sábado, julho 29, 2023

REFLEXÃO PARA O 17º DOMINGO DO TEMPO COMUM – MATEUS 13,44-52 (ANO A)



A liturgia deste décimo sétimo domingo do tempo comum marca a conclusão da leitura do discurso em parábolas do Evangelho de Mateus, iniciada há dois domingos. O discurso em parábolas é o terceiro dos cinco grandes discursos de Jesus em Mateus, ocupando, assim, uma posição central, o que evidencia a sua importância para a teologia do respectivo Evangelho. Isso corresponde à centralidade do tema do Reino na pregação de Jesus, pois o tema desse discurso é exatamente o Reino dos Céus e sua dinâmica, descrito simbolicamente a partir de sete parábolas. O texto específico que a liturgia oferece para este domingo é Mt 13,44-52, o qual contém as últimas três das sete parábolas, uma vez que as quatro primeiras já foram lidas nos dois últimos domingos. De acordo com o contexto narrativo do Evangelho de Mateus, os destinatários primeiros do discurso foram os discípulos e as multidões que se reuniram à beira-mar para ouvir Jesus (Mt 13,1-2). Porém, mais do que reconstituir e descrever fielmente um acontecimento concreto da vida de Jesus, o evangelista organizou o discurso para responder às necessidades da sua comunidade que vivia um momento de crise, como já contextualizamos nos domingos anteriores.

Tendo em vista que o contexto já foi bastante evidenciado nos dois últimos domingos, podemos dispensar hoje uma contextualização mais ampla, embora seja necessário recordar alguns elementos. Ora, tendo já apresentado as diversas características do Reino dos Céus por meio das quatro parábolas anteriores, nas três de hoje o objetivo do evangelista é motivar os seguidores e seguidoras de Jesus e a própria comunidade a fazer uma opção absoluta pelo Reino, preferindo-o a qualquer outra realidade ou bem. Por isso, as parábolas de hoje são mais motivadoras do que descritivas, propriamente. Isso se evidencia, sobretudo, nas duas primeiras, principalmente, a do tesouro e a do comprador de pérolas (vv. 44-46), respectivamente. Elas são, acima de tudo, motivações para a acolhida do Reino do que uma mera descrição comparada desse. O encontro com o Reino e seus valores exige uma decisão e tomada de posição radicais e inadiáveis. A terceira parábola do texto de hoje e última do discurso retoma a descrição, evidenciando as contradições e a diversidade que compõem o Reino dos Céus, prevenindo a comunidade cristã de qualquer tendência ao puritanismo e segregação, convidando-a à aceitação da diversidade e à inclusão. Certamente, essa era uma das principais preocupações de Jesus e do evangelista Mateus, que via o risco da mentalidade separatista do farisaísmo se instalar na sua comunidade.

Feitas as devidas observações a nível de contexto, olhamos para o texto, começando pela primeira parábola, que é bastante curta, pois corresponde apenas ao primeiro versículo: «O Reino dos céus é como um tesouro escondido no campo. Um homem o encontra e o mantém escondido. Cheio de alegria, ele vai, vende todos os seus bens e compra aquele campo» (v. 44). Um tesouro no contexto da época, era um vaso de argila cheio de moedas valiosas e joias que os proprietários enterravam em suas propriedades quando percebiam perigo de guerras, invasões ou saques. Apesar de não se tratar de um acontecimento tão frequente, a descoberta de um tesouro na antiguidade era uma possibilidade bem real, de modo que os primeiros ouvintes-leitores do Evangelho compreendiam bem a imagem. Ora, quando um proprietário de terras tinha de fugir às pressas por causa de uma invasão, enterrava o seu tesouro, imaginando um dia voltar para recuperá-lo. No entanto, dificilmente retomava a posse da terra; essa passava para outros proprietários que não sabiam do tesouro escondido. Por isso, geralmente, esses tesouros eram encontrados muito tempo depois de enterrados, por pessoas que não sabiam da sua existência; daí a ideia de surpresa subentendida no texto, seguida da mencionada alegria. Por sinal, uma palavra-chave no Evangelho de hoje é exatamente alegria, como uma característica essencial de quem encontrou o Reino e a ele aderiu plenamente.  

A respeito do homem que encontra o tesouro, o texto não diz muita coisa. Não sabemos o que fazia antes, se estava no campo por acaso ou trabalhando. O que sabemos é que ele encontrou um motivo para mudar a sua vida. Encontrou algo pelo qual valia a pena renunciar a tudo o que possuía para ficar somente com o bem precioso que tinha acabado de encontrar. A chamada de atenção de Jesus para os discípulos e a multidão, e de Mateus para a sua comunidade, visa deixar ainda mais claro que o Reino deve ser a primeira opção de quem o encontra.  O Reino desestabiliza a normalidade das coisas, é reviravolta, subversão, é o revés da ordem estabelecida, tanto a política quanto a religiosa, embora comece de modo acanhado e silencioso, como a postura do homem ao encontrar o tesouro, que não fez alarde, o manteve escondido até a posse definitiva. Essa discrição inicial do Reino já havia sido mostrada nas parábolas anteriores, sobretudo a da semente de mostarda e a do fermento na massa, lidas no domingo passado. O homem encontrou o tesouro por acaso, ou seja, sem fazer esforço algum. Essa é uma das possibilidades de encontro com o Reino, pois como já tinha dito o próprio Jesus, «o Reino dos céus está próximo» (Mt 10,17), ou seja, é ele quem vem ao encontro das pessoas, embora sejam feitas exigências para experimentá-lo: «convertei-vos» (Mt 10,17)A decisão do homem da parábola significa uma verdadeira conversão, pois foi fruto de uma mudança de mentalidade. Ele se deu conta que não valia a pena continuar com os bens que possuía, tendo encontrado algo muito mais valioso. Ao desfazer-se de todos os bens para possuir um único bem mais valioso do que tudo, ele demonstrou grande desapego, fruto de discernimento, certamente. Ora, não basta contemplar nem saber que o Reino dos céus chegou, é necessário fazer esforço para nele entrar; esse esforço consiste em deixar de lado tudo o que não é compatível com ele, como fez o homem dessa primeira parábola e vai fazer o personagem da segunda

A segunda parábola tem muita semelhança com a primeira. Também nela se evidencia a necessidade de uma tomada de decisão radical, embora sejam bem evidentes também as diferenças. Na segunda, o Reino é comparado à pessoa que procura e encontra algo, e não ao objeto encontrado, propriamente. Eis o que diz o texto: «O Reino dos céus é como um comprador de pérolas preciosas. Quando encontra uma pérola de grande valor, ele vai, vende todos os seus bens e compra aquela pérola» (vv. 45-46). Também nessa, as informações sobre o homem envolvido são poucas. Tudo indica que se trata de um homem experiente e inquieto, capaz de distinguir o valioso do vulgar. É alguém que sabe avaliar as coisas, examinando-as de modo minucioso, como fruto da experiência e da busca constante. Assim como o da parábola anterior, também esse homem encontra algo que lhe faz tomar uma decisão radical. Porém, ao contrário do homem que encontrou o tesouro por acaso, na primeira parábola, nessa segunda se trata de um homem que buscava. Lidas juntas, as duas parábolas mostram que não há contradição entre dom e esforço. A conquista do Reino exige esses dois elementos. O Reino é dom gratuito de Deus ao mundo, mas não se entra nele sem esforço, pois, para fazer parte dele são feitas exigências.

