sábado, dezembro 29, 2018

REFLEXÃO PARA A FESTA DA SAGRADA FAMÍLIA – LUCAS 2,41-52 (ANO C)





Na continuidade da oitava de natal, a Igreja celebra hoje a festa da Sagrada Família: Jesus Maria e José. Por isso, o evangelho proposto pela liturgia é Lc 2,41-52, trecho que narra o episódio conhecido popularmente como “a perda e o encontro de Jesus no templo de Jerusalém”, quando tinha doze anos. Esse é o último episódio da primeira parte do Evangelho segundo Lucas, conhecida como “evangelho da infância” (cf. Lc 1 – 2), o que reforça ainda mais a sua importância, pois funciona como transição entre a infância e a vida pública de Jesus; nessa transição, o evangelista antecipa muitos aspectos importantes de sua teologia. Por isso, o objetivo de Lucas, ao narrar este episódio, não é apresentar um tratado sobre a família, mas mostrar elementos do cotidiano de Jesus, compreendendo seus costumes, o ambiente em que foi criado com suas tradições e, sobretudo, como ele sempre esteve atento “às coisas do Pai” sem, no entanto, negar a sua condição humana. Se o objetivo do evangelista fosse simplesmente apresentar o retrato de uma família perfeita, certamente teria contado a história de outra maneira, omitindo alguns elementos do relato atual.

Além de ser um dos evangelhos mais tardios, e escrito provavelmente fora da Palestina, Lucas convivia com um cristianismo muito entusiasta do anúncio do Cristo Ressuscitado e glorioso, a ponto de quase esquecer que, mesmo sendo o Filho de Deus, Jesus de Nazaré foi um ser humano, nascido de uma mulher e crescido em uma família normal, conforme as condições e os costumes da época. Por isso, é Lucas o evangelho que mais fala da infância de Jesus e da convivência com seus pais. Para apresentar Jesus inserido na cultura e na tradição do seu povo, o evangelista apresenta seus pais como fiéis devotos judeus; por isso, diz que iam todos os anos a Jerusalém, para a festa da Páscoa” (v. 41). Conforme a lei, os judeus adultos tinham a obrigação de ir a Jerusalém para as três grandes festas anuais: páscoa, a festa das tendas e pentecostes (cf. Dt 16,16); porém, esse preceito era obrigatório apenas para as pessoas adultas e do sexo masculino.

A peregrinação anual da família completa de Jesus mostra o quanto seus pais eram fiéis observantes e cumpridores dos preceitos religiosos de então. Além disso, ainda antecipam as obrigações do filho: “Quando ele completou doze anos, subiram para a festa, como de costume” (v. 42). A idade mínima exigida para que o filho homem começasse a participar publicamente da vida religiosa era treze anos; evangelista apresenta a precocidade de Jesus para contrastá-lo com as outras crianças da época, mostrando que ele era portador de traços diferenciados. A festa inteira da páscoa durava uma semana, mas raramente os peregrinos pobres passavam todos os sete dias em Jerusalém; geralmente, passavam dois ou três dias e voltavam; o importante era passar pela cidade santa naquele período. O evangelista parece reforçar a piedade de José e Maria, fazendo supor que eles passaram todo o período da festa em Jerusalém, mas ao mesmo tempo mostra uma grande falta de atenção para com o filho: “Passados os dias da Páscoa, começaram a viagem de volta, mas o menino Jesus ficou em Jerusalém, sem que seus pais o notassem” (v. 43). Se o objetivo do evangelista fosse apresentar uma crônica exata dos acontecimentos e a exemplaridade do casal, certamente teria omitido esse detalhe.

Durante a páscoa, a população de Jerusalém triplicava com a grande quantidade de peregrinos que por lá passavam, tornando a cidade quase intransitável, o que exigia muito cuidado dos pais para com os filhos, para que não se perdessem. Somente pais muito desatentos iniciariam a viagem de volta sem dar-se conta do sumiço do filho; e o evangelista ainda diz mais: “Pensando que ele estivesse na caravana, caminharam um dia inteiro. Depois começaram a procurá-lo entre os parentes e conhecidos” (v. 44). Era costume, nas caravanas, que as crianças e as mulheres caminhassem à frente dos homens; porém, qualquer mãe atenta se certificaria da presença de um filho antes de iniciar uma viagem longa e perigosa como aquela de Jerusalém para Nazaré. Depois de um dia inteiro de caminhada, os pais de Jesus “não o tendo encontrado, voltaram para Jerusalém à sua procura” (v. 45). Supõem-se que já estivessem bastante longe, após um dia inteiro de caminhada; porém, o interesse do evangelista é teológico e catequético e, como sabemos, o movimento e o colocar-se em caminho é um tema muito caro para Lucas, do início ao fim de sua dupla obra (Evangelho e Atos dos Apóstolos).

O evangelista quer ensinar que encontro autêntico com Jesus é consequência de uma busca que todas as pessoas devem fazer, independente da familiaridade com ele. Nas comunidades do evangelista havia muitas pessoas seguras em si mesmas, fechadas em suas convicções, e outras muito vulneráveis e sem ânimo para acolher a boa nova; diante disso, Lucas insiste que é necessário buscar sempre o Senhor, pois ele não é posse de ninguém, como não foi sequer da sua família. Até mesmo quem conviveu com ele, como seus pais, tiveram que procurá-lo e só o encontravam depois de um certo esforço: “Três dias depois, o encontraram no Templo. Estava sentado no meio dos mestres, escutando e fazendo perguntas” (v. 46). Com essa cena, o evangelista antecipa o drama da comunidade dos discípulos na próxima vez em que Jesus for a Jerusalém para celebrar também a páscoa: após o drama da paixão, só o reencontrarão no terceiro dia, ressuscitado. Assim, o evangelista reforça ainda mais, para a sua comunidade, a continuidade entre Jesus de Nazaré, o filho de Maria e José, e o Senhor ressuscitado.

