sexta-feira, janeiro 26, 2024

REFLEXÃO PARA O 4º DOMINGO DO TEMPO COMUM – MARCOS 1,21-28 (ANO B)

 


O evangelho deste quarto domingo do tempo comum – Marcos 1,21-28 – está em perfeita continuidade com o do domingo anterior (cf. Mc 1,14-20), tanto em relação à sequência de versículos quanto ao conteúdo. Após ter começado a anunciar a chegada do Reino de Deus e iniciado a composição da comunidade de discípulos, chamando seus quatro primeiros seguidores, eis que Jesus inaugura definitivamente o seu ministério na Galiléia. Até então, o evangelista fizera referências muito genéricas e sintéticas sobre o início do ministério de Jesus (cf. Mc 1,14-15), chegando a descrever com detalhes somente o chamado dos primeiros discípulos (cf. Mc 1,16-20). Sendo assim, a primeira narrativa descritiva da atuação de Jesus, quando ele de fato começa a tornar manifesto o Reino anteriormente anunciado, é o evangelho de hoje. Isso, obviamente, confere um valor ímpar a esse texto, tornando-o paradigmático. Inclusive, contém o seu primeiro milagre no Evangelho de Marcos. Como elementos centrais do texto a serem observados, destacamos: as dimensões de tempo e espaço (Cafarnaum-sinagoga/sábado), ensinamento e cura-exorcismo (palavra/ação), admiração e confronto. Esses elementos são muito representativos para a imagem de Jesus que Marcos pretende construir ao longo do seu Evangelho.

Eis o texto: «Na cidade de Cafarnaum, num dia de sábado, Jesus entrou na sinagoga e começou a ensinar» (v. 21). É muito significativo esse primeiro versículo. A cidade de Cafarnaum, cujo nome significa “aldeia da consolação”, se torna o centro das atividades iniciais de Jesus na Galiléia. Apesar de itinerante, Jesus escolhe essa cidade como ponto de apoio para o seu movimento. Embora não fosse grande, Cafarnaum era uma cidade estratégica pela sua localização às margens do mar (lago) da Galiléia; possuía uma economia forte e uma população bastante diversificada. Era mesmo a cidade ideal para a “pesca de homens”, como Jesus definiu simbolicamente a missão dos seus discípulos. A designação dos discípulos como “pescadores de homens” possui um significado muito forte: longe de ser um convite ao proselitismo religioso, é um convite à promoção do ser humano em sua dignidade plena. Significa a missão do discípulo de promover a libertação do ser humano de toda e qualquer situação de perigo, injustiça e morte. Enfim, é a síntese da humanização que o Evangelho deve causar no mundo. Embora a tradução litúrgica faça referência apenas a Jesus entrando na sinagoga, em outras traduções percebe-se que ele estava acompanhado dos primeiros discípulos, os quatro que tinha chamado no episódio anterior, lido no domingo passado. Esse também é um dado importante. Se trata da primeira aparição pública de Jesus com seus discípulos. Desse momento em diante, ele estará sempre acompanhado dos discípulos, cujo grupo crescerá ao longo do Evangelho.

Neste texto, Marcos não faz qualquer referência ao conteúdo do ensinamento de Jesus, mas a descrição da reação do auditório faz supor que fosse um ensinamento ousado, emancipatório, questionador da ordem vigente, como é próprio do Evangelho do Reino. Certamente, um ensinamento que extrapolava ou até contradizia o ensino da religião oficial. E isso será confirmado pela ação posteriormente descrita, ao libertar um homem de um espírito mau e, sobretudo, pela reação do auditório. Por isso, é muito significativo que a primeira ação libertadora de Jesus aconteça na sinagoga e num dia de sábado. A sinagoga era o lugar sagrado do culto, da reunião da comunidade, da catequese; o espaço privilegiado da pregação no judaísmo e, consequentemente, do ensino da preservação das tradições e do cumprimento dos preceitos da Lei. Inclusive, funcionava até como escola, nas pequenas aldeias. O sábado era o dia sagrado por excelência para o povo judeu; dia do repouso e do culto, da escuta atenta da Lei e dos Profetas. Ao longo do seu ministério, Jesus vai ser acusado de transgredir o sábado, ao realizar curas nesse dia. Inclusive, o episódio de hoje é uma exceção, pois não há contestação ao seu agir libertador em dia de sábado. Ora, Jesus não vai ao culto apenas como devoto e fiel observador dos preceitos; ele vai também para questionar e denunciar que a religião também aliena e oprime. Por isso, o primeiro espaço visitado por ele com sua mensagem e ação libertadoras é a sinagoga, porque ele via a alienação religiosa como a mais danosa de todas as alienações. O espaço religioso é, portanto, o mais necessitado de libertação, e Jesus compreendeu bem isso.

A diferença entre a pregação inovadora de Jesus e a pregação tradicional dos mestres da Lei e rabinos da época logo foi percebida pelo povo: «Todos ficavam admirados com o seu ensinamento, pois ensinava como quem tem autoridade, não como os mestres da Lei» (v. 22). A afirmação é forte e impactante porque os mestres da Lei ou escribas eram os que ensinavam com mais qualidade e autoridade na época. Constituíam a elite intelectual de Israel. Eram os pregadores e mestres oficiais da religião judaica, autorizados pelos sacerdotes do templo. De repente, percebe-se que o ensinamento (em grego: διδαχῇ – didakê) de um simples carpinteiro nazareno é superior ao deles. Temos aqui um sinal claro de reviravolta na história. Na verdade, essa afirmação declara o ensinamento dos mestres da Lei como ilegítimo, eles tinham usurpado o nome de Deus. A contraposição dos ensinamentos mostra que era falsa a autoridade dos mestres da Lei; eles eram impostores, mercenários, aproveitadores da religião transformada em comércio pelos sacerdotes de Jerusalém. E a autoridade com a qual Jesus ensinava consistia na sua coerência de vida e fidelidade ao Pai. A palavra grega empregada pelo evangelista, traduzida pelo lecionário como autoridade (ἐξουσία – ecsussia) pode ser traduzida também por poder. E o poder de Jesus não consiste em realizar sinais extraordinários, mas em fazer a vontade do Pai. Ao fazê-la, ele humaniza o mundo, por isso, deixa todos admirados. As pessoas, habituadas a ouvir repetições de fórmulas, sermões repressivos e moralistas, logo se admiram com a novidade apresentada por Jesus. Ora, o Reino de Deus, objeto da pregação de Jesus, tinha sido bloqueado pela religião. Os mestres da Lei eram funcionários do sagrado; praticavam autoritarismos, ao invés de autoridade; ensinavam para dominar. Jesus, ao contrário, ensina para libertar e humanizar as pessoas.

À medida em que o anúncio de libertação ecoa, eis que as forças do mal se evidenciam, sentindo-se ameaçadas, pois não aceitam a prática libertadora de Jesus, como constata o evangelista: «Estava então na sinagoga um homem possuído por um espírito mau. Ele gritou: ‘Que queres de nós, Jesus Nazareno? Vieste para nos destruir? Eu sei quem tu és: tu és o Santo de Deus’» (vv. 23-24). A presença desse homem no reduto sagrado da sinagoga comprova a completa ineficácia da religião ali praticada. Até então, o ensinamento ali oferecido pelos mestres da Lei não tinha ido de encontro ao mal instalado na sociedade, incluindo a comunidade religiosa. O mal não era combatido por eles, porque na verdade eram aliados. Isso comprova que a autoridade dos mestres da Lei era falsa, ilegítima. Na verdade, quando a religião não é libertadora e humanizante, ela é aliada do mal. Jesus não compactua com o mal; na verdade, ele veio para destruir o mal e tudo o que aprisiona o ser humano, como o próprio espírito mau reconheceu: «vieste para nos destruir?». É provável que aquele homem com o espírito mau frequentasse a sinagoga há anos, mas a pregação dos mestres da Lei não o tinha ameaçado. Quando Jesus chega, ele se sente ameaçado porque Jesus traz amor e justiça, ele passa fazendo o bem (cf. At 10,38), por isso, liberta o ser humano em sua totalidade. E a incompatibilidade entre Jesus e o mal deve, obviamente, repercutir na comunidade cristã. Significa que os cristãos e cristãs não podem compactuar com nenhuma forma de expressão do mal, como violência, injustiças, preconceito, discurso de ódio, segregação, etc.

