas da páscoa. Como já afirmamos em outras ocasiões, a ceia no Quarto Evangelho não é apenas o consumo de alimentos e nem a vivência de um rito, tampouco uma mera confraternização. Para a comunidade joanina a ceia é a auto revelação de Jesus, é o momento mais forte da sua catequese. Foi na ceia que Jesus apresentou o seu “testamento”, como é chamado o seu longo discurso de despedida. A centralidade da ceia em João é evidenciada pelo espaço que ocupa: são cinco capítulos (13 – 17), totalizando cento e cinquenta e cinco versículos, o que corresponde a um quarto de todo o Evangelho. Esse momento foi iniciado com o lava-pés (cf. 13,1-15), e continuado pelo discurso de Jesus, com algumas interrupções dos discípulos (cf. 13,36-38; 14,5.8.22).

Jesus sabia do que estava para acontecer: em pouco tempo, seria condenado à morte; os discípulos também imaginavam o que estava para acontecer, embora não tivessem ainda tanta clareza. Havia um clima de tensão e medo entre os discípulos, o que era inevitável para as circunstâncias, por isso Jesus procurou acalmá-los em diversos momentos (cf. 14,1.27; 16,6.22). Por cinco vezes, durante o discurso, Jesus promete enviar o Espírito Santo quando retornar para o mundo do Pai (cf. 14,16-17.26; 15,26; 16,7-8.13), de modo que os discípulos não permanecerão sozinhos, pois através do Espírito, a presença de Jesus se eternizará no meio deles. O Evangelho de hoje contém a quinta e última promessa.  

Durante o seu ministério, Jesus apresentou todo o seu programa aos discípulos, o seu “Evangelho”, compreendendo palavras e sinais; não escondeu nada, conforme Ele disse nesse mesmo discurso: “já não vos chamo servos, porque o servo não sabe o que faz o seu Senhor, mas vos chamo de amigos, porque tudo o que ouvi de meu Pai vos dei a conhecer” (cf. Jo 15,15). Ser discípulo(a) de Jesus é entrar no seu círculo de profunda intimidade, é ser contado entre os seus amigos, de quem Ele nada esconde. A princípio, o primeiro versículo de hoje parece contradizer a afirmação acima: “Tenho ainda muitas coisas a dizer-vos, mas não sois capazes de as compreender agora” (v. 12). Jesus já disse tudo; não há novas coisas para dizer. Aqui, Ele se refere à capacidade de compreensão dos discípulos.

Muita coisa da vida e da mensagem de Jesus ainda não tinha sido assimilada pelos discípulos, porque a chave de interpretação da sua vida é a ressurreição. Na verdade, aqui o evangelista nem usa o verbo compreender, empregado equivocadamente pela tradução litúrgica, mas o verbo “suportar” (em grego: βαστάζω – bastázo); a tradução mais justa, portanto seria: “não sois capazes de suportar agora”. Antes da ressurreição e sem o dom maior do Ressuscitado, o Espírito Santo, os discípulos não tem força para suportar a sua mensagem de libertação e vida em plenitude, sobretudo porque essa compreende a passagem pela cruz, como consequência de um amor incondicional.

Para compreender e suportar o peso da mensagem de Jesus, sobretudo a cruz, os discípulos necessitam de uma força especial, de uma energia que os tire do medo e do comodismo, e Jesus garante que eles receberão essa força: “Quando porém, vier o Espirito da Verdade, ele vos conduzirá à plena verdade. Pois ele não falará por si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido; e até as coisas futuras vos anunciará” (v. 13). A Verdade é o próprio Jesus, como Ele mesmo se auto intitulara antes: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida” (14,6). A “Verdade plena”, portanto, é o Cristo glorificado no mundo do Pai, realidade que só pode ser alcançada por quem se deixa conduzir pelo Espírito; é o “conjunto da obra”: da preexistência do Verbo (cf. Jo 1,1) à encarnação (cf. Jo 1,14), passando pela cruz, até o retorno para o mundo do Pai.  

A função do Espírito é manter a comunidade alinhada ao projeto de Jesus, que é a Verdade em pessoa. As “coisas futuras” que serão anunciadas não são novas revelações ou visões; significa a capacidade de ler os eventos futuros à luz da mensagem de Jesus. A comunidade cristã – Igreja – sempre encontrará situações novas e surpreendentes ao longo da história. Independente da época, deverá interpretar tais circunstâncias à luz de tudo o que Jesus ensinou. Só é possível fazer isso deixando-se conduzir pelo Espírito da Verdade.