Chama a atenção o local e o contexto em que os pais de Jesus o encontraram: no templo, interagindo com os mestres da lei e conhecedores das Escrituras. Além dos mestres, os interlocutores, supõem-se que havia também um público considerável assistindo ao debate entre o adolescente e os mestres: “Todos os que ouviam o menino estavam maravilhados com sua inteligência e suas respostas” (v. 47). Durante as festas, era normal que os mestres rabinos se apresentassem com seus discípulos, exibindo conhecimento e domínio da lei entre as colunas do templo, muitas vezes apenas para chamar a atenção dos peregrinos; porém, esses iam com perguntas e respostas previamente ensaiadas entre eles, para evitar constrangimentos. Como Jesus era muito novo e não fazia parte de nenhuma escola, a sua desenvoltura chamava a atenção de todos. Nesse aspecto também, há uma antecipação da sua futura atuação: o curto ministério em Jerusalém, na semana da paixão, será marcado por discussões doutrinais com os mestres da lei, escribas e sacerdotes (cf. Lc 20 – 21).

Diante de uma cena como essa: um menino de Nazaré, uma aldeia pobre e distante, discutindo com a elite intelectual do judaísmo, quem mais tinha motivos para se admirar eram os seus pais, como afirma o evangelista: “Ao vê-lo, seus pais ficaram muito admirados e sua mãe lhe disse: “Meu filho, por que agiste assim conosco? Olha que teu pai e eu estávamos, angustiados, à tua procura” (v. 48). Na perspectiva de Lucas, Maria é quem assume a liderança da família, dando protagonismo à mulher. Além da admiração com a cena inusitada, a mãe repreende o filho pela situação desagradável e preocupação que os fez passar. A incompreensão dos pais, aqui, é um sinal de que não será fácil também para os discípulos compreenderem Jesus com suas opções. A aceitação e a compreensão de Jesus e sua mensagem é um processo longo; no início, os pais, durante a vida pública, os discípulos, todos têm dificuldade de compreender Jesus.

Em resposta à reação de seus pais e às repreensões da mãe, o autor faz Jesus falar pela primeira vez neste evangelho: “Jesus respondeu: “Por que me procuráveis? Não sabeis que devo estar na casa de meu Pai?” (v. 49). Numa crônica descritiva de um modelo de família, certamente também essa resposta de Jesus teria sido omitida. Em público, diante dos mestres e dos demais ouvintes, ele responde à mãe como um adolescente meio rebelde e malcriado; uma criança obediente, apenas baixaria a cabeça e, se respondesse, seria um pedido de desculpas aos pais pelo preocupação e constrangimento causados. Essa resposta, no entanto, consiste na primeira revelação que Jesus faz de sua identidade; até então, sua identidade divina tinha sido revelada pelo anjo (cf. 1,28-35; 2,10), por Isabel (cf. 1,42-43), por Zacarias (cf. 1,67-79) por Ana e Simeão (cf. 2,25-40); dessa vez, foi o próprio Jesus que falou de si. Ele não dispensa seus pais terrenos, mas afirma que é a Deus que deve obedecer e fazer a sua vontade. Na verdade, Jesus não fala em “casa do Pai”, como consta na tradução litúrgica, mas em “coisas do Pai”; até porque, no futuro ele defenderá a destruição do templo. Em resposta à sua mãe, ele diz que deve estar tratando “do que é do Pai”, provavelmente contestando a doutrina dos mestres da lei que ofuscava a identidade do Pai.

Em relação aos seus pais, Maria e José, é claro que “Eles, porém, não compreenderam as palavras que lhes dissera” (v. 50), mas Maria se antecipa, mais uma vez, como modelo de discípula: “Sua mãe porém, conservava no coração todas estas coisas” (v. 51b). Para ser verdadeiro discípulo ou discípula, o mais importante não é a compreensão, mas a disposição e a capacidade de conservar no coração aquilo que é essencial: a fé, a confiança em Deus e a disponibilidade para o serviço, mesmo sem compreender. Mais uma vez, o evangelista reforça a inserção e pertença de Jesus à sua família: “Jesus desceu então com seus pais para Nazaré, e era-lhes obediente” (v. 51a), mostrando que isso não o impedia de ser também o Filho de Deus; por isso, sintetiza o seu crescimento nas duas dimensões, a humana e a divina: “E Jesus crescia em sabedoria, estatura e graça, diante de Deus e diante dos homens” (v. 52). Que possamos aprender a cuidar e tratar somente das coisas do Pai, como Jesus, e a conservar tudo no coração, mesmo sem compreender tudo, como Maria e os demais discípulos.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, dezembro 22, 2018

REFLEXÃO PARA O QUARTO DOMINGO DO ADVENTO – LUCAS 1,39-45 (ANO C)




A preparação para o natal do Senhor, proposta pelo advento, se torna mais intensa à medida em que a sua conclusão se aproxima. Nesse sentido, é importante evidenciar os personagens humanos que Deus escolheu para intermediarem a transição entre as duas etapas da história da salvação: a antiga, baseada na lei e na expectativa do cumprimento de tantas promessas, e a nova, fundada em Jesus, o Cristo, nascido de Maria, ápice da comunicação entre Deus e a humanidade, e cumprimento das antigas promessas de salvação. Enquanto no último domingo a liturgia destacava a figura de João, o Batista, e os efeitos de sua pregação, o evangelho de hoje – Lucas 1,39-45 – destaca o encontro e o papel de duas mulheres, Maria e Isabel, evidenciando cada vez mais as preferências e opções de Deus pelo que aparenta ser mais frágil e inútil, como era vista a mulher na época da cena narrada no evangelho. Para transformar o mundo, Deus não chama os grandes e potentes, e sim os/as humildes e pequenos(a); a escolha de Maria para ser mãe de seu Filho, não por suas qualidades, e sim pela sua pequenez e simplicidade, é a maior demonstração, e o evangelho de hoje nos ajuda a perceber isso, ao colocar duas simples mulheres juntas em diálogo, como as primeiras a compreender e perceber o início de uma nova história e de um mundo novo.