O texto mostra claramente que aquilo que ameaça o mal é a presença do bem, e Jesus é, por excelência, o portador do bem, o enviado do Pai e possuidor do Espírito Santo em plenitude. Até então, o mal instalado não tinha se sentido ameaçado, porque não havia quem irradiasse o bem de modo pleno naquele ambiente. Ao invés de aliviar, os pregadores convencionais imponham ainda mais fardos sobre as pessoas. Ao invés de livres, as pessoas saíam do culto cada vez mais acorrentadas, devido à pregação repressiva, legalista. Por isso, a presença de Jesus desestabiliza. O homem possuído pelo espírito mau, com quem a religião convivia tão bem, se sente ameaçado pelo ensinamento libertador de Jesus com sua autoridade. Quanto mais o Reino de Deus se aproxima e se instala no mundo, mais o domínio do mal se sente ameaçado e começa a desaparecer. Por isso, o homem pergunta o que Jesus veio fazer. O poder da morte, a anti-vida se sente com os dias contados diante de Jesus, o Filho do Deus da vida. O mal sente-se destruído com a implantação do Reino de Deus. Por isso, mais na frente, será articulado o complô da morte entre a religião e o império romano para fazer calar a voz de Jesus. Convém recordar que, para a mentalidade da época de Jesus e da comunidade do evangelista, espírito mau, espírito impuro ou possessão demoníaca eram, na maioria das vezes, as explicações que se davam para os casos de doenças ainda desconhecidas pela medicina da época, principalmente os transtornos mentais.

Por não suportar o mal ao seu redor, «Jesus o intimou: Cala-te e sai dele!» (v. 25). A essa ordem, segue-se o seu efeito: «Então o espírito mau sacudiu o homem com violência, deu um grande grito e saiu» (v. 26). Quem está dominado por forças hostis como a violência, a corrupção, a mentira e o ódio, não consegue livrar-se com facilidade. Mas, a palavra de Jesus tem uma eficácia imensurável e, mesmo sofrendo violência, consegue vencer. Aqui está um dos principais elementos do relato: a coerência entre a palavra e a ação de Jesus. Ensinamento e cura-exorcismo – expulsão do espírito mau – na mesma cena significam que em Jesus não há incoerência entre o falar e o agir. Ele é totalmente coerente. Essa é a sua práxis! Com a ordem de Jesus para o espírito mau calar-se, Marcos inaugura um dos temas principais de sua obra: o segredo messiânico. O espírito mau tinha reconhecido a identidade messiânica de Jesus como “Santo de Deus”, mas Jesus só aceita que esse reconhecimento seja fruto de uma experiência que passa pela cruz; por isso, até mesmo aos discípulos ele ordenará que se calem quando dirigirem-se a ele como o Messias (cf. Mc 8,29-30). Mas a ordem ao espírito mau não é apenas que ele se cale, mas que saia do homem, que o deixe livre. E assim acontece: o espírito mau saiu do homem, não sem resistência, mas saiu. O gesto violento de sacudir o homem quer dizer o quanto é árdua a luta contra o mal, e que todo processo de libertação implica confronto, pois o opressor emprega todas as formas de força e violência possível. O grito do espírito mau significa seu último respiro, é um grito de morte. O conjunto da cena – sacudir o homem e gritar – simboliza a força de Jesus no confronto com o mal. É uma demonstração de que a presença de Jesus sufoca o mal.

Se só o ensinamento de Jesus já causava admiração (v. 22), essa aumenta ainda mais quando os seus ouvintes percebem a novidade também na prática: «E todos ficaram muito espantados e perguntavam uns aos outros: ‘O que é isto? Um ensinamento novo dado com autoridade: Ele manda até nos espíritos maus e eles obedecem!’» (v. 27). É importante perceber a passagem da admiração ao espanto. No começo (v. 22), enquanto Jesus apenas ensinava com autoridade, todos se admiravam; agora, quando o ensinamento se concretiza em gesto libertador, todos ficam espantados. Essa é a única vez que o evangelista aponta uma reação assim diante de um milagre. Ele só vai voltar a empregar o mesmo verbo utilizado aqui (θαμβέομαιthambéomai) para descrever a reação dos discípulos diante da lição de Jesus sobre a incompatibilidade entre as riquezas e o Reino de Deus (Mc 10,23.32). É a reação de algo nunca visto antes e quase inacreditável. Chama a atenção da assembleia o fato de Jesus não tolerar o mal diante de si. Para os mestres da Lei, pregadores e intérpretes oficiais, não importavam as situações concretas vivenciadas pelos participantes do culto; eles se preocupavam apenas em transmitir a doutrina, em dar o sermão, conforme o costume. Jesus, pelo contrário, colocava a vida e o bem-estar do ser humano em primeiro plano, por isso incomodava as forças do mal ali instaladas. Essa novidade evidencia ainda mais a sua autoridade.

E a novidade da práxis de Jesus gera admiração, fama e aceitação da parte do povo, como recorda o evangelista: «E a fama de Jesus logo se espalhou por toda a parte, em toda a região da Galiléia» (v. 28). As pessoas estavam saturadas de uma religião indiferente à vida e até conivente com as forças opressoras. Jesus inova no falar e no agir, tirando a doutrina do centro e colocando a vida do ser humano em primeiro lugar. Obviamente, como vai ser mostrado ao longo do Evangelho, muitos conflitos virão como fruto de suas opções, levando-o à cruz, inclusive. Como o episódio retratado no evangelho de hoje foi a primeira aparição pública de Jesus com os discípulos, ainda não terminou em conflito. Certamente porque ainda não deu tempo de os chefes religiosos perceberem o perigo que ele representa para os seus interesses. Nas próximas vezes que ele entrar numa sinagoga em dia de sábado, quase sempre terminará em conflito. Por enquanto, o que ele provoca é a admiração e espanto, tamanha a novidade da sua mensagem e do seu jeito de ser e de agir. Isso faz a sua fama se espalhar rapidamente, sobretudo na região da Galileia, escolhida por ele como a pátria do Evangelho, o ponto de partida da Boa Notícia do Reino, até chegar em todo o mundo. De início, essa fama é toda positiva, pois expressa a acolhida das pessoas simples, necessitadas de libertação e humanização. Mais tarde, essa fama se tornará também pejorativa, tanto pelas autoridades, por vê-lo como perigoso, quanto pelos próprios familiares, que tentarão prendê-lo por imaginá-lo louco (cf. Mc 3,20-21). Ele está apenas no começo da “pesca de seres humanos”, em companhia dos primeiros discípulos, dando ainda os primeiros passos na construção do Reino.

