quarta-feira, março 27, 2024

REFLEXÃO PARA A QUINTA-FEIRA SANTA – LAVA-PÉS (JOÃO 12,1-15)


A liturgia da Quinta-feira Santa, todos os anos, propõe a leitura de Jo 13,1-15, para a missa da Ceia do Senhor. Esse texto corresponde ao relato do lava-pés, um episódio exclusivo do Evangelho segundo João, que é, certamente, uma das passagens mais conhecidas de todo o Novo Testamento. De fato, desde os primeiros séculos, esse texto tem marcado o cristianismo, recebendo diversas possibilidades de interpretação. Antes de tudo, podemos dizer que é um texto comprometedor, pois mostra que, no momento mais decisivo da sua existência terrena, Jesus propôs o serviço, motivado pelo amor, como o principal sinal distintivo de pertença a si; o cristianismo, portanto, não pode ignorar esse fato. E tanto a localização quanto o contexto da cena reforçam ainda mais a sua importância: conforme a divisão clássica do Quarto Evangelho em duas grandes partes – “Livro dos Sinais” (Jo 1 – 12) e “Livro da Glória” (Jo 13 – 21) –, o relato do lava-pés inaugura o “Livro da Glória”, introduzindo a narrativa da paixão de Jesus.

Apresentamos uma pequena contextualização para, em seguida, nos voltarmos diretamente para o texto. A princípio, podemos dizer que chega a causar espanto a diferença entre João e os demais evangelhos quando se trata da última ceia de Jesus com seus discípulos. Ora, ao contrário dos sinóticos (Mt, Mc e Lc), que dedicam poucos versículos à ceia, João dedica cinco capítulos: de 13 a 17. Ao longo destes capítulos, ele apresenta uma longa e profunda catequese de Jesus, ministrada com gestos e palavras, em forma de testamento, cujo tema central é o amor e o serviço, apresentados como únicos sinais distintivos da comunidade cristã. No Evangelho de João, não há nenhum aceno à “consagração” do pão e do cálice, como nos demais evangelhos; por sinal, durante a ceia, o pão só é mencionado na descrição da traição de Judas (13,18.17.26.27.30). Essa ausência de referências ao pão e sua “consagração” pode ser explicada pelo fato de que João já havia feito em outra ocasião: após o sinal da “multiplicação dos pães” (6,1-15), o evangelista apresentou um longo discurso de Jesus se auto apresentando como o “pão da vida” (6,26-66). Por isso, já não havia mais necessidade de fazer uma nova catequese sobre o pão e sobre a entrega de Jesus como alimento, uma vez que essa já tinha sido feita.

O texto começa com um indicativo teológico-temporal importante: «Antes da festa da Páscoa» (v. 1a). O evangelista não nega o contexto pascal no qual Jesus fez a ceia com seus discípulos pela última vez, mas pretende diferenciar, ou seja, quer dizer que a Páscoa celebrada por Jesus já não é mais a mesma do templo. Inclusive, o evangelista costumava referir-se à festa da Páscoa com a qualificação “páscoa dos judeus” (2,13; 11,55), distanciando Jesus das instituições de Israel que tinham desfigurado o rosto de Deus. Agora, ele apresenta Jesus próximo da Páscoa, mas da sua própria Páscoa, tornando-a uma festa da vida, como sempre deveria ter sido. Por isso, Jesus celebra a Páscoa doando a sua própria vida. A Páscoa de Jesus, portanto, não exige ofertas nem sacrifícios, não é instrumento de exploração como se praticava no templo. Celebrando antes, Jesus substitui: aquela que será celebrada um ou dois dias depois da sua pelos praticantes da religião oficial perdeu a sua validade, já não tem mais sentido. Na Páscoa do templo, o centro das atenções é a morte, o sangue derramado com a imolação dos cordeiros, enquanto na Páscoa de Jesus com sua comunidade se celebra o triunfo da vida em forma de serviço, a mais eficaz manifestação visível do amor. Nessa, não há morte, há vida, e vida doada por amor. Morte é coisa da antiga aliança; na nova aliança, há doação de vida. Com essa introdução, o evangelista alerta para uma novidade: Jesus inaugura uma nova Páscoa, subversiva, por sinal. E é essa Páscoa que a comunidade cristã deve viver e celebrar.

Ao longo de todo o seu Evangelho, João criou um clima de suspense em relação à «hora de Jesus», anunciando que tudo o que Jesus fazia era preparação para esse momento, e sempre advertia o leitor que ainda não tinha chegado (2,4; 7,30; 8,20; 12,23). Tanto o narrador quanto o próprio Jesus anunciaram a chegada dessa hora. Mais do que uma indicação cronológica, a hora de Jesus é um indicativo teológico, por sinal, um dos mais significativos da obra de João. Essa hora é o cumprimento de todo o projeto de salvação oferecido por Deus, por meio de seu Filho, consumado na cruz e ressurreição. Agora ele mostra que essa hora chegou: «sabendo Jesus que tinha chegado a sua hora de passar deste mundo para o Pai» (v. 1b). É a hora de Jesus retornar ao Pai, após cumprir plenamente sua missão de humanizar e salvar o mundo, por isso é também a consumação da constante glorificação do Pai que ele realizou, não com ritos, mas com a doação livre da sua própria vida. O Pai que não se sentia glorificado com o falso culto praticado no templo de Jerusalém, uma vez que esse fora transformado em casa de comércio (Jo 2,16ss), recebe de Jesus o verdadeiro culto: «tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim» (v. 1c). O amor de Jesus é ilimitado e, por isso, é “até o fim”.  “Amar até o fim” significa a intensidade do amor, e não o seu término. Quer dizer que Jesus amou de modo extremo, intenso, e continua amando, uma vez que, ressuscitado, vive entre os seus na comunidade. Das falsas aclamações e ritos vazios celebrados no templo, o Pai estava cansado. Jesus recupera a essência do culto e a transmite à comunidade: o amor-serviço.

Continuando, diz o evangelista que «Estavam tomando a ceia» (v. 2a). A ceia para a mentalidade bíblica não representa apenas o consumo de alimentos e bebidas para matar a fome e a sede, mas significa comunhão e intimidade, sobretudo no contexto pascal; é o momento primordial da vivência do amor-comunhão. Porém, Jesus realiza uma ceia alternativa ao ritual judaico. Nessa ceia de Jesus e da comunidade não há encenação, tudo é feito na maior sinceridade e transparência; o rito é a própria vida, são tratadas as questões existenciais mais profundas da comunidade, por isso, o evangelista menciona o episódio lamentável da traição de Judas (v. 2b): nada é imposto. A comunidade é livre para acolher ou não o amor incondicional e extremo de Jesus e, portanto, no seio dessa comunidade é possível que alguns o rejeitem, como Judas outrora, e tantos nas gerações sucessivas. No entanto, a oferta de amor não diminui diante do risco de rejeição. Mesmo traindo, Judas continuou entre aqueles «amados até o fim»; ele perdeu a comunhão com Jesus quando abandonou o seu projeto e se aliou ao sistema dominante. O evangelista é enfático nesse sentido: «o diabo já tinha posto no coração de Judas, filho de Simão Iscariotes, o propósito de entregar Jesus» (v. 2bc). Ora, Jesus seria capturado, independentemente da traição de Judas, pois há muito tempo as autoridades religiosas e políticas o almejavam; daquela Páscoa ele não passaria. O mal de Judas foi ter sido aliado, se tornado cúmplice do poder que gera morte e, ainda mais, movido por dinheiro. Sempre que o cristianismo permite alianças com grupos e sistemas de poder, sempre que silencia diante das injustiças, está permitindo que o «diabo seja posto em seu coração». O conluio com o poder é sempre um pacto diabólico.

A oferta do amor gratuito e intenso de Jesus pelos seus é concretamente demonstrada quando ele «levantou-se da mesa, tirou o manto, pegou uma toalha e amarrou-a na cintura» (v. 4). Certamente, foram grandes o espanto e a curiosidade gerada nos discípulos com essa iniciativa de Jesus. Tirar o próprio manto em público significava renunciar ao prestígio e à dignidade pessoal, conforme a mentalidade da época; amarrar uma toalha na cintura significava improvisar um avental e colocar-se em atitude de serviço, assumindo a condição de servo. O que se fazia somente por imposição, Jesus o faz voluntariamente. Com essa descrição, o evangelista deixa cada vez mais clara a oposição de Jesus à liturgia oficial do templo: a indumentária dos sacerdotes do templo eram um impedimento ao serviço, com tantos adornos; ao invés disso, Jesus usa um avental improvisado e uma toalha, mostrando que não pode haver impedimento para o serviço. Esse gesto ensina que na comunidade cristã o serviço deve sempre prevalecer sobre o rito. Em toda a sua vida Jesus demonstrou que veio ao mundo para servir e, ao servir, ele glorificava o Pai, pois a motivação do seu serviço foi sempre o amor, e o Pai o enviou para espalhar amor sobre o mundo. Mas é nessa cena que o serviço amoroso se torna mais forte e até escandaloso, como será demonstrado pela reação de Pedro, mais adiante.