O texto – Lucas 1,39-45 – narra o episódio tradicionalmente chamado de “visitação”; se trata de um texto bastante conhecido, muito utilizado nas solenidades e festas marianas com o acréscimo dos versículos que compreendem o Magnificat (cf. Lc 1,46-56). Hoje, especificamente, a liturgia utiliza apenas os versículos que tratam da apressada viagem de Maria e o seu encontro com Isabel (vv. 39-45). Esse é o episódio que sucede de imediato ao anúncio do anjo; é importante perceber a relação entre os dois episódios para melhor compreender o texto de hoje. Com o anúncio do anjo, Maria ficou espantada, e com razão (cf. Lc 1,29). Ora, como é possível uma jovem virgem ser mãe sem ter relação com um homem? À primeira vista, a notícia do anjo representou uma tragédia para Maria, colocando em risco seu futuro matrimônio, uma vez que ela já estava comprometida com José. Corajosamente, Maria questionou o mensageiro divino, pediu-lhe explicação (cf. Lc 1,34). O próprio anjo tratou de acalmá-la, mostrando que tudo o que estava acontecendo era iniciativa do Deus que faz coisas impossíveis, agindo contra a lógica humana; ainda deu um exemplo: Isabel, uma mulher anciã e estéril já estava no sexto mês de gravidez (cf. Lc 1,3-37); esse exemplo parece ter ajudado a convencer Maria de que também nela poderia acontecer algo de maravilhoso e fora dos padrões e esquemas tradicionais; por isso, respondeu sim, tomando uma decisão corajosa e ousada. A mulher, na época, não tinha poder de decisão sobre nada; sendo solteira, deveria consultar o pai ou o irmão mais velho, antes de qualquer decisão, sendo casada, consultava o marido. A decisão de Maria, sozinha, representa um grande passo para o protagonismo da mulher na história, que Lucas introduz em seu Evangelho. Esse protagonismo é evidenciado no evangelho de hoje, ao colocar duas mulheres como protagonistas da cena.

Diz o texto que “Naqueles dias, Maria partiu para a região montanhosa, dirigindo apressadamente, a uma cidade da Judeia” (v. 39). O indicativo temporal “naqueles dias” revela a relação e a continuidade deste episódio com os anteriores, na trama narrativa de Lucas; quer dizer que pouco depois da anunciação do anjo “Maria partiu”. O texto não diz quais foram os motivos da partida de Maria; muitos interpretam como a vontade de Maria colocar-se a serviço do próximo, no caso, da sua parenta Isabel; porém, o texto não evidencia nem sinaliza para isso. O destino também é vago e genérico: “a uma cidade da Judeia”, na “região montanhosa”. Partir, sair de si “apressadamente”, é a postura de quem acolhe a salvação oferecida por Deus, postura essa assumida por Maria. Dizer sim aos propósitos de Deus, como fez Maria, é deixar-se transformar pela sua Palavra. Quem sente a ação de Deus em sua vida, põe-se em marcha, não permanece na mesma posição, nem com a mesma mentalidade; é isso que o evangelista quer destacar. Como a concepção de Isabel foi colocada pelo anjo como exemplo de que nada é impossível para Deus, a viagem de Maria pode também ser interpretada como expressão da sua curiosidade e vontade de comprovar a veracidade do anúncio. Além disso, há uma clara intenção de Lucas de colocar as duas mães juntas: a jovem e a anciã, a virgem e a estéril, reforçando que, nas contradições da história, Deus se manifesta; além disso, colocando juntas as mães, também os filhos se encontram, os protagonistas implícitos da cena.

Ao colocar Maria em viagem, Lucas antecipa um dos temas mais fortes da sua teologia: o caminho como figura da dinâmica do Reino e da Palavra de Deus. Desde essa visita de Maria até chegada de Paulo prisioneiro em Roma (cf. At 28), Lucas faz de sua dupla obra – Evangelho e Atos dos Apóstolos – um itinerário da Palavra; mesmo encontrando obstáculos, a Palavra não pode ficar presa em nenhuma estrutura; ela deve ecoar sempre. Maria se torna, assim, modelo antecipado do discipulado que Jesus formará logo no início da sua vida pública. O evangelista não perde tempo descrevendo a viagem, e logo diz que Maria chegou ao destino e “Entrou na casa de Zacarias e cumprimentou Isabel” (v. 40), porque seu objetivo é mostrar a chegada da Boa-Nova e seus efeitos. Zacarias, o esposo de Isabel, foi o primeiro destinatário do anúncio do anjo (cf. Lc 1,8-23), mas não acreditou, por isso aqui é um personagem secundário. O evangelista quer mostrar a experiência de fé das duas mulheres sendo partilhada.  A fé transformadora vivida por cada uma das mulheres não pode ficar oculta, por isso o evangelista coloca as duas frente a frente; e essa fé, quando partilhada, cresce e se fortalece, como mostra a sequência do texto: a companhia de Maria faz aumentar as convicções da fé de Isabel e, consequentemente, de Maria, culminando no Magnificat (cf. Lc 1,46-56), a sua explosão de louvor a Deus.

O evangelista não revela o conteúdo da saudação de Maria, mas certamente foi o tradicional shalom hebraico, saudação típica do povo judeu. Como modelo de discípulo e discípula, Maria antecipa o que Jesus pedirá aos seus discípulos quando enviá-los: “Em qualquer casa em que entrardes, dizei primeiro: paz para esta casa” (Lc 10,5). Essa saudação não é mero palavreado, mas é comunicação de vida, doação de amor e de energia transformadora, por isso “Quando Isabel ouviu a saudação de Maria, a criança pulou no seu ventre e Isabel ficou cheia do Espírito Santo” (v. 41). Mãe e filho, cada qual preenchidos pelo Espírito Santo, reagem, cada um à sua maneira e conforme as suas possibilidades: o filho, pulando no ventre, a mãe com palavras, tornando-se verdadeira profetisa. De fato, após a saudação de Maria, o evangelista dá a palavra a Isabel que faz grandes declarações de fé e alegria diante de tudo o que tem contemplado em sua vida, e com razão. Ora, como Zacarias tinha ficado mudo, devido a sua incredulidade diante do anúncio do anjo (cf. Lc 1,20), Isabel já não tinha com quem dialogar sobre os últimos acontecimentos; precisava de alguém que lhe ouvisse, por isso, é só ela quem fala na cena: “Com grande grito, exclamou: “Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre! Logo que a tua saudação chegou aos meus ouvidos, a criança pulou de alegria em meu ventre. Como posso merecer que a mãe do meu Senhor me venha visitar? Bem-aventurada aquela que acreditou, porque será cumprido o que o Senhor lhe prometeu” (vv. 42-45). Inspirada no Antigo Testamento, Isabel expressa a imensa alegria de ser contemplada com os favores de Deus, sendo alvo da sua misericórdia. A sua anterior condição de estéril era motivo de vergonha e humilhação; ninguém lhe dirigia a palavra, a não ser com insultos, e ninguém a escutava. O menino concebido em seu ventre provocava um verdadeiro êxodo em sua vida, transformando-a em mulher livre.