Guiada pelo Espírito Santo, a comunidade mantém a atualidade da mensagem de Jesus em qualquer que seja a situação e a época histórica. Continuando, Ele afirma: “Ele me glorificará, porque receberá do que é meu e vo-lo anunciará” (v. 14). Ora, o Espírito irá iluminar os discípulos para compreenderem e viverem o que Jesus já disse. Assim como Jesus glorificou o Pai fazendo a sua vontade, também o Espírito glorifica Jesus conduzindo a comunidade em conformidade com o Evangelho. Ao contrário dos sinóticos, que prevêem uma vinda gloriosa de Jesus no último dia, João não segue essa linha. Para o autor do Quarto Evangelho, a glória de Jesus é que Ele mesmo esteja permanentemente presente na comunidade através do Espírito.

A promessa do Espírito é concluída com uma afirmação muito profunda que enfatiza a sua comunhão de Jesus com o Pai: “Tudo o que o Pai possui é meu. Por isso, disse que o que ele receberá e vos anunciará, é meu” (v. 15). O Pai é a fonte originária de tudo. O que Jesus tem a oferecer ao mundo, o amor ilimitado, pertence ao Pai; mas como Ele e o Pai são Um (cf. Jo 10,30), tudo o que é do Pai é também seu. Logo, o que o Espírito recebe de Jesus, recebe também do Pai. Aqui, nesse último versículo temos, de fato, um eco trinitário bastante evidente, pois revela a comunhão dos três: o Espírito comunica à comunidade tudo o que recebe de Jesus, e tudo o que Jesus concede ao Espírito recebeu do Pai.

A presença perene de Jesus na comunidade, através do Espírito, é também presença do Pai. É essa relação que torna sempre novo e atual tudo o que Jesus viveu e ensinou. Deixar-se conduzir pelo Espírito Santo é entrar também nessa comunhão profunda com o Pai e o Filho.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, junho 08, 2019

REFLEXÃO PARA A SOLENIDADE DE PENTECOSTES – JOÃO 20,19-23




O evangelho proposto pela liturgia na solenidade de Pentecostes é Jo 20,19-23, texto que relata a primeira manifestação do Senhor Ressuscitado aos discípulos, ao anoitecer do primeiro dia da semana, ou seja, o domingo mesmo da páscoa. Esse texto já foi lido na liturgia dominical deste tempo pascal, como parte do evangelho do segundo domingo: Jo 20,19-31. Embora estejamos de fato há cinquenta dias da páscoa, o evangelho de hoje nos remete ao dia mesmo da ressurreição.


Pentecostes era uma das três maiores festas do calendário litúrgico judaico, juntamente com as festas da páscoa e das tendas. Era celebrada cinquenta dias após a páscoa. Na Bíblia hebraica é chamada de “festa das semanas”, pois contavam-se sete semanas após a páscoa, mais um dia, o que totalizava cinquenta dias. Por isso, ganhou o nome de “pentecostes” (em grego: πεντηκοστή – pentecoste) a partir da dominação grega, cujo significado é simplesmente quinquagésimo dia (cf. Tb 2,1; 2Mc 12,32). Como todas as festas judaicas, também pentecostes tem suas origens ligadas à vida agrícola do povo; era a festa da colheita. Os peregrinos iam a Jerusalém agradecer pela colheita, levando os melhores grãos e frutos da terra como oferta, em gratidão a Deus.


Com o passar do tempo, essa festa foi perdendo sua relação com a agricultura, e foi ganhando um novo significado, com uma conotação mais religiosa. O motivo da celebração passou, então, a ser o agradecimento a Deus pelo dom da Lei ao seu povo. Na época de Jesus e dos apóstolos, esse novo sentido já estava consolidado: os judeus de todas as partes do mundo, conforme as condições, iam a Jerusalém, para agradecer a Deus pelo dom da Lei dada através de Moisés. Lucas, autor dos Atos dos Apóstolos, se serve desse contexto e faz coincidir o envio do Espírito Santo com a festa judaica de pentecostes, como artifício literário e teológico, para ensinar às suas comunidades que a nova lei é o Espírito Santo. Para permanecer fiel a Jesus e ao seu Evangelho, a comunidade cristã já não necessita das prescrições da Lei de Moisés, deve apenas estar sensível e aberta aos dons do Espírito Santo.