Tendo já deposto o manto e improvisado um avental, na sequência, o texto diz o que Jesus fez: «Derramou água numa bacia e começou a lavar os pés dos discípulos, enxugando-os com a toalha com que estava cingido» (v. 5). Assim como os leitores de hoje ainda ficam perplexos com a descrição dessa cena, muito mais devem ter ficado os discípulos que estavam com Jesus à mesa. Aqui devemos considerar o ambiente e a situação histórica da época. Ora, lavar os pés antes das refeições – embora o evangelista descreva o gesto acontecendo já durante a refeição – era uma regra básica de higiene no antigo Oriente, sobretudo porque as estradas eram bastante precárias, as sandálias muito simples, o que deixava os pés sempre sujos, empoeirados. Além do estado permanente de sujeira dos pés, devido à simplicidade das sandálias e condições das estradas, as refeições não eram feitas em mesas altas como as de hoje, nem os comensais se sentavam em cadeiras, principalmente nos ambientes mais simples. A mesa, geralmente, era apenas um tapete ou uma esteira estendida ao chão e, ao seu redor, as pessoas se sentavam em almofadas ou diretamente no chão, o que deixava os pés muito próximos da comida. Por isso, lavar os pés antes das refeições era, acima de tudo, uma exigência básica de higiene.

Sendo uma necessidade básica, o lava-pés tornou-se um sinal de hospitalidade e acolhida, no antigo oriente. Ao receber uma visita, o dono da casa oferecia, imediatamente, a água para lavar os pés, junto ao copo d’água para beber. A grande novidade do gesto de Jesus está na sua autoria: é o sujeito da ação o que causa perplexidade. No cotidiano, eram os escravos quem lavavam os pés dos membros da família e dos possíveis hóspedes. Em certas ocasiões, a mulher lavava os pés do marido, e o dono da casa chegava a lavar os pés de convidados ilustres, em sinal de respeito e reverência, mas isso era raro. Às vezes, também alguns mestres (rabis) exigiam que seus discípulos lhe lavassem os pés. Mas, no dia a dia, eram os escravos quem cumpriam esse serviço considerado humilhante. Ao fazer voluntariamente, Jesus inverte completamente os valores e as relações: sendo ele Mestre e Senhor (vv. 13-14), fez o que era típico do escravo (ou do discípulo). Com esse gesto, Jesus diz que fica abolida a hierarquia na comunidade cristã, e a liturgia, enquanto rito, é substituída pelo serviço. Assim, ele ensinou aos seus discípulos, de outrora e de todos os tempos, que eles devem estar sempre dispostos a servir ao próximo em suas necessidades mais simples e básicas do dia a dia, inclusive nas consideradas mais humilhantes, como lavar os pés uns dos outros.

É claro que houve reação dos discípulos à atitude revolucionária de Jesus. E o primeiro a protestar, como de costume, foi Simão Pedro: «Tu nunca me lavarás os pés» (v. 8). Ora, para quem tinha deixado tudo, imaginando seguir um futuro “Rei de Israel” e um Messias glorioso, deve mesmo ser chocante deparar-se com um “servo”. Por isso, o espanto e a negação; o que Jesus estava fazendo era inaceitável para quem tinha ambiciosas pretensões de poder. A reação de Pedro revela também as possibilidades de resistência dos oprimidos nos processos de libertação: as relações de igualdade parecem algo impossível para quem conheceu apenas um mundo dividido entre grandes e pequenos, súditos e chefes; essa mentalidade acaba naturalizando um mundo desigual, contrário aos desígnios de Deus. Jesus com suas palavras e gestos quis exatamente mudar essa realidade e visão de mundo. O mundo desigual, imposto pelo sistema e respaldado pela religião, estava naturalizado na visão de Pedro; a isso, Jesus combate, pois essa mentalidade não cabe na sua comunidade, enquanto embrião de um mundo novo, justo, fraterno, igualitário e solidário.

O outro motivo para a resistência de Pedro foi o medo das consequências do gesto de Jesus: se o mestre lavar os pés dos outros, os seus discípulos deverão fazer o mesmo. Por isso, Pedro só aceitou a atitude de Jesus em última instância: se não aceitasse não poderia mais fazer parte da comunidade: «Jesus respondeu: Se eu não te lavar não terás parte comigo» (v. 8b). Aceitar um mestre servo e se tornar servo com ele e como ele é condição para fazer parte da comunidade cristã. Após a insistência de Jesus, Pedro aceitou, mas não compreendeu: «Senhor, então lava não somente os meus pés, mas também as mãos e a cabeça» (v. 9). O exagero da resposta de Pedro revela a sua total incompreensão. Na verdade, com essa resposta, Pedro quis desviar o foco da proposta revolucionária de Jesus: quis transformar a atitude serviçal de Jesus em um novo rito de purificação, um a mais entre os muitos que os judeus já praticavam e que Jesus tanto combatia. Pedro não aceita a igualdade e não admite ter de servir ao próximo com a mesma intensidade com que Jesus servia. Ora, transformando a atitude do lava-pés em um novo rito de purificação, Pedro estaria se isentando do compromisso com o próximo e ganhando mais um mecanismo de dominação ideológica, contrariando o ensinamento de Jesus. Para fazer parte da comunidade de Jesus, ou seja, para ter parte com ele, é necessário aceitar a sua proposta de vida com a revolução de valores e as consequências que essa implica.

Mesmo com resistência nos discípulos, Jesus concluiu o seu gesto: «Depois de ter lavado os pés dos discípulos, Jesus sentou-se de novo» (v. 12). Sentar-se à mesa era um direito exclusivo das pessoas livres. Logo, para a mentalidade da época, sentar-se à mesa e, ao mesmo tempo, servir eram papéis incompatíveis: quem servia não tinha direito de sentar-se, e quem sentava não se humilhava servindo. Jesus aboliu essas diferenças. Sentar-se de novo após o serviço é a consolidação de uma verdadeira revolução de valores, uma inversão de ordem: no banquete da vida, vivido e celebrado pela comunidade cristã, há espaço para todos, principalmente para os que servem. Não pode haver divisão de classes na comunidade, porque todos são iguais: o que se senta à mesa serve, e o que serve senta-se à mesa. O que era papel do escravo, lavar os pés, é agora papel também da pessoa livre que pode levantar-se e sentar-se conforme a necessidade. As divisões hierárquicas não têm espaço na comunidade cristã, porque nessa prevalece o movimento de sentar-levantar-sentar para que as necessidades do ser humano sejam atendidas, desde as mais simples, como tirar a poeira dos pés, até as mais complexas, como dar a própria vida por amor. E Jesus realizou as duas coisas como prova que ele não media esforços para cumprir a sua missão e atender às necessidades das pessoas. Com o lava-pés, portanto, Jesus fez uma recapitulação de toda a sua existência neste mundo. Ele veio para servir e, por isso, viveu intensamente servindo.

Para os discípulos, não era fácil abraçar uma nova mentalidade, ainda mais tão revolucionária quanto a de Jesus. Com essa inversão de papéis, Jesus fazia desmoronar nos discípulos os planos de grandeza e projetos de poder que eles tinham cultivado até então. Ora, eles não sonhavam com uma mudança de sistema, um novo modo de organização para a sociedade e a religião. Queriam que as estruturas de poder continuassem as mesmas, mudando apenas as lideranças: ao invés dos romanos e dos sacerdotes do templo, que fossem eles, os discípulos do Messias, a controlar a vida do povo, mas com os mesmos mecanismos de dominação: exército, cobrança de impostos, divisões de classe e uso da violência quando a “ordem” estivesse ameaçada. Até os últimos momentos de convivência essa mentalidade prevaleceu entre os discípulos. Por isso, Jesus dedicou tanto tempo na última ceia para catequizá-los e promover neles a consciência de uma nova ordem, partindo do seu exemplo: «portanto, se eu, o Senhor e Mestre, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns dos outros. Dei-vos o exemplo, para que façais a mesma coisa que eu fiz» (vv. 14-15). Temos aqui a instituição do serviço como mandamento para a comunidade de Jesus.