Lucas construiu o discurso de Isabel recorrendo ao Antigo Testamento para mostrar, sobretudo, o cumprimento das antigas promessas, e o começo da distinção entre João Batista e Jesus. A primeira declaração é também a primeira bem-aventurança do Evangelho de Lucas; as bem-aventuranças proclamadas por Jesus serão expressão do retrato ideal do seu discipulado; aqui, Maria é, antecipadamente, proclamada a discípula ideal; ora, a missão do discípulo e discípula de Jesus consiste em torná-lo presente onde quer que o discípulo esteja. Por isso, Isabel reconhece Maria como a primeira bem-aventurada, pois a partir do ventre, ela já era portadora de salvação. Quem interpretava os sinais de Deus na história eram os sacerdotes e mestres da lei; Lucas inverte a ordem das coisas e mostra uma mulher, até pouco tempo vista como amaldiçoada, devido a esterilidade, percebendo e interpretando os sinais de Deus presentes, não mais nas estruturas faraônicas do templo, mas na simplicidade de outra humilde mulher. Já consciente de ser a mãe do precursor, e feliz por isso, Isabel reconhece que Maria é a mãe do Senhor. Como estéril, Isabel era vista como esquecida por Deus; cheia do Espírito Santo, reconhece hospedeira o Senhor, presente no ventre de sua mãe, Maria. Uma verdadeira reviravolta na história. É a expressão dos(a) humildes que reconhecem reciprocamente suas forças, seus valores e seu poder de transformação quando se dispõem a viver conforme a Palavra de Deus.

Isabel identifica o motivo da bem-aventurança de Maria e o que a habilita como modelo de discípula: a fé, pois é “Bem-aventurada aquela que acreditou”. De fato, o texto bíblico, sobretudo o Evangelho segundo Lucas, aquele que mais fala sobre ela, não apresenta um currículo da vida de Maria como atrativo para o chamado de Deus; apenas a apresenta como alguém que foi agraciada por Deus e, diante disso, respondeu sim, deu uma adesão de fé. E, como mostra a Bíblia, Deus costuma escolher o que é historicamente rejeitado, excluído e humilhado. Isabel reconhece em Maria o exemplo maior de fé, antecipando a dinâmica do Reino que será anunciado por Jesus e continuado pelos seus discípulos e discípulas de todos os tempos.


Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, dezembro 15, 2018

REFLEXÃO PARA O TERCEIRO DOMINGO DO ADVENTO – LUCAS 3,10-18 (ANO C)




No terceiro domingo do advento, a liturgia nos apresenta, mais uma vez, a figura de João Batista, profeta importante que anuncia, prepara e até antecipa a missão de Jesus. Neste itinerário catequético-espiritual proposto pelo advento, conhecer a missão e a mensagem de João é, portanto, imprescindível, pois ele se aproxima verdadeiramente de Jesus. Por isso, a liturgia propõe Lucas 3,10-18 como o texto evangélico para hoje. No domingo passado foi feita uma introdução à missão de João: a Palavra de Deus lhe foi dirigida no deserto, nos tempos do imperador Tibério e dos sacerdotes Anás e Caifás (cf. Lc 3,1-2), confirmando as opções de Deus pelas margens e a intolerância com os sistemas de poder vigentes na época; o evangelista afirmava que João pregava um batismo de conversão, apresentando-se como a voz de quem clama no deserto (cf. Lc 3,3-6); citando o profeta Isaías (cf. Is 40,3-5). O conteúdo da pregação de João foi saltado pela liturgia (cf. Lc 3,7-9), mas, pela reação dos seus ouvintes no evangelho de hoje, sabemos repercutiu, causou grandes efeitos em quem o escutou.

Certamente, nem todas as pessoas gostaram da pregação de João, afinal, até de “raça de víboras” ele chamou os seus ouvintes (cf. Lc 3,7); porém, é certo que muita gente se interessou pelo seu ensinamento, percebendo que o modelo vigente de religião, controlado pela hierarquia do templo de Jerusalém, conivente com a dominação romana, já não permitia um encontro verdadeiro com Deus; o templo tinha se transformado em mercado, como Jesus vai denunciar em seu ministério. Por isso, muitas pessoas que escutaram, interessadas em conhecer mais, o procuraram, perguntando “o que devemos fazer?”, para assimilar melhor o novo jeito de relacionar-se com Deus. A curiosidade dessas pessoas mostra a decadência da antiga religião e como os caminhos estavam, realmente, sendo aplainados para a vinda do Senhor ao encontro da humanidade. O evangelho de hoje apresenta a reação de três grupos de ouvintes da pregação de João, e as respostas concretas do próprio João a esses grupos. Assim, de uma pregação ampla e generalizada, João passa a uma mais particularizada, de acordo com as situações específicas de quem lhe procurava.

Olhemos, então, para o texto: “As multidões perguntavam a João: ‘Que devemos fazer?” (v. 10). Supõe-se que se trate de um grupo amplo e diversificado, mas composto majoritariamente por gente simples e pobre, como as multidões que seguirão Jesus na sequência do evangelho. A pergunta reflete um sincero desejo de acolher a proposta de conversão apresentada por João para entrar na nova dinâmica da salvação. É surpreendente a resposta de João: “Quem tiver duas túnicas, dê uma a quem não tem; e quem tiver comida faça o mesmo!” (v. 11); ora, ele estava anunciando um batismo de conversão e, na época, o que os líderes religiosos exigiam como sinais de conversão era o jejum, a intensidade na oração, a penitência, a oferta de sacrifícios no templo, uma solene profissão de fé e, por último, a esmola. A resposta de João é uma novidade para as multidões, embora esteja alinhada à pregação dos profetas do Antigo Testamento, mas que tinha sido ofuscada pela hierarquia sacerdotal interessada em lucrar às custas dos sacrifícios oferecidos no templo. Alimento e vestimenta são necessidades básicas de cada pessoa, coisas do cotidiano, e conversão é algo concreto, diz respeito ao modo de gerir a vida e a relação com o próximo; assim, é convertido quem não pensa em acumular e partilha com o próximo, não o que lhe sobra, mas o que o próximo necessita. João parte do que é mais simples: roupa e alimento, para mostrar que a partilha é indispensável, até mesmo para os que tem pouco.