Portanto, tendo no domingo passado designado os primeiros discípulos como “pescadores de seres humanos”, hoje Jesus nos ensina a natureza dessa pesca: ser agente de libertação para a humanidade, livrando o ser humano das situações de opressão e morte. Como de todas as alienações a pior é aquela religiosa, foi no espaço dito sagrado que Ele iniciou sua missão libertadora, pois era ali onde mais se permitia que os seres humanos fossem “afogados”, ou seja, privados de sua liberdade e vida plena, carentes de humanização. Hoje, seu discipulado é também interpelado a reconhecer quais são as estruturas de domínio do mal, e combatê-las. Vale a pena recordar que, muitas vezes, o mal ainda continua disfarçado de doutrinas, ritos e preceitos religiosos.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, janeiro 20, 2024

REFLEXÃO PARA O 3º DOMIMGO DO TEMPO COMUM – MARCOS 1,14-20 (ANO B)

 


Com a liturgia deste terceiro domingo do tempo comum, iniciamos, de fato, a leitura semi-contínua do Evangelho de Marcos, como é característico do ano litúrgico vigente, o ano B do ciclo litúrgico. No ano de 2019, o papa Francisco instituiu o terceiro domingo do tempo comum como o “Domingo da Palavra de Deus”, com o objetivo de promover uma aproximação maior das pessoas com a Palavra de Deus, evidenciando sua centralidade na vida da Igreja e ainda visando despertar o interesse pelo estudo das Sagradas Escrituras. Na Igreja do Brasil, particularmente, o “Domingo da Palavra de Deus” ainda não foi tão bem assimilado como tal, provavelmente pelo fato de já existir o “dia da Bíblia”, celebrado no último domingo de setembro, o mês da Bíblia, uma tradição bastante consolidada em nossas comunidades. O evangelho para hoje – Mc 1,14-20 – nos situa no início da vida pública de Jesus, destacando os seus primórdios na Galiléia, com o anúncio do Reino de Deus, o convite à conversão e o chamado dos primeiros discípulos para o seu seguimento. Podemos dizer que se trata de um texto programático para a comunidade cristã de todos dos tempos.

Retirado do Evangelho de João, o texto do domingo passado (cf. Jo 1,35-42) funcionava como transição entre a missão de João Batista e a missão de Jesus. Inclusive, as entrelinhas do texto indicavam que o próprio João reconhecia que estava na hora de sair de cena, ao indicar os seus discípulos para o seguimento de Jesus. Naquela ocasião, Jesus convidara os discípulos de João a conhecer o seu estilo de vida: “vinde e ver” (cf. Jo 1,39a), mas não fizera ainda um convite explícito ao seguimento. E a motivação inicial ali foi o testemunho de João, que o apresentou o “Cordeiro de Deus” (cf. Jo 1,36), gerando curiosidade em seus discípulos. Logo, o protagonista daquele episódio ainda foi o Batista. A partir do evangelho de hoje, o protagonismo é todo de Jesus: é ele quem anuncia e chama. Também é importante recordar os três acontecimentos que antecedem o episódio de hoje, para situá-lo no contexto narrativo do Evangelho de Marcos: a pregação de João Batista (cf. Mc 1,2-8), o batismo de Jesus (cf. Mc 1,9-11), e as tentações no deserto (cf. Mc 1,12-13). Esses são acontecimentos introdutórios, que fazem parte da preparação para o início da pregação de Jesus e, consequentemente, da execução do seu programa que começa exatamente com o evangelho de hoje.

Feitas as devidas considerações a nível de contexto, iniciamos o estudo do texto propriamente. Trata-se não apenas de um novo episódio, mas de uma nova etapa, como deixa claro o próprio texto: «Depois que João foi preso, Jesus foi para a Galiléia» (v. 14a). Essa primeira afirmação é muito importante. A prisão de João se torna um divisor de águas na vida de Jesus e na história da salvação. A indicação temporal “depois” (em grego: μετά – metá) quer enfatizar que, embora haja continuidade, as missões do Batista e a de Jesus não coincidem, fazem parte de etapas diferentes da história, como diferentes também são os programas de cada um. Como a sina dos profetas sempre foi a perseguição, a prisão de João significa que sua missão alcançou seu objetivo. Aqui, o evangelista usa o verbo “entregar” (em grego: παραδίδωμι – paradidomi), de modo que a tradução mais compatível com o texto original seria “depois que João foi entregue”; expressa uma entrega por traição ou calúnia, terminando em prisão e condenação à morte. Inclusive, é o mesmo verbo aplicado a Jesus no relato paixão (cf. Mc 14,10). Esse detalhe, aparentemente simples, enfatiza ainda mais a peculiaridade da missão de João. Ora, só é entregue aquele que incomoda, quem anuncia a verdade e a justiça num mundo marcado pela mentira e a injustiça. E assim foi a missão do profeta João Batista.

Como vemos, Jesus começa seu ministério quando João sai de cena; essa é a perspectiva dos evangelhos sinóticos (Mt, Mc e Lc), que apresentam João com um papel de precursor bem definido, ao contrário do Quarto Evangelho que atribui ao Batista o papel de testemunha e mostra uma transição mais detalhada entre os dois. As causas de João ter sido entregue serão contadas somente quando vier recordada a sua morte, mais adiante, na dinâmica do Evangelho (cf. Mc 6,14-29). Depois que o Batista sai de cena, começa o protagonismo de Jesus, como diz o texto: «Jesus foi para a Galiléia» (v. 14b). Aqui está o primeiro sinal de ruptura, ou seja, as principais diferenças entre os dois personagens começam a aparecer. Ora, João tinha desenvolvido sua atividade na Judeia, às margens do rio Jordão. Provavelmente, Jesus tinha participado dessa atividade como seu discípulo, esperando o momento de apresentar-se como autônomo em relação aos homens, e dependente somente de Deus, o seu Pai. E, uma vez cumprida a missão do Batista, Jesus inicia a sua com proposta e metodologia novas. Por isso, ele começou «pregando o Evangelho de Deus» (v. 14c). E ele mesmo é o Evangelho de Deus, enquanto Filho, enviado para humanizar o mundo, mediante sua mensagem e, sobretudo, o estilo de vida. Por isso, o Evangelho de Deus e o Evangelho de Jesus são uma coisa só, porque é a sua própria pessoa. É Jesus de Nazaré, aquele passou a vida fazendo o bem (cf. At 10,38)

Enquanto realizada na Judéia, a missão de João Batista visava purificar judeus, através, do batismo, para reintegrá-los à religião oficial, seja à sinagoga/templo seja a algum movimento ascético no interior do judaísmo. Era na Judéia que estava Jerusalém com seu magnífico templo. Jesus, ao contrário, veio para incluir pessoas no Reino de Deus, e não para recrutar devotos para uma religião decadente, como era o judaísmo oficial da época. Por isso inicia a sua atividade longe da sede da instituição religiosa, como diz o texto. Ele “foi para a Galiléia”, ou seja, para onde estavam os marginalizados, um povo quase pagão. Por isso, mais do que uma mudança geográfica, a ida de Jesus para a Galileia representa uma mudança de perspectiva social e teológica. Os galileus eram considerados perigosos pela religião oficial e pelo poder romano; eram um povo rebelde e subversivo. É no meio desse povo rotulado negativamente que Jesus começa a agir. Enquanto a missão de João estava centralizada num espaço fixo, as margens do Jordão, o ministério de Jesus será dinâmico, itinerante. João esperava que o povo fosse ao seu encontro. Jesus, ao contrário, andará em direção ao povo, especialmente os mais distantes e marginalizados, como era a população da Galileia.

A pregação de Jesus consistia no anúncio do Reino de Deus e o convite à conversão: «O tempo já se completou e o Reino de Deus está próximo. Convertei-vos e crede no Evangelho» (v. 15). A compreensão do cumprimento do tempo é essencial na pregação de Jesus. Aqui, o evangelista se refere ao tempo com o termo grego kairós (καιρός), que não significa o tempo cronológico, mas o tempo oportuno e favorável, uma oportunidade única que não pode ser desperdiçada. É o tempo que os profetas do Antigo Testamento tanto sonharam. E o inaugurador desse tempo é Jesus. De fato, em um mundo insuportável, marcado pelas injustiças e opressão, com lideranças religiosas e políticas totalmente corrompidas, a oportunidade de criação de um mundo novo não poderia ser desperdiçada e nem adiada. E esse mundo novo é o Reino de Deus, o conteúdo da pregação de Jesus, que consiste exatamente na alternativa de mundo e sociedade ao sistema vigente na época. É claro que essa proposta continua é válida para todos os tempos.

