O evangelho proposto para a liturgia deste sexto domingo do tempo comum é Lc 6,17.20-26. Esse texto contém a apresentação lucana das “bem-aventuranças”, as quais são seguidas pelas respectivas negações, ou seja, pelas situações opostas ao que é proclamado nas bem-aventuranças, chamadas de “maldições”, um termo que pode parecer bastante áspero, mas que correspondente às reais intenções do texto e de todo o Evangelho de Lucas, que é reconhecido como o “Evangelho dos Pobres”, por unanimidade. De início, já recordamos que, ao longo da história, esse foi um dos textos de Lucas mais evitados nas igrejas e comunidades cristãs. Ora, como se sabe, as bem-aventuranças são reconhecidas como a síntese do programa de Jesus e o seu verdadeiro autorretrato; não se pode falar de Jesus sem recordá-las. Mas, como existem duas versões delas, uma em Mateus (Mt 5,1-12) e outra em Lucas, a Igreja preferiu sempre a versão de Mateus, por ser mais longa, por isso aparentemente mais completa e, sobretudo, por ser mais suave. Ora, enquanto na versão de Lucas se diz apenas “bem-aventurados os pobres”, na de Mateus se diz “bem-aventurados os pobres em espírito”; enquanto em Lucas se diz “bem-aventurados os que agora passam fome”, em Mateus se diz “bem-aventurados os que tem fome e sede de justiça”. Enfim, na versão de Lucas as bem-aventuranças possuem um significado mais concreto e imediato e, historicamente, as instituições religiosas costumam isentar-se das questões que exigem respostas e ações concretas urgentes, preferindo alimentar o sonho de uma felicidade eterna em outro mundo; claro que há exceções.
Outra grande diferença entre as duas versões é que em Mateus não constam as chamadas “maldições”, ou seja, a denúncia da negação das bem-aventuranças. O certo é que os dois evangelistas utilizaram uma mesma fonte – a chamada “Fonte Q” –, mas cada um adaptou-a às suas intenções teológicas e às necessidades de suas respectivas comunidades. Também há uma diferença considerável em relação ao número: em Mateus são oito bem-aventuranças, enquanto em Lucas constam apenas quatro, como são quatro também as maldições. As bem-aventuranças encontram suas raízes literárias na literatura sapiencial, onde predomina o elogio à pessoa justa, que segue retamente os caminhos do Senhor apontados pela Lei, bem como àquele que alcança prosperidade, justamente como consequência da fidelidade à Lei. Por isso, é surpreendente que Jesus proclama bem-aventurados quem não tinha motivos para ser considerado bem-aventurado: pobres, famintos e sofredores. Já as maldições são inspiradas na literatura profética: é uma forma de denúncia e reprovação ao comportamento de quem cometia injustiças e praticava um culto superficial. No decorrer da reflexão, retomaremos alguns desses aspectos introdutórios e contextuais, e ressaltaremos ainda outras diferenças entre a composição de Lucas e a de Mateus.
Comecemos o estudo do texto partindo do primeiro versículo, o qual apresenta muitas informações relevantes: «Jesus desceu da montanha com os discípulos e parou num lugar plano. Ali estavam muitos dos seus discípulos e grande multidão de gente de toda a Judeia e de Jerusalém, do litoral de Tiro e Sidônia» (v. 17). Para compreender esse versículo que fornece a ambientação do discurso, é necessário recordar o episódio que o antecede. Ora, Jesus tinha subido à montanha para orar, com seus discípulos, dentre os quais escolheu doze e os chamou de apóstolos, cujo significado é simplesmente “enviados” (Lc 6,12-16), termo que expressa uma função bem concreta, e não propriamente um título de honra. Quando ele desce da montanha, já está com o grupo dos doze constituído. Outro detalhe importante deste primeiro versículo, e que evidencia uma das principais diferenças em relação à versão de Mateus, é o cenário do discurso: em Mateus, as bem-aventuranças são proclamadas numa montanha, daí a origem do famoso “discurso da montanha”; em Lucas, Jesus ensina a partir da planície, como diz o texto, “num lugar plano”. A princípio, parece um detalhe insignificante, mas trata-se de algo muito relevante para a catequese lucana. Logo, recordá-lo é essencial para uma compreensão correta do texto.
