Na
liturgia do trigésimo quarto domingo do tempo comum, o último do ano litúrgico,
a Igreja celebra a solenidade de Jesus Cristo como rei do universo. As leituras
desta solenidade variam conforme o ciclo litúrgico. Neste ano, por ocasião do
ciclo litúrgico A, o evangelho proposto é Mt 25,31-46, texto que contém a
parábola do juízo final, uma exclusividade do evangelista Mateus. Na verdade,
há estudiosos que não classificam esse texto como parábola, mas apenas como uma
“cena de julgamento”, um recurso próprio do gênero apocalíptico, ao qual
pertence todo o discurso escatológico do Evangelho de Mateus (Mt 24–25). Porém,
antes de tratarmos do texto bíblico e seu contexto narrativo-literário,
consideramos oportuno fazer algumas considerações sobre a origem e a história
desta solenidade. Trata-se de uma festa relativamente nova, considerando que a
maioria das festas e devoções cristãs encontram raízes ainda nos primeiros
séculos do cristianismo. A solenidade de Cristo Rei já foi instituída pelo Papa
Pio XI, no ano de 1925, em um momento muito
conturbado para a Europa e todo o mundo. Fazia pouco tempo que a primeira
guerra mundial tinha terminado, já se desenhava o cenário da segunda. A
ganância pelo poder com as consequências drásticas que desse derivam estavam em
efervescência. Já estavam consolidados alguns regimes totalitários, como o
fascismo na Itália e o stalinismo na Rússia, enquanto o nazismo estava sendo
gestado na Alemanha. Também em Portugal e Espanha estavam sendo gerados
projetos ditatoriais, consolidados na década de 30.
Em resposta a este cenário, sobretudo aos regimes
totalitários, o Papa Pio XI instituiu esta festa como advertência e recordação
de que Jesus Cristo é o único rei e Senhor do universo. Com isso, não se
pretendia restabelecer o poder temporal da Igreja, o que também seria um
contraexemplo evangélico. O que se quis foi alertar o mundo para o perigo dos totalitarismos e recordar o senhorio de Jesus Cristo, cujo reinado deve começar no coração de cada pessoa. Apesar de oportuna para o momento histórico, a
maneira como a festa foi instituída poderia gerar interpretações distorcidas e
equivocadas da realeza de Cristo, alimentando pretensões triunfalistas na
Igreja. Por isso, ela foi ressignificada com a reforma litúrgica do Concílio Vaticano
II, começando pela mudança de data; antes, era celebrada no último domingo do
mês de outubro, como preparação à solenidade de todos os santos. Com a reforma do
Vaticano II, passou a ser celebrada no último domingo do ano litúrgico, como a
culminação de um percurso e de um projeto universal de salvação, marcado pela
inclusão e vida em abundância, correspondente ao que Jesus apresentou, ao longo
de sua existência terrena, como o Reino de Deus. E, como se sabe, o Reino de
Deus é incompatível com os projetos humanos de poder, tendo em vista que Deus
reina quando o ser humano é plenamente respeitado em todas as suas dimensões,
quando é realmente humanizado.
Conforme acenamos anteriormente, neste ano (ano A) o
evangelho da festa de Cristo Rei é Mt 25,31-46. Esse texto é a conclusão solene
do último dos cinco discursos de Jesus no Evangelho de Mateus, o chamado
“discurso escatológico” (Mt 24–25). Contém as últimas palavras de Jesus antes
do relato da paixão (Mt 26–27). Esse dado reforça ainda mais a importância do
texto, pois é o fechamento de todo o ensinamento de Jesus, exatamente no Evangelho
que mais evidenciou a sua atividade de ensinar. E o mais importante e
comprometedor é que, na conclusão desse ensinamento, a opção pelos pobres e
pequenos ocupa a centralidade. Como temos afirmado nos últimos domingos, esse
discurso foi construído com a finalidade de chamar a atenção da comunidade do
evangelista que vivia um momento de crise, com um esmorecimento na vivência da
fé e preocupações com o tardar do retorno do Senhor. Com isso, o evangelista
incentiva a comunidade a trabalhar os talentos confiados pelo Senhor,
fazendo-os frutificar, sem preocupar-se com o tempo. Portanto, a exemplo das
parábolas anteriores (parábolas dos dois servos –
Mt 24,45-51; parábola das dez virgens – Mt 25,1-12; parábola dos talentos – Mt
25,14-30), também essa tem a finalidade de despertar uma vigilância ativa na
comunidade.
Feitas as devidas considerações introdutórias e
contextualização, olhamos para o texto, que apresenta, em forma de parábola,
uma cena de julgamento final conduzida pelo Filho do Homem, título com o qual
Jesus se refere a si mesmo. É importante recordar que o
tema principal do discurso escatológico é a vigilância, ou seja, a espera
atenta pelo desfecho final da história; por isso, o texto inicia com esta
expressão: «Quando vier o Filho do Homem em sua glória acompanhado
de todos os anjos, então se assentará em seu trono glorioso» (v. 31).