Na sequência, o texto apresenta, de modo surpreendente, membros de dois grupos específicos também sedentos de conversão e interessados pela proposta de João: cobradores de impostos e soldados (cf. vv. 12-14). É claro que nem todos os cobradores de impostos e soldados estavam ali, mas é importante perceber a presença e o interesse de membros desses dois grupos pela pregação de João. Ambos os grupos, eram colaboradores diretos da administração romana e, por isso, muito mal vistos pelo povo, inclusive excluídos da religião, principalmente os cobradores de impostos; somente Lucas apresenta esses grupos interessados em conversão, o que reforça a sua teologia de universalidade da salvação: ninguém é excluído pela condição social, étnica ou religiosa; a salvação é oferecida a toda a humanidade, e não a grupos privilegiados específicos. No decorrer da sua obra, Lucas vai mostrar a salvação sendo acolhida por cobradores de impostos e soldados (cf. Lc 5,27-39; 19,1-10; At 10,1-48).   

A pergunta dos cobradores de impostos e dos soldados é a mesma das multidões: “O que devemos fazer?”; na verdade, essa pergunta funciona como um refrão neste trecho do evangelho, e como um convite do evangelista aos seus leitores de todos os tempos para também se perguntarem sobre o que se deve fazer para viver o Evangelho e fazer o Reino de Deus acontecer; todos tem responsabilidade e podem colaborar nesse processo.  Também dos cobradores de impostos, João não exige penitência nem sacrifícios, mas apenas justiça: “Não cobreis mais do que foi estabelecido” (v. 13). Por serem representantes do opressivo sistema de dominação romano, os cobradores de impostos eram automaticamente mal vistos; os impostos que Roma cobrava já eram bastante altos, além disso, os cobradores ainda exigiam quantias maiores do que as estabelecidas, assim, além do salário, ainda lucravam com a exploração, pois o que cobravam acima dos valores legais ficava para si; eram corruptos e ladrões profissionais. A resposta de João a eles também é surpreendente: basta fazer agir corretamente. Não deviam abandonar a profissão, pois dependiam dela para sobreviver; deviam, no entanto, exercê-la com justiça e ética.

As exigências aos soldados tem o mesmo sentido: “Não tomeis à força dinheiro de ninguém, nem façais falsas acusações; ficai satisfeitos com o vosso salário!” (v. 14); também a eles, João não pede penitência nem que abandonem a profissão, mas exige que a exerçam com justiça, retidão e sem violência. Muitas vezes, os soldados trabalhavam juntos com os cobradores de impostos, talvez por isso Lucas tenha recordado e mencionado os dois grupos em paralelo; como os cobradores exageravam nas taxas, cobrando além do estabelecido, muitas pessoas se recusavam a pagar e, diante disso, os cobradores pediam ajuda aos soldados, tomando o dinheiro à força, e depois repartiam entre si o valor excedido. Havia abuso de poder, corrupção generalizada e conivência entre os dois grupos. De todo o aparato administrativo, os cobradores de impostos e os soldados eram os que estavam diretamente em contato com o povo, por isso eram muito rejeitados e, sem dúvidas, davam muitos motivos para isso. Eram totalmente excluídos pela religião, inclusive o templo tinha seus próprios guardas, porque os soldados romanos eram considerados impuros e não podiam entrar lá.

A expectativa pela chegada do messias era muito grande, inclusive muitos pregadores, vez por outra, se apresentavam como tal; por isso, muitos se perguntavam se João não seria o próprio messias (cf. v. 15), até pela novidade da sua pregação. De acordo com o evangelista, o próprio João esclareceu não ser ele o messias: “Eu vos batizo com água, mas virá aquele que é mais forte do que eu. Eu não sou digno de desamarrar a correia de suas sandálias. Ele vos batizará no Espírito Santo e no fogo. Ele virá com a pá na mão: vai limpar sua eira e recolher o trigo no celeiro; mas a palha ele a queimará no fogo que não se apaga” (v. 16-17). Esse esclarecimento era muito necessário, tanto para os ouvintes diretos da pregação, quanto para a comunidade do evangelista e os futuros leitores de sua obra, como nós; o próprio Lucas registra, em seu outro livro (os Atos dos Apóstolos) que o batismo de João continuava sendo realizado como se fosse o batismo cristão, pois as pessoas não compreendiam a diferença, e isso gerava confusão em algumas comunidades, como Éfeso, por exemplo (cf. At 19,1-7). Por isso, a necessidade de fazer a distinção com o uso de imagens tão fortes.

A referência ao gesto de desamarrar as sandálias é uma alusão a Israel como esposa e Jesus como o noivo que vem ao seu encontro; por isso, não se trata de uma lição de humildade de João. Aqui, ele cita a lei judaica do levirato: tirar a sandália era um rito que significava apropriar-se do direito de tomar a mulher (viúva) como esposa, para lhe dar descendência (cf. Dt 25,5-10; Rt 3,5-11). Assim, João deixa claro que não é ele o esposo, porque essa missão não lhe compete. O direito de fecundar Israel é exclusivo de Jesus, para tornar novamente fértil aquela esposa explorada e tornada estéril pela elite sacerdotal de Jerusalém e pelo poder romano. O batismo de João, com água, era apenas um sinal, um alerta sobre o tempo novo que estava por vir; batismo por excelência é o de Jesus, com o Espírito Santo; esse batismo é definitivo, é o cumprimento de profecias e condição para Israel e toda a humanidade voltar à condição de povo de Deus (cf. Ez 36,24-28), e ao mesmo tempo sinal de universalização da salvação: o Espírito Santo, como superação e substituição da Lei, dará condições, ao ser acolhido, para que todos os povos sejam contemplados com a libertação inaugurada por Jesus. O uso das imagens da pá e do fogo não é de julgamento, mas significa a força da mensagem de Jesus; a ele não interessam as aparências, mas somente os frutos; assim como só fica o trigo no celeiro, só pertence ao Reino quem vive segundo a justiça e o amor; a palha a ser queimada é a injustiça, a indiferença, o orgulho, a ambição e todos os males que afetam a dignidade humana. O “fogo que não se apaga” não é sinal de condenação, significa a falta de sentido para a existência, como é a vida de quem não faz opção pelo Reino.