A montanha em Lucas é apenas o lugar de oração, não do ensinamento. Na montanha, conforme a perspectiva lucana, Jesus se encontra com o Pai. Para ensinar, ele prefere o lugar plano, onde se encontra com as pessoas de todas as categorias, mantendo uma relação de proximidade. De fato, o lugar plano evoca acessibilidade e igualdade, além da superação dos obstáculos para a chegada do messias. Recordemos que, de acordo com o próprio Lucas, fundamentado em Is 40,4, a missão de João – o Precursor – consistia exatamente em «aplainar os caminhos e remover as montanhas» (Lc 2,76; 3,4-6). Portanto, o lugar plano é o lugar ideal para o anúncio da Boa Nova porque recorda a remoção das montanhas que impediam a passagem do Messias. Como recorda o texto profético de Isaías, a montanha era obstáculo para o caminho; e o caminho, por sua vez, constitui um dos temas centrais de toda a obra lucana. Além disso, o “Jesus de Lucas” não tem os traços “catedráticos” do “Jesus de Mateus”. Como se sabe, Mateus faz todo o esforço possível, às vezes até exageradamente, por necessidade de suas comunidades de origem predominantemente judaicas, para Jesus parecer um novo Moisés, um legislador. Lucas se esforça para mostrar Jesus como um homem do povo, totalmente acessível; qualquer pessoa pode chegar perto dele. O lugar plano, portanto, evoca acessibilidade e igualdade, é o espaço ideal para o encontro. No retrato de Jesus que Lucas pinta, ele se mistura com gente de “todo tipo”, se torna um igual a todos. Por causa dessa acessibilidade e por não fazer distinção de pessoas, será duramente criticado pelos escribas e fariseus (Lc 15,2).
E o evangelista não se contenta em dizer que havia uma grande multidão, obviamente para escutar Jesus, mas expressa a diversidade cultural dessa multidão como sinal do universalismo da sua mensagem. Tinha gente de todas as partes: da Judéia e de Jerusalém, símbolos do judaísmo mais fiel, e até de terras pagãs: “do litoral de Tiro e Sidônia”. Esse dado é muito importante, pois ainda é reflexo do rechaço sofrido na sinagoga de Nazaré: quando ele tentou anunciar o seu programa ao seu povo, no espaço sacro da sinagoga, não foi compreendido, nem aceito; na verdade, quase foi morto, escapou por pouco. Ao buscar espaços alternativos, considerados até profanos, como a beira do lago de Genesaré (Lc 5,1-11 – evangelho do domingo passado), e a planície, encontrou grandes multidões de ouvintes. Inclusive, o que ele vai anunciar no lugar plano é o mesmo que começou a anunciar na sinagoga de Nazaré, quando foi interrompido pelos judeus fanáticos de lá: o anúncio da Boa Nova aos pobres (Lc 4,18), demonstrando a predileção de Deus por eles, não por méritos, mas por necessidade. Esse é um dos temas mais caros para Lucas, já introduzido no Evangelho da Infância, através do Magnificat (Lc 1,46-55). Inclusive, numa interpretação mais literal e com viés devocional mariano, se poderia até dizer que Jesus aprendeu com sua mãe a amar e defender os pobres, e a denunciar os ricos e prepotentes. Como o chamado “Evangelho da infância” (Lc 1–2) funciona como introdução a toda a obra lucana, pode-se dizer que o evangelho de hoje foi introduzido pelo cântico de Maria.
