No último domingo da primeira fase do tempo comum,
antes da pausa para o ciclo pascal, a liturgia conclui a leitura do discurso da
planície, iniciada há dois domingos, mesmo ainda restando alguns versículos (cf.
Lc 6,46-49). O texto proposto para hoje é Lucas 6,39-45, um conjunto de
sentenças proverbiais usadas como advertências e incentivo para a comunidade
cristã manter-se coerente e fiel aos ensinamentos de Jesus. O discurso, desde o
seu início com a proclamação dos pobres como bem-aventurados, propõe uma
verdadeira revolução no jeito de viver dos seguidores e seguidoras de Jesus,
cuja expressão mais comprometedora é a exigência de amor até pelos inimigos
(cf. Lc 6,27.35), e a regra de ouro é “fazer aos outros o que deseja para si”
(cf. Lc 6,31). Se trata de um programa de vida revolucionário, movido pelo
amor, cujo sucesso ou fracasso depende da adesão e coerência dos discípulos,
foco do evangelho de hoje.
Embora Jesus se encontrasse diante de um auditório
numeroso e heterogêneo, pois além dos discípulos havia uma grande multidão
composta por pessoas de toda a Judeia, de Jerusalém e do litoral de Tiro e
Sidônia (cf. Lc 6,17), os principais destinatários são os discípulos. São eles,
portanto, os que devem viver primeiro e de modo incondicional o programa de
vida proposto por Jesus. Por isso, diz o evangelista que “Jesus contou uma
parábola aos discípulos: “Pode um cego guiar outro cego? Não cairão os dois num
buraco?” (v. 39). Provavelmente o evangelista empregou o termo parábola (em
grego: παραβολή – parabolê)
aqui para dar ênfase ao ensinamento, mas o conteúdo, formalmente, não pertence
a esse gênero literário, exceto os últimos versículos que comparam o agir
humano aos frutos de uma árvore, e o coração a um tesouro. Com um provérbio
bastante claro, Jesus chama a atenção dos seus seguidores e seguidoras a
viverem como pessoas iluminadas e lúcidas e, sobretudo, abertas aos seus
ensinamentos. A cegueira, em linguagem bíblica, significa ausência de Deus e
dos seus mandamentos; na comunidade de Jesus, significa fechamento ao
Evangelho. Se os cristãos são chamados a ser luz, logo devem esforçar-se para
evitar a cegueira. Isso se faz vivendo e praticando o que ensina o Evangelho. Só
pode ser luz para os outros quem já é portador de luz, ou seja, quem se deixa
iluminar pelo Evangelho de Jesus.
O segundo provérbio é uma denúncia aos sinais
de divisão e prepotência que podem surgir na comunidade e, consequentemente, um
convite à humildade: “Um discípulo não é maior do que o mestre; todo
discípulo bem formado será como o mestre” (v. 40). Provavelmente, esse
versículo reflete mais a situação da comunidade de Lucas do que o grupo inicial
dos discípulos. Havia uma tendência de hierarquização, e isso comprometia
bastante a vida comunitária, pois feria o princípio de uma comunidade
igualitária, como propôs Jesus. Para manter o princípio da igualdade é
necessário que estejam todos numa mesma condição e ninguém se atreva a ocupar o
lugar de mestre que pertence somente a Jesus. Ao invés de ocupar o seu lugar,
os discípulos devem esforçar-se somente para ser como ele, vivendo como ele
viveu, sobretudo, no jeito de amar.
Do risco de alguém na comunidade ocupar o lugar
do mestre, emanam diversos outros riscos, como a arrogância e a prepotência, inclusive
falsos ideais de perfeição. Por isso, a séria advertência de Jesus: “Por que
vês o circo que está no olho do teu irmão, e não percebes a trave que há no teu
próprio olho?” (v. 41). Mais do que um risco, esse parece ser um problema já
enraizado na comunidade, e combatido pelo evangelista. Existiam e existem pessoas
que se consideram irrepreensíveis, atribuindo para si a capacidade e o direito de
julgar os outros. Esse tipo de comportamento é totalmente alheio ao ensinamento
de Jesus e, por isso, inadequado à sua comunidade.
O próprio Jesus reforça o combate a essa
tendência tão prejudicial ao seu projeto: “Como podes dizer a teu irmão:
‘Irmão, deixa-me tirar o cisco do teu olho’, quando não percebes a trave no teu
próprio olho? Hipócrita! Tira primeiro a trave do teu olho, e então poderás
enxergar bem para tirar o cisco do olho do teu irmão” (v. 42). Essa é a
primeira vez que Lucas emprega a palavra hipócrita no seu evangelho; esse termo
(em grego: υποκριτική – hipocritês) significa
literalmente “aquele que põe a máscara”, o ator ou intérprete no teatro grego. Enquanto
Mateus, por exemplo, reserva essa palavra aos fariseus e mestres da lei (cf. Mt
6,2.5.16; 15,7;22,18), Lucas reconhece o perigo da hipocrisia também no seio da
comunidade e, por isso, denuncia. Geralmente, quem mais vê defeitos no outro,
quem se considera irrepreensível diante de Deus, quem tem facilidade em julgar
o próximo, são as pessoas mais distantes dos verdadeiros valores do Evangelho.
Essa tendência deve ser combatida e denunciada constantemente, pois fere o
ideal de vida proposto por Jesus.
A imagem da árvore com os frutos tem a
finalidade de animar os cristãos a traduzir na vida concreta a relação com
Cristo: “Não existe árvore boa que dê frutos ruins, nem árvore ruim que dê
frutos bons. Toda árvore é reconhecida pelos seus frutos. Não se colhem figos
de espinheiros, nem uvas de plantas espinhosas” (vv. 43-44). A pertença de
alguém a Cristo e a coerência aos seus ensinamentos serão reveladas
naturalmente pelos frutos. De quem se alimenta do Evangelho, não podem brotar
frutos que não sejam amor, justiça e solidariedade. Ao invés de julgar o
próximo, conforme a advertência anterior (cf. vv. 41-42), os seguidores e
seguidoras de Jesus devem preocupar-se com a qualidade dos frutos gerados. A oposição
entre frutos bons e ruins deve ajudar o ouvinte e leitor a perceber as
consequências de suas ações e pensamentos, levando-os a uma reflexão mais
profunda sobre a fonte de todo o agir humano, conforme a mentalidade bíblica: o
coração.
Como síntese conclusiva, Jesus apresenta uma
pequena parábola: “O homem bom tira coisas boas do bom tesouro do seu coração.
Mas o homem mau tira coisas más do seu mau tesouro, pois sua boca fala do que o
coração está cheio” (v. 45). Assim, ele ensina que, além do agir, também as
palavras tem grande importância para a vida cristã, pois revelam a qualidade da
fonte que as origina: o coração humano. O coração como um tesouro é uma imagem
clássica na linguagem bíblica (cf. Eclo 29,11), pois é o que o ser humano tem
de mais precioso; é a sede do processamento de todos os sentimentos e
pensamentos. Se o comportamento e o agir são importantes e decisivos para o bem
da comunidade, cada um e cada uma devem estar atentos ao que origina tal agir. Por
isso, o cuidado com as disposições interiores, das quais dependem se os frutos
produzidos serão bons ou ruins.
Pe. Francisco Cornelio F.
Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
"O homem bom tira coisas boas do bom tesouro do seu coração. Mas o homem mau tira coisas más do seu mau tesouro, pois sua boca fala do que o coração está cheio" o evangelho de hoje esta muito apropriado para o que temos lido de mensagens nas redes sociais
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