Conclui o evangelista, que “ainda de muitos outros modos, João anunciava ao povo a Boa-Nova” (v. 18). Aqui Lucas reforça que a pregação de João constituía também uma boa notícia, como será a de Jesus. Essa boa notícia era, sobretudo, a possibilidade cada pessoa se relacionar com Deus sem depender das imposições da religião judaica; para fazer parte do Reino de Deus não depende da autorização de um sistema religioso, mas da atitude interior e decisão pessoal de cada um e cada uma que descobriu “o que é preciso fazer”. É importante perceber e recordar que a nenhum dos grupos que o procuram, João pediu para se tornarem pessoas mais religiosas e devotas; pediu apenas que se tornassem pessoas melhores, se solidarizando com o próximo e praticando a justiça. A religião só tem sentido se nos ajudar a fazer isso!

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, dezembro 08, 2018

REFLEXÃO PARA O SEGUNDO DOMINGO DO ADVENTO – LUCAS 3,1-6 (ANO C)




A liturgia do segundo domingo do advento, em todos os anos, evidencia a figura de João, o Batista, o profeta que antecede, de modo imediato, a missão de Jesus. Neste ano em que estamos lendo o Evangelho segundo Lucas, o texto proposto é Lc 3,1-6. Embora a descrição da missão profética de João seja um elemento comum aos três evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas), cada um apresenta elementos específicos, de acordo com seus respectivos objetivos teológicos. Hoje, vemos como Lucas faz essa apresentação: omitindo alguns elementos em relação à sua fonte primária (o Evangelho segundo Marcos), e acrescentando outros elementos de suas fontes próprias. O mais importante, no entanto, é a mensagem central: a palavra de Deus se dirige à história para transformá-la.

Considerando que os dois primeiros capítulos, conhecidos como “Evangelho da Infância” (Lc 1 – 2) foram escritos por último e acrescentados quando o evangelho já estava concluído, podemos dizer que o texto de hoje é a abertura original do Evangelho segundo Lucas. A maneira como o texto é iniciado é uma confirmação dessa ideia: “No décimo quinto ano do império de Tibério César, quando Pôncio Pilatos era governador da Judeia, Herodes administrava a Galileia, seu irmão Filipe, as regiões da Ituréia e Traconítide, e Lisânias a Abilene; Quando Anás e Caifás eram sumos sacerdotes, foi então que a palavra de Deus foi dirigida a João, o filho de Zacarias, no deserto” (vv. 1-2). Essa é uma técnica literária consolidada entre os livros proféticos do Antigo Testamento: iniciar o escrito informando os nomes dos reis de Israel e Judá contemporâneos aos respectivos profetas (Jr 1,1-3; Is 1,1; Am 1,1; etc); é uma informação importante porque ajuda a identificar a época histórica dos acontecimentos narrados. Porém, no Evangelho segundo Lucas, o uso dessa técnica vai além: ele não quis apenas repetir um costume vigente, mas também, através dela, quis enriquecer a sua teologia.

Para situar o seu escrito no tempo, bastava Lucas citar a primeira informação: “No décimo quinto ano do império de Tibério César” (v. 1a); Tibério sucedeu a Augusto por volta do ano 14 d.C.; o décimo quinto ano do seu governo corresponde ao ano 29 da nossa era, aproximadamente. O elenco das autoridades, do imperador romano aos sumos sacerdotes de Jerusalém, mostra a totalidade dos poderes vigentes na época. A lista é apresentada em ordem decrescente, ou seja, do maior para o menor, até chegar no mais insignificante, aparentemente, João. Enquanto as autoridades habitavam e exerciam o poder em ricos palácios e no tempo magnifico de Jerusalém, João habitava no deserto, levando uma vida austera, embora Lucas não descreva o seu estilo de vida simples como fizeram Mateus e Marcos (cf. Mt 3,4; Mc 1,6); sem dúvidas, essa é uma das lacunas de Lucas, o que ele parece ter compensado no “Evangelho da Infância” (Lc 1- 2), escrito depois.

O objetivo de Lucas com a lista de Tibério a João, é mostrar os propósitos e as escolhas paradoxais de Deus. Não é nos palácios esplendorosos nem nos grandes templos que Deus se deixa encontrar, mas onde há simplicidade, como no deserto. Por isso, diz o evangelista que “foi então que a palavra de Deus foi dirigida a João, o filho de Zacarias, no deserto” (v. 2b). Aqui, ele associa João aos grandes profetas de Israel, pois é com essa fórmula que as missões proféticas do Antigo Testamento eram introduzidas, como já acenamos anteriormente. O evangelista está ensinando também que não é aos poderosos que a palavra de Deus é dirigida, mas aos simples, pequenos e humildes. O evangelista quer mostrar, com isso, que a palavra de Deus se desvia dos centros de poder, enquanto se dirige ao deserto. Como sabemos, o deserto possui uma rica simbologia em toda a Bíblia: é o lugar da autêntica relação com Deus, onde se cultiva o conhecimento e a confiança no Senhor, como fruto da escuta atenta da sua palavra; por isso, quando o povo demonstrava infidelidade, os profetas apresentavam a necessidade de retornar ao deserto para voltar a viver o ideal da aliança (cf. Os 2,14; 9,10; 13,5; Am 2,10; 5,25). No contexto específico de Lucas, dentro do paradoxo entre as autoridades e João, o deserto significa também todas as periferias do mundo: se desviando dos centros de poder, a palavra de Deus se dirige aos lugares simples e pobres.

O evangelista faz uma apresentação rápida da atividade de João, e logo cita o conteúdo da sua pregação: “Ele percorreu toda a região do Jordão, pregando um batismo de conversão para o perdão dos pecados” (v. 3). A atividade de João era itinerante, embora restrita à região do Jordão. Deserto e Jordão, por sinal, evocam duas etapas importantes do êxodo. Com isso, o evangelista ensina que a atividade de João é uma atividade libertadora que exige disponibilidade para a conversão, a mudança de mentalidade e, consequentemente, de vida. O batismo de conversão é uma chamada de atenção para cada pessoa em particular. Vivia-se uma situação caótica, devido os desmandos e exploração das autoridades políticas e religiosas, de Tibério a Anás; essa situação exigia mudanças urgentes, e todas as pessoas deviam fazer a sua parte, mudando de mentalidade, o significado de conversão. A conversão dos pecados significava, antes de tudo, a consciência da realidade com a necessidade de mudanças e a disposição para isso.