A ordem para que os discípulos «façam a mesma coisa» em relação ao serviço, aqui no Quarto Evangelho, equivale ao «fazei isto em memória de mim» da tradição paulina/sinótica sobre a Eucaristia (Lc 22,19; 1Cor 11,24-25). «Fazer a mesma coisa» que fez Jesus, obviamente, não significa repetir o gesto de lavar os pés uns dos outros, o que já não é uma exigência sanitária dos dias atuais; significa a disponibilidade total para o serviço incondicional, motivado pelo amor, na comunidade cristã. A simples repetição do gesto seria transformá-lo em rito. O lava-pés que a comunidade deve fazer permanentemente é a vivência do amor fraterno que traz, como consequência, a disponibilidade para o serviço gratuito e sem distinção. Para isso, é necessário assimilar o estilo de vida de Jesus, com disposição para «amar até o fim», como ele fez. Sem isso, qualquer coisa que se faça em sua memória não passa de encenação.

Jesus em sua liberdade fez o papel do escravo para mostrar que na sua comunidade não pode haver distinção de classe: não há mais espaço para a escravidão, pois todos e todas são livres. O medo de Pedro consistia em não aceitar essa mudança de paradigma, como hoje muitos ainda resistem, preferindo fechar-se a uma mentalidade mais alinhada à religião do templo, duramente combatido por Jesus, e distante dos valores do Evangelho. Jesus celebrou, assim, a Páscoa da subversão: substituiu o rito pelo serviço, criou uma comunidade alternativa igualitária, na qual tudo deve ser orientado a partir do amor-serviço. Dessa comunidade não pode fazer parte quem prefere alinhar-se aos poderes que impedem um mundo e uma sociedade compatíveis ao modelo igualitário e fraterno proposto por Jesus.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sexta-feira, março 22, 2024

REFLEXÃO PARA O DOMINGO DE RAMOS DA PAIXÃO DO SENHOR – MARCOS 14,1–15,47 (ANO B)


Todos os anos, na liturgia do Domingo de Ramos, faz-se a leitura de uma das narrativas da Paixão e morte de Jesus. Na mesma celebração, no entanto, se lê também uma das versões da entrada de Jesus em Jerusalém. Neste ano, por ocasião do ciclo litúrgico B, temos a oportunidade de ler e refletir sobre os dois episódios a partir do Evangelho de Marcos. Por questão de espaço e relevância, concentraremos nossa reflexão no relato da paixão, apenas. No entanto, serão feitos acenos ao episódio da entrada de Jesus em Jerusalém, sobretudo na contextualização. O relato da paixão é um texto bastante longo – Mc 14,1–15,47 –, que compreende dois capítulos inteiros, totalizando cento e dezenove versículos, sendo que as comunidades têm a opção de ler a forma abreviada (Mc 15,1-39). Em nossa reflexão, consideraremos o texto completo, embora sua longa extensão não permita um comentário mais pormenorizado versículo por versículo. Por isso, procuramos colher o sentido global do texto, destacando alguns elementos específicos considerados mais relevantes, partindo de uma ampla introdução contextualizadora. Não trataremos do episódio da ceia com o abreviado relato da instituição da Eucaristia, embora faça parte do evangelho de hoje e possua grande relevância no quadro da paixão, devido ao destaque que a liturgia da Quinta-Feira Santa já reserva à Eucaristia, embora empregando um texto do Quarto Evangelho. 

Embora o nosso foco neste ano seja especificamente o relato de Marcos, os aspectos introdutórios que abordamos aqui valem também para os demais evangelhos. E iniciamos a contextualização recordando que os relatos da paixão de Jesus constituem o núcleo de base da redação dos Evangelhos. Foi a partir destes relatos que os Evangelhos surgiram enquanto livros. Um famoso teólogo alemão – Martin Kähler (1835-1912) – chegou a afirmar que «os Evangelhos são os relatos da paixão com ampla introdução». É claro que uma afirmação desse tipo possui exageros, mas ajuda a compreender e ilustrar a importância dos relatos da paixão no processo de formação dos Evangelhos e, sobretudo, no fortalecimento da fé das primeiras comunidades cristãs. Ora, como a catequese e a vida litúrgica das comunidades giravam em torno do anúncio do Cristo Ressuscitado, aos poucos, surgiram muitas dúvidas a seu respeito, à medida em que as explicações iam se tornando repetitivas e, consequentemente, insuficientes. Essas dúvidas se traduziam em perguntas como estas: «Como Jesus viveu e morreu? Como foi a morte daquele que ressuscitou?». Diante de tais questionamentos, a primeira necessidade foi contar como se deu a morte de Jesus, pois só pode ressuscitar quem antes passa pela morte. Diante disso, surgiu a necessidade de contar como Jesus morreu. Por isso, os relatos da paixão ganharam tanta importância nos primórdios do cristianismo.

Com as primeiras perseguições, tanto das autoridades romanas quanto das lideranças religiosas do judaísmo, a morte se tornava cada vez mais presente na vida das comunidades, não apenas enquanto tema, mas enquanto realidade e possibilidade concreta, pois o anúncio e a adesão ao nome de Jesus passava a ser sinal de perigo. Quando se fala do nome de Jesus, no contexto das primeiras comunidades, compreende-se todo o seu projeto de vida e libertação, ou seja, a sua mensagem. Diante, isso, para quem não tinha convivido com Jesus, tornava-se cada vez mais difícil perseverar na fé, acreditar no seu nome e na sua ressurreição. E, para animar e fortalecer uma comunidade ameaçada pela perseguição, nada mais adequado do que reconstruir a história da perseguição e morte de Jesus, enaltecendo sua fidelidade aos propósitos do Pai e a sua resistência. Os evangelhos, enquanto livros, surgiram, portanto, como resposta às dúvidas e crises vividas pelas primeiras comunidades. É claro que toda a vida de Jesus, desde o início com a pregação do Batista, é edificante para as comunidades cristãs. Mas, a memória da sua paixão foi a primeira necessidade para dar credibilidade ao anúncio da ressurreição. Ao ler o relato da paixão, portanto, estamos lendo o ponto de partida do evangelho escrito.

Tendo acesso hoje aos textos inteiros dos evangelhos, percebemos que o relato da paixão que estamos lendo mostra a conclusão de uma vida que não poderia ter um fim diferente. Ora, desde o início, a mensagem de Jesus foi uma alternativa aos sistemas vigentes, político e religioso e, consequentemente, uma incômoda ameaça aos grupos privilegiados do seu tempo. Logo, seu desfecho final foi o rechaço por parte desses sistemas. Durante a sua trajetória terrena, Jesus praticou e pregou o que a religião e o sistema político da época não priorizavam: o amor gratuito e incondicional ao próximo, a justiça, a gratuidade nas relações, o perdão ilimitado, o cuidado com os mais necessitados, a solidariedade, a acolhida aos excluídos e marginalizados, e o bem acima de tudo. Uma vida marcada por estas características não poderia ter outro fim, senão a condenação e morte precoces, pelos sistemas que não compactuavam com essa mensagem. É importante perceber que a cruz, a pior das penas aplicadas na época, não foi predestinação e nem acidente, mas consequência de uma trajetória marcada pelo inconformismo diante das atrocidades do sistema. Jesus não se adequou aos padrões de comportamento da época: não foi um cidadão exemplar, como exigia o poder romano, nem um devoto fiel, como exigia a religião judaica, pois sua obediência e fidelidade estavam todas voltadas para o Pai do céu, tendo em vista a edificação do seu Reino na terra.

O cenário da paixão é a cidade de Jerusalém, obviamente, onde Jesus viveu os últimos dias do seu ministério, que por sinal, foram os mais polêmicos. Após uma entrada triunfante na grande cidade, para participar das festividades pascais (Mc 11,1-11), logo começaram os conflitos, tendo a denúncia do templo como ponto de partida (Mc 11,12-19). Na verdade, a chegada de Jesus em Jerusalém já prefigura o desfecho, ou seja, sua morte na cruz. Aquele povo que o saudou festivamente com mantos, ramos e cantos de Hosana (Mc 11,8-9) eram peregrinos que se sentiam explorados pela religião do templo e, por isso, sonhavam com mudanças a cada Páscoa celebrada. E viram em Jesus uma esperança. É claro que isso não passou despercebido pelos dirigentes romanos e judeus, os quais, sentindo-se ameaçados, já suspeitavam das aspirações de Jesus e vigiavam seus passou há bastante tempo. Fazia tempo que a Páscoa tinha deixado de ser uma festa de libertação e se transformado em comércio, tornando-se também mais um instrumento de exploração, ajudando a legitimar o abuso de poder exercido pelas autoridades de Jerusalém, principalmente a elite sacerdotal. Certamente, muitos dos que saudaram Jesus como Messias e rei não acreditavam em suas credenciais messiânicas, mas o fizeram por não suportar mais a maneira como estavam sendo governados e explorados.