Na primeira parábola, o tesouro foi encontrado como puro dom, sem nenhuma busca: o homem simplesmente encontrou. Na segunda, o personagem é alguém que procura, seleciona criteriosamente o que tem grande valor e o que não tem. O importante em ambas as situações é a decisão tomada ao encontrar algo que pode mudar o sentido da vida. O mais relevante não é a forma como cada coisa foi encontrada, mas a decisão tomada para possuí-la, conforme a linguagem das parábolas, o que corresponde à busca pelo Reino e a inserção nele. Em cada situação, a decisão tomada de vender todos os bens para possuir o objeto encontrado recorda a decisão dos primeiros discípulos chamados por Jesus, as duas duplas de pescadores às margens do mar da Galileia: ao ouvir o chamado de Jesus, eles deixaram tudo para segui-lo (Mt 4,18-22). Naquela ocasião, não houve venda e compra, mas a decisão de deixar tudo. É claro que a participação no Reino não depende de um processo de compra e venda. Não se trata de relação comercial nem de lógica mercadológica. Os exemplos das parábolas do tesouro e do comprador de pérolas visam apenas ilustrar a necessidade de tomar decisão para entrar no Reino. Por sinal, os objetos de valor em questão – tesouro e pérola preciosa – são imagens tradicionais da Bíblia, sobretudo da tradição sapiencial, para representar realidades de valor imensurável, como a sabedoria e a própria Lei, no Antigo Testamento. Portanto, a decisão dos dois personagens de vender todos os bens corresponde ao deixar tudo dos discípulos e discípulas de Jesus, em todos os tempos, para viver uma vida pautada pelos valores do Reino: justiça, amor, solidariedade, acolhimento, sinceridade, alegria e coragem para lutar contra tudo o que impede o seu crescimento.

A última parábola do discurso, a terceira do evangelho de hoje, é aquela da rede jogada ao mar: «O Reino dos céus é ainda como uma rede lançada ao mar e que apanha peixes de todo tipo. Quando está cheia, os pescadores puxam a rede para a praia, sentam-se e recolhem os peixes bons em cestos e jogam os que não prestam» (vv. 47-48). Muitos estudiosos insistem em relacioná-la com aquela do joio e do trigo, refletida no domingo passado (Mt 13,24-30). É certo que existem semelhanças entre as duas, mas as diferenças são bem maiores. Naquela do joio e do trigo, quem semeou a semente nociva foi um inimigo, enquanto o dono do campo e da semente boa dormia. Nessa da rede, os peixes bons e ruins têm uma mesma origem, não são frutos da ação de dois personagens diferentes. Essa diferença é muito importante. Ora, desde a comunidade apostólica, havia na Igreja a tendência equivocada de querer ser uma comunidade de santos, justos ou eleitos, ou seja, uma comunidade separada e isolada. Essa tendência, comum no judaísmo da época, era e é um entrave para a concretização do Reino. Com essa parábola da rede, bem mais do que com a do joio e o trigo, Jesus apresenta o universalismo do Reino, marcado pela diversidade e inclusão, e sua exposição aos perigos. Como as parábolas respondem a uma situação de crise da comunidade, é interessante retornar às origens, ao primeiro chamado: «Vinde, segui-me, e eu farei de vós pescadores de homens» (v. 4,19). Essa parábola é, portanto, um convite para os discípulos retornarem às origens do chamado. Ora, Jesus não os chamou para irem à procura de pessoas boas e santas, mas simplesmente para “pescar seres humanos”, ou seja, ir ao encontra da humanidade inteira, sem distinção nem classificação, como uma rede que apanha todo tipo de peixe.

Com a parábola do joio e o trigo Jesus pedia tolerância e paciência. Com essa da rede, Ele vai além: pede inclusão, aceitação e abertura constante, pois a rede envolve, junta, mistura tudo. A semente era jogada em um terreno conhecido, mesmo que não fosse previamente preparado. O mar onde é lançada a rede, ao contrário, é sempre imprevisível, pois o movimento dos ventos e das águas foge de qualquer controle. Isso significa um desafio para a comunidade e uma advertência a qualquer tendência separatista e segregadora. Na comunidade cristã não pode ter juízes, mas apenas irmãos e irmãs. Por isso, a explicação alegórica da parábola projeta, em linguagem apocalíptica, a separação definitiva para o final dos tempos, e diz que essa será feita por anjos, seres de outra esfera, e não pelas lideranças da comunidade: «Assim acontecerá no fim dos tempos: os anjos virão para separar os homens maus dos que são justos. E lançarão os maus na fornalha de fogo. E aí haverá choro e ranger de dentes» (v. 50). As explicações das parábolas são sempre acréscimos do evangelista ou dos continuadores de suas tradições. Aqui, faz-se uma advertência aos membros da comunidade, provavelmente às lideranças, para evitar julgamentos, preconceitos e condenações. É uma forma de dizer que ninguém pode julgar o outro na comunidade. No final do Evangelho, quando retomar o tema do juízo, Jesus dirá que o critério no julgamento será a opção pelos pequenos, pobres e marginalizados. 

No final, após contar toda a série de parábolas, Jesus faz uma pergunta simples, mas profunda, aos discípulos, os primeiros destinatários de todo o discurso: «Compreendestes tudo isso?» (v. 51). Ora, Jesus apresentou o Reino dos céus em sete parábolas; como o número sete evoca perfeição e totalidade, é como se Jesus dissesse que tinha dito tudo sobre o Reino, e que é necessário compreendê-lo em sua totalidade. A compreensão aqui significa a aceitação da sua mensagem com as consequências que essa implica; não se trata da abstração teórica de um conteúdo, mas de assimilar um jeito novo de viver. Embora a resposta dos discípulos tenha sido positiva, a história e a própria continuação do Evangelho de Mateus mostram que, na verdade, eles ainda não tinham compreendido tudo. O importante, no entanto, é a disposição para compreender e, para isso, é necessário fazer da vida uma busca constante pelo maravilhoso tesouro que é «o Reino de Deus e a sua justiça» (Mt 6,33). A conclusão do discurso é um convite reforçado ao discernimento: «Então Jesus acrescentou: ‘Assim, pois, todo o mestre da Lei, que se torna discípulo do Reino dos Céus, é como um pai de família que tira do seu tesouro coisas novas e velhas’» (v. 52). Alguns poucos estudiosos consideram esse versículo como uma nova parábola, mas a aceitação dessa ideia é mínima, sobretudo porque elevaria para oito o número de parábolas do discurso, o que comprometeria a ideia de perfeição da exposição de Jesus sobre o Reino, representada pelo número de sete parábolas. Para muitos estudiosos, esse versículo é também um traço autobiográfico do próprio autor Mateus: ele é um exemplo de escriba (mestre da Lei) que se tornou discípulo, conservou e soube tirar coisas novas e velhas do grande tesouro que são as tradições de Israel. Inclusive, é o evangelista que mais teve cuidado de buscar elementos da Escritura (Antigo Testamento) para justificar e fundamentar a mensagem de Jesus. Nessa perspectiva, as coisas velhas são a Lei e os profetas, enquanto as coisas novas são os ensinamentos de Jesus, que ele mesmo considerou como o pleno cumprimento da Lei e dos profetas (Mt 5,17).