Ao contrário de Lucas, João faz de tudo para que os referenciais da sua comunidade não coincidam com os esquemas litúrgicos judaicos. Para João, inclusive, as festas dos judeus em Jerusalém sempre foram muito conflituosas para Jesus; eram sempre momentos de confronto e ameaça (cf. 2,13ss; 5,1.18; 7,1ss; 10,31; 11,56). Por isso, João situa a transmissão do Espírito Santo por Jesus aos discípulos, no dia mesmo da ressurreição. Embora a Igreja tenha adotado o esquema de Lucas, a perspectiva da comunidade joanina tem mais sentido e responde melhor às necessidades dos discípulos, como mostra o Evangelho de hoje: “Ao anoitecer daquele dia, o primeiro da semana, estando fechadas, por medo dos judeus, as portas do lugar onde os discípulos se encontravam, Jesus entrou e, pondo-se no meio deles, disse: A paz esteja convosco!” (v. 19). Ora, amedrontada e sem poder de ação, essa comunidade não teria condições de esperar cinquenta dias para receber o Espírito Santo. É somente pela força do Espírito Santo que as portas são abertas e os dons comunicados pelo Ressuscitado podem ser experimentados por todos.


A comunidade dos discípulos estava em crise, profundamente abalada. Até aquele momento, somente Maria Madalena e o Discípulo Amado tinham convicção da ressurreição (cf. Jo 20,8.16-18). A morte de Jesus na cruz foi um alerta para os discípulos: quem continuasse propagando ideias como as dele, poderia terminar da mesma forma. Por isso, estavam as portas trancadas, devido ao medo. Por “medo dos judeus” entende-se o medo das autoridades, e não de todo o povo; é típico de João usar o termo “judeus” referindo-se às autoridades de Jerusalém (cf. Jo 9,22; 12,42; 16,16). Apesar do medo, o fato de estarem reunidos é um sinal de esperança. Porém, não poderiam continuar naquela situação. O medo impede a missão, as portas fechadas bloqueiam o anúncio da Boa Nova.


Ao medo dos discípulos, o Ressuscitado responde com o dom da sua paz, não como mera saudação, mas como plenitude de vida e equilíbrio, o bem-estar da pessoa em todas as suas dimensões, condição indispensável para a felicidade. Jesus comunica a sua paz estando no meio, quer dizer, no centro da comunidade. Para que os dons do Ressuscitado sejam realmente acolhidos, é necessário que a sua centralidade na comunidade seja respeitada; isso vale para todos os tempos e lugares. Para uma comunidade viver realmente os propósitos do Evangelho é necessário, antes de tudo, que no centro do seu existir esteja o Ressuscitado e somente Ele, pois é Ele o único ponto de referência e fator de unidade. Por isso, ao se manifestar, o Ressuscitado aparece sempre no meio.


Na continuidade da experiência, diz o texto que Jesus “mostrou-lhes as mãos e o lado” (v. 20a). Ao mostrar as mãos e o lado, Jesus mostra a continuidade entre o Ressuscitado e o Crucificado; se trata da mesma pessoa. O Ressuscitado traz as marcas do Crucificado, porque cruz e glória não se separam. Nas mãos e no lado de Jesus está a sua identidade de quem viveu para servir e amar. As mãos são símbolo e recordação do serviço e de todo o bem que Jesus fez: são as mãos que tocaram em leprosos, mesmo sendo proibido (cf. Mc 1,40), mãos que acariciaram crianças, gerando revolta nos discípulos (cf. Lc 18,15-16; Mt 19,13-15), mãos que abriram olhos de cegos (cf. Jo 9,6), mãos que curaram enfermos e expulsaram demônios (cf. Lc 4,40; 13,13), mãos que lavaram os pés dos discípulos (cf. Jo 13,1-12); enfim, são mãos que promoveram a vida e combateram o mal.