Da entrada festiva, passa-se ao episódio da denúncia do templo, quando Jesus expulsou de lá os vendedores, compradores e cambistas, inconformado por ver a casa de oração transformado em covil de ladrões. Também esse gesto deve ter atraído a atenção e o interesse de muitos peregrinos que já se encontravam em Jerusalém e se sentiam explorados com o comércio praticado no templo. Da mesma forma, deve ter despertado ainda mais o ódio nas classes dirigentes, que viam com urgência a necessidade de eliminá-lo. Esse episódio desencadeou uma série de confrontos com os grupos político-religiosos hegemônicos, com Jesus se sobressaindo em todos eles, sobretudo nos debates em relação à interpretação da Lei. Por questão de prudência e medo da reação do povo, partiram para o confronto intelectual, inicialmente. Depois, percebendo que não conseguiam vencer Jesus no campo das ideias, estes grupos apelaram para a violência, formando um consórcio de morte junto ao poder imperial, para eliminá-lo. E quando o confronto se dá pela força e pela violência, Jesus já não reage, pois, as suas armas não são as do sistema. Por isso, o relato da paixão é tão dramático e doloroso, pois Jesus faz do silêncio e da aparente passividade a sua maneira de reagir e denunciar, deixando até mesmo seus discípulos desconcertados e decepcionados, ao perceber que sua messianidade não correspondia às suas expectativas e aspirações.

Olhemos então para o texto, recordando que, embora o cenário da paixão seja Jerusalém, a primeira cena do evangelho de hoje acontece ainda em Betânia, uma pequena aldeia localizada a cerca de três quilômetros de Jerusalém, e ponto de apoio de Jesus nos últimos momentos de sua vida terrena. É uma cena muito importante, pois apresenta a unção de Jesus por uma mulher desconhecida (14,3-9) que, associada ao final do relato (15,47), compõe a moldura de toda a narrativa da paixão, marcada, do começo ao fim, pela presença das mulheres, cuja coragem e perseverança contrapõe-se ao medo e covardia dos discípulos homens. A mulher que unge o corpo de Jesus é uma profetisa anônima. Ela deposita sobre Jesus uma carga de amor imensurável, representado pelo perfume, que nenhum discípulo de primeira hora fora capaz de fazer. Pelo contrário, até a repreenderam pelo gesto, com um falso discurso em favor dos pobres que, não passava de retórica, sendo corrigidos pelo próprio Jesus (14,7-9). Esse gesto não apenas prepara Jesus para a sepultura, como a prefigura: serão as mulheres as testemunhas da boa ação de José de Arimatéia, o responsável pelo sepultamento de Jesus, e é com elas que o relato da paixão se encerra: «Maria Madalena e Maria, mãe de Joset, observavam onde Jesus foi colocado» (15,47). Serão elas também as primeiras testemunhas da ressurreição. Isso mostra claramente que a comunidade de Jesus nasce fora dos padrões do patriarcado.

O segundo aspecto do relato que destacamos, por sinal negativo, é a dispersão da comunidade dos discípulos: «Então todos o abandonaram e fugiram» (14,50). Os discípulos, também sedentos por mudanças, sentem-se frustrados na medida em que percebem que o projeto de Jesus não corresponde às suas expectativas. No início do evangelho, Marcos tinha afirmado que, diante do chamado ao seguimento, «os discípulos abandonaram tudo e seguiram Jesus» (1,18.20). Agora, é a Jesus que eles abandonam. Judas tinha acabado de entregá-lo, Jesus está sendo preso, e os discípulos lhe negam a mínima solidariedade. O mais resistente, o último a fugir, é um jovem anônimo, que foge nu (14,51-52), sendo que não fazia parte do seleto grupo dos doze. Por sinal, esse é um detalhe exclusivo do Evangelho de Marcos: um jovem que foge nu. Inclusive, muitos estudiosos vêem nesse jovem a figura do próprio evangelista Marcos. A fuga dos discípulos é sinônimo de medo e covardia, mas também de decepção com o pretenso Messias. Jesus os tinha advertido sobre sua condição de Messias sofredor, mas eles não tinham acreditado. Só acreditaram na última hora e não aceitaram. Por isso, não é de causar surpresa que as multidões tenham preferido Barrabás, quando interrogadas (15,6-15), pois nem mesmo os discípulos se mantiveram ao lado de Jesus no momento mais difícil da sua vida.

Além da traição de Judas e da fuga dos demais, outros aspectos negativos dos discípulos também são evidenciados por Marcos. Tendo já denunciado a falta de perseverança na oração (14,32-42), o evangelista denuncia também a superficialidade no seguimento deles, ao recordar esta atitude de Pedro, após a prisão: «Pedro seguiu Jesus de longe» (14,54a). Ora, seguir de longe é não se comprometer; significa acompanhá-lo fisicamente, até certo ponto, sem abraçar plenamente a sua causa. Embora os demais já não o estivessem seguindo nem mesmo de longe, não é admissível na comunidade um discipulado tão superficial assim. Quem segue de longe não suporta a pressão nem a perseguição, por isso está fadado à negação, como de fato aconteceu com Pedro. Ora, ao ser identificado como galileu e seguidor de Jesus, Pedro reagiu, dizendo: «Nem conheço esse homem de quem estais falando» (14,71b). O evangelista deixa claro, com isso, que não pretende denunciar com seu relato somente as forças externas que perseguiram Jesus e perseguem a comunidade. Também de dentro da comunidade podem surgir muitas forças tão danosas ao seu crescimento quanto os poderes externos. É claro que os discípulos não poderiam fazer muita coisa àquela altura; na verdade, não poderiam fazer nada, em termos de reação. Mas poderiam, pelo menos, manter-se solidários, acompanhando passo a passo o processo e a condenação.

O duplo julgamento de Jesus, um político e outro religioso, ou seja, diante do sinédrio e de Pilatos (14,53-65; 15,1-15), mostra a união das forças hostis, pois judeus e romanos não se suportavam. Mas, tendo identificado Jesus como um inimigo em comum, os dois poderes se uniram para eliminá-lo, pois seu anúncio de libertação e humanização oponha-se profundamente aos seus planos, denunciando seus privilégios e as injustiças que cometiam para obtê-los. A mensagem de Jesus desmascarava-os completamente. O sinédrio, órgão jurídico máximo do judaísmo, acusa Jesus de blasfêmia, e ao poder romano ele será denunciado como subversivo e agitador, alguém que pretende ser rei (15,2). Esses dois poderes estavam viciados na corrupção, no suborno e na mentira; mantinham um relacionamento de conveniência, tendo o povo pobre como alvo de suas cobiças. O movimento de Jesus surgiu como alternativa a tudo isso; logo, a repressão seria inevitável. A cruz é decretada como pena exemplar para Jesus. Em plena Páscoa, a festa máxima dos judeus, a religião e o império não hesitam em condenar quem lhes parece ameaça. Não obstante tanto sofrimento, Jesus manteve-se firme em seus propósitos e na confiança no Pai. Não hesitou, mesmo não escondendo sua humanidade. Gritou de dor, lamentou-se, mas não renunciou às suas convicções. Em meio ao suplício e ao abandono dos seus, Jesus faz prevalecer as convicções de seguir até o fim. Aquele projeto de vida nova, com justiça, igualdade e amor sem distinção não poderia ser jogado fora de repente. O rosto amoroso do Pai que ele veio revelar não poderia mais ser escondido.