Não é fácil dar uma definição completa e precisa de Reino de Deus. Nem os evangelhos dão, apesar das inúmeras referências que fazem. O próprio Jesus, quando fala do Reino de Deus não o faz a partir de conceitos, mas com parábolas, que têm a função de tornar o ensinamento mais acessível e, ao mesmo tempo, manter um certo mistério. Contudo, é certo que o Reino de Deus não é uma promessa de esperança para um bem-estar futuro, não é uma promessa para o além, mas a proposta de Deus para o hoje da história. No Pai-nosso, a oração cristã por excelência, não se pede para alcançar o Reino no futuro, mas que o Reino venha até nós. Logo, trata-se de algo concreto e urgente. A instauração do Reino consiste na transformação deste mundo num mundo novo, numa sociedade com novas relações, baseadas na justiça, no amor, no perdão e no serviço; um mundo marcado pela igualdade e fraternidade. Resumindo, podemos dizer que a o Reino é a realização do projeto libertador de Deus no mundo, que consiste, acima de tudo, num mundo humanizado. Esse Reino “está próximo”, diz Jesus, porque é Ele o Reino em pessoa. Aqui, mais do que a temporalidade do Reino, a proximidade exprime a materialidade. A presença de Jesus no mundo significa que o Reino de Deus começou a ser construído. Essa proximidade do Reino será evidenciada pelo modelo de vida de Jesus e pelos sinais realizados por Ele, os quais dirão que o Reino, de fato, chegou.

Para participar do Reino não são necessários rituais de purificação, mas apenas conversão e adesão ao Evangelho. A participação na comunidade da antiga aliança, por exemplo, dependia de questões genealógica e étnica, além da observação minuciosa de inúmeros preceitos. O Reino de Deus comporta uma lógica diferente, tendo como condição a adesão ao imperativo «Convertei-vos e crede no Evangelho» (v. 15a). A necessidade de conversão é uma constante na vida do seguidor de Jesus. Converter-se e crer no Evangelho é, portanto, uma atitude contínua. Ora, converter-se não significa assimilar um rito, nem intensificar as práticas penitenciais e devocionais; não significa tornar-se uma pessoa mais religiosa. Conversão significa mudança radical de mentalidade, que envolve o jeito de ser, de pensar e de agir. Essa mudança de mentalidade se torna verificável na vida da pessoa pela adesão ao Evangelho, cujo resultado concreto é a assimilação do estilo de vida de Jesus de Nazaré. E crer no Evangelho, por consequência, significa aceitar e aderir ao projeto libertador de Deus por meio de Jesus Cristo, fazendo opções iguais às dele.

Após sintetizar a atividade e o anúncio de Jesus (vv. 14-15), o evangelista apresenta o início da formação do discipulado, com o chamado dos primeiros discípulos. O chamado inicial é direcionado a quatro homens, duas duplas de irmãos: Simão e André, João e Tiago (vv. 16-20), todos pescadores, sinônimo de gente simples. Certamente, o número quatro significa a universalidade, representando os quatro cantos da terra ou os quatro pontos cardeais. Quer dizer que o Reino e o Evangelho são destinados a toda a humanidade. Eis o primeiro chamado: «E, passando à beira do mar da Galiléia, Jesus viu Simão e André seu irmão, que lançavam a rede ao mar, pois eram pescadores» (v. 16). Como se vê, o chamado se dá de modo improviso. À medida em que passa à beira do mar, Jesus vê as pessoas em seu cotidiano, exercendo a profissão que gerava o sustento. Tendo chamado os dois primeiros, provavelmente já em companhia deles, eis que «Caminhando mais um pouco, viu também Tiago e João, filhos de Zebedeu. Estavam na barca, consertando as redes; e logo os chamou» (vv. 19-20a). Novamente, ele chamou a partir do que viu às margens do mar. E mais uma vez chamou dois irmãos, pescadores como os primeiros. Esses quatro discípulos constituem o núcleo fundante da comunidade do Reino. Não significa que eles fossem os melhores, e o Evangelho vai mostrar muitas incoerências deles, como o medo (cf. Mc 832), a ambição (cf. Mc 10,35-45) e até a covardia (cf. Mc 14,66-72). Eles são os primeiros porque a comunidade do Reino precisava de um ponto de partida e Jesus os escolheu para o início do seu projeto.

Tanto é significativa a maneira como o chamado acontece quanto o cenário: o mar da Galiléia. Ora, o mar é sinônimo de hostilidade e perigo para a mentalidade bíblica. Embora esse da Galiléia fosse apenas um lago, o evangelista o denomina de mar numa perspectiva teológica. Por isso, esse mar ocupa um espaço tão significativo na missão de Jesus e dos primeiros discípulos. É um lago de 21 km de comprimento com 13 de largura, com diversas cidades e povoados às suas margens. Era um lugar estratégico para a comunicação e a economia da época. Ao escolhê-lo como cenário principal da sua missão, Jesus demonstrava que não fazia distinção de ambientes, não temia perigos e enfrentava as adversidades com naturalidade. A “beira do mar” é um lugar de circulação de pessoas de diversas proveniências, expressa pluralidade e diversidade, além de perigo. Ao invés da comodidade dos átrios do templo ou das sinagogas, por onde circulavam as pessoas mais “santas”, Jesus prefere circular em meio ao perigo, entre as pessoas sem reputação. Foi com base no que viu, e não no que dizia a doutrina, que ele escolheu seus primeiros seguidores. As pessoas não são escolhidas por Jesus enquanto estão rezando ou praticando atos devocionais, mas enquanto estão trabalhando; é para o cotidiano das pessoas que Jesus olha e chama. Ele não faz uma pesquisa de opinião pública, não pede cartas de recomendação, não vai aos lugares sagrados observar quem tem “cara de santo”. Inclusive, à exceção de André, estes primeiros serão mais recordados ao longo do Evangelho pelos aspectos negativos: Simão, já com o nome de Pedro, por não aceitar a cruz (cf. Mc 8,32) e pelas negações (cf. Mc 14,27-31), e os irmãos Tiago e João pela ambição e sede de poder (cf. Mc 10,35-45).

E o convite de Jesus é simples e profundo, ao mesmo tempo: «Segui-me e eu farei de vós pescadores de homens» (v. 17). Ao imperativo “segui-me” (em grego: όπίσω μου – ópisso mú), que literalmente significa “venham atrás de mim”, corresponde a necessidade de o discípulo viver como Jesus vive. Segui-lo é configurar-se ao seu modo de vida. É um convite ao desprendimento e para que os discípulos se coloquem em estado constante de aprendizado. Somente andando atrás do mestre o discípulo poderá caminhar na direção certa. Aqui, Ele se distancia completamente do modelo de mestre do seu tempo, estabelecendo uma nova concepção: enquanto os rabinos do seu tempo eram procurados por candidatos ao discipulado, é Jesus mesmo quem busca e escolhe os seus discípulos. E, ao chamar, já deixa clara a missão: ser “pescadores de homens” (v. 17b). Essa expressão é muito passível de interpretações equivocadas que podem distanciar e distorcer o sentido aplicado pelo evangelista, como tem acontecido. Geralmente, se tem usado ela para justificar as mais diversas formas de proselitismos e até abusos, como se fosse uma ordem para recrutar fiéis. É necessário, portanto, compreender o sentido do mar para o mundo bíblico: é sinônimo de perigo; evoca morte e domínio do mal. Portanto, ser “pescador de homens” é ser sinal de vida, tirar seres humanos das mais diversas situações de morte. Assim é a missão dos seguidores de Jesus: restituir aos homens e mulheres, ou seja, à humanidade, a vida e a dignidade, livrando-a de todas as ameaças à vida em plenitude: a violência, o ódio, a corrupção, a injustiça, a fome, e todos os males nos quais a humanidade possa “afogar-se”.