As marcas da cruz não apagaram a força das mãos de Jesus. Essas mãos continuam à disposição da comunidade, e a comunidade, por sua vez, tem a missão de fazer no mundo o mesmo que aquelas mãos do Ressuscitado fizeram, ou seja, servir infinitamente e sem distinção. Também o lado, ou seja, o peito aberto, tem o mesmo significado de continuidade: é o mesmo coração com o qual Ele amou-os infinitamente (cf. Jo 13,1), e continua amando da mesma forma. As mãos e o lado de Jesus são a síntese da sua vida, da sua mensagem e da sua práxis. Ele doa o Espírito Santo aos discípulos para que suas mãos e o seu coração continuem presentes no mundo servindo e amando de modo ainda mais eficaz. Por isso, “os discípulos se alegraram por verem o Senhor” (v. 20b). Como fruto da paz transmitida pelo Ressuscitado, a alegria deve ser também uma das características da comunidade que deve viver para amar e servir.


A paz como bem-estar do ser humano é novamente oferecida: “novamente Jesus disse: A paz esteja convosco” (v. 21a) A passagem do medo à alegria poderia tornar-se uma simples euforia, por isso a paz é doada novamente para equilibrar a comunidade. Aqui, a paz não significa alívio ou tranquilidade, mas sinal de liberdade e vida plena; é a capacidade de assumir livremente as consequências das opções feitas. Tendo plenamente comunicado a paz como seu primeiro dom, o Ressuscitado os envia, como fora ele mesmo enviado pelo Pai: “Como o Pai me enviou, também eu vos envio” (v. 21b). Ao contrário de Mateus e Lucas que determinam as nações e até os confins da terra como destinos da missão (cf. Mt 28,19; Lc 24,47; At 1,8), em João isso não é determinado. Jesus simplesmente envia. Sem diminuir a importância da missão em sua dimensão universal, o mais importante para o Quarto Evangelho é a comunidade. É essa a primeira instância da missão, porque é nessa onde estão as situações de medo, de desconfiança, de falta de entusiasmo, por isso é a primeira a necessitar da paz e do Espírito do Ressuscitado.  


Jesus tinha prometido o Espírito Santo aos discípulos na última ceia (cf. Jo 14,16.26; 15,26). Agora, a promessa é cumprida: “E depois de ter dito isso, soprou sobre eles e disse: Recebei o Espírito Santo” (v. 22). Aqui, o evangelista usa o mesmo verbo empregado no relato da primeira criação do ser humano: “O Senhor modelou o ser humano com a argila do solo, soprou-lhe nas narinas um sopro de vida, e o ser humano tornou-se vivente” (Gn 2,7). Com isso, o evangelista quer dizer que está sendo realizada uma nova criação. O verbo soprar (em grego: έμφυσάω – emfysáo) significa doação de vida. Assim, podemos dizer que Jesus recria a comunidade e, nessa, a humanidade inteira. Ao receber o Espírito, a comunidade se torna também comunicadora dessa força de vida. É o Espírito quem mantém a comunidade alinhada ao projeto de Jesus, porque é Ele quem faz a comunidade sentir, viver e prolongar a presença do Ressuscitado como seu único centro e fundamento, colocando à disposição da humanidade mãos e coração para servir e amar continuamente. 


O Espírito Santo garante responsabilidade à comunidade, e não propriamente poder: “A quem perdoardes os pecados eles lhes serão perdoados; a quem não perdoardes, eles lhes serão retidos” (v. 23). A responsabilidade da comunidade cristã é reconciliar o mundo com Deus, levar a paz e o amor do Ressuscitado a todas as pessoas, de todos os lugares e em todos os tempos, fazendo o bem como Ele mesmo fez. A comunidade cristã tem essa grande missão: fazer-se presente em todas as situações para, assim, tornar presente também o Ressuscitado com a sua paz, suas mãos e seu coração; e é o Espírito Santo quem a habilita a fazer isso. Não se trata, portanto, de poder para determinar se um pecado pode ou não pode ser perdoado. É a responsabilidade da obrigatoriedade da presença cristã para que, de fato, o mundo seja reconciliado com Deus.  


Movida pelo Espírito Santo, a comunidade tem a responsabilidade de levar misericórdia de Deus a todas as realidades, para que toda a humanidade seja recriada e, assim, o pecado seja definitivamente tirado do mundo (cf. Jo 1,29). João, o batista, apontou para Jesus como o responsável por fazer o pecado desaparecer do mundo. Agora, é Jesus quem confia à sua comunidade de discípulos essa responsabilidade. Os pecados são perdoados à medida em que o amor de Jesus vai se espalhando pelo mundo, quando seus discípulos se deixam conduzir pelo Espírito Santo. O que perdoa mesmo os pecados é o amor; logo, ficam pecados sem perdão quando os discípulos e discípulas de Jesus deixam de comunicar esse amor. Em outras palavras, os pecados ficarão retidos quando houver omissão da comunidade. 