A cruz veio, portanto, como consequência de uma vida toda marcada pelo amor. E, em Jesus, ao invés de ser simplesmente sinal de condenação, a cruz se tornou sinal de salvação e de reconhecimento do seu amor e de sua pertença a Deus. Na cruz ele foi escarnecido e humilhado, mas também reconhecido em sua mais profunda identidade messiânica, como: «Na verdade, este homem era Filho de Deus!» (15,39c). Essa é uma das afirmações mais profundas do evangelho de hoje, do inteiro Evangelho de Marcos e até do Novo Testamento. Surpreende que essa declaração não saiu de nenhum discípulo, mas de um oficial do exército, um soldado romano e, portanto, um estrangeiro. Isso é significativo em dois aspectos, principalmente: primeiro, porque é na morte de cruz que a identidade de Jesus é plenamente revelada; segundo, porque daquele momento em diante, todos, independentemente da etnia e da religião, podem conhecer o rosto verdadeiro de Deus revelado no seu filho amado. Por isso, a confissão do oficial do exército romano é o ponto culminante de todo Evangelho de Marcos. Inclusive, é a revelação definitiva do chamado “segredo messiânico”, um dos temas teológicos e artifícios literários mais relevantes de Marcos. Só na cruz esse segredo é revelado, pois só na cruz se conhece verdadeiramente a identidade de Jesus. Tudo o que se dizia dele até então era parcial, inclusive a confissão de Pedro na região de Cesareia de Filipe também tinha sido parcial, pois ele tinha identificado Jesus como Messias, mas ignorou a natureza da sua messianidade (Mc 8,27). A confissão do centurião é completa.

O reconhecimento do centurião é mencionado após o evangelista dizer que «a cortina do santuário rasgou-se de alto a baixo, em duas partes» (15,38). Esse dado simbólico significa a falência completa da religião e do sistema que tinham acabado de matar Jesus. A cortina ou véu do santuário marcava a divisória do espaço sagrado do templo; somente os sacerdotes podiam ultrapassar a divisória demarcada pelo véu. Jesus, mesmo morrendo, mostra sua força; consegue abolir as divisões e rótulos impostos pela religião. De agora em diante, conhece a Deus quem segue o seu filho até as últimas consequências, quem vê na cruz instrumento de libertação e não mais quem frequenta o templo e oferece sacrifícios conforme as prescrições da Lei. A cortina do santuário rasgada é, portanto, o retrato de uma religião exploradora destroçada pela verdade e o amor que Jesus revela na cruz. As duas partes já não são símbolo de dois povos, mas de dois mundos: o mundo velho e o mundo novo. O mundo velho passou, chegou o mundo novo, do qual a cruz é semeadura. Aquela antiga religião, sobre a qual se sustentava o mundo velho, dividia, segregava e rotulava as pessoas, além de explorá-las economicamente. A cruz denuncia isso, mostrando que é só pelo amor que se relaciona verdadeiramente com Deus. Na cruz, Jesus mostra que Deus, o seu Pai, não tem outra coisa a oferecer ao mundo senão o amor.

A presença das mulheres é destacada como testemunhas da morte de Jesus (15,40), como consequência de um seguimento fiel e serviçal: «Elas haviam acompanhado e servido a Jesus quando ele estava na Galileia» (15,41). Dos discípulos homens, não se diz que eles serviam, mas apenas que seguiam, que acompanhavam Jesus; provavelmente, foi por isso que não perseveraram até o fim. E durante o seu ministério Jesus não cansou de mostrar a inseparabilidade entre seguimento e serviço. A perseverança das mulheres diante da cruz se explica porque, desde o início, elas abraçaram o seguimento como serviço, enquanto os discípulos colocaram aspirações triunfalistas como motivação para o seguimento. Sem pretensões de grandeza, motivadas pelo serviço, as mulheres testemunharam até o fim, acompanhando também o sepultamento: «Maria Madalena e Maria, mãe de Joset, observavam onde Jesus foi colocado» (15,47); elas foram também as primeiras testemunhas da ressurreição. Sem sonhos triunfalistas, elas não viram a morte de Jesus como fracasso ou falimento de um projeto; não se sentiram perdedoras, mas viram até a morte como ocasião de testemunhar e servir. Por isso, são modelos de discipulado para todos os tempos, pois foram aquelas que acompanharam Jesus em todos os momentos da sua vida.

A comunidade de Marcos foi edificada e fortalecida a partir deste relato. Compreendendo a fidelidade com que Jesus abraçou o projeto de tornar o Reino de Deus acessível a todos, é possível perceber que a morte não é capaz de destruir a vida de quem se dedica dessa maneira ao bem de todos. A presença do Ressuscitado se tornou certeza na comunidade porque percebeu-se que Deus não abandona jamais um projeto quando esse é conduzido pelo amor. Também as comunidades de hoje são chamadas a fazer experiência semelhante àquela de Marcos: perseverar com os crucificados de hoje, todos os que lutam por um mundo de justo e humanizado, com igualdade e amor, para que o Ressuscitado de ontem continue a ressuscitar em cada coração hoje e sempre.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN


sexta-feira, março 15, 2024

REFLEXÃO PARA O 5º DOMNINGO DA QUARESMA – JOÃO 12,20-33 (ANO B)

 

A liturgia deste quinto domingo da Quaresma propõe novamente a leitura de um texto do Quarto Evangelho, concluindo a sequência iniciada no terceiro domingo. O texto lido hoje – Jo12,20-33 – ocupa uma posição privilegiada no conjunto da obra joanina. O episódio narrado funciona como transição entre o final da vida pública de Jesus e o início da narrativa da sua paixão, ou seja, serve de ponte entre o “Livro dos Sinais” (Jo 1–12) e o “Livro da Glória” (Jo 13–21), conforme a divisão clássica do Evangelho de João em duas partes. Junto com seus discípulos, Jesus já se encontra em Jerusalém para participar de mais uma “páscoa dos judeus” (11,55), sendo essa a última. Ao contrário dos sinóticos que mostram Jesus participando de uma única festa de Páscoa em Jerusalém, o Evangelho de João mostra ele participando pelo menos três vezes (Jo 2,23; 6,4; 11,55). Como sabemos, com a expressão “páscoa dos judeus” o evangelista denuncia que aquela festa já não pertencia mais a Deus, uma vez que, ao invés de ser celebração de libertação, transformou-se em instrumento de exploração, devido, sobretudo, à transformação do templo em “casa de comércio” (Jo 2,13-22). Por isso, para compreender melhor o evangelho de hoje é necessário ter em mente o episódio da denúncia dos vendedores no templo, lido e refletido no terceiro domingo. Ao denunciar a mercantilização de Deus, Jesus propôs a destruição do templo-edifício de pedras e se auto apresentou como o novo, verdadeiro e definitivo templo, decretando a completa falência daquela instituição religiosa.

Do primeiro versículo do evangelho de hoje, percebemos o início da realização daquela profecia: «Havia alguns gregos entre os que tinham subido a Jerusalém para adorar durante a festa» (v. 20). Com a expressão “alguns gregos” o evangelista se refere, em primeiro lugar, aos estrangeiros simpatizantes do judaísmo; eram pessoas que observavam a lei e sentiam-se adoradores do Deus de Israel, mesmo sem o reconhecimento dos chefes. Por isso iam a Jerusalém para adorá-lo, mesmo não sendo admitidos oficialmente na religião judaica. É também uma declaração do universalismo da mensagem de Jesus. Nesse sentido, estes gregos representam os pagãos e todos os povos da terra que, um dia, serão atraídos a Jesus, não por imposição de uma doutrina, mas movidos por um desejo de “ver”, ou seja, conhecer e viver uma experiência de amor com ele. Ora, com o templo transformado em casa de comércio, já não era mais possível adorar verdadeiramente a Deus naquela estrutura. Por isso, os gregos «Aproximaram-se de Filipe, que era de Betsaida da Galileia, e disseram: ‘Senhor, gostaríamos de ver Jesus’» (v. 21). O desejo dos gregos de ver Jesus significa que sua fama tinha se espalhado e, ao mesmo tempo, que a religião do templo já não favorecia mais o encontro das pessoas com Deus. “Ver”, aqui, significa conhecer, contemplar, ver em profundidade; é esse o significado do verbo grego empregado pelo evangelista (όράω– oráo). Na verdade, o “ver” ao longo de todo o Quarto Evangelho vai muito além da visão física; significa fazer experiência, entrar em relação; é o primeiro passo para a fé e o consequente testemunho.

Os gregos não queriam conhecer os traços físicos de Jesus, mas fazer uma experiência de vida com ele, provavelmente porque sentiam que o templo de Jerusalém já não proporcionava uma experiência autêntica com Deus, era uma instituição espiritualmente falida, apesar de economicamente próspera. Inclusive, se quisessem ver Jesus apenas fisicamente não seria necessária a mediação dos discípulos, pois Jesus já se encontrava em Jerusalém e frequentava o templo diariamente. E os estrangeiros/pagãos são os primeiros a reconhecer Jesus como o templo verdadeiro, antes mesmo da destruição do edifício (Jo 2,19-22); esse é um dado de grande importância. Além da falência da instituição religiosa, o evangelista apresenta, ao mesmo tempo, o alcance universal da mensagem de Jesus: não estando preso a uma estrutura fixa e rígida, ele se torna acessível as pessoas de todos os povos e culturas.