Considerando o evangelho de hoje e o dos últimos domingos, nos quais foi tão bem-apresentado o Reino dos Céus com sua dinâmica e suas características essenciais, urge pensar e repensar o agir cristão atual e as estruturas de nossas comunidades com seus planos e propósitos. É importante questionar se as prioridades assumidas contribuem para a construção do Reino e se evidenciam a sua presença no mundo. Muitas vezes, o que se tem buscado é manter estruturas enrijecidas, obsoletas, incapazes de transmitir vida, amor e humanização. É importante, portanto, despertar o interesse pelo Reino como bem absoluto, com coragem de abrir mão de tudo o que não condiz com a sua dinâmica.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, julho 22, 2023

REFLEXÃO PARA O 16º DOMINGO DO TEMPO COMUM – MATEUS 13,24-43 (ANO A)



A liturgia deste décimo sexto domingo do tempo comum propõe a continuação da leitura do discurso em parábolas, localizado no capítulo treze do Evangelho de Mateus. Como dissemos no domingo passado, esse é o terceiro dos cinco discursos de Jesus nesse Evangelho, e tem como tema principal o Reino dos Céus, o qual vem apresentado a partir de sete parábolas. O texto específico que a liturgia propõe para esse domingo – Mateus 13,24-43 – contém três parábolas: do joio e o trigo (vv. 24-30), a da semente de mostarda (vv. 31-32), e a do fermento na massa (v. 33). Além das três parábolas mencionadas, o texto contém ainda uma justificativa para o discurso em parábolas, com fundamentação na Escritura (vv. 34-35), e a explicação da parábola do joio e o trigo (vv. 36-43). Essa explicação é um acréscimo posterior da comunidade de Mateus, provavelmente para amenizar um pouco o impacto causado pela mensagem provocativa da parábola em específico e de todo o discurso.

Para compreender adequadamente qualquer trecho desse discurso, devemos sempre considerar o seu contexto, como já o fizemos no domingo passado, ao iniciar a leitura com a parábola do semeador (Mt 13,1-23), e hoje recordamos de novo. Ora, no contexto narrativo do Evangelho de Mateus, o discurso em parábolas faz parte da reação de Jesus à rejeição sofrida pela sua atuação na Galiléia, junto com seus discípulos, tendo sido desacreditado até mesmo pelo seu mentor, João, o Batista (Mt 11,2-19). Além, da rejeição, havia também a falta de compreensão da sua mensagem, principalmente da parte dos discípulos, uma vez que o modelo de Reino anunciado e proposto por Jesus não correspondia às expectativas e esperanças alimentadas por eles, que esperavam um messias glorioso, poderoso e guerreiro, conforme a ideologia nacionalista vigente, ancorada no messianismo davídico. Mateus retoma esse momento da vida de Jesus para responder também ao contexto de crise pelo qual passava a sua comunidade, há cerca de cinco décadas da morte de Jesus.

A crise vivida pela comunidade de Mateus, respondida pelas três parábolas de hoje, girava em torno de três grandes problemas ou tentações incompatíveis com a mensagem de Jesus: 1) puritanismo – pretensão de constituir uma comunidade separada, formada apenas por pessoas puras, santas e justas;  2) projeto de grandeza  havia, sobretudo nas lideranças da comunidade, muita sede de poder e desejo de sobreposição sobre os demais grupos; 3) desânimo – vontade de desistir por não ver resultados nem efeitos gerados pela pregação e a forma de vida cristã. Mesmo incompatíveis com a Boa Nova do Reino, essas três tendências têm marcado a história da comunidade cristã, desde as suas origens com os Doze, até hoje. Isso torna o texto de Mateus sempre atual e necessário. 

Ao primeiro problema, Jesus, e posteriormente Mateus, responderam com a parábola do joio e o trigo, um relato exclusivo do Primeiro Evangelho. Talvez essa tenha sido uma das parábolas de mais difícil aceitação pelas primeiras comunidades, tornando necessário o acréscimo de uma explicação pelo próprio Jesus. Eis o início dessa parábola: «O Reino dos céus é como um homem que semeou boa semente no seu campo. Enquanto todos dormiam, veio seu inimigo, semeou joio no meio e foi embora» (vv. 24-25). A introdução da parábola apresenta o Reino em uma realidade de tensão e hostilidade. Essa tensão é marcada pela presença simultânea da semente boa e da semente nociva, o mal e o bem, o amor e o ódio, a vida e a morte. Essa forma de conceber o Reino não agradava a muitos cristãos, inclusive aos discípulos, os quais imaginavam o Reino como uma comunidade separada, formada apenas por pessoas santas e justas. Jesus mostra o contrário: quem adere ao seu projeto de vida deve estar preparado para conviver com o diferente e até mesmo com o mal, sem compactuar com ele, obviamente.

O joio (em grego: ζιζάνια– zizânia) semeado pelo inimigo enquanto todos dormiam (v. 25), era uma planta muito parecida com o trigo, cujos grãos são tóxicos, capazes de provocar sérios danos à saúde de quem os consumir. É obra das trevas, por isso, «semeado enquanto todos dormiam», ou seja, à noite, o que na Bíblia significa aquilo que está longe de Deus. É um sinal de perigo e, portanto, uma ameaça à colheita da boa semente semeada no mesmo campo. Por isso, a ideia dos servos zelosos é arrancar o quanto antes: «Queres que vamos arrancar o joio?» (v. 28b). A esses servos, correspondem as pessoas muito religiosas de todos os tempos, dos fariseus dos tempos de Jesus aos cristãos-católicos piedosos de hoje, e de outras religiões também. São as pessoas intolerantes que, por causa de um falso zelo, alimentam disseminam ódio e violência. Quem pensa dessa maneira, obviamente, não está em sintonia com o projeto de Jesus, mesmo que use o seu nome.

A resposta prudente do dono do campo revela a atitude que Jesus espera de seus seguidores: «Não! Pode acontecer que, arrancando o joio, arranqueis também o trigo. Deixai crescer um e outro até a colheita» (vv. 29-30a). Jesus quer mostrar que, antes de tudo, o cristão não pode apresentar-se como juiz de ninguém. Julgar é prerrogativa de Deus apenas, e esse não julga pelas aparências, sem antes ver os frutos. Enquanto não chegar o tempo da colheita, não é possível distinguir o bem do mal, o saudável daquilo que é nocivo. Somente pelos frutos é possível conhecer a árvore. A pressa daqueles servos em arrancar logo o joio poderia comprometer toda a colheita. Isso revela extremismo, intolerância, falta de capacidade para conviver com as diferenças. Essa tendência continua presente ainda em muitos seguimentos da religião cristã, infelizmente. O Reino dos céus proposto por Jesus não é uma sociedade de pessoas perfeitas, alheia à história e às contradições da existência, não é uma comunidade de puros. O Reino só pode ser construído no meio do conflito. Por isso, exige capacidade de diálogo, respeito às diferenças e paciência.

A segunda parábola, ainda relacionada ao mundo agrícola, a do grão de mostarda (vv. 31-32) é a resposta de Jesus aos desejos de grandeza e poder na sua comunidade. Essa parábola encontra-se também em Marcos e Lucas (Mc 4,30-32; Lc 13,18-19). Diante da estrutura imperial e da grande organização da sinagoga, o projeto de Jesus se apresentava praticamente invisível. Os discípulos, sedentos de poder, não se conformavam com aquela situação. Diante disso, a resposta de Jesus foi desconcertante: «O Reino dos céus é como uma semente de mostarda que um homem pega e semeia no seu campo» (v. 31). Com isso, ele ensina que a comunidade dos discípulos deve aceitar a condição de pequenez em que se encontra e deve reconhecer essa pequenez como necessidade para compreender a dinâmica do Reino e se inserir nele. Ora, Reino, não pode impor-se por sinais de grandeza nem de espetáculo. O importante é que esse seja cultivado, mesmo como uma semente pequena, e colocar-se no mundo para servir, como acontece com a mostarda: depois que a planta cresce «os pássaros vêm e fazem ninhos em seus ramos» (v. 32b). A única preocupação dos que lutam pelo Reino deve ser se estão sendo abrigo e serviço para os mais necessitados, pois é isso que atesta a fidelidade a Jesus.