Deixando-se conduzir pelo Espírito Santo, a comunidade atualiza e prolonga, no tempo e no espaço, a missão única de Jesus de revelar o amor de Deus a todas as pessoas. O Espírito Santo torna as mãos e o coração de Jesus sempre presentes no mundo, através dos seus seguidores.


Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN



sábado, junho 01, 2019

REFLEXÃO PARA A SOLENIDADE DA ASCENSÃO DO SENHOR – LUCAS 24,46-53 (ANO C)





Neste domingo em que celebramos a solenidade da ascensão do Senhor, a liturgia propõe Lc 24,46-53 para o evangelho, texto que contém os últimos versículos do Evangelho segundo Lucas. A solenidade da ascensão marca a consumação da ressurreição: o Ressuscitado penetra no mundo do Pai e confere à sua comunidade de seguidores e seguidoras a missão de continuar a sua presença no mundo, com a assistência do Espírito Santo. Embora se trate de uma despedida, a cena descrita por Lucas é marcada pela alegria, pois Aquele que parte, o Ressuscitado, não se ausenta dos seus; a sua partida é a garantia de uma presença ainda mais efetiva, não mais condicionada às circunstâncias de tempo e espaço, como foi no seu curto ministério de três anos.

Neste ano temos a oportunidade de ler o relato da ascensão duas vezes: na primeira leitura (At 1,1-11), como em todos os anos, e no Evangelho, por estarmos vivenciando o “ano C” da liturgia. Temos hoje, portanto, dois relatos de um mesmo evento, narrados pelo mesmo autor. Por sinal, Lucas é o único evangelista que narra a ascensão; Marcos faz apenas um pequeno aceno (cf. Mc 16,19), enquanto Mateus e João não fazem nenhuma referência. Mesmo se tratando do mesmo acontecimento, Lucas não conta as duas vezes do mesmo jeito. Há detalhes que diferenciam os dois relatos, pois cada livro tem uma finalidade específica. No Evangelho, a ascensão tem a função de marcar a conclusão da missão de Jesus entre os discípulos; em Atos, a função é preparar a missão da Igreja e mostrar a continuidade entre essa e Jesus.

A nível de contexto, é importante recordar que, de acordo com o Evangelho, a ascensão acontece no mesmo dia da ressurreição, e não após um período de quarenta dias como em Atos (cf. At 1,3). De fato, o evento narrado no Evangelho de hoje é a sequência do episódio dos discípulos de Emaús: após se manifestar aos dois que retornavam desiludidos de Jerusalém (cf. Lc 24,13-35) e a Simão (cf. Lc 24,34), o Senhor se manifestou também aos demais discípulos que estavam reunidos no cenáculo em Jerusalém (cf. Lc 24,36), naquele mesmo dia, o primeiro da semana (cf. Lc 24,13). Os estudiosos procuraram explicar essa diferença. Uma das explicações é que quando o Evangelho já estava pronto, Lucas recebeu novas informações sobre esse acontecimento e, por isso, acrescentou alguns detalhes em Atos dos Apóstolos. O mais provável no entanto, é que essa diferença seja intencional e teológica. Nenhum dos relatos pretende ser uma crônica exata dos fatos. A intenção do evangelista é mostrar que Jesus consumou a sua obra, retornou para a glória do Pai e habilitou os seus discípulos a manterem viva a sua presença no mundo, por meio do testemunho e animados pela força do alto, o Espírito Santo.   

O texto de hoje começa com a continuidade das palavras de Jesus aos discípulos reunidos. Tendo se manifestado entre eles, Ele lhes transmitiu a paz (cf. Lc 24,36), pois os discípulos estavam assustados (cf. 24,37), mostrou os estigmas de crucificado (cf. 24,39-40), pediu algo para comer (cf. 24,42), deram-lhe um pedaço de peixe (24,42), Ele o comeu (cf. 24,43) e começou a falar, explicando o cumprimento das Escrituras em sua vida (24,44). Hoje, lemos a continuidade e conclusão dessa explicação: “Assim está escrito: O Cristo sofrerá e ressuscitará dos mortos ao terceiro dia” (v. 46). É importante que os discípulos, que ainda estavam apreensivos e decepcionados com os últimos acontecimentos, acolham o desfecho final da vida de Jesus como cumprimento das Escrituras. Só assim, poderiam aceitá-lo como o Cristo e proclamá-lo, como fizeram.