O conteúdo da pregação de João não era novo, mas uma atualização da mensagem de Isaías: “Esta é a voz daquele que grita no deserto: ‘preparai o caminho do Senhor, endireitai suas veredas. Todo vale será aterrado, toda montanha e colina serão rebaixadas; as passagens tortuosas ficarão retas e os caminhos acidentados serão aplainados. E todas as pessoas verão a salvação de Deus” (vv. 4-6). Lucas cita integralmente Is 40,3-5, um texto do segundo Isaías, um profeta-poeta que viveu o exílio na Babilônia e viu a libertação se aproximar e, por isso, começou a preparar o povo para o retorno à terra. Ora, o retorno à terra significava a reconquista da liberdade, voltar a viver como pessoas livres, o que exigia muito esforço. Não bastava que o governo da Babilônia desse permissão para voltar; a terra tinha sido arrasada, era preciso coragem para reconstruir tudo; até mesmo os caminhos da volta deveriam ser refeitos.

O evangelista aplica o texto de Isaías à realidade da sua comunidade e de muitas comunidades da sua época. Perseguições e guerras eram ameaças constantes. Construir ou reconstruir eram atos de coragem na época, pois a qualquer momento tudo poderia ser destruído novamente. Mesmo assim, o povo era chamado a manter-se firme e forte. A origem da força necessária era a palavra de Deus, dirigida aos profetas do Antigo Testamento, a João e a tantos profetas e profetisas anônimos(a). Os detentores de poder desse mundo, chefes políticos e religiosos, eram os primeiros responsáveis pelos desmandos que afligiam o mundo da época. Eram eles quem deixavam tortuosos os caminhos para os pobres e humildes, eram os obstáculos à vida digna; colocavam-se como verdadeiras montanhas intransponíveis diante dos sonhos e projetos do povo simples. Não obstante tudo isso, o evangelista anima: a palavra de Deus se desvia dos centros de poder, se dirige às periferias para encorajar o povo sofrido a lutar pela transformação das estruturas.

A palavra é dirigida à concretude da história para transformá-la, como sinal de salvação para todos, como o evangelista conclui a citação: “E todas as pessoas verão a salvação de Deus” (v. 6). Dirigida a João, inicialmente, Lucas a dirige às suas comunidades e a todas as pessoas que um dia tenham contato com o seu Evangelho. É uma palavra que não tem dada de vencimento, é sempre válida e eficaz, e é universal; não é dirigida a uma comunidade de eleitos ou privilegiados, mas a todas as pessoas que anseiam por dignidade e vida plena, independente da época e do lugar.

Enquanto houver obstáculos e desvios para impedir a realização plena do ser humano com sua dignidade, a profecia de Isaías repetida por João, como afirma Lucas, será atual e necessária. Na época de João, as montanhas e caminhos tortuosos eram a corrupção, as injustiças, a exploração e todos os demais desmandos cometidos pelos sistemas político e religioso, denunciados por Lucas. Cabe aos cristãos de cada época, convertidos constantemente, perceber tais obstáculos e, à luz da palavra de Deus, lutar para transformá-los. A palavra de Deus cria, transforma e renova (cf. Gn 1-2; Is 55,10; Hb 4,12); acolhamos e confiemos nela!

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, dezembro 01, 2018

REFLEXÃO PARA O PRIMEIRO DOMINGO DO ADVENTO – LUCAS 21,25-28.34-36 (ANO C)




Com este domingo, o primeiro do advento, a Igreja inicia um novo ano litúrgico, convidando-nos, mais uma vez, a percorrer o caminho de Jesus Cristo, contemplando o mistério da sua vida, desde o seu nascimento até a ressurreição e ascensão. O tempo do advento, iniciado hoje, é a primeira etapa desse itinerário catequético-espiritual. O termo advento (adventus em latim) significa “visita”, “chegada” ou “vinda”; fazia parte do vocabulário das religiões pagãs no império romano, e era usado em referência às supostas visitas anuais das divindades aos seus respectivos templos. Por volta do século IV, o cristianismo absorveu o termo, passando a utilizá-lo no contexto do natal, a visita, por excelência, de Deus ao mundo. Como o próprio termo evoca, uma visita especial é sempre motivos de esperanças e expectativas, e essa é uma das características principais do advento.

Com o início do novo ano litúrgico, iniciamos também a leitura do Evangelho segundo Lucas, porém, não do seu início, mas do seu final, precisamente do seu discurso escatológico. Por isso, o texto proposto para hoje é Lc 21,25-28.34-36. O discurso escatológico está presente nos três evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas), e trata simbolicamente das realidades últimas e finais da história, antecedendo as narrativas da paixão, morte e ressurreição de Jesus. A princípio, parece até paradoxal que a preparação para o natal seja iniciada com palavras sobre as realidades últimas. Porém, é necessário compreender o advento como uma oportunidade de preparação para a vinda constante do Senhor na vida de cada pessoa, tornando essa vinda uma presença contínua, ao invés de apenas alimentar uma expectativa futurista e preparar para uma única data ou evento. É importante também perceber a continuidade do tempo: como nos últimos domingos do ano litúrgico anterior refletimos, a partir do discurso escatológico de Marcos, o tema da expectativa, é também com esse tema que abrimos o novo ano.

O Evangelho proposto consiste nas últimas palavras de Jesus antes do relato da paixão. É necessário fazer uma pequena contextualização para uma compreensão mais adequada do mesmo. Jesus se encontrava em Jerusalém, na sua última semana, ensinando no templo, denunciando os escribas e fariseus, observando as verdadeiras e falsas práticas religiosas (cf. Lc 21,1-4), e os discípulos, em sua maioria camponeses e pescadores, se admiravam com a beleza e a grandeza do templo (cf. Lc 21,5). À admiração dos discípulos, Jesus respondeu: “vós contemplais estas coisas, mas dias verão em que não restará pedra sobre pedra que não seja derrubada” (Lc 21,6). Curiosos e espantados com essa afirmação de Jesus, os discípulos perguntaram: “Mestre, quando acontecerá isso? Qual o sinal de que isso está para acontecer? (Lc 21,7).

O discurso escatológico é, portanto, a resposta de Jesus a essa pergunta dos discípulos. Pertence ao gênero literário apocalíptico, derivação da palavra apocalipse (em grego: αποκαλυψις = apoclípisis), cujo significado é “revelação”, “manifestação da verdade” ou “tornar conhecido algo que estava escondido”; o gênero apocalíptico foi bastante distorcido ao longo da história, passando a ser sinônimo de catástrofes e desastres, causando medo, quando, na verdade, é um gênero literário usado pelos autores bíblicos para transmitir mensagens de esperança e resistência. Portanto, ao invés de causar terror e medo, a mensagem do Evangelho de hoje deve nos animar, como veremos no decorrer da reflexão. Não é uma descrição de eventos, mas uma forma simbólica de apresentar o triunfo de Deus sobre a história. Por isso, é muito oportuno o seu uso no advento, tempo pautado por mensagem e espiritualidade marcadas pelo tema da esperança.