À terceira tentação ou problema, o desânimo e falta de paciência, Jesus dá como resposta a parábola do fermento, a mais difícil de ser aceita e compreendida entre as três, pelos discípulos de então: “O Reino dos céus é como o fermento que uma mulher pega e mistura com três porções de farinha, até que tudo fique fermentado” (v. 33). Essa se encontra também no Evangelho de Lucas (Lc 13,20-21) e é considerada uma das mais revolucionárias de Jesus porque apresenta o Reino dos céus sendo comparado a um elemento considerado impuro pela tradição judaica, o fermento, e com a atividade de uma mulher. Ora, para a cultura e tradição da época, a mulher pouco teria a contribuir com um projeto de sociedade como era o Reino dos céus e, no entanto, Jesus apresenta o seu agir como imagem da construção do seu Reino. Isso deve ter sido considerado um escândalo para os primeiros ouvintes e leitores, pois esperava-se a instauração do Reino como uma intervenção divina extraordinária na história. Enquanto isso, Jesus mostra o Reino como uma construção que surge nas bases, a partir das coisas simples e das pessoas pouco importantes.

O fermento era símbolo da subversão, porque tinha a capacidade de, mesmo em pequena quantidade, transformar a massa, dando-lhe nova forma e fazer crescer. O uso do pão fermentado era, inclusive, proibido para o uso litúrgico dos judeus (Ex 12,19; 13,7; Dt 16,3). Além de adulterar a massa, ainda exigia bastante paciência até que seu efeito se tornasse visível no pão. E era exatamente a paciência que estava acabando nos discípulos e levando-os ao desânimo. Como não viam efeito algum na pregação deles e de Jesus, pois o mundo continuava do mesmo jeito, estavam propensos a desistir, à medida em que aumentavam as exigências de coragem e disposição. Com uma parábola como essa, Jesus quis injetar ânimo e perseverança neles e, ao mesmo tempo, desconstruir a imagem distorcida de um Reino marcado pela grandeza e pelos sinais exteriores. O Reino de Deus, pelo contrário, se constrói no anonimato e na simplicidade. Ninguém vê o fermento agindo dentro da massa. Uma vez que ele é injetado, se torna invisível ao misturar-se com a massa. No entanto, quem tiver paciência de esperar o seu efeito, o verá, e até de modo surpreendente.

A comunidade cristã tem o papel do fermento: de modo subversivo, ou seja, mesmo contra a legalidade, irradiar um jeito alternativo de viver, a partir de relações de solidariedade, igualdade, justiça e amor, até contagiar toda a massa, ou seja, as sociedades com seus padrões convencionais de comportamento. Esse trabalho de injetar fermento na massa é inclusivo, deve ser feito por todos e todas, mas começa pelos mais excluídos e desprezados da história, como as mulheres, conforme o exemplo da parábola. Enfim, são os gestos pequenos e simples, de pessoas humildes, marginalizadas, como era a mulher na época do texto, que podem transformar o mundo e torná-lo apto à vivência do Evangelho. São os pequenos e humildes os agentes privilegiados de Deus para introduzir o seu Reino no mundo. A última parte do texto é a explicação da parábola do joio e do trigo (vv. 36-43), considerada um acréscimo redacional da comunidade. Ao todo, somente duas parábolas recebem uma explicação atribuída a Jesus: a do semeador, lida no domingo passado, e a do joio e o trigo, lida hoje. A explicação da do joio e o trigo deve-se à dificuldade de aceitação nas primeiras comunidades, pois seu ensinamento visa estimular a paciência e a tolerância com todas as adversidades que possam aparecer na comunidade e na vida de cada pessoa, incluindo o próprio mal. 

Com essas três parábolas de hoje, de modo brilhante, Mateus respondeu aos questionamentos da sua comunidade, recordando como Jesus também reagia às crises do grupo dos Doze. Certamente, essas respostas são válidas para todos os momentos da história. É preciso reforçar sempre que no Reino dos céus não há espaço para classificação entre bons e maus, puros e impuros, porque é uma comunidade de iguais, cujos distintivos são apenas os frutos; é uma comunidade pequena, mas acolhedora e servidora e, sobretudo, transformadora, para aqueles que aceitam ser subvertidos pelo Evangelho.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, julho 15, 2023

REFLEXÃO PARA O 15º DOMINGO DO TEMPO COMUM – MATEUS 13,1-23 (ANO A)


Neste décimo quinto domingo do tempo comum, iniciamos a leitura do “discurso em parábolas”, que é o terceiro dos cinco grandes discursos de Jesus no Evangelho de Mateus. Nesse discurso, o Reino dos Céus é ilustrado a partir de sete parábolas, que ocupam praticamente todo o capítulo treze do Evangelho. A liturgia propõe a leitura desse capítulo por três domingos consecutivos, começando hoje. O texto proposto especificamente para esse domingo é Mt 13,1-23. Se trata de um texto bastante extenso, o qual contém a primeira parábola do discurso (vv. 1-9), as motivações do discurso em parábolas (vv. 10-17), e a explicação da parábola para os discípulos (vv. 18-23). Considerando a extensão do texto, não comentaremos versículo por versículo. Procuramos colher a mensagem central do texto em seu conjunto. Para uma compreensão mais adequada do texto, é necessário fazer uma pequena contextualização introdutória, sobretudo por se tratar de uma nova fase na vida e no ministério de Jesus, com uma nova metodologia, como veremos a seguir.

A mudança de metodologia e perspectiva que o texto reflete faz parte da reação de Jesus às rejeições sofridas pela sua mensagem em algumas cidades da Galileia após o discurso missionário e o envio dos discípulos (Mt 11–12). Ora, tinha ficado claro que nem todos se interessaram pelo anúncio da Boa Nova do Reino, tanto por Jesus quanto pelos discípulos por ele enviados. Diante disso, Jesus apresenta o Reino e seus mistérios a partir de uma série de sete parábolas, visando tornar a sua mensagem ainda mais acessível, especialmente para as pessoas simples e humildes, que já lhe tinham dado sinal de adesão, ao contrário dos sábios e entendidos que não se interessavam pela sua mensagem libertadora (Mt 11,25). Certamente, diante do aparente fracasso da missão de Jesus até então, seus discípulos lhe questionaram a respeito da eficácia e até mesmo da utilidade do seu anúncio: porque anunciar, se poucos escutam, e dos que escutam, poucos compreendem e acreditam? Por que o anúncio da Boa Nova do Reino praticamente não causa efeito algum no mundo? Vale a pena continuar? Sem dúvidas, o conjunto de parábolas do capítulo treze, e sobretudo a de hoje, faz parte da tentativa de Jesus e o evangelista responderem a questionamentos desse tipo.