A resposta positiva dos primeiros discípulos é uma interpelação aos cristãos de todos os tempos: converter-se e acreditar no Evangelho são as condições necessárias para fazer parte do Reino de Deus. A autenticidade dessa conversão depende do seguimento fiel a Jesus. Para isso, é necessário deixar tantas redes que continuam a prender e atrapalhar o seguimento do Mestre. Uma vez que o Reino se tornou próximo, e essa oportunidade única não pode ser desperdiçada, criemos coragem de deixar imediatamente, como os quatro primeiros, todos os obstáculos ao seguimento.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

 

sábado, janeiro 13, 2024

REFLEXÃO PARA O 2º DOMINGO DO TEMPO COMUM – JOÃO 1,35-42 (ANO B)



Todos os anos, a liturgia do segundo domingo do tempo comum utiliza um texto do Quarto Evangelho. O trecho selecionado varia conforme o ciclo litúrgico vigente (ano A: Jo 1,29-34; ano B: Jo 35-42; Ano C: Jo 2,1-11). Na prática, esse domingo constitui a verdadeira abertura solene do tempo comum, uma vez que não existe um primeiro domingo do tempo comum no calendário litúrgico. Geralmente, o que seria o primeiro domingo é substituído pela festa do batismo de Jesus, mas nesse ano foi substituído ainda pela solenidade da epifania, celebrada domingo passado. Como se sabe, ao longo do ano, a liturgia do tempo comum faz uma apresentação contínua do ministério de Jesus, desde os seus primórdios na Galileia até o seu final em Jerusalém. Recorre-se, portanto, ao Evangelho de João no segundo domingo, porque é esse o que introduz a vida pública de Jesus de modo mais aprofundado. O texto empregado neste ano é Jo 1,35-42. Trata-se do relato do chamado vocacional dos primeiros discípulos de Jesus, que segue uma lógica diferente do episódio correspondente nos evangelhos sinóticos (Mt; Mc; Lc).

O texto lido neste dia faz parte da primeira seção narrativa do Evangelho de João, convencionalmente chamada pelos estudiosos de “semana inaugural” (cf. Jo 1,19–2,21). Nesse intervalo, o evangelista introduz a vida pública de Jesus com indicações temporais que indicam a duração de uma semana. Com isso, o autor pretende apresentar a obra de Jesus como uma nova criação, em alusão à criação originária, desenvolvida também em uma semana (cf. Gn 1,1–2,3). O primeiro dia da “semana inaugural” do evangelho joanino foi marcado por uma comitiva fiscalizadora, enviada pelas autoridades religiosas de Jerusalém para interrogar João sobre sua identidade (cf. Jo 1,19-28), e o último dia ou sétimo é marcado pelas bodas de Caná (cf. Jo 2,1ss), o qual é introduzido pela expressão “no terceiro dia”, mas em relação aos quatro dias anteriores e, portanto, é o sétimo da primeira semana. O episódio narrado no evangelho de hoje corresponde ao terceiro dia da semana. Porém, isso não se percebe na tradução do lecionário, que substituiu o dado temporal do texto original pela genérica fórmula de introdução “naquele tempo”.

E iniciamos a nossa reflexão, portanto, recordando o dado temporal com o qual o evangelho de hoje é introduzido, na língua original. Ora, ao invés da genérica fórmula de introdução “naquele tempo”, o texto começa com uma expressão que poderia ser traduzida como “no dia seguinte” ou um dia depois (em grego: τῇ ἐπαύριον – té epaurion). A princípio, pode parecer uma observação pouco relevante, mas na verdade se trata de algo bastante significativo. Ora, se o evangelista emprega essa expressão quer dizer que o episódio a ser narrado possui relação com o anterior, como de fato tem. Ainda no prólogo, o evangelista tinha anunciado que «houve um homem enviado por Deus, seu nome era João. Ele não era a luz, mas veio para dar testemunho da luz» (Jo 1,6.8). E as primeiras cenas do Quarto Evangelho apresentam exatamente o testemunho de João, o Batista, a respeito de Jesus. O evangelho de hoje se insere nesse contexto. No episódio anterior, correspondente ao segundo dia da semana inaugural, o evangelista narrou o primeiro encontro de Jesus com João. Ali, o Batista tinha reconhecido Jesus como o «cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo» (Jo 1,29), e dado o seu testemunho a respeito dele.

No episódio de hoje, um dia depois, eis que os dois novamente se encontram, como diz o evangelista: «No dia seguinte, João estava com dois de seus discípulos e, vendo Jesus passar, disse: “Eis o Cordeiro de Deus!’» (vv. 35-36). É importante recordar que esse é o terceiro dia da semana e, portanto, seu significado é de grande importância. Ora, o terceiro dia na Bíblia não é simplesmente a soma de três dias cronológicos seguidos, mas é um sinal de intervenção de Deus. É o dia em que coisas importantes acontecem, como a ressurreição, por exemplo. Portanto, esse episódio tem um valor bastante significativo para o todo Evangelho de João. Trata-se do relato do nascimento da comunidade dos discípulos de Jesus, embrião do mundo novo, o Reino de Deus. Antes, João Batista tinha apresentado Jesus como o «Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo», agora o apresenta apenas como «Cordeiro de Deus», uma vez que mais importante que a função é a própria pessoa de Jesus. Ao designar Jesus assim, João considera o ambiente e a situação em que o povo se encontrava: instituições corrompidas, sistema religioso sem credibilidade e um império repressivo, gerando dor e sofrimento na população mais pobre. Essa situação degradante era consequência de uma sociedade dirigida por verdadeiros lobos. Daí, a necessidade de alguém que assuma o papel de cordeiro, ou seja, como sinal de paz, de luta contra o mal e a violência, um líder que não faça uso de nenhum dos instrumentos usados pelos dirigentes da época: força, violência, repressão, corrupção e exploração.

Certamente, ao chamar Jesus de «Cordeiro de Deus», João não pensa apenas no cordeiro pascal do sacrifício, mas no líder-cordeiro, ou seja, pacífico e humilde. É importante que o conhecimento da identidade de Jesus seja revelado para que seus discípulos tenham verdadeiras convicções do seguimento. João apresenta Jesus como cordeiro para os seus próprios discípulos, fazendo assim uma espécie de transição entre a sua missão de precursor e a missão de Jesus como Salvador e luz da humanidade. Ele reconhece que sua missão de testemunha está chegando ao cumprimento, e o evangelista mostra isso muito bem, ao dizer que «João estava» enquanto Jesus passava. João estava parado, numa posição estática, pois chegou aonde tinha de chegar, por isso, parou. Por outro lado, Jesus passava, estava em movimento, como sinal de que a nova dinâmica gira em torno do seu seguimento. É preciso colocar-se também em movimento para tornar-se discípulo ou discípula dele. Essa diferença de atitudes entre João e Jesus, um parado e o outro passando constitui um dos detalhes mais importantes de todo o texto. Revela a consciência de João, ao perceber que sua missão foi cumprida e a necessidade da comunidade cristã colocar-se em movimento, pôr-se em caminho para, de fato, seguir a Jesus.