Os gregos que queriam ver Jesus procuraram um discípulo, Filipe, e esse, por sua vez, procurou um companheiro de grupo, ou seja, outro discípulo: «Filipe combinou com André, e os dois foram falar com Jesus» (v. 22). Com isso, o evangelista não está “burocratizando” Jesus, mas enfatizando o papel essencial da comunidade cristã para favorecer o encontro com ele. Jesus é acessível a todas as pessoas; mas é na comunidade que se conhece e se faz verdadeiramente encontro e experiência com a sua pessoa. Na comunidade, todos devem ser acolhidos, independentemente da origem, das características ou da identidade; a comunidade cristã não pode negar a ninguém o direito de ver Jesus, ou seja, de encontrar-se com ele e experimentar sua proposta de amor. E quem já o conhece, obviamente, não mede esforços para que outras pessoas também o conheçam. Por isso, Filipe combina com André para juntos realizarem o pleito dos gregos. É importante recordar que, dentre os discípulos de então, somente Filipe e André tinham nomes gregos (Φιλίππος –Filippos; Άνδρέα – Andréa). Isso quer dizer que eles eram o caminho mais fácil encontrado para os gregos chegarem a Jesus, e é uma recordação para a comunidade cristã de todos os tempos valorizar os elementos que podem favorecer o diálogo e a fraternidade. Por isso, é essencial partir do que há em comum, daquilo que pode unir, antes de evidenciar as particularidades. 

A princípio, a resposta de Jesus aos discípulos que lhe levaram o pleito dos gregos parece não atender às expectativas: «Jesus respondeu-lhes: “Chegou a hora em que o Filho do Homem vai ser glorificado”» (v. 23). No entanto, não só atende, como vai além: a glorificação de Jesus é o alcance universal da sua mensagem, até então muito concentrada e destinada a um pequeno grupo. A “chegada da hora” é um tema central do Evangelho de João; tudo o que Jesus vivenciou até então foi preparação para a sua “hora”, desde o primeiro sinal realizado, nas bodas de Caná (Jo 2,4). Essa hora é síntese de todo o mistério pascal na perspectiva do Quarto Evangelho. É a hora de entregar-se definitivamente, mas sobretudo, hora de demonstrar que os sistemas vigentes, político e religioso, não toleram que alguém viva somente para o amor! Foi por causa do seu excesso de amor que lhe levaram ao tribunal e, em seguida, para a cruz. Essa glorificação não significa uma entronização ou coroamento; é uma verdadeira explosão do amor que se torna acessível a todos, sendo capaz de contagiar o mundo inteiro. Esse amor não pode mais ser contido; por isso, será revelado plenamente, e todos poderão acolhê-lo: gregos e judeus, bons e maus, justos e pecadores. Portanto, a hora da glorificação do Filho do Homem é, ao mesmo tempo, a hora de desmascaramento de todos os sistemas injustos e de todas as formas de vida que não tenham o amor como princípio.

Como uma declaração solene, e fazendo uso da imagem do grão de trigo, Jesus anuncia sua morte e, ao mesmo tempo, o seu efeito salvífico: «Em verdade, em verdade vos digo: Se o grão de trigo que cai na terra não morre, ele continua só um grão de trigo; mas se morre, então produz muito fruto» (v. 24). “Em verdade, em verdade” (em grego: άμήν, άμήν – amén, amén) é uma expressão solene que sempre introduz um ensinamento importante e irrevogável de Jesus e que não pode ser desconsiderado pela comunidade dos seus seguidores e seguidoras ao longo da história. A entrega, a capacidade de morrer por amor é um imperativo irrevogável para a comunidade cristã. Porém, não se trata de uma simples entrega passiva; não é sinal de resignação, mas é a coragem de lutar pela vida até as últimas consequências; essa luta não pode ser feita de outra maneira que seja através do amor. Uma morte assim será sempre sinal de vida e de frutos abundantes, à semelhança do grão de trigo enterrado no chão. Como o Evangelho de João é muito econômico nas parábolas, apesar de possuir a linguagem mais simbólica entre os quatro, essa imagem do grão de trigo como símbolo da própria paixão, morte e ressurreição de Jesus é muito significativa. O viver por amor implica em também morrer por amor, e uma morte assim nunca será o fim, mas sempre o início de nova vida, através dos frutos gerados. Por isso, a imagem de um grão de trigo expressa tão bem a missão de Jesus, incluindo sua glorificação por meio da cruz e ressurreição.

Recordando que todo esse discurso faz parte de uma resposta ou apresentação de Jesus aos gregos que queriam vê-lo, podemos perceber a preocupação do evangelista com a sua comunidade e com as comunidades de todos os tempos: ver ou conhecer Jesus é envolver-se com o seu projeto de vida. E esse projeto exige renúncias, decisões e tomadas de posição. A primeira e decisiva posição diz respeito à própria vida! Para seguir Jesus é necessário compreender e aceitar que o sentido da vida está na capacidade de doá-la por amor para torná-la fecunda, como ele mesmo diz: «Quem se apega à sua vida, perde-a; mas quem faz pouca conta de sua vida neste mundo conservá-la-á para a vida eterna» (v. 25). Com essa declaração, Jesus não está convidando seus seguidores a menosprezarem a vida e a existência terrena, mas pedindo que lhe dêem sentido. E esse sentido passa pela capacidade de não se apegar tanto a ela, para que dela outras vidas também venham a ter sentido. Para isso, é necessário viver à sua maneira. Por isso, ele reforça o convite ao seguimento, associando-o ao serviço: «Se alguém me quer servir, siga-me, e onde eu estou estará também o meu servo. Se alguém me serve, meu Pai o honrará» (v. 26). Ora, muitos queriam e ainda querem ver Jesus ou receber explicações a seu respeito. Mas o próprio Jesus deixa claro que ele é inexplicável; para conhecê-lo é indispensável o seu seguimento com a disposição de servir. A comunidade tem a missão de, onde ela estiver, tornar presente Jesus e o Pai. Isso só é possível onde o servir e o seguir são de fato prioridades, tendo o amor por motivação. E a Jesus serve e segue quem vive à sua maneira, amando sem medidas, a ponto de entregar a própria vida.

Como esse texto antecede de imediato à narrativa da paixão, é muito oportuno que o evangelista ressalte a humanidade de Jesus, como se vê: «Agora sinto-me angustiado! E que direi? ‘Pai, livra-me desta hora!’? Mas foi precisamente para esta hora que eu vim» (v. 27). Essa confissão de Jesus é muito relevante. É reveladora da sua humana condição, com todas as limitações que essa implica. Dar a própria vida custa dor e sofrimento, custa o derramar-se do sangue. Porém, mais forte do que a dor e a angústia foi a confiança no Pai e a certeza de que, daquele amor transbordante, muitas vidas novas surgiriam, muitos frutos brotariam. Foi de fato, para “esta hora” que ele veio; não para morrer tragicamente como aconteceu, mas para testemunhar o amor até as últimas consequências. A voz do céu confere a este episódio uma importância equivalente à transfiguração nos sinóticos: «“Pai, glorifica o teu nome!” Então, veio uma voz do céu: “Eu o glorifiquei e o glorificarei de novo!” (v. 28). A transfiguração aconteceu num momento de crise entre Jesus e os discípulos que insistiam em não aceitar a cruz como destino. É uma confirmação da fidelidade de Jesus aos propósitos do Pai. É também expressão da comunhão entre Jesus e o Pai, pois consiste praticamente na mesma coisa que ele mesmo tinha dito sobre a chegada da sua hora e da glorificação (v. 23). A explicação de Jesus sobre a origem e o motivo da voz do céu reforça ainda mais a equivalência com a transfiguração (v. 30): o Pai intervém quando os discípulos ou as multidões se mostram incapazes de compreender ou aceitar o caminho do Filho, que leva à glória, porém, mediante a cruz. Ele já vivia em plena comunhão com o Pai sem necessidade de sinais exteriores, por isso ele diz que a voz do céu não ressoou por sua causa, mas por causa do povo.  