O evangelista não faz uma interpretação fundamentalista da Escritura, não cita passagens isoladas, mas fala do seu conjunto; é a totalidade da Escritura que aponta para o Cristo. Da recordação das Escrituras, emerge a missão da comunidade, que consiste no anúncio e no testemunho: “e no seu nome serão anunciados a conversão e o perdão dos pecados a todas as nações, começando por Jerusalém. Vós sereis testemunhas de tudo isso” (v. 47-48). Aqui Jesus resume a sua missão e antecipa a da comunidade cristã. O elemento primordial da missão é oferecer a reconciliação a todos os povos, sem distinção. Nada de proselitismos e nem doutrinação. A primeira tarefa da comunidade cristã é oferecer ao mundo o amor misericordioso de Deus, como Jesus fez em seu curto ministério, e Lucas fez disso o tema central de seu Evangelho. A comunidade cumpre a sua missão quando assume um estilo de vida semelhante ao de Jesus.

Jesus quer que todos os povos recebam os benefícios da sua ressurreição. O começo por Jerusalém é muito significativo; não se trata de um privilégio, mas de uma necessidade. Essa cidade era símbolo do poder, sobretudo o religioso. Era lá onde o poder matava em nome de Deus, e o próprio Jesus fora vítima dessa prática. Nessa cidade, praticava-se um culto estéril e mercantilista, caracterizado pelo mero ritualismo e o sacrifício de animais; o sangue desses sacrifícios não geravam comunhão com Deus, pois o único sangue com força de salvação fora derramado por Jesus. Por isso, como o amor misericordioso de Deus não faz distinção de pessoas, Jesus habilita seus discípulos a começarem o anúncio-testemunho onde as pessoas estavam mais longe de Deus e, paradoxalmente, era na cidade santa onde as pessoas mais estavam distantes de Deus, onde mais havia necessidade de uma “mudança de mentalidade”, como significa propriamente o termo conversão.

Como responsáveis pelo prolongamento da missão de Jesus, os discípulos não poderiam levá-la a cumprimento sozinhos; por isso, Jesus promete enviar-lhes o que o próprio Pai prometeu: “eu enviarei sobre vós aquele que meu Pai prometeu. Por isso, permanecei na cidade, até que sejais revestidos da força do alto” (v. 49). Esse versículo contém as últimas palavras de Jesus no Evangelho, e essas são carregadas de esperança. O próprio Jesus só iniciou a sua vida pública após o batismo, momento em que desceu sobre Ele o Espírito Santo (cf. Lc 3,22); ao pregar pela primeira vez na sinagoga de Nazaré, declarou estar investido do Espírito Santo e, por isso, autorizado para tal (cf. Lc 4,18). Sem o Espírito Santo, portanto, não haveria missão alguma. Os discípulos devem esperar esse momento, o que Lucas ilustrará tão bem com a narrativa de Pentecostes (cf. At 2,1-13). O Espírito Santo aqui é referido como “força do alto”, uma expressão que atendia melhor às necessidades dos discípulos naquele momento em que estavam com medo; por isso, necessitavam de uma “força” (em grego: δύναμις – dynâmis) que os movesse.  Do termo grego empregado pelo autor, derivam palavras que expressam bem a natureza missionária da Igreja, como “dinamismo” e “dinâmica”, o que se opõe a uma instituição estática e parada no tempo. O livro todo dos Atos dos Apóstolos mostra que os discípulos compreenderam bem essa dimensão, e cabe aos discípulos/as de todos os tempos atualizarem sempre.