O texto de hoje começa com palavras de grande impacto: “Haverá sinais no sol, na lua e nas estrelas. Na terra, as nações ficarão angustiadas, com pavor do barulho do mar e das ondas” (v. 25). A princípio, parece uma cena aterrorizante, mas na verdade é um sinal de esperança. Os astros (sol, lua e estrelas) eram imagens de divindades nos mundos greco-romano e egípcio. Embora Lucas não afirme, como Marcos, que esses astros irão desmoronar, ele diz que entrarão em caos, o que representa o colapso dos sistemas de dominação responsáveis pelas perseguições vividas pelas comunidades da época da redação do evangelho. Até mesmo o mar, onde residiam as forças do mal para a mentalidade semita, será abalado; isso ignifica que o mal será cortado pela raiz. Obviamente, tais acontecimentos trarão angústia e medo para o mundo todo, até então, conformado com a ordem injusta das coisas. Por isso, “Os homens vão desmaiar de medo, só em pensar no que vai acontecer ao mundo, porque as forças do céu serão abaladas” (v. 26). As forças do céu aqui não são divindades, mas a ordem e harmonia do cosmos.

O que parece catastrófico é, na verdade, apenas pretexto para a passagem de uma fase à outra da história. O mundo até então ordenado com falsa segurança e sistemas injustos, como era o império romano, não permaneceria para sempre. Perseguidos e já quase sem esperanças, como estavam muitos cristãos nas comunidades lucanas, não era fácil acreditar em transformação. Mas o evangelista não desiste e reconstrói as palavras de Jesus que seriam de grande importância para o seu contexto: “Então eles verão o Filho do Homem, vindo numa nuvem com grande poder e glória. Quando estas coisas começarem a acontecer, levantai-vos e erguei a cabeça, porque vossa libertação está próxima” (vv. 27-28). A construção de um mundo novo requer a destruição das estruturas velhas de poder e dominação. É esse o sentido do texto até aqui. O mundo velho, governado por tiranos que se sentiam iluminados por falsas divindades (os astros), sustentadores de um sistema tão nocivo para o ser humano quanto as forças do mar, não seria eterno; haveria de dar lugar a um mundo novo, o Reino de Deus.

A imagem do Filho do Homem vindo das nuvens evoca o reinado e senhorio de Deus sobre o mundo, através do seu filho Jesus Cristo, prestes a ser condenado, no contexto imediato do discurso escatológico. Para o Reino de Deus acontecer em sua plenitude é necessário que uma nova ordem seja estabelecida no mundo. Portanto, o caos descrito nos primeiros versículos e a manifestação do Filho do Homem evocam a necessidade de transformação da humanidade, para o estabelecimento de um mundo novo, justo e fraterno. Embora ainda não realizado, esse é o ideal e o que deve manter nos cristãos a chama da esperança acesa. Há, em curso, um processo de libertação plena para a humanidade, iniciado com a encarnação e o nascimento de Jesus, que um dia há de ser completamente realizado. Por isso, os cristãos não podem desanimar, por mais difícil que seja a situação, devem manter-se “de cabeça erguida, porque a libertação está próxima” (v. 28); a cabeça erguida é o sinal da dignidade e a consciência da pessoa que não reconhece os poderes injustos e opressores deste mundo; é a postura de quem não se curva diante de falsos deuses e mantém firme a esperança somente no Deus de Jesus Cristo.

Embora certa, a libertação pode retardar bastante, o que tende a levar muitos cristãos ao desânimo e até mesmo a abandonarem a fé. Por isso, paralelo à certeza de que a ordem injusta não é eterna, mas um dia a libertação acontecerá, o evangelista alerta para a necessidade da vigilância, para não serem surpreendidos, uma vez que não há uma data exata para isso acontecer: “Tomai cuidado para que vossos corações não fiquem insensíveis por causa da gula, da embriaguez e das preocupações da vida, e esse dia não caia de repente sobre vós, pois esse dia cairá como uma armadilha sobre todos os habitantes de toda a terra” (vv. 34-35). Comida, bebida e preocupações aqui, não se trata de um elenco de vícios a serem combatidos, mas representam o cotidiano, o dia-a-dia das pessoas, do qual os cristãos não podem privar-se, mas não podem viver somente em função disso. É um alerta para os cristãos: viver somente em função do cotidiano, sem almejar algo a mais na vida é perigoso; além de tornar insensível o coração, fecha o horizonte da esperança. O caráter improviso desse dia é um aspecto tradicional na Bíblia, desde o anúncio do “Dia do Senhor” pelos antigos profetas (cf. Jl 2,31; Am 5,18, etc.). É preciso viver continuamente em comunhão com Deus para não ser surpreendido. Quem já vive no dia-a-dia a presença constante do Senhor, através da oração e do cultivo de relações humanas autênticas e fraternas, não será surpreendido.

Como Lucas é o evangelista que mais privilegia a oração, ele apresenta essa como a mais consistente das formas de vigilância: “Portanto, ficai atentos e orai a todo momento, a fim de terdes força para escapar de tudo o que deve acontecer e para ficardes em pé diante do Filho do Homem” (v. 36). A oração sincera, junto com o espírito de vigilância mostram, acima de tudo, que os cristãos não podem acostumar-se à ordem vigente, não podem ser tolerantes com as injustiças e opressões, mas devem estar sempre em busca de um mundo melhor, não apenas esperando, mas também construindo, no dia-a-dia, as condições necessárias para o reinado de Deus se estabelecer definitivamente sobre o mundo, o que não acontecerá passivamente, mas somente com a destruição de todas as forças de morte, conforme a descrição dos primeiros versículos. E isso exige muito empenho da comunidade cristã. É com esse propósito que devemos nos preparar para o natal do Senhor. Ser conivente com as injustiças é retardar a sua vinda e o seu reinado.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN


REFLEXÃO PARA O 4º DOMINGO DA PÁSCOA – JOÃO 10,11-18 (ANO B)

O evangelho do quarto domingo da páscoa é sempre tirado do capítulo décimo do Evangelho de João, no qual Jesus se auto apresenta como o ún...