A liturgia deste sétimo domingo do tempo comum propõe a continuação da leitura do chamado “discurso da planície” do Evangelho de Lucas (Lc 6,17-49). Como se sabe, esse discurso é a versão lucana paralela e alternativa ao famoso “discurso da montanha” do Evangelho de Mateus (Mt 5–7). Certamente, ambos os evangelistas utilizaram a mesma fonte ou tradição – a chamada “Fonte Q” –, mas cada um adaptou-a às suas intenções teológicas e às necessidades de suas respectivas comunidades, de modo que são bem evidentes as diferenças entre as duas versões, conforme já acenamos na reflexão do domingo passado, a começar pelo cenário da cena: enquanto Mateus localiza o discurso no alto de uma montanha, Lucas diz que a proclamação se deu numa planície. Além das variações no conteúdo, talvez essa seja a principal diferença entre as duas perspectivas. Outra diferença considerável diz respeito aos destinatários de cada discurso. Em Mateus, o discurso da montanha é dirigido exclusivamente aos discípulos, enquanto o discurso da planície de Lucas tem, além dos discípulos, também as multidões como destinatárias, reforçando o enfoque universalista do respectivo evangelista.
O texto lido hoje – Lc 6,27-38 – é a sequência imediata daquele do domingo passado (Lc 6,17.20-26). Naquela ocasião, Jesus identificou um mundo escandalosamente dividido entre pobres e ricos: de um lado, os pobres, que passam fome, choram e sofrem perseguições; do outro, os ricos, que vivem na fartura, riem e são exaltados. Movido sempre por sua íntima relação com o Pai, ainda mais porque tinha acabado de descer da montanha, onde tinha orado ao Pai e escolhido os Doze, Jesus tinha certeza que aquele mundo tão desumanizado, dividido e desigual não correspondia aos propósitos de Deus. Por isso, certamente inspirado no exemplo dos grandes profetas do Antigo Testamento, ele tomou partido pelo lado mais fraco, o lado dos pobres e famintos, os que choram e são perseguidos, proclamando-os bem-aventurados e incentivando-os à luta perseverante e transformadora, para superar aquele abismo, garantindo-lhes a primazia no Reino de Deus, que se constrói desde agora. Por outro lado, aos ricos, risonhos, saciados e exaltados, Jesus proferiu sérias denúncias, com a proclamação das chamadas “maldições”, introduzidas pela fórmula profética de lamento e denúncia “ai de vós”. Portanto, é necessário recuperar essa imagem de um mundo dividido e desigual, diante do qual Jesus nunca se conformou, para compreender a mensagem do evangelho de hoje, que pode ser considerado um hino ao amor e ao perdão.
Antes de tudo, é interessante recordar que Jesus não se limitou a diagnosticar a situação. Ele foi bem mais além, propondo uma verdadeira reviravolta na história, com revolução de valores. A transformação querida por Jesus, obviamente, não pode se realizar pela força, e sim pelo amor. Claramente, ele escolheu um lado, o dos pobres e pequenos, e propôs um caminho de superação, correspondente aos propósitos do Pai: «A vós, que me escutais, eu digo: amais os vossos inimigos e fazei o bem aos que vos odeiam» (27). O convite à observação daquilo que se escuta é um importante indicativo da transmissão oral do ensinamento, como acontecia no cristianismo primitivo, o que posteriormente deu origem aos principais escritos do Novo Testamento. A maneira como o convite é exposto funciona também como indício de importância da mensagem, que é destinada a todas as pessoas que, em qualquer época, tenham contato com o Evangelho. Inclusive, a sequência da mensagem vai revelar seu caráter universalista. Ora, diante de um mundo ferido pela ganância, desigual e dividido, o caminho de superação não pode ser outro senão o amor, a maior força de humanização encontrada por Jesus e tão radicalmente vivida. De fato, o amor é a base da sociedade alternativa proposta por Jesus, correspondente ao que ele mesmo chama de Reino de Deus, conforme mostram os evangelhos.