Outro detalhe importante que se percebe logo no início do texto é a percepção de João: ele viu Jesus passar. O verbo ver possui um significado muito forte no Quarto Evangelho; faz parte do vocabulário da fé e do seguimento de Jesus, para o respectivo evangelista. Na língua original do livro, o grego, há vários verbos que significam ver ou olhar, que designam diferentes jeitos ou níveis de percepção no ato de ver ou olhar. O que o evangelista emprega aqui (ἐμβλέπω – emblepo) é um dos mais profundos, significa ver por dentro, expressa a mais alta intensidade e profundidade do olhar. E um olhar que permite conhecer a interioridade. Esse verbo é usado duas vezes no evangelho de hoje: para expressar o olhar de João para Jesus, e o de Jesus para Simão (v. 42). Nas outras ocasiões em que também se emprega o verbo ver, o evangelista usa os significados menos intensos (vv. 38-39). A profundidade do olhar de João é confirmada pelas suas palavras, ao reconhecer Jesus como o Cordeiro de Deus. Ora, Jesus não possuía traços excepcionais que o distinguissem das demais pessoas. O reconhecimento de João, portanto, é fruto da sua profundidade interior.

O testemunho de João era convincente para seus discípulos, certamente pela coerência de vida, pelo exemplo. Isso é demonstrado pela reação dos seus discípulos: «Ouvindo essas palavras, os dois discípulos seguiram Jesus» (v. 37). Ora, os discípulos seguiram a Jesus porque confiaram no testemunho de João.  Assim como em toda a tradição bíblica, a escuta tem grande importância na transmissão da fé. Aqui começa a formação do discipulado de Jesus no Quarto Evangelho. Enquanto nos evangelhos sinóticos o chamado acontece praticamente de improviso, com Jesus chamando diretamente os primeiros discípulos à beira-mar, no Evangelho de João o chamamento faz parte de um processo iniciado pela pregação do Batista. A pregação do Batista chega ao seu objetivo e, ao mesmo tempo, esgota-se. Assim, o gesto dos dois discípulos seguindo Jesus representa o cumprimento da antiga aliança e o início da nova, a qual será celebrada solenemente na conclusão da primeira semana com as bodas de Caná (cf. Jo 2,1-12). Seguir Jesus significa a disposição de acolher a sua proposta de vida e viver como Ele; é abandonar todos os caminhos anteriores e andar somente nos seus. Significa também a dinâmica do Reino: enquanto o Batista tinha um ponto fixo para sua pregação, a missão de Jesus é dinâmica e universal.

Os dois discípulos seguiram Jesus porque ouviram João testemunhar a seu respeito. Mas esse é apenas o primeiro passo de um verdadeiro seguimento, é a descoberta inicial. Para tornar-se discípulo, é necessário muito mais. Por isso, o evangelista diz que, «voltando-se para eles e vendo que o estavam seguindo, Jesus perguntou: ‘O que estais procurando?’» (v. 38a). Esse trecho é muito importante, cheio de profundidade. Aliás, todo o texto é profundo, mas essa passagem se destaca mais devido ao seguinte detalhe: essa pergunta «o que estais procurando?» é a primeira fala de Jesus no Evangelho de João; são as suas primeiras palavras. E é interessante perceber que o diálogo de Jesus com a humanidade não começa com um discurso ou uma proclamação solene, nem com imperativos moralistas, mas com um questionamento, com uma pergunta. Com isso, o evangelista ensina que Jesus se interessa pelas pessoas, ele gosta de escutar o que as pessoas têm a dizer sobre seus anseios, sonhos e projetos. É um Deus plenamente envolvido na vida cotidiana das pessoas. A pergunta de Jesus é de fundamental importância, por isso continua válida ainda hoje e sempre será. Também é relevante recordar que as primeiras palavras dele ressuscitado serão praticamente as mesmas, na dinâmica do Evangelho de João, ao dirigir-se a Maria Madalena, no jardim do sepulcro: «Mulher, por que choras? A quem procuras?» (Jo 20,15). Com isso, o evangelista recorda que a vida cristã é, acima de tudo, uma busca. O verbo grego empregado nas duas ocasiões (ζητέω – zetêo) expressa busca por algo ou alguém que possui grande importância, sendo capaz de mudar a vida. É a busca por aquilo que preenche o ser humano de vida e de sentido para a vida.

E a resposta dos discípulos mostra que eles também estavam no rumo certo e, portanto, que a catequese de João, o Batista, como testemunha, tinha sido bem-feita. Quer dizer, João tinha dado testemunho autêntico. Eis a resposta dos discípulos, que também é uma pergunta: «Eles disseram: ‘Rabi (que quer dizer: Mestre), onde moras?’» (v. 38b). Com essa expressão os discípulos não pedem o endereço de Jesus, mas algo muito mais profundo. Temos aqui outro verbo relevante para a teologia do Quarto Evangelho: morar, permanecer (em grego: μένω – meno); possui significado próximo a viver, de modo que a pergunta «onde moras?» revela o interesse dos discípulos pelo estilo de vida de Jesus, o jeito de viver dele, mais do que pelo espaço físico onde ele se alojava. Com todo respeito ao antigo mestre, os discípulos de João reconhecem que não é a sua vida que devem imitar, mas a vida de Jesus de agora em diante. João disse que Jesus é o Cordeiro, os discípulos não se contentam com essa informação e querem conhecer, experimentar a vida de cordeiro vivida por Jesus. E, diante da pergunta dos discípulos, Jesus faz um convite decisivo: «Jesus respondeu: ‘Vinde ver’» (v. 39a). O anúncio oral, como fez João Batista, é apenas o primeiro passo, é somente uma etapa no caminho para o discipulado. Para tornar-se verdadeiramente discípulo ou discípula é necessário fazer a experiência do encontro, do convívio, do estar com Ele. Aqui Jesus faz uma firme denúncia, embora sutil, à religião do seu tempo baseada na doutrinação. Ele quer dizer que sua vida e sua mensagem não são explicáveis com palavras. Nenhuma doutrina é capaz de contê-lo, pois ele não é um conteúdo, mas pessoa de relação. 

Jesus convida os discípulos a fazerem uma experiência de encontro verdadeiro com ele. É um convite a fazer descobertas. Só conhece Jesus quem vive com ele, quem vai ver e permanece com ele, como fizeram aqueles dois discípulos: «Foram, pois, ver onde ele morava e, nesse dia, permaneceram com ele. Era por volta das quatro da tarde» (v. 39b). Aqui está o primeiro modelo de discípulo e de encontro. Ir ver onde ele mora e permanecer é acatar a sua proposta de vida. Isso se faz somente em comunidade: foram em dois e permaneceram com ele. Eles não foram conhecer um espaço físico determinado, mas foram viver como ele. Como o dia terminava às seis horas, essa indicação temporal «quatro da tarde» significa que permaneceram até o fim com Ele e, por isso, quando surgir o novo dia, aqueles discípulos já estarão revestidos de uma vida nova, ou seja, do estilo de vida de Jesus. Na verdade, ao dizer que os discípulos permaneceram naquele dia, pode significar também que permaneceram com ele a partir daquele dia, sobretudo porque a morada de Jesus, mais do que um espaço físico é sua própria vida e mora com ele quem assimila sua mensagem de libertação. E assim nasce a comunidade cristã. 

Até então, nenhum dos discípulos citados fora chamado pelo nome. Finalmente, um deles se torna conhecido: «André, irmão de Simão Pedro, era um dos dois que ouviram as palavras de João e seguiram Jesus» (v. 40). O evangelista reforça aqui, mais uma vez, a eficácia do anúncio de João: os discípulos seguiram Jesus porque ouviram o testemunho de João a seu respeito, reconhecendo-o publicamente como Cordeiro de Deus. Enquanto André tem seu nome revelado, o outro discípulo permanece anônimo. Muitos estudiosos o identificam como o discípulo que, mais adiante no Evangelho, ficará conhecido como o Discípulo Amado. O efeito do encontro com Jesus se torna visível no tornar-se missionário do discípulo: André «Ele foi encontrar seu irmão Simão e lhe disse: ‘Encontramos o Messias’ (que quer dizer: Cristo)» (v. 41). Essa passagem é muito significativa para a catequese do evangelista e, por consequência, para a vida cristã em todos os tempos. Mostra que quem faz a experiência da comunhão de vida com Jesus, quem o vê e permanece com ele sente a necessidade de dá-lo a conhecer para as outras pessoas, partilhando essa mesma experiência. Ao encontrar o Messias-Cordeiro, André encontrou sentido para a vida, percebeu que os lobos de então (dirigentes políticos e religiosos) não tinham a palavra final, mas uma nova ordem e um novo tempo estavam surgindo a partir do fracos e pequenos, representados pela imagem do cordeiro.