Como o(s) chefe(s) deste mundo (v. 31) não suportaram a irradiação do amor de Jesus em demasia, eis que a “hora” se transformou em dor. O(s) chefes(s) deste mundo são todas as forças de morte, toda oposição ao amor e à justiça; é tudo o que se opõe ao Reino de Deus. Na época, foram, sobretudo, as lideranças políticas e religiosas que levaram Jesus à morte de cruz. Mas essas forças continuam atuantes no mundo, revestindo-se de diversas aparências. Quase sempre, se revestem de religiosidade, usando o nome de Deus para perseguir, discriminar e até matar. Aos chefes do tempo de Jesus, o Pai deu a resposta definitiva: na mesma cruz em que morreu um corpo, dela irradiou amor como nunca visto antes. E é no momento da angústia maior que Jesus reforça sua confiança e esperança no Pai, atestando o verdadeiro cumprimento da sua missão no mundo: «Quando eu for elevado da terra, atrairei todos a mim» (v. 32). É claro que “ser elevado” diz respeito à crucifixão. Àquela altura, já estava clara qual seria a sua pena: a cruz, como era para quem ousava desmascarar os sistemas de dominação, comandados pelo(s) chefes(s) deste mundo, na época as lideranças religiosas e políticas, atualmente com muitas outras formas de expressão. Jesus sabia que o seu elevar-se na cruz seria tão frutífero quanto o enterrar um grão de trigo no chão: sementes haveriam de germinar; sementes de amor, justiça, solidariedade, inconformismo e fé. 

Não obstante a dor e a angústia, assim como Jesus, os cristãos e cristã são convidados a crer que o sangue derramado por amor faz germinar; o amor tem uma força de atração indescritível. Ao mesmo tempo, não podem acomodar-se com a vida banalizada e as milhares de morte geradas por omissão e injustiças dos chefes do mundo de hoje. Só vê Jesus quem o segue e vive verdadeiramente o mandamento do amor. Só quem o ver compreende a grandeza do amor e suas consequências. E quem o vê, não pode ser conivente com as injustiças e maldades no mundo que geram morte, exclusão, dor e sofrimento. Concluindo, recordamos também que, à medida em que a Quaresma entra em fase de afunilamento, cabe questionarmo-nos sobre os grãos que estamos fazendo germinar em nossos corações.

Pe. Francisco Cornélio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN


sexta-feira, março 08, 2024

REFLEXÃO PARA O 4º DOMINGO DA QUARESMA – JOÃO 3,14-21 (ANO B)

 


A liturgia deste quarto domingo da Quaresma continua a sequência de leituras do Evangelho segundo João, iniciada no domingo passado. Naquela ocasião, o texto lido fora o relato do gesto profético de Jesus, denunciando a situação do templo transformado em comércio e a consequente mercantilização do sagrado (Jo 2,13-25). O episódio relatado no texto de hoje – Jo 3,14-21 – faz parte dos desdobramentos daquele episódio. Trata-se do famoso encontro entre Jesus e Nicodemos. É um texto extremamente importante para o conjunto do Quarto Evangelho, tanto no plano teológico quanto no narrativo. É a abertura de uma série de três encontros decisivos de Jesus com personagens que representam três mundos (culturas) diferentes: 1) Nicodemos, representante da mais genuína fé judaica; 2) a mulher samaritana, representante do sincretismo (Jo 4,1-42); e 3) o funcionário real, representante do mundo pagão (Jo 4,46-54). Interligados, esses três encontros culminam na realização do segundo sinal de Jesus no Quarto Evangelho, que é a cura do filho do funcionário real (Jo 4,46-54). Dos três personagens, somente Nicodemos é chamado pelo nome, cujo significado é “vitória do povo”.

A enérgica denúncia de Jesus contra a situação do templo e de toda a elite religiosa de Jerusalém deve ter gerado muitos questionamentos e curiosidades sobre a sua pessoa, além de ira da parte dos dirigentes. Muitos, certamente, se enfureceram, outros refletiram a respeito do acontecido. Não resta dúvidas de que entre os fariseus e mestres da época também havia aqueles que sonhavam com uma religião mais autêntica, mais fiel ao ideal da aliança e menos mercantilizada. Certamente, Nicodemos era um destes; ao invés de condenar Jesus, preferiu ir ao seu encontro e escutá-lo, motivado por muitos questionamentos e dúvidas. Como o texto escolhido pela liturgia é apenas a parte final do episódio, nele não há palavras de Nicodemos, mas apenas de Jesus; por isso, é necessário recordar alguns aspectos importantes do que o antecede. O evangelista diz que Nicodemos era um homem notável entre os judeus, um fariseu (3,1) e, certamente, um bom conhecedor da doutrina judaica, sobretudo da Lei. Procurou Jesus na “calada da noite” (3,2). Sua curiosidade ao falar com Jesus revela sinceridade, respeito e desejo de conhecê-lo melhor. Era alguém que desejava uma boa reforma naquela estéril religião. Mesmo assim ele não estava pronto para aderir totalmente ao projeto de Jesus, pelo menos de imediato. Porém, se distinguia da maioria dos fariseus com quem Jesus se confrontou ao longo do seu ministério.

A ida de Nicodemos ao encontro de Jesus à noite tem recebido diversas explicações, ao longo da complexa história da interpretação do Quarto Evangelho. A maioria dos estudiosos acredita que ele procurou Jesus à noite por prudência, com medo de ser criticado pelos seus colegas de doutrina, afinal, Jesus não era visto como boa companhia para as pessoas mais devotas da época. E o gesto profético no templo, desmascarando a hipocrisia da instituição religiosa, dera prova disso (2,13-22), contribuindo decisivamente para o rótulo de agitador e subversivo. Outros vêem o encontro à noite como uma imagem da situação de Nicodemos: enquanto apegado à doutrina e à Lei, ele estava longe da luz, que é o próprio Jesus. Nesse caso, a noite representa o estado de trevas em que Nicodemos se encontrava. Por sinal, o paradoxo trevas-luz e vice-versa é muito importante para a teologia de João; isso é evidenciado desde o prólogo (Jo 1,1-18). No respectivo poema de abertura do seu Evangelho, João apresenta Jesus como o Verbo encarnado e luz, que veio ao mundo para vencer as trevas e iluminar a humanidade inteira, porém as trevas não a acolheram (Jo 1,5.9). Nicodemos estaria, portanto, imerso no mundo das trevas, mas insatisfeito e desejoso de ser iluminado. Por isso, procurou Jesus, reconhecendo-o, implicitamente, como fonte de luz, mesmo num estágio embrionário de um caminho de fé. Inclusive, as primeiras palavras de Nicodemos a Jesus foram de reconhecimento de sua procedência divina: «Rabi, sabemos que vens da parte de Deus como mestre, pois ninguém pode fazer os sinais que fazes, se Deus não estiver com ele» (3,2). Essas poucas palavras de Nicodemos abriram caminho para uma longa catequese de Jesus a respeito da sua identidade, sua relação com o Pai e sobre como o ser humano pode participar da vida em plenitude que Ele veio comunicar.

O trecho selecionado para a liturgia começa com um dado das Escrituras aplicado por Jesus a si mesmo: «Do mesmo modo como Moisés levantou a serpente no deserto, assim é necessário que o Filho do Homem seja levantado» (v. 14). Ora, sabendo que Nicodemos conhecia bem a Escritura, afinal, era um fariseu de destaque, Jesus cita explicitamente um episódio do livro dos Números (Nm 21,4-9), para ilustrar o movimento de descida e subida ao céu realizado por Ele mesmo (Jo 3,13) e, ao mesmo tempo, para ajudar seu interlocutor a compreender como será a sua elevação: através da cruz, cujo mistério é aqui antecipado. Por sinal, essa é a primeira afirmação da elevação de Jesus no Evangelho de João acerca da sua elevação, e chama a atenção porque estamos ainda no início do livro. Se trata de um acontecimento tão indispensável para o seu plano salvífico, que ele começa a preparar a comunidade dos seus seguidores desde cedo. A citação do livro dos Números é, portanto, apenas ilustrativa. Na verdade, é o próprio evangelista insistindo com a sua comunidade para que aceite a cruz, pois, como consequência do amor, ela faz parte da vida conforme o programa de Jesus. Ser levantado se torna necessidade para Jesus, pois o seu projeto de comunicar vida em plenitude à humanidade inteira é irrenunciável. Porém, Ele não escolheu a cruz; escolheu ser fiel ao Pai, por amor, até as últimas consequências, e isso implicou passar pela cruz. Por isso, “ser levantado” se tornou necessário «Para que todos os que nele crerem tenham a vida eterna» (v. 15). O importante é a doação do dom da vida em plenitude, por isso, eterna. Essa é a primeira vez que é mencionada a “vida eterna” no Quarto Evangelho. Crer nele não significa expressar uma fórmula de fé, mas deixar-se guiar pelo seu ensinamento e assumir a sua forma de vida.