Por trás dos prováveis questionamentos dos discípulos estava também uma concepção distorcida de messianismo, já que o perfil de Jesus fugia dos padrões e das expectativas mais convencionais do judaísmo da época: ao invés de um messias potente e guerreiro, Jesus se apresenta simples, manso e humilde de coração (Mt 11,29); ao invés de reconstruir o antigo reino de Davi, Ele propõe o Reino dos Céus como alternativa de sociedade, cujas características principais são a igualdade, o amor fraterno, a justiça e a solidariedade. Com as parábolas, a dinâmica Reino poderia ser mais bem compreendida pelos discípulos e pelas comunidades destinatárias de todos os tempos, desde que aceitem a condição de pequeninos/a (Mt 11,25), disposição essencial para conhecer a mensagem de Jesus e conduzir a existência a partir dela. Além dos mistérios do Reino em si, as parábolas também ajudam a compreender a dinâmica de aceitação e rejeição, o que mais inquietava os discípulos naquele momento de crise vivido pelo grupo. Por último, ainda a nível de contexto, convém recordar que o texto reflete mais a situação da comunidade do evangelista do que mesmo a do grupo dos primeiros discípulos de Jesus.

Feitas as observações a nível de contexto, voltamos a nossa atenção diretamente para o texto, que começa dessa maneira: «Naquele dia, Jesus saiu de casa para sentar-se às margens do mar da Galileia» (v. 1). Jesus já estava radicado em Cafarnaum, cidade localizada às margens do lago da Galileia, chamado de mar pelo evangelista por motivos teológicos. O mar evoca perigo e hostilidade, é onde habitavam as forças do mal, segundo a mentalidade semita da época. As margens do mar significam lugar de movimento, fluxo de pessoas, abertura, contato com o diferente e exposição aos perigos. Permanecer em casa é sinal de segurança, fechamento e comodismo. Logo, o deslocamento de Jesus da casa para as margens do mar significa que, mesmo em um contexto de hostilidades à pregação do anúncio do Reino, a comunidade cristã não pode fechar-se em si nem buscar seguranças. Pelo contrário, deve lançar-se, colocar-se em saída e ir às margens. Com essa atitude de sair de casa e ir às margens do mar, Jesus convida a Igreja de todos os tempos a estar sempre em saída, sem medo de expor-se aos perigos e contradições do mundo.

Se Jesus permanecesse em casa, somente seus discípulos ouviriam teriam acesso à sua mensagem. Uma vez que saiu de casa, «uma grande multidão reuniu-se em volta dele. Por isso, Jesus entrou numa barca e sentou-se, enquanto a multidão ficava de pé na praia. E disse muitas coisas em parábolas» (vv. 2-3). Para romper as bolhas e chegar às multidões é necessário colocar-se em saída e assumir os riscos de tal opção. Inclusive, o gesto de sentar-se na barca é a confirmação desses riscos; a mensagem libertadora de Jesus não é um mero conteúdo para ser explicado de cátedras ou púlpitos, mas um programa de vida que comporta riscos para quem se dispõe a vivê-lo. Embora já tivesse contado várias parábolas (Mt 7,24-27; 9,15; 12,43-45), essa é a primeira vez que o evangelista usa propriamente o termo “parábola” (em grego: παραβολή – parabolê), cujo significado é pôr lado a lado duas realidades e compará-las; literalmente, significa comparação. E é isso o que Jesus faz, de fato. Ele apresenta o Reino a partir de comparações com elementos do cotidiano das pessoas, o que não significa que, necessariamente, será melhor compreendido por isso, mas pelo menos instigará a reflexão.

A primeira das parábolas que compõe o discurso é aquela que o Evangelho de hoje nos apresenta: «o semeador saiu para semear» (v. 3b). Essa parábola é considerada a “parábola mãe” de todas as parábolas. Inclusive, está presente nos três evangelhos sinóticos (Mt; Mc; Lc), o que demonstra tratar-se de uma parábola com ampla aceitação e circulação entre as primeiras comunidades. Conforme vem descrito, esse semeador lança a semente em quatro tipos diferentes de terrenos: caminho, pedra, espinho e terra boa (vv. 4-8), sem distinção. Certamente há, aqui, uma grande discrepância com as práticas agrícolas modernas, facilmente perceptível aos leitores de hoje. Na antiga Palestina, cenário dos evangelhos, a terra não era preparada com antecedência para a plantação. Jogava-se a semente na terra e só se começava a prepará-la quando as plantas nasciam e cresciam, a ponto de distinguir a planta boa da árvore daninha (ver o exemplo da parábola do joio e do trigo, Mt 13,24-30). Perder sementes jogadas em terrenos duvidosos era visto como natural. O importante era a confiança e a certeza de que em algum lugar a semente haveria de nascer, crescer e frutificar em abundância.

É importante recordar que, mesmo tendo a multidão como auditório, o público-alvo principal da parábola e de todo ensinamento de Jesus é sempre os discípulos, tanto aqueles de primeira chamada quanto a comunidade cristã de todos os tempos. E uma das primeiras lições da parábola é que a comunidade anunciadora do Reino não deve escolher a quem anunciar, assim como o semeador não escolhe o terreno antes de lançar a semente. Inclusive, a maioria das interpretações fixam a atenção no significado da semente, fazendo passar despercebida a figura do semeador que, aqui na parábola, é o próprio Jesus. É ele o semeador que espalha sementes de amor e esperança em todos os tipos de terreno, sem preocupar-se com os resultados e, por isso, é o modelo para os discípulos. Isso faz dessa parábola uma das mais autobiográficas. Ora, diante dos fracassos recentes na missão evangelizadora de Jesus com os doze, a tendência nos discípulos era selecionar melhor os destinatários do anúncio e não perder mais tempo. Jesus está, com essa parábola, advertindo a Igreja de todos os tempos que na sua missão, estará mais presente o fracasso do que o sucesso, afinal, de quatro tipos de terreno, somente em um deles a semente frutificou. A comunidade deve confiar na eficácia da Palavra e, ao mesmo tempo, conscientizar-se das diversas oposições que essa recebe e que podem impedir o seu crescimento.

Apesar dos fracassos constados na semeadura, de uma coisa a comunidade não pode duvidar: a Palavra tem uma força transformadora incrível; ela é mesmo viva e eficaz, o que é demonstrado na parábola pela imagem da semente caída em terra boa e «é capaz de produzir à base de cem, sessenta e de trinta frutos por semente» (v. 8). Essa imagem exageradamente abundante dos frutos é importante e confortante a uma comunidade, sobretudo quando essa se sentir esgotada, fracassada, devido aos poucos resultados da evangelização. Ora, convencionalmente, o máximo que se esperava de um cacho (ou espiga) de trigo era trinta grãos. Aqui está uma demonstração da vida em plenitude que receberão aqueles que aderirem ao projeto do Reino. O que parecia ser muito (trinta frutos) passa a ser mínimo diante da beleza e abundância que é a vida de quem se deixou conduzir pelos frutos do Reino. A colheita surpreendente (cem frutos por semente) só é possível para quem confia na Palavra e se abre completamente aos valores do Reino. O que parecia muito, conforme a lógica da colheita nos tempos de Jesus, é o mínimo na dinâmica do Reino. Diante da abundância da colheita gerada pela semente caída em terra boa, a perda das sementes perdidas caídas nos terrenos inapropriados é insignificante. Com isso, confirma-se, mais uma vez, a lógica do Reino: é preciso perder para poder ganhar.