Por causa do testemunho de João, André deu o primeiro passo: se colocou em estado de busca e seguiu Jesus. Atendendo ao convite de Jesus, foi ver e morar com ele, fazendo a experiência do encontro e da convivência. Desse modo, descobriu que ele é o Messias. Isso faz de André o primeiro a reconhecer Jesus como Messias no Evangelho de João, e o faz de modo surpreendente, pois até então Jesus ainda não tinha realizado nenhum sinal (milagre) que revelasse sua identidade. A antecipação de André, portanto, recorda a eficácia do testemunho de João e, acima de tudo, a força da convivência com Jesus, do morar com ele. E, tudo isso transformou André em nova testemunha e missionário. À medida em que a experiência de viver com Jesus vai sendo partilhada, o discipulado vai se dilatando, como se vê no último versículo: «Então André conduziu Simão a Jesus. Jesus olhou bem para ele e disse: ‘Tu és Simão, filho de João; tu serás chamado Cefas’ (que quer dizer: Pedra)» (v. 42). É interessante que o evangelista não concede a palavra a Simão. O entusiasmo era todo de André. Subentende-se uma admiração silenciosa e imóvel de Pedro, a ponto de ser necessário um encorajamento de Jesus com o acréscimo do nome Cefas (Pedra - Pedro). Assim, o grupo dos seguidores se ampliava quando a experiência vivida era compartilhada.

Que o anúncio da palavra em nossas comunidades gere inquietações e inconformismos e, assim, possamos buscar o conhecimento de Jesus fazendo a experiência de comunhão de vida com a sua pessoa, indo aonde ele mora e levando-nos a reconhecê-lo no encontro com os irmãos e irmãs. Só Ele comunica vida em plenitude. E essa vida não pode ser experimentada pela mera repetição de fórmulas doutrinais, mas somente no encontro com a sua pessoa.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sexta-feira, janeiro 05, 2024

REFLEXÃO PARA A FESTA DO BATISMO DO SENHOR – MARCOS 1,7-11 (ANO B)

 


A festa do batismo de Jesus marca a conclusão do tempo do Natal, tanto nas dimensões cronológica e teológica. Neste ano, por uma questão de adaptação do calendário litúrgico, ela é celebrada na segunda-feira após a epifania. Por estarmos vivenciando o ciclo litúrgico B, o evangelho proposto neste ano é Mc 1,7-11. O batismo de Jesus é o marco inaugural da sua vida pública, ou seja, do seu ministério. Se trata de um evento programático, no qual são reveladas, antecipadamente, a identidade de Jesus e as principais coordenadas da sua missão. A nível de introdução e contexto, é importante recordar que o batismo é um dos eventos narrados pelos evangelhos que os estudiosos vêem com maior probabilidade de ter sido, realmente, um fato histórico da vida de Jesus. Contribui para essa visão o fato de ser um dos poucos acontecimentos presentes nos quatro evangelhos: explicitamente nos três sinóticos (Mt 3,13-17; Mc 1,9-11; Lc 3,21-22) e implicitamente em João (1,19-34). O fato de estar presente nos quatro evangelhos, não significa uniformidade. Cada evangelista narrou o batismo à sua maneira, adaptando os dados tradicionais às suas habilidades literárias e às necessidades de suas respectivas comunidades. Além dessa pluralidade literária, o que mais tem contribuído para a aceitação do batismo de Jesus como um acontecimento real são os problemas de interpretação deste evento desde as primeiras gerações cristãs. Ora, se não se tratasse de um fato histórico e importante da vida de Jesus, certamente os evangelistas o teriam omitido em seus escritos.

Os principais problemas e questionamentos suscitados pela presença do batismo nos evangelhos, observados por teólogos e exegetas, são os seguintes: sendo o batismo um rito de purificação destinado a pecadores arrependidos, por que Jesus passou por esse rito se não era pecador? Supondo que o ministro do batismo tem autoridade sobre a pessoa batizada, porque Jesus aceitou ser batizado por João, se era superior a ele? Questões desse tipo surgiram muito cedo. Por isso, acredita-se que dificilmente os relatos evangélicos teriam recordado um evento tão problemático se não fosse realmente importante e histórico. A historicidade do evento, no entanto, não isenta o relato de conter artifícios literários e elementos simbólicos. Na verdade, os relatos evangélicos contêm a interpretação teológica do evento, e não uma mera crônica descritiva. Ao colocá-lo como marco inaugural do ministério de Jesus, os evangelistas – especialmente os sinóticos (Mt, Mc e Lc) – apresentaram o batismo como um evento de revelação, revestindo-o de elementos típicos de teofanias do Antigo Testamento, como veremos na sequência da reflexão. Como na maioria dos episódios comuns aos demais evangelhos, o relato do batismo em Marcos é marcado pela brevidade e sobriedade. O mesmo acontece com a apresentação da missão de João Batista, a qual contém apenas uma breve síntese da sua atividade batizadora (Mc 1,2-6) e uma pequena descrição da sua pregação (Mc 1,7-8).

Feitas as devidas considerações a nível de contexto, iniciamos o estudo do texto, propriamente, cujos dois primeiros versículos correspondem à pregação de João: «João Batista pregava, dizendo: ‘Depois de mim virá alguém mais forte do que eu. Eu nem sou digno de me abaixar para desamarrar suas sandálias. Eu vos batizei com água, mas ele vos batizará com o Espírito Santo’» (vv. 7-8). Nesses dois versículos estão todas as palavras de João no evangelho de Marcos. Percebe-se a sobriedade acenada anteriormente; faltam os elementos apocalípticos e a mensagem ameaçadora, presentes em Mateus e Lucas. Temos em Marcos a imagem de um precursor mais manso, cuja pregação se limita ao anúncio de Jesus, apresentado como o “Mais forte”, uma expressão que revela um dos traços da identidade de Deus no Antigo Testamento (Dt 10,17; Jr 32,18; Dn 9,4; Is 49,24). A expressão “depois de mim” (em grego: όπίσω μου – opísso mú) possui um sentido que vai além de uma indicação temporal, sobretudo na obra de Marcos, pois está relacionada ao seguimento, ou seja, ao discipulado (cf. Mc 1,17; 8,33). Certamente, nesse trecho, indica que Jesus foi discípulo de João, antes de constituir o seu próprio movimento.

Apesar de tê-lo entre os seus discípulos, João reconhece a superioridade de Jesus: «Eu nem sou digno de me abaixar para desamarrar suas sandálias». Ora, desamarrar as sandálias do outro era um gesto bastante humilhante, que competia aos escravos. Inclusive, somente aos escravos estrangeiros, em Israel; os escravos hebreus eram dispensados deste serviço, tendo em vista a humilhação que tal gesto representava. Essa declaração atribuída a João, mostrando a superioridade de Jesus em relação a ele, revela a preocupação das lideranças das primeiras comunidades para que não houvesse confusão e nem dúvidas em relação ao verdadeiro Messias. É inegável que João chegou a ser confundido com o Messias. Por isso, os evangelistas insistem tanto em apresentar João em condição inferior. Alguns exegetas vêem essa expressão também como alusão ao à lei do levirato (cf. Lv 25,5-10; Rt 3,5-11), mas essa relação é mais provável no Evangelho segundo João, cuja chave de leitura principal é a metáfora do matrimônio. Na tradição sinótica, trata-se mesmo de uma declaração da humildade de João e da superioridade de Jesus em relação a ele.