Jesus apresenta Deus como aquele que ama incondicionalmente e, ao mesmo tempo, se auto apresenta como a prova desse amor incondicional de Deus, já que é, Ele mesmo, o Filho doado: «Deus amou tanto o mundo, que deu o seu Filho unigênito, para que não morra todo o que nele crer, mas tenha a vida eterna» (v. 16). Há estudiosos que consideram essa afirmação de Jesus o coração do Quarto Evangelho e de toda a teologia de tradição joanina (1Jo 4,7-8). Inclusive, aqui aparecem três dos verbos mais importantes do respectivo Evangelho, a saber, os verbos amar (em grego: ἀγαπάω agapáo), dar ou oferecer (em grego: δίδωμι didomi). Por meio deles, o autor reforça a gratuidade do amor de Deus pelo mundo. É um Deus que só tem amor para oferecer ao mundo, e o faz de modo livro e gratuito, exatamente porque ama infinitamente. E o mundo é o destinatário do amor de Deus. Esse mundo é a humanidade inteira. Com essa afirmação, Jesus toca numa ferida para os judeus mais devotos, pois declara o fim do exclusivismo de Israel como destinatário do amor e das promessas de Deus. Com Jesus, a pertença a Deus deixa de ser privilégio de um povo e passa a ser um direito da humanidade inteira. Jesus praticamente inverte o primeiro mandamento da Lei: foi Deus quem amou a humanidade sobre todas as coisas! A afirmação «Deus amou o mundo» é única em toda a Bíblia. É uma exclusividade do Quarto Evangelho. A prova maior desse amor da parte de Deus é o seu dom, a qualidade da sua oferta: o Filho unigênito doado ao mundo para que, ao ser acolhido, se estabeleça na humanidade a vida eterna.

É importante recordar e jamais esquecer que «Deus deu o seu Filho» para a humanidade. Quer dizer que o mundo inteiro é convidado a receber esse dom do Pai. Quem o acolhe e crê, recebe a vida eterna. Aqui, é importante recordar um terceiro verbo fundamental empregado neste versículo, que também possui relevância determinante em toda a teologia joanina; trata-se do verbo crer (em grego: πιστεύω – pistêuo). De fato, “crer” é um dos temas principais do Quarto Evangelho. Inclusive, no texto de hoje aparece duas vezes (vv. 15 e 16). Como já foi afirmado, mais do que expressar uma profissão de fé, crer significa, aqui, acima de tudo, a adesão plena à pessoa de Jesus e sua mensagem libertadora. Quem crê nele, conforme essa perspectiva, ressignifica a própria existência, por isso, passa a ter a vida eterna. Essa, a vida eterna, não significa uma vida no além. Eterna aqui não é apenas a duração, mas é a qualidade da vida de quem acolhe Jesus e seu Evangelho. Logo, a «vida eterna» não é um prêmio que os bons receberão no futuro, como pensavam os fariseus e ainda pensam muitos cristãos. A vida se torna eterna quando se faz opção por Jesus e seu projeto de mundo, o Reino de Deus. Essa vida é eterna porque é tão plena, a ponto de nem a morte poder destruí-la. E ela começa aqui na terra, é essa vida presente que não será destruída nem com a morte. À medida em que o ser humano encontra sentido para a sua existência, ele eterniza a sua vida. E o sentido pleno da vida só pode ser encontrado quando se consegue viver bem como imagem e semelhança do Criador, cujo exemplo completo é Jesus de Nazaré.

O versículo seguinte reforça o anterior: «De fato, Deus não enviou o seu Filho para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por ele» (v. 17). Se o anterior (v. 16) declarava o que o Filho de Deus veio fazer entre nós, esse segundo diz o que não veio fazer: não veio julgar (condenar)! Aqui é necessário fazer uma pequena observação a respeito da tradução do texto litúrgico: ao invés do verbo “condenar”, é mais apropriado usar a expressão “dar sentença” ou o verbo “julgar”, conforme a língua original do texto, uma vez que a condenação seria o efeito do julgamento. E o verbo grego empregado pelo evangelista significa exatamente julgar (em grego: κρίνω – krino). Portanto, Deus não enviou seu Filho nem mesmo para julgar. Só condena quem antes julga. Como Deus só sabe amar, nem sequer julga e, portanto, não condena ninguém. Mais uma vez Jesus contradiz a ortodoxia judaica, ao excluir a ideia de Deus como um juiz. Obviamente, quem esperava um messias juiz que viesse ao mundo para separar os bons dos maus, os puros dos impuros e, assim, salvar os primeiros e condenar os segundos, não poderia acreditar no Deus que Jesus veio revelar: um Pai cheio de amor, apaixonado pela humanidade, a ponto de dar o próprio Filho.

Quem julga e condena são os próprios seres humanos com suas convicções e crenças falsamente fundadas em nome de Deus. O Deus de Jesus nem a juízo leva. Enquanto os homens julgam, Deus apenas justifica, ou seja, apenas salva, porque de quem é amor só pode sair amor. O mesmo Deus que doou livremente o seu Filho, deu também liberdade à humanidade, de modo que essa pode acolher ou não o seu Filho, Jesus. A acolhida se dá pela fé, uma adesão profunda capaz de deixar-se conduzir pelo seu amor.  Por isso, Jesus disse: «Quem nele crê não é condenado, mas quem não crê já está condenado, porque não acreditou no nome do Filho unigênito» (v. 18). O ser humano que rejeita a oferta de vida em plenitude que é Jesus, fica privado da qualidade de eternidade em sua vida e, portanto, estará condenado. E isso não é fruto de um juízo divino, mas escolha do ser humano. Deixar de acreditar no nome do Filho unigênito é se recusar a fazer comunhão com ele.

Os versículos seguintes (vv. 19-21) apenas ilustram e constatam uma triste realidade: a tendência da humanidade em preferir as trevas à luz, retomando o que o evangelista já tinha anunciado no prólogo (Jo 1,9-10). «Ora, o julgamento é este: a luz veio ao mundo, mas os homens preferiram as trevas à luz, porque suas ações eram más» (v. 19). Novamente, fala-se de um julgamento, mas não se apresenta Deus como juiz, pois a modalidade do julgamento corresponde à atitude interior de cada pessoa ao acolher ou rejeitar a luz que é Jesus. E é o próprio Jesus quem constata que, enquanto luz, ele foi rejeitado. E quem rejeitou a luz foi a própria religião que tinha transformado Deus em mercadoria, ao fazer da sua casa um comércio. Por isso, foram as pessoas religiosas que mais se sentiram sufocadas pela luz verdadeira que é Jesus. A elite religiosa preferiu as trevas, odiou a luz por ter aversão à verdade. De fato, «Quem pratica o mal odeia a luz e não se aproxima da luz, para que suas ações não sejam denunciadas» (v. 20). E foi isso que aconteceu, conforme Jesus denunciou e continua acontecendo, inclusive por grupos que reivindicam a condição de seus seguidores. Não obstante a rejeição, a luz como sinônimo de vida em plenitude não deixa de ser ofertada. Aceitar o maior dom do Pai, que é o seu próprio Filho, não significa abraçar uma doutrina, repeti-la e até impô-la, como muito se fez ao longo da história, e ainda se faz até hoje. A oferta que Deus fez e faz é livre, como livre deve ser a resposta. A imposição é falta de segurança e de consistência no anúncio. O Pai simplesmente enviou, doou.... Sua proposta é sempre positiva. Ele não julga, nem condena.

O Evangelho não diz se Jesus conseguiu convencer Nicodemos. Provavelmente sim, pois ele aparecerá em mais dois episódios, sempre tomando partido por Jesus: defendendo-o da ira dos fariseus quando tinha se apresentado como fonte de água viva (Jo 7,50) e ajudando no seu sepultamento (Jo 19,39). Certamente, o diálogo com Jesus lhe comoveu. Mesmo que não tenda aderido completamente a Jesus, passou a ver com outros olhos aquela rígida doutrina judaica e, certamente, amadureceu sua resposta com o tempo. Assim como serviu para Nicodemos, que a face do Pai cheio de amor que Jesus apresenta hoje sirva para, pelo menos, compararmos se o Deus em quem acreditamos parece com o Deus de Jesus ou se é apenas aquele das religiões: juiz e soberano, aplicador de castigos ou prêmios. Aceitar que o Deus de Jesus é somente amor pode ser o maior fruto de conversão de uma Quaresma.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

REFLEXÃO PARA A QUINTA-FEIRA SANTA – LAVA-PÉS (JOÃO 12,1-15)

A liturgia da Quinta-feira Santa, todos os anos, propõe a leitura de Jo 13,1-15, para a missa da Ceia do Senhor. Esse texto corresponde ao...