Por “inimigos”, neste texto e neste primeiro versículo, sobretudo, compreende-se as pessoas que praticam o mal, aquelas que são prejudiciais e responsáveis pelo sofrimento do outro. À medida em que devem ser amadas, deixam de ser inimigas. São as pessoas que, segundo uma lógica puramente humana, deveriam ser odiadas e eternamente condenadas. Jesus, no entanto, propõe uma verdadeira revolução, pelo amor, e esse é o grande diferencial da sua mensagem. Para isso, não ilustra seu ensinamento com exemplos abstratos inalcançáveis, mas com situações bem concretas: «Bendizei os que vos amaldiçoam, e rezai por aqueles que vos caluniam. Se alguém te der uma bofetada numa face, oferece também a outra. Se alguém te tomar o manto, deixa-o levar também a túnica. Dá a quem te pedir e, se alguém tirar o que é teu, não peças que o devolva» (vv. 28-30). Essas são situações do dia-a-dia, acessíveis a todas as pessoas, embora altamente desafiadoras, pois exigem grande empenho na prática da tolerância e do amor. Provavelmente, eram situações já vividas pelas primeiras comunidades cristãs e agravadas nos tempos em que Mateus e Lucas compuseram suas obras, entre as décadas de 70 e 90 do primeiro século. Diante das hostilidades, era forte a tendência a distanciar-se da radicalidade exigida pela mensagem de Jesus, que é o seu próprio jeito de viver. Por isso, a insistência dos evangelistas. A resposta cristã ao ódio é o amor e a oração, em qualquer circunstância. E essa se constitui como um dos principais diferenciais da mensagem cristã em relação a qualquer outra experiência de vida religiosa e social. Oferecer a outra face é sinal de que não foi intimidado pela violência recebida, é uma forma sutil de denúncia. Obviamente, não é um convite à aceitação passiva do mal e da violência, mas uma alternativa que leva o próprio praticante do mal a reconhecer a ineficácia de suas práticas, sentindo-se ele mesmo humilhado. Na época, predominavam duas formas de responder ao mal e à violência: aceitar passivamente o mal sofrido ou reagir violentamente; Jesus propõe uma terceira via, a única capaz de fazer o malvado reconhecer a ineficácia e a covardia de suas práticas. É claro que não se trata de resignação diante da injustiça sofrida, mas sim de combatê-la da maneira mais eficaz, a ponto de desarmar os injustos. Com uma proposta tão ousada, Jesus está propondo o fim da corrente da violência, mostrando que o mal só pode ser combatido e vencido pelo bem. A violência sempre gera mais violência; por isso, ela é inaceitável, sejam quais forem as circunstâncias.
Com esse discurso, se vê claramente que Jesus não ensina uma doutrina, mas apresenta uma proposta de vida, conforme a maneira dele mesmo viver, a fim de humanizar o mundo. E a regra de ouro para a realização dessa proposta é esta: «O que vós desejais que os outros vos façam, fazei-o também vós a eles» (v. 31). Essa regra é a resposta a todo movimento ou sistema que prega a violência ou até mesmo a reciprocidade nas relações. É dirigida a toda a humanidade, em todos os tempos. É considerada a regra de ouro da caridade e da vida cristã, inclusive, é o que mais faz o cristianismo ser tão admirado, enquanto estilo de vida, por pessoas de outras religiões e até por ateus. Embora tenha antecedentes parecidos no Antigo Testamento, a formulação de Jesus é totalmente original. Em Tb 4,15a, por exemplo, temos uma máxima muito parecida, embora formulada a partir da via negativa: «Não façais a ninguém o que não queres que te façam». Algumas escolas rabínicas da época de Jesus e das primeiras comunidades cristãs pregavam a partir dessa máxima. A originalidade da formulação de Jesus é a motivação a um agir concreto, a fazer o bem, e não apenas a não praticar o mal. Como se vê, o empenho exigido por Jesus é bem maior. Para ele, não basta não fazer o mal, mas é preciso fazer o bem, sempre. Com isso, ele está também combatendo todo tipo de indiferença. De fato, o conjunto da sua mensagem revela que a indiferença constitui um dos piores males na vida, tanto em âmbito pessoal quanto social, comunitário.
O seguidor de Jesus deve fazer o bem sem exigir nada do outro, além de jamais retribuir com a mesma medida por uma ofensa recebida. Deve se colocar no lugar do outro, sem nada exigir, e refletir sobre as consequências de suas próprias ações, como será explicitado nos versículos seguintes: «Se amais somente aqueles que vos amam, que recompensa tereis? Até os pecadores amam aqueles que os amam. E se fazeis o bem somente aos que vos fazem o bem, que recompensa tereis? Até os pecadores fazem assim. E se emprestais somente àqueles de quem esperais receber, que recompensa tereis? Até os pecadores emprestam aos pecadores, para receber de volta a mesma quantia» (v. 32-34). Existe um nível de comportamento e de relações acessível a todos, e que é praticado em praticamente todas as sociedades: a reciprocidade. Por exemplo, amar alguém sabendo que é amado por esse alguém é uma atitude que não exige o conhecimento do Evangelho nem intimidade com Jesus. O mesmo vale para a prática de gestos caritativos, quando se sabe que haverá retribuição do outro. Isso é comum a todas culturas. Até os pecadores fazem isso, como ele afirma. “Os pecadores”, aqui, significa todas as categorias de quem não pauta a vida segundo o Evangelho; não quer dizer as pessoas más em si, e sim quem ainda não conhece a mensagem cristã. Mas também as pessoas más podem fazer isso, ou seja, agir segundo a lógica da retribuição, amando aqueles que sabem que lhes amam, e pagando pelo mesmo valor um bem ou um favor recebido. O princípio do amor se aplica também a outros tipos de relações, como o fazer o bem de um modo geral, e a prática dos empréstimos. Em qualquer que seja o grau ou o tipo de relação, o autêntico seguidor de Jesus deixa a sua marca, fazendo como ele mesmo fazia, ou seja, agindo de modo totalmente desinteressado, sem receber qualquer recompensa ou retribuição.