Somente em um lugar plano, e longe das instituições, Jesus pôde, finalmente, anunciar com clareza a sua Boa Nova aos pobres: «levantando os olhos para os discípulos, disse: “Bem-aventurados vós, os pobres, porque vosso é o Reino de Deus!”» (v. 20). Jesus levanta os olhos para os discípulos, não como destinatários exclusivos da sua mensagem, mas como os primeiros. Ao dizer que ele ensina “levantando os olhos” para os interlocutores, o evangelista quer mostrar também a maneira de Jesus se comunicar e se relacionar com as pessoas: de modo claro e direto, olhando diretamente para as pessoas, sem superficialidade. Os discípulos já fizeram opção pelo Reino, alguns já tinha deixado tudo, como Simão Pedro e os dois filhos de Zebedeu, conforme vimos no evangelho do domingo passado. Também outros, como Levi, um cobrador de impostos, cujo episódio foi saltado pela liturgia (Lc 5,27-39). Mas toda a multidão, composta por gente de diversos lugares e culturas, também destinatária do anúncio da Boa Nova, ainda precisava conhecer essa mensagem. Dirigindo-se primeiro aos discípulos, Jesus os responsabiliza perante a multidão: eles são os primeiros que devem viver radicalmente a sua mensagem, a Boa Nova. A forma introdutória “bem-aventurados” (em grego μακάριοι = macárioi) é bastante utilizada na Bíblica, sobretudo na literatura sapiencial, como já afirmamos na introdução; o termo correspondente em hebraico (ashrêi) possui dois significados: além dos adjetivos “felizes”, “bem-aventurados” ou “benditos”, corresponde também ao imperativo do verbo caminhar, marchar ou “seguir em frente”. Por isso, aqui Jesus não está apenas saudando, mas incentivando à transformação; o Reino de Deus, ainda em construção, já é dos pobres que caminham em busca de transformação. Não se trata de uma promessa de futuro, mas uma constatação do agora.
Convém sempre recordar que o “Reino de Deus” não é a vida eterna no além, mas é o mundo transformado a partir de novas relações, alicerçadas no amor, na justiça e na partilha. É um mundo livre de todas as injustiças e opressões; o mundo novo que Jesus começou a anunciar em Nazaré, mas foi rechaçado pelos seus conterrâneos. É aquele mundo sonhado em que se vê «os cegos recuperando a vista, os cativos sendo libertados» (Lc 4,18-19). Foi esse mundo que Deus pensou para toda a humanidade, desde o princípio, mas até hoje está impossibilitado de realizar-se plenamente, devido à ganância de muitos, da qual decorrem todos os tipos de injustiça. Jesus reacende a esperança: o Reino é dos pobres, e esses, por sua vez, devem lutar por ele sem comodismo, sem conformismo, mas pondo-se em marcha, buscando e lutando para conquistá-lo, obviamente, sem violência. Na sequência, Jesus não apresenta novas categorias de pessoas, mas continua se dirigindo aos pobres, ressaltando a situação em que se encontram: «Bem-aventurados vós, que agora tendes fome, porque sereis saciados! Bem-aventurados vós, que agora chorais, porque havereis de rir!» (v. 21). Fome e pranto são situações que pedem transformações urgentes; são situações que não podem mais esperar! Por isso, essas palavras de Jesus não podem ser usadas como discurso de resignação. São palavras que interpelam a comunidade a sair do comodismo. Das necessidades e direitos fundamentais, a primeira é o alimento. A fome é um mal que deve ser combatido com toda veemência, é uma carência que não pode esperar; exige urgência. O pranto é consequência da dor e do sofrimento. É importante identificar quem sãos culpados por essa situação, e o próprio Jesus identifica, logo a seguir: são os ricos, geralmente gananciosos e egoístas; os poderosos já denunciados no canto de Maria (Lc 1,46-55)
Já tendo experimentado a rejeição entre os seus próprios conterrâneos de Nazaré, Jesus alerta seus discípulos e os seus ouvintes de todos os tempos sobre o destino de quem abraçar o seu programa de vida: «Bem-aventurados sereis quando os homens vos odiarem, vos expulsarem, vos insultarem e amaldiçoarem o vosso nome, por causa do Filho do Homem!» (v. 22). Num mundo marcado por injustiça, governado por pessoas injustas, quem se alinhar ao projeto de Jesus não terá outro destino senão a perseguição e o ódio. Lucas já sentia isso em suas comunidades. Ora, por volta do ano 80 d.C. – época mais provável da redação do seu Evangelho – muitos cristãos já tinham sido perseguidos e até martirizados, porque tinham se colocado em marcha por transformação, porque tinham lutado pelo Reino, ou seja, porque tinham abraçado integralmente o programa de vida de Jesus. O destino dos profetas do Antigo Testamento era o parâmetro, o principal sinal para Jesus: a perseguição é o verdadeiro atestado de fidelidade ao Reino de Deus, e sinal de felicidade autêntica: «Alegrai-vos, nesse dia, e exultai, pois, será grande a vossa recompensa no céu; porque era assim que os antepassados deles tratavam os profetas» (v. 23). Com essa afirmação, Jesus – o profeta de Nazaré – declara que o seu seguimento é puro profetismo. Ser discípulo de Jesus é, portanto, ser profeta à maneira de Amós, Isaías, Jeremias e tantos outros. Jesus se inspira nos profetas, tanto no teor da mensagem quanto no estilo de vida, como devem fazer também os seus discípulos.