O verbo “vir” relaciona essa cena as parábolas anteriores do mesmo discurso,
sendo que expressa mais um manifestar-se do que propriamente um retorno. Com
isso, o evangelista quer mostrar que o Senhor nunca foi embora, ou seja, nunca
se ausentou, mas sempre esteve presente na comunidade. Inclusive, esse é um dos
ensinamentos principais da parábola: mostrar que, mesmo depois da ascensão, o
Senhor permaneceu na comunidade através dos pobres e pequenos. Um dos desafios
da comunidade de Mateus era compreender e aceitar essa realidade, o que explica
a ênfase do evangelista com o tema da presença do Senhor, o Deus conosco,
Emanuel (Mt 1,23; 18,20; 28,20). Do começo ao fim, o evangelista mostra em sua
obra que o Senhor já está na comunidade; agora, ele está falando da
manifestação gloriosa.
O
assentar-se no trono glorioso recorda a realeza do Filho do Homem; de fato, ele
é rei. O que surpreende, no entanto, é a maneira como exerce essa realiza, o
que vem indicado nos versículos seguintes, que o apresentam como juiz universal
e como pastor. Eis a primeira consequência da vinda/manifestação do Filho
Homem: «Todos os povos da terra serão reunidos diante dele, e ele
separará uns dos outros, assim como o pastor separa as ovelhas dos cabritos» (v.
32). A reunião de todos os povos da terra, mesmo que seja seguida de uma
separação, já evoca a realização de uma fraternidade universal. Acabou-se o
privilégio de Israel, que agora passa a ser contado como um entre todos os
povos da terra. Como os critérios de juízo já não serão mais religiosos, Israel
não tem vantagem sobre as demais nações, pois o que conta é o amor ao próximo,
traduzido em ações concretas de serviço e solidariedade. A imagem do pastor é
extremamente significante; evoca cuidado, conhecimento do rebanho e intimidade
com ele. Significa a dimensão serviçal do poder, incluindo o amor, a
compreensão e o cuidado humanizante. É o contrário do poder tirânico. A
separação das “ovelhas dos cabritos” é uma imagem muito comum no mundo pastoril,
sobretudo no antigo Oriente. Nos tempos de frio, todos os dias, ao anoitecer,
os pastores faziam esse trabalho: as ovelhas dormiam ao descoberto, pois
possuíam a lã como proteção natural, enquanto as cabras e cabritos eram
colocadas para dormir em locais cobertos, uma vez que não possuíam um meio
natural de proteção.
Ao
reunir “todos os povos” diante de si, o Filho do Homem irá fazer a separação. O
critério da separação é o mais surpreendente: ao invés de considerar
distintivos religiosos, como bons e maus, puros e impuros, dignos e indignos,
santos e pecadores, ortodoxos e hereges, o critério utilizado pelo juiz
universal é o que alguém fez ou deixou de fazer aos “pequeninos” ou “menores”
dos irmãos, ou seja, às pessoas marginalizadas. A atenção aos “menores dos
irmãos” é o critério de participação na vida definitiva, ou seja, o «reino
que o Pai preparou desde a criação do mundo» (v. 34). Em Mateus, a
mensagem de Jesus foi condensada nos cinco discursos e é importante perceber o
nexo que une esses discursos: o primeiro, o da montanha, foi iniciado com as
bem-aventuranças, nas quais Jesus introduzia a sua opção preferencial pelos
marginalizados e sofredores (pobres, aflitos, mansos, perseguidos... Mt
5,1-12); agora, no último discurso, como mostra o texto de hoje, essa opção é
reforçada e confirmada. Podemos dizer que, do começo ao fim, a mensagem de
Jesus tem a atenção voltada de maneira especial para os “menores dos irmãos”,
ou seja, toda a sua vida foi marcada por uma clara opção por aquelas pessoas
desprezadas pela sociedade.
A
partir de seis situações (ações) concretas, o evangelho de hoje mostra como
alguém pode ser herdeiro ou não do Reino de Deus: «dar comida aos
famintos, dar água aos sedentos, acolher os estrangeiros, vestir os nus, cuidar
dos enfermos e visitar os presos» (vv. 35-40). Chamadas de
“obras de misericórdia”, estas ações já eram recomendadas na Bíblia, ao longo
do Antigo Testamento, especialmente em textos proféticos (Is 58,7; Ez 18,7.17).