Após contar a primeira das sete parábolas do discurso, o evangelista diz que «os discípulos aproximaram-se e disseram a Jesus: ‘porque falas ao povo em parábolas?’» (v. 10). A resposta de Jesus é bastante longa e enigmática (vv. 11-17), usando, inclusive, o profeta Isaías (Is 6,9-10). Assim como havia níveis diferentes de adesão à pregação de Jesus e ao seu Evangelho, posteriormente, também havia diferenças no modo de compreender a sua Palavra nas comunidades. Nem toda a multidão estava apta a compreender por que isso não é possível sem uma experiência autêntica com Ele. Inclusive, ele deixa claro que não serve um conhecimento superficial da sua pessoa: ou se conhece profundamente ou não se conhece nada d’Ele. Por conhecimento de Jesus, compreende-se a experiência de amor que se faz com a sua pessoa, e não a abstração de ideias a seu respeito. No gesto dos discípulos aproximarem-se dele, está o modelo para o discipulado de todos os tempos: não basta ouvi-lo, é necessário aproximar-se dele, estar ao seu lado e vice-versa, para a palavra, enquanto semente, enraizar no coração e frutificar. Quanto mais a comunidade se aproximar dele, mais compreenderá a sua palavra. Por isso, o sentido de comunidade também é profundamente evidenciado pelo evangelista nessa passagem. A comunidade reunida é o espaço privilegiado para questionar, tirar dúvidas e aprofundar o sentido dos ensinamentos de Jesus.

Ao esclarecer os motivos pelos quais falava em parábolas, Jesus aprofunda, em estilo sapiencial, o sentido da Palavra: ela transforma, cria raízes no coração, por isso «aquele que tem será dado ainda mais, e terá em abundância; mas à pessoa que não tem, será tirado até o pouco que tem» (v. 12). É claro que Jesus não está falando de bens ou riquezas materiais, mas do conhecimento da sua pessoa, dos mistérios do Reino e da Palavra. Quem o conhece superficialmente, na verdade não o conhece; quem o conhece verdadeiramente, o conhecerá ainda mais. No coração onde a Palavra apenas tocou sem criar raízes, ela logo desaparecerá. Mas, onde ela de fato enraíza e frutifica, os frutos são cada vez mais abundantes. O desejo de Jesus é que a Palavra seja acolhida por todos e todas, mas a experiência estava mostrando que não era possível. Nem todos a acolhiam. Uns faziam de conta, ou seja, ouviam, mas não se deixavam transformar por ela. A apresentação do Reino em parábolas é, portanto, um convite à reflexão: através das imagens usadas, as pessoas podem refletir com mais calma depois de ouvi-la e, assim, decidir se querem aderir ou não à sua proposta de vida.

A explicação da parábola aos discípulos (vv. 18-23) é, sem dúvida, um acréscimo posterior da comunidade, como forma de manter a mensagem de Jesus sempre atualizada. Novamente, é reforçado o valor e a importância da comunidade para a compreensão e vivência dos ensinamentos de Jesus. Quando está reunida ao redor da Palavra, a comunidade encontra sentido para a sua situação concreta e para os ensinamentos de Jesus. Ora, não basta recordar o que o Jesus falou, é necessário ler a realidade atual à luz da sua mensagem e aplicá-la. Nessa explicação, Mateus adverte sua comunidade e as comunidades de todos os tempos para a importância de saber lidar com as diferenças e a paciência no modo de anunciar e acolher a Palavra. O certo é que a escuta deve ser seguida do aproximar-se. Quanto mais se escuta Jesus, mais vontade se tem de aproximar-se de Jesus e continuar escutando-o, sempre de modo mais aprofundado, à medida em que aumenta a intimidade com ele. Mais do que descrever quatro categorias de pessoas, os quatro terrenos da parábola são advertências e indicações de que cada discípulo e discípula pode comportar em si as quatro situações de acolhida ou resistência à Palavra que é destinada a todas as pessoas, sem distinção, enquanto caminho de humanização e vida abundante. Por isso, os quatro tipos de terrenos evocam também a universalidade do evangelho: todas as pessoas tem direito de ter acesso a ele, sem imposição, com liberdade de aceitá-lo ou não.

Estrada, pedra, espinhos e terra boa, portanto, está no coração de um. Que a Igreja seja estimulada a sair constantemente de si mesma para lançar as sementes do Reino, a Palavra, em todas as circunstâncias. O importante é ter coragem de deixar a casa e assumir as margens do mar, sem medo. E cada cristão e cristã em particular deve sentir motivação para viver um processo de conversão permanente e, assim, a terra boa se sobreporá no coração, possibilitando que a Palavra produza frutos de amor, justiça, paz e solidariedade. Quanto mais terra boa houver em nosso coração mais aptos estaremos a ser também semeadores, como Jesus. 

Pe. Francisco Cornélio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, julho 08, 2023

REFLEXÃO PARA O 14º DOMINGO DO TEMPO COMUM – MATEUS 11,25-30 (ANO A)



Neste décimo quarto domingo do tempo comum, a liturgia retoma a leitura semi-contínua do Evangelho de Mateus, interrompida no domingo passado, por ocasião da solenidade dos santos apóstolos Pedro e Paulo. O trecho lido hoje – Mt 11,25-30 – faz parte da seção narrativa intermediária entre o discurso missionário (Mt 10) e o discurso em parábolas (Mt 13). Esse texto, embora curto, possui uma relevância ímpar no Evangelho de Mateus, tanto do ponto de vista literário quanto teológico. É a primeira vez que Jesus se dirige a Deus como Pai, no relato de Mateus. Em ocasiões anteriores, como no discurso da montanha (Mt 5–7), ele já tinha feito referências a Deus como Pai, mas não tinha se dirigido diretamente, ou seja, não tinha invocado Deus dessa forma. Isso confere grande importância a esse texto, considerado uma verdadeira “joia”, literária e teológica do Evangelho de Mateus, sendo considerado também uma espécie de síntese e aprofundamento do próprio discurso da montanha, que é o coração teológico da obra.  

Como já afirmamos em outras ocasiões, a alternância entre discurso e narrativa é uma característica literária marcante do Evangelho de Mateus. A recordação desse aspecto é sempre importante, tanto para a compreensão da obra em seu conjunto quanto de cada texto lido separadamente, como o de hoje, por exemplo. No discurso missionário (Mt 10), Jesus preparou seus discípulos e os enviou em missão para ajudar a sanar a situação de abandono e exploração em que se encontravam as multidões (Mt 9,36–11,1). Diz o evangelista que, após instruir os discípulos para a missão, também Jesus saiu para ensinar e pregar nas cidades da Galileia (Mt 11,1). De fato, sempre que Jesus conclui um discurso, Mateus o mostra tomando iniciativas, agindo concretamente em favor da libertação do povo sofrido. Isso serve de advertência para as comunidades cristãs de todos os tempos: os discursos só têm sentido se forem acompanhados de gestos concretos e ações humanizantes. A maneira como Jesus conciliava discurso e práxis, portanto, deve ser o parâmetro para o agir cristão em todos os tempos.