O anúncio das maldições é mais uma das novidades de Lucas em relação a Mateus, como recordamos na introdução. Como se vê, às quatro bem-aventuranças, Lucas opõe quatro maldições, como se fossem as bem-aventuranças ao contrário (vv. 24-26). De fato, se trata da negação das bem-aventuranças. A fórmula introdutória “ai” (em grego: οὐαὶ ὑμῖν – uaí hymin) encontra forte atestação nos livros proféticos, introduzindo as denúncias mais fortes dos profetas às situações de injustiça vigentes (Am 5,18; Is 1,4; 10,1). É uma forma de lamento e denúncia, ao mesmo tempo. Com elas, Jesus está denunciando os responsáveis pela situação precedente: se há pobres passando fome e chorando, é porque tem pessoas excessivamente saciadas e risonhas, divertindo-se às custas do sofrimento dos outros. Essas pessoas, obviamente, são os ricos, os poderosos. Jesus lamenta que a ganância destas pessoas gere fome e sofrimento nos pobres, e denuncia essa situação como inaceitável, insustentável, pois contraria o projeto sonhado por Deus de um mundo justo com igualdade e fraternidade. E ele denuncia que não pode participar do Reino de Deus quem contribui para a miséria dos pobres, com a ganância desenfreada.
Na última denúncia, Jesus apresenta a característica básica dos falsos profetas: ser elogiados (v. 26). É exatamente o contrário do sinal distintivo – a perseguição (v. 23) – dos profetas verdadeiros, como devem ser seus discípulos e discípulas de todos os tempos. Os autênticos profetas (Elias, Amós, Isaías, Jeremias, João Batista, etc.) tiveram como destino comum, a perseguição; isso porque não tiveram medo de denunciar as mesmas injustiças que Jesus, o profeta por excelência, estava denunciando. Em um mundo de injustiças, o agir profético é um incômodo para os poderosos. A história recente da América Latina e do Brasil é uma boa demonstração disso; de São Oscar Romero ao Padre Júlio Lancellotti, são inúmeros os profetas e profetisas que levantaram a voz e continuam gritando “ai de vós” às injustiças mais recorrentes nos tempos atuais, como a fome, a falta de moradia e trabalho digno. Por isso, estes profetas e profetisas sofreram e sofrem sérias consequências por causa disso, sendo perseguidos e caluniados a todo instante. Os falsos profetas, pelo contrário, recebiam/recebem elogios dos poderosos porque proclamavam apenas palavras de conforto para eles; eram coniventes com as injustiças, e isso Jesus denuncia com veemência, alertando seus discípulos a não agirem de tal modo. Logo, perseguição e elogio são indícios de inconformismo ou conivência diante das injustiças.
O evangelho de hoje, portanto, é um manifesto muito claro de que Jesus tem um lado e, por isso, seus discípulos de outrora, de hoje e de sempre, também devem ter. Assim como os antigos profetas, Jesus não consegue falar apenas de sentimentos, com uma mensagem de “conforto espiritual” e resignação. Pelo contrário, ele se dirige às situações concretas da vida, às pessoas que sofrem, sem medo de denunciar os responsáveis por tais sofrimentos. Ser discípulo e discípula de Jesus é, portanto, também assumir um lado na história e lutar por sua transformação, sem jamais renunciar àquilo que é a essência da sua mensagem: o amor.
Pe. Francisco Cornelio Freire Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
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