A distinção entre os dois personagens se torna ainda mais clara quando o próprio João declara a provisoriedade do seu batismo e a superioridade do batismo que Jesus realizará: «Eu vos batizei com água, mas ele vos batizará com o Espírito Santo» (v. 8). A água era um sinal externo de purificação e penitência; é um elemento que não penetra no íntimo da pessoa, permanece na exterioridade. O batismo com o Espírito Santo significa que esse batismo penetra no íntimo da pessoa, transformando-a interiormente. Aqui, fica clara, mais uma vez, a sobriedade do relato de Marcos com a ausência dos elementos apocalípticos na pregação de João; em Lucas, por exemplo, acrescenta-se o fogo como característica do batismo de Jesus (cf. Lc 3,16). A distinção entre os dois batismos era muito necessária para as primeiras comunidades; até mesmo quando João não era mais confundido com o Messias, o seu batismo continuava sendo realizado como se fosse o batismo cristão; muita gente não compreendia a diferença, e isso gerava confusão em algumas comunidades, como em Éfeso, por exemplo (cf. At 19,1-7). É por isso que os evangelistas insistiram tanto com essa distinção.

Tendo apresentado João e sua missão, com o devido cuidado para não ser confundido com o Messias, o evangelista passa a apresentar Jesus e sua missão, cujo marco inaugural é o batismo: «Naqueles dias, Jesus veio de Nazaré da Galileia e foi batizado por João no rio Jordão» (v. 9). Apesar de solene, a expressão temporal “naqueles dias” é bastante genérica e vaga. O mais importante, no entanto, é o que se diz em seguida: a procedência de Jesus. É exatamente aqui que começa a revolução de valores do Evangelho de Marcos, que é uma narrativa contra hegemônica. Ora, no primeiro versículo da obra, Jesus fora apresentado como o Cristo (Messias) e Filho de Deus (cf. Mc 1,1); o Batista tinha acabado de apresentá-lo como o “Mais forte” (v. 7); de repente, o evangelista traz um dado que parece contradizer esses predicados: Jesus vem de Nazaré da Galileia, um lugar desprezível e sem importância. Essa afirmação é chocante. A Galileia era considerada uma terra semi-pagã pelos judeus ortodoxos; seus habitantes eram considerados gente da pior espécie. Nazaré era uma aldeia tão sem importância, que não é mencionada uma única vez no Antigo Testamento.

Jesus vem do lugar mais improvável para um Messias e Filho de Deus, e isso é desconcertante. Inclusive, outros evangelistas, como Mateus e Lucas, ilustraram seus relatos com longas genealogias, para relacionar Jesus com os grandes personagens da história de Israel (cf. Mt 1,1-17; Lc 3,23-38), e ainda localizaram o seu nascimento em Belém, nas proximidades de Jerusalém, a cidade mais importante da região, conferindo, assim, melhores credenciais ao Nazareno. Iniciando sua apresentação de Jesus com características tão depreciativas para a época, Marcos deixa claro que sua narrativa será marcada pelo contraste entre centro e periferia. É a partir desse contraste que ele apresentará Jesus como o Messias e Filho de Deus, identificado com os últimos, os pequenos e marginalizados da história, com quem se fez solidário desde o início da sua missão, ao aceitar ser batizado por João. Ora, se o Batista fora apresentado com características humildes, também o gesto de Jesus se submeter ao seu batismo é uma grande demonstração de humildade.

Na continuidade, diz o texto que «E logo, ao sair da água, viu o céu se abrindo, e o Espírito, como pomba, descer sobre ele» (v. 10). A abertura dos céus é uma imagem comum na literatura judaica bíblica e extra bíblica. Significa, antes de tudo, a disposição de Deus em se comunicar com a humanidade. Quando os tempos estavam muito difíceis, imaginava-se que Deus tinha fechado os céus e não mais se comunicava com a humanidade. Quando o profeta Isaías (Terceiro Isaías) se lamenta do julgo da dominação persa, após o exílio, expressa o desejo de ver “os céus se rasgando para Deus descer em socorro” (cf. Is 63,19). A abertura do céu no evangelho de hoje, portanto, significa que em Jesus a comunicação entre Deus e a humanidade é restabelecida definitivamente. Já a imagem do Espírito descendo como pomba é uma novidade na linguagem bíblica, embora alguns estudiosos tenham tentado conciliar essa imagem com o “pairar” do Espírito de Deus sobre as águas no princípio da criação (cf. Gn 1,2), ou com a pomba que Noé soltou da arca durante o dilúvio (cf. Gn 8,8); essas interpretações, no entanto, já não são mais convincentes. O acontecimento é inovador em tudo, até mesmo na simbologia.

As imagens mais usadas para o Espírito de Deus na Bíblia são o fogo e o vento (cf. At 2,1-13). Porém, tanto o fogo quanto o vento, simbolizam o Espírito Santo pela força e a capacidade de criação e transformação; em Jesus essas imagens não teriam sentido, pois o Espírito não desceu sobre ele para transformá-lo, mas apenas para confirmá-lo como o Filho amado do Pai, e para tornar pública essa confirmação. O Espírito preenche e transforma quem é carente dele; em quem já o possui em plenitude, como Jesus, apenas confirma. Desde a sua geração na eternidade, e encarnação no ventre de Maria, Jesus já possuía o Espírito Santo em plenitude. A pomba evoca serenidade, tranquilidade, paz e consolo; não causa assombro algum; é esse o sentido da manifestação do Espírito com essa forma no batismo de Jesus: ele não foi transformado pelo Espírito naquele momento, porque já era fruto desse mesmo Espírito.

Mais importante do que a imagem em si é a comunicação restabelecida entre a humanidade e Deus, não passando mais pela mediação das lideranças religiosas de Jerusalém, mas somente pela pessoa de Jesus. O céu se abre, Deus fala e afirma que o “seu bem-querer”, ou seja, a sua satisfação, não está nos inúmeros sacrifícios oferecidos no templo de Jerusalém, mas no seu Filho Amado. Mesmo com ecos antico-testamentários (cf. Is 42,1; Sl 2,7), a afirmação de Deus aqui é completamente nova de significado, superando todas as expectativas e promessas: «E do céu veio uma voz: ‘Tu és o meu Filho amado, em ti ponho meu bem-querer» (v. 11). O Messias que povo das expectativas tradicionais era apenas um servo de Deus e filho de Davi, o que seria um mediador a mais. Deus envia o seu próprio Filho como único mediador. A voz que sai do céu significa Deus falando diretamente com a humanidade e que tem prazer por Jesus realizar a sua vontade. Isso é realmente a inauguração de um novo tempo.

Que a recordação do batismo de Jesus reforce em nós a necessidade de estarmos em sintonia com o Pai, ouvindo a sua voz com sensibilidade aos impulsos do Espírito Santo que se manifesta nas diversas situações cotidianas. Que sejamos confirmados como filhos e filhas de Deus, em seu amor, para viver como irmãos e irmãs, à maneira de Jesus de Nazaré, o Filho Amado que fez apenas o bem por onde passou (cf. At 10,38).

Pe. Francisco Cornélio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

REFLEXÃO PARA O 4º DOMINGO DA PÁSCOA – JOÃO 10,11-18 (ANO B)

O evangelho do quarto domingo da páscoa é sempre tirado do capítulo décimo do Evangelho de João, no qual Jesus se auto apresenta como o ún...