Ainda a propósito do discurso missionário e envio dos discípulos, é importante recordar que, embora o evangelista não fale nada sobre o retorno deles e o resultado da missão, tudo indica que não foram bem-sucedidos. O contexto e as entrelinhas do texto revelam que houve rejeição e hostilidades, segundo a perspectiva de Mateus. Os relatos de Marcos e Lucas, ao contrário, revelam um certo otimismo, dando a entender que aquela primeira missão foi exitosa (Mc 6,30; Lc 9,10). A versão de Mateus é bem menos otimista, certamente por causa da situação concreta das suas comunidades na época da redação do Evangelho (anos 80 do primeiro século), quando os conflitos entre a comunidade cristã e o judaísmo estavam muito acesos. Por isso, ele ressalta mais as adversidades encontradas na missão, não para desmotivar, mas para encorajar ainda mais a comunidade na perseverança e fidelidade ao Evangelho. Inclusive, para mostrar que as desconfianças, dúvidas e rejeições ao projeto de Jesus não são motivos para a comunidade desanimar, Mateus traz a dúvida de João Batista sobre a messianidade de Jesus para esse mesmo contexto do discurso missionário e envio dos discípulos.

Já preso, por ordem do rei Herodes, João Batista desconfiou da messianidade e autenticidade do ministério de Jesus, a ponto de enviar seus discípulos para tirar algumas dúvidas, afinal, o comportamento de Jesus não correspondia às suas expectativas (Mt 11,2-19). Ora, João tinha anunciado um messias juiz e vingador, alguém que vinha ao mundo para premiar os bons e condenar os pecadores (Mt 3,7-12), enquanto Jesus se misturava com os pecadores, bebendo e comendo com eles (Mt 11,18). Além das dúvidas de João, o evangelista registra o desgosto de Jesus com as cidades que Ele escolheu como primeiras destinatárias da sua missão: «Então começou a recriminar as cidades onde tinha realizado a maioria dos seus milagres, porque elas não tinham se convertido» (cf. Mt 11,20-24). Essas cidades eram Corazim, Betsaida e Cafarnaum, escolhidas a dedo para o anúncio da chegada do Reino dos céus. Com a sua reputação posta em dúvidas pelo seu próprio mentor, João Batista, e a rejeição de seus compatriotas galileus, Jesus tinha tudo para decretar a falência do seu projeto. Porém, fez exatamente o contrário: louvou ao Pai por tudo o que estava acontecendo. É esse o contexto do evangelho de hoje. Jesus passava por um momento delicado na sua missão, sofrendo rejeição e hostilidade, com sua messianidade sendo posta em dúvida. Mas sua resposta a essa situação não é de desânimo, pelo contrário, é de quem sente ainda mais necessidade de confiar em Deus e nos propósitos para os quais fora enviado. Renunciar a tais propósitos seria aceitar que as multidões continuassem abandonadas, como ovelhas que não tem pastor (Mt 9,36). E Jesus não fez isso, pois ao mundo para dar sua própria vida por quem tem a vida ameaçada e a dignidade negada.

Feita a devida contextualização, voltamos nossa atenção para o texto de hoje, que apresenta a resposta de Jesus a tudo isso que acabamos de recordar: «Naquele tempo, Jesus pôs-se a dizer: ‘Eu te louvo, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e entendidos, e as revelastes aos pequeninos’» (v. 25). A primeira observação importante que fazemos diz respeito à expressão «Naquele tempo» que, dessa vez, faz parte mesmo do texto bíblico, e tem uma importância relevante. Como a liturgia praticamente banalizou essa expressão, colocando-a sempre como fórmula de introdução ao evangelho, corremos o risco de não perceber seu real significado no texto de hoje. Ora, ao precisar temporalmente o episódio, “Naquele tempo” (em grego: έν έκείνω τω καιρω – en ekeíno tô kairô), o evangelista relaciona diretamente as palavras de Jesus aos acontecimentos anteriormente narrados. Isso quer que dizer que as palavras e atitudes de Jesus são resposta concreta e reação direta aos últimos acontecimentos. E a reação de Jesus não foi o desespero e nem o desânimo, mas uma oração de louvor e ação de graças ao Pai, por ver seus propósitos sendo realizados, por mais paradoxal que parecesse.

Ao invés de sentir-se falido em suas pretensões, diante das rejeições sofridas e a desconfiança do seu mestre João Batista, Jesus sente-se realizado porque, de fato, os propósitos de Deus, o Pai, começam a concretizar-se: o mundo novo só pode ser construído com a adesão dos pequeninos (em grego: νηπίοις – nêpióis), termo que compreende todas as categorias de pessoas por quem Jesus fez opção preferencial e abraçaram o seu projeto: pobres, inocentes, indefesos, humildes, pecadores, etc. Nesse termo está a síntese dos verdadeiros necessitados de vida nova e libertação. O Reino dos céus, que implica no desmoronamento dos sistemas de poder vigentes, por isso é ameaça para os ricos e poderosos, os detentores de poder político e religioso, só tem sentido e só é possível se o programa de vida de Jesus for abraçado. Esse programa consiste na vivência das bem-aventuranças (Mt 5,1-12). Os pequeninos que estão conhecendo “estas coisas” são: os pobres, os mansos, os aflitos, os famintos e sedentos de justiça, os misericordiosos, os puros de coração, os promotores da paz e os perseguidos, ou seja, os bem-aventurados. Essas pessoas, sim, percebem em Jesus o advento de um novo mundo e um novo tempo, por isso, o acolhem como a resposta humanizante de Deus ao mundo. Por “estas coisas” compreende-se o Evangelho em sua totalidade, cuja expressão mais concreta é o jeito de viver do próprio Jesus, que deve ser assimilado por todos os seus seguidores e seguidoras.

Quanto aos “sábios e entendidos”, para eles os valores do Reino permanecem ocultos devido à soberba, orgulho, avareza, legalismo e uso da força e da violência, tanto física quanto simbólica, incluindo os sistemas religiosos que se impõem pelo medo. Esses são os dirigentes, a elite política e religiosa, principalmente. São aqueles que não tem coragem de tornar-se pequenos e, por isso, não entrarão no Reino dos céus (Mt 18,3). Quem assume o poder como meio de dominação, seja econômica, política ou ideológica, tende a rejeitar um projeto de sociedade justa, igualitária e fraterna, como é o Reino dos céus. Não resta dúvida de que a crítica de Jesus aqui se aplica mais ao campo religioso: os “sábios e entendidos” que não conhecem “as coisas do Pai” são os representantes oficiais da doutrina e da Lei – escribas, mestres da Lei, sacerdotes e fariseus – aqueles que passam a vida impondo normas e vigiando quem está cumprindo ou não, embora sejam eles os primeiros a não cumprir. Esses, como representantes de um Deus juiz, severo e vingativo, não estão aptos a aceitar os propósitos de um Deus-Pai, o Deus de Jesus, que nada impõe, mas apenas oferece amor.

Diante disso, Jesus não se desespera, mas expressa mais uma vez a sua convicção de que os desígnios de Deus, o Pai, estão acontecendo: «Sim, Pai, porque assim foi do teu agrado» (v. 26)A palavra grega que o lecionário traduz por agrado (εὐδοκία – eudokía) significa muito mais: quer dizer propósito, projeto, decisão. E tudo o que Jesus fazia estava em conformidade com o projeto de Deus, o seu Pai. E ele veio ao mundo exatamente para realizar esse projeto. O rechaço à vontade de Deus por quem deveria abraçá-la primeiro – os conhecedores da Lei – já era previsto. Por isso, Jesus não se admira diante dos fatos, mas vê neles a confirmação da sua fidelidade à missão que lhe foi confiada pelo Pai e que ele mesmo compartilha com seus discípulos e discípulas de todos os tempos. E o projeto do Pai é que os pequeninos conheçam cada vez os seus propósitos e a sua vontade. E, uma vez conhecendo, os pequeninos devem lutar, ajudados pela mensagem libertadora do Evangelho, para que o projeto de Deus se realize plenamente, o que resultará num mundo humanizado, com justiça, igualdade, fraternidade, solidariedade e, acima de tudo, amor. Os grandes – sábios e entendidos – vêem isso como ameaça aos seus privilégios, por isso rechaçam o Evangelho de Jesus, que é a revelação máxima do projeto de Deus, o Pai.