Tendo concluída a fala, começa a cena da ascensão propriamente dita, com Jesus colocando os discípulos em movimento, tirando-os do cenáculo e até da cidade de Jerusalém: “então Jesus levou-os para fora, até perto de Betânia. Ali ergueu as mãos e abençoou-os” (v. 50). O gesto de levá-los para fora é uma atualização do êxodo, o que fora tema da conversa de Jesus com Elias e Moisés, na transfiguração (cf. Lc 9,28-36); mesmo narrada pelos três sinóticos (cf. Mt 17,1-9; Mc 9,2-10; Lc 9,28-36), somente Lucas empregou o termo “êxodo” naquela ocasião, e agora mostra a sua realização. Ir para “Perto de Betânia” significa refazer o caminho da entrada triunfante em Jerusalém, porém em sentido oposto (cf. Lc 19,29). Quando caminhava da Galileia a Jerusalém, ele parou entre o monte das Oliveiras e Betânia para solicitar o jumentinho e entrar na cidade. Se de “perto de Betânia” Ele marchou para a cruz, da mesma localidade ele marcha definitivamente para a glória do Pai. Com isso, o evangelista enfatiza a inseparabilidade entre a cruz e a glória.

O último gesto de Jesus entre os discípulos foi dar-lhes a bênção: “Enquanto os abençoava, afastou-se deles e foi levado para o céu” (v. 51). Essa é a única vez que Lucas atribui a Jesus a função de abençoar, e essa coincide com a subida ao céu. Na linguagem Bíblica, a bênção é um elemento performativo, transmite uma força eficaz e irrevogável; comunica a essência daquele que abençoa nos que são abençoados. Os discípulos, abençoados, irão difundir essa bênção e, através dela, farão novos discípulos. Com a bênção de Jesus aqui na conclusão, o evangelista recorda o início do seu Evangelho, quando o povo estava privado de bênção, devido à incredulidade e ineficiência do antigo sacerdócio do templo, personificado na figura de Zacarias: “o povo que estava à espera de Zacarias, admirava-se com a sua demora no santuário; tendo saído dali, não podia falar” (Lc 1,21-22). A bênção de Deus que fora bloqueada pelo sacerdócio do templo, agora é destravada por Jesus; antes, era restrita apenas aos judeus homens, os únicos que podiam entrar no átrio onde os sacerdotes pronunciavam a bênção. Com Jesus, a bênção de Deus deixa de ser propriedade de uma casta, e é destinada a todo o mundo.

Convictos da novidade, eis a reação dos discípulos: “Eles o adoraram. Em seguida voltaram para Jerusalém, com grande alegria. E estavam sempre no Templo, bendizendo a Deus” (vv. 52-53). Essa é também a primeira vez que os discípulos “adoram” a Jesus, de acordo com Lucas. O fazem porque têm certeza da consumação da sua obra, com a confirmação da sua introdução definitiva no mundo do Pai. Sabem que Jesus é realmente o salvador, por isso expressam uma “grande alegria”, sentimento semelhante ao dos pastores com o anúncio do nascimento (cf. Lc 2,10). Essa “grande alegria” é uma característica essencial do discipulado, na perspectiva de Lucas; fora antecipada no início do livro por Maria (cf. 1,47), pelos pastores e pelos anjos (cf. 2,8-20), e agora toma conta dos discípulos e, através deles, se estenderá por todo o mundo.

Os discípulos já não sentem medo. Estão dispostos a assumir os desafios e as consequências da missão, e serão habilitados para isso pelo Espírito Santo. Essa alegria brota da fé e da certeza de que de agora em diante a presença do Ressuscitado será ainda mais eficaz. Continuam frequentando o templo, mas com uma nova finalidade: vão lá para “bendizer” a Deus; esse verbo (em grego: ευλογέω – euloguéo) significa também louvar e dar graças. Fazer isso no templo é uma novidade, pois a função primordial do templo era o oferecimento de sacrifícios, o que os discípulos não fazem, pois têm consciência de que o único sacrifício eficaz foi o de Cristo. Louvam a Deus pelas maravilhas feitas entre eles, assim como Maria, no início do Evangelho (cf. 1,46-56), e pelas que ainda serão feitas em todo o mundo. Louvam a Deus porque percebem a construção de um mundo novo, cujos agentes são as pessoas mais humildes, e a prova incontestável disso é a glorificação de um crucificado.

Na festa da ascensão, portanto celebramos a presença constante do Ressuscitado na comunidade e na missão perene da Igreja, da qual não se espera outra coisa senão o testemunho, o que consiste em espalhar o amor misericordioso de Deus no mundo com grande alegria.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

REFLEXÃO PARA O 4º DOMINGO DA PÁSCOA – JOÃO 10,11-18 (ANO B)

O evangelho do quarto domingo da páscoa é sempre tirado do capítulo décimo do Evangelho de João, no qual Jesus se auto apresenta como o ún...