Portanto, Jesus não as inventa, mas dá um novo sentido, transformando-as em
critérios exclusivos para o acesso definitivo ao Reino de Deus. Enquanto juiz e
senhor da história, o Filho do Homem, conduzirá o julgamento com um diálogo bastante
franco e sincero, iniciado com um convite: «Vinde benditos de meu
Pai!” (v. 34a). Em seguida, são dadas as razões pelas quais são
chamados de benditos do Pai: «Pois eu estava com fome e me destes de
comer; eu estava com sede e me destes de beber; eu era estrangeiro e me
recebestes em casa; eu estava nu e me vestistes; eu estava doente e cuidastes
de mim; eu estava na prisão e fostes me visitar» (vv. 35-36). Chama a
atenção a surpresa dos que são tratados como benditos (em grego: εὐλογημένοι – euloguêmenoi): eles
perguntam quando viram o senhor naquelas situações e o serviram. Essa surpresa
é registrada pelo narrador para reforçar o caráter desinteressado e gratuito do
amor transformado em serviço: fazer o bem, sem olhar a quem! Eles praticaram o
bem sem esperar recompensa, e é isso o que o Senhor espera de todos. A surpresa
aumenta ainda mais quando o senhor diz: «todas as vezes que fizestes
isso a um dos menores de meus irmãos, foi a mim que o fizestes!» (v.
40). Famintos, sedentos, estrangeiros, nus, doentes e presos sintetizam todas
as categorias de marginalizados e são expressões da presença real de Jesus na
comunidade cristã. Isso quer dizer que, em qualquer momento da história e em
todos os lugares, qualquer pessoa pode ver Jesus e servi-lo; basta olhar para
as pessoas que estão nessas situações e fazer-lhes o bem.
Fazia
parte dos métodos rabínicos ensinar a mesma coisa duas vezes: uma em sentido
positivo, e outra em sentido negativo, sobretudo quando se tratava de um
ensinamento muito importante, mas de difícil aceitação, como Jesus faz nesta
parábola. Assim, o diálogo com o segundo grupo se desenvolve a partir da mesma
dinâmica, embora com desfecho contrário, a começar pelo convite inicial: «Afastai-vos
de mim, malditos» (v. 41). Da mesma forma como fez com aqueles
considerados benditos, o rei-juiz dá as razões pelas quais esses últimos são
chamados de malditos (em grego: κατηραμένοι – katêramenoi):
não ter feito aquilo que fizeram os primeiros (v. 43). Também esses recebem a
sentença com surpresa: «Senhor, quando foi que te vimos com fome, ou
com sede, como estrangeiro, ou nu, doente ou preso, e não te servimos?» (v.
44). A resposta do rei só faz aumentar a surpresa: «Todas as vezes que
não fizestes isso a um desses pequeninos, foi a mim que não o fizestes!» (v.
44). Assim como o terceiro empregado da parábola dos talentos (liturgia do 33º
domingo), a sentença de condenação não é consequência de maldades cometidas,
mas de omissões. O que há de mais sério na vida do ser humano, e que pode
levá-lo à privação da vida em plenitude, é a omissão, a indiferença ao
sofrimento do próximo, a carência de ações praticadas em favor dos menos
favorecidos. Logo, a sentença final (v. 46) não é um castigo divino, mas
simplesmente consequência de opções contrárias à essência do Evangelho, o que
torna a vida sem sentido.
Como
conclusão do discurso escatológico, o texto de hoje reforça a vigilância e dá
um novo sentido a ela: não se deve ficar esperando pelo encontro com o Senhor
na consumação dos tempos, em um tempo remoto; é preciso ter capacidade,
maturidade e amor para encontrar-se com ele todos os dias, fazendo o bem
àqueles nos quais o Senhor está presente, já elencados repetidas vezes aqui
(faminto, sedento, estrangeiro, nu, doente e preso). A parábola é um alerta
para a comunidade de Mateus, tão ansiosa pelo retorno do Senhor, mas incapaz de
ver o Senhor já presente nos mais necessitados. Certamente, esse alerta
continua válido também para os cristãos de hoje. O cristão verdadeiro
encontra-se com o Senhor todos os dias, não tem medo nem anseia por um encontro
final e decisivo, mas sabe que Ele já está aqui conosco. A presença de Jesus,
por sinal, é o fio condutor do Evangelho segundo Mateus: do anúncio a José –
Emanuel, Deus conosco (Mt 1,23) – ao envio dos discípulos após a
ressurreição: «Eis que eu estou convosco todos os dias» (28,20).
Portanto, não há razões para a comunidade perguntar quando virá o Senhor; o
importante é perceber a sua presença no cotidiano, nas situações concretas da
vida.
Todos
foram pegos de surpresa: tanto os considerados “benditos” quanto os ditos
“malditos”, pois ou fizeram ou deixaram de fazer o bem. O bem a ser praticado
deve ser completamente desinteressado. O Senhor não marca nem rotula nenhum
daqueles nos quais ele deve ser reconhecido. Basta reconhecer o outro como ser
humano, pessoa com dignidade, imagem e semelhança do criador; essa é a única
marca e não é impressa por nenhuma religião, mas pelo Deus que é Pai e Criador.
Ao Senhor, interessa o bem praticado, o serviço doado, o amor vivido!
Reconhecer a realeza de Jesus sobre o universo é reconhecê-lo em cada irmão e
irmã, sobretudo nos mais necessitados.
Pe.
Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
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