Jesus conhecia em profundidade o projeto do Pai por causa da comunhão íntima vivida entre os dois. Com isso, ele ensina que ninguém pode conhecer o Pai e seus propósitos a partir de códigos e doutrinas, como acreditavam os fariseus, escribas e sacerdotes, mas somente amando e sentindo-se amado, fazendo-se pequeno para sentir a grandeza do amor de Deus. E Jesus fala do seu Deus-Pai com propriedade porque é o Filho e o conhece em profundidade. Por isso, pode dizer convictamente: «Tudo me foi entregue por meu Pai, e ninguém conhece o Filho, senão o Pai, e ninguém conhece o Pai, senão o Filho e aquele a quem o Filho o quiser revelar» (v. 27)Essa declaração reforça a intimidade de Jesus com o Pai e ao mesmo tempo denuncia a ilegitimidade da religião vivida pelos considerados grandes da sua época – os fariseus, mestres da lei e sacerdotes. Aquela religião não tinha legitimidade porque anunciava sem conhecer, pois, se baseava em códigos legais e doutrinas e, assim, ao invés de revelar, escondia o rosto verdadeiro de Deus. Na linguagem bíblica, o conhecimento não significa uma aquisição intelectual, mas uma relação de intimidade. Conhecer alguém, portanto, significa ser íntimo, relacionar-se com total transparência e cumplicidade. E assim é a relação de Jesus com o Pai e, consequentemente, com aqueles a quem ele quis revelar a si mesmo e ao Pai. Quem quiser conhecer o Deus que é Pai, portanto, deve antes tornar-se íntimo de Jesus. E cultiva-se intimidade com Jesus fazendo-se seu discípulo, deixando-se humanizar pelo seu amor e abraçando seu programa de vida expresso nas bem-aventuranças.

Os pequeninos podem conhecer o que Jesus revela – o amor do Pai – porque não é fruto de especulações, mas de uma relação íntima entre um Pai e um Filho que se amam reciprocamente. Jesus não propõe uma teoria, mas o resultado de uma experiência de amor; por isso, é compreensível pelos pequeninos, os seus prediletos. Ainda a respeito dessa declaração que fala claramente da relação Pai-Filho, convém recordar a novidade que ela representa aqui, pois se trata de uma linguagem muito característica das tradições ligadas ao Evangelho de João, sobretudo no longo discurso de despedida (Jo 14–17). Por isso, é muito significativa a sua presença nesse texto de Mateus, exatamente quando Jesus expressa a sua satisfação em ver os pequeninos compreendendo a dinâmica do Reino. Esses pequeninos são aquelas mesmas multidões cansadas e abatidas, que provocaram a compaixão em Jesus, porque estavam como ovelhas que não têm pastor, ou seja, estavam abandonadas e exploradas, sobretudo pelas lideranças religiosas da época (Mt 9,36).

Inconformado com o abandono do povo e a exploração da qual era vítima, sobretudo pelo peso da Lei, Jesus faz um solene e ousado convite: «Vinde a mim todos vós que estais cansados e fatigados sob o peso dos vossos fardos, e eu vos darei descanso» (v. 28). A ousadia de Jesus aqui consiste em convidar à ruptura com todos os sistemas de opressão, que negam liberdade e vida plena. E era exatamente a religião quem mais deixava o povo cansado e fatigado, impondo fardos que nem mesmo os chefes religiosos conseguiam carregar (Mt 23,4). Além da opressão do império romano, com a cobrança excessiva de impostos, o povo ainda era submetido à coerção de uma religião rígida, com muitas normas, mas vazia de conhecimento de Deus, por isso, imperava a hipocrisia. Daí o convite de Jesus para a verdadeira libertação: «Vinde a mim... e eu vos darei descanso»É claro que o descanso que Jesus promete não é uma vida cômoda e fácil, mas sim uma vida livre das imposições Lei e do peso da doutrina. Em outras palavras, esse descanso é a humanização plena, a liberdade e a capacidade de amar e sentir-se amado; é sinal de realização do Reino dos céus e da vocação originária do ser humano, pois evoca a perfeição e a completude de uma obra boa, como a criação (Gn 2,2): também Deus descansou após completar a criação, sentindo-se realizado. A realização do ser humano, portanto, leva-o ao descanso, não por comodismo ou um mero repouso, mas pela certeza da realização da missão e vocação originárias.

E, na sequência, Jesus amplia o convite, tornando-o ainda mais explícito: «Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração, e vós encontrareis descanso» (v. 29)Tomar o jugo de Jesus é trocar a observância rígida da Lei pela prática das bem-aventuranças. É preciso aprender de Jesus porque somente Ele, como Filho, pode revelar plenamente o rosto amoroso do Pai, e somente fazendo uma experiência profunda de amor-comunhão, é possível libertar-se do jugo imposto pelos guardiões da lei e da doutrina. Se as bem-aventuranças em si constituem o verdadeiro retrato de Jesus, as duas características que Ele cita aqui formam a mais perfeita síntese da sua pessoa: manso e humilde de coração. É importante ressaltar que a mansidão vivida por Jesus não pode ser confundida com resignação nem comodismo. Pelo contrário, essa consiste na coragem de lutar pelo Reino, mesmo na adversidade sem, no entanto, recorrer aos mecanismos do opressor, como a violência e o ódio, sobretudo. Portanto, não significa um alívio passageiro diante provações cotidianas da vida. Assimilar a mansidão e humildade de Jesus significa abraçar o desafio da construção de um mundo novo, humanizado, com justiça, fraternidade, igualdade e muito amor. É nisso que consiste o verdadeiro descanso. Significa fazer a criação inteira recuperar o seu estado primordial, pois foi assim que o próprio descansou.

Ao contrário do peso das prescrições legais impostas pela religião do seu tempo, Jesus dá uma garantia aos seus seguidores: «O meu jugo é suave e o meu fardo é leve» (v. 30). É claro que ele não está prometendo facilidades na vida para aqueles que abraçarem o seu projeto, como já foi ressaltado anteriormente. O seu fardo, que é leve, consiste exatamente na vivência das bem-aventuranças, o que implica muitas exigências e desafios, sobretudo no campo ético. Inclusive, o principal critério para reconhecer se alguém está vivendo as bem-aventuranças é exatamente a perseguição (Mt 5,11-12). Isso reforça que a leveza prometida não significa comodismo. A proposta de Jesus é suave e leve porque não consiste em preceitos a cumprir, mas num amor a ser experimentado e, consequentemente, compartilhado. E nisso consiste a missão cristã no mundo: compartilhar o amor, fazer o mundo conhecer um amor que humaniza e faz viver.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

REFLEXÃO PARA O 4º DOMINGO DA PÁSCOA – JOÃO 10,11-18 (ANO B)

O evangelho do quarto domingo da páscoa é sempre tirado do capítulo décimo do Evangelho de João, no qual Jesus se auto apresenta como o ún...