Novamente no imperativo, o convite a amar os inimigos é reforçado, junto com o fazer o bem: «Ao contrário, amai os vossos inimigos, fazei o bem e emprestai sem esperar coisa alguma em troca. Então, a vossa recompensa será grande, e sereis filhos do Altíssimo, porque Deus é bondoso também para com os ingratos e maus» (v. 35). É necessário que o discípulo e a discípula de Jesus façam além do óbvio, que pratiquem o amor e a justiça de modo gratuito e desinteressado. Porém, inevitavelmente a recompensa virá, não como salário em forma material, mas em dignidade: tornar-se filhos ou filhas do Altíssimo. Ser filho, nessa perspectiva, significa ser parecido com o pai. É essa a dinâmica do amor proposto por Jesus: tornar o ser humano parecido com Deus, sendo bondoso como Ele é. E o caminho para isso é a assimilação da mensagem de Jesus, a mais eficaz fonte de humanização que a história já conheceu. Para reforçar ainda mais a necessidade de tornar-se parecido com Deus, Jesus parte da principal característica desse Deus: «Sede misericordiosos, como também o vosso Pai é misericordioso» (v. 36). Aqui, Jesus ousa reformular o solene mandamento de Levítico 19,2: «Sede santos, porque eu, o Senhor, vosso Deus, sou santo». Esse mandamento fora decisivo para a construção da identidade de Israel e, por consequência, de seu orgulho e privilégio de povo eleito; compreendia-se a santidade como a separação dos outros povos. Jesus inova e faz uma reinterpretação decisiva para a sua comunidade, começando pela reformulação da imagem de Deus, que passa de santo a misericordioso, como passa também a ser compreendido como um Pai. Ora, o conceito de santo indica separação, por consequência, distância do ser humano, enquanto o traço da misericórdia recorda a atenção de Deus aos seres humanos, seus filhos. Sua misericórdia indica que ele está totalmente voltado para a humanidade, necessitada de amor e misericórdia. A partir dessa imagem é que deve ser imitado pelos seus filhos. Ser misericordioso significa ser bondoso, é cultivar somente bondade dentro de si e nas relações com o próximo, sem necessidade de separação; pelo contrário, é necessário misturar-se, como ele fez, com gente de “todo tipo”, para facilitar a irradiação do amor e, assim, tornar conhecido o verdadeiro rosto de Deus, o seu Pai. Amor e bondade são traços inseparáveis, e devem ser os sinais mais distintivos na vida dos seguidores e seguidoras de Jesus.
Ainda de acordo com a “regra de ouro” das relações – «O que vós desejais que os outros vos façam, fazei-o também vós a eles» (v. 31) – Jesus acrescenta outras exigências, como desdobramento, para que seu programa seja realmente vivido e, por consequência, o mundo seja transformado e plenamente humanizado. Por isso, ele diz: «Não julgueis e não sereis julgados; não condeneis e não sereis condenados; perdoai e sereis perdoados. Dai e vos será dado. Uma boa medida, calcada, sacudida, transbordante será colocada no vosso colo; porque, com a mesma medida com que medirdes os outros, vós também sereis medidos» (vv. 37-38). É claro que ele não está afirmando que o agir humano é critério para o agir de Deus. Pelo contrário, é Deus o critério, sobretudo na bondade e no amor, o que inclui a capacidade de perdoar. Porém, mais uma vez, ele reivindica a coerência de vida. Julgar e condenar não são prerrogativas de nenhum ser humano. Isso compete somente a Deus, que escolheu o amor misericordioso como meio e critério. É preciso assimilar o estilo de vida de Jesus, tornando-se artesão da paz e da humanização do mundo. E é exatamente no campo das relações com o próximo que os cristãos e cristãs revelam como se relacionam com Deus e como absorveram o Evangelho de Jesus.
Essa foi, portanto, a resposta e o caminho para um mundo ferido, injustiçado, dividido e desigual reencontrar o seu equilíbrio: acolhendo o ensinamento de Jesus sobre o amor e vivendo intensamente esse amor. Para isso, não é suficiente esperar passivamente a mudança de estruturas, mas cada um e cada uma deve, no dia-a-dia, experimentar esse amor e pautar a vida a partir dele, começando pelas relações com o próximo e as experiências concretas do cotidiano. Para concluir, é importante recordar que o amor e o perdão sem medidas, como ensina o evangelho de hoje, não se opõe à luta por justiça e pela superação das desigualdades. Ao pregar o amor aos inimigos, Jesus não está cancelando os “ai de vós” àqueles que fazem os pobres passar fome, chorar e ser perseguidos.
Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
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