Devido à coincidência
com o dia seis de agosto, neste ano, a liturgia do décimo oitavo domingo do
tempo comum é substituída pela da festa da Transfiguração do Senhor. O evangelho
dessa festa é sempre um dos relatos da transfiguração, obviamente. Trata-se de um
episódio narrado pelos três evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas), o
que possibilita à liturgia oferecer um texto para cada ano, conforme o ciclo
litúrgico (A, B e C), sem necessariamente repetir, uma vez que, mesmo se
tratando do mesmo episódio, cada evangelista o narra à sua maneira, conforme as
suas intenções teológicas, suas habilidades literárias e, sobretudo,
respondendo às necessidades de suas respectivas comunidades. Isso faz com que
os três relatos apresentem diferenças entre si, apesar de serem muito parecidos e narrarem o mesmo acontecimento. Por ocasião do ciclo litúrgico A, o texto
proposto para este ano é o relato de Mateus: 17,1-9. Além da festa homônima, o
evangelho da transfiguração é lido também no segundo domingo da Quaresma, todos
os anos, e ocorre o mesmo processo: a cada ano, se lê o relato do evangelista
corresponde ao ciclo litúrgico vigente. Isso quer dizer que o evangelho de hoje
já foi lido neste ano.
O relato da
transfiguração é um texto muito rico em teologia e simbologia, o que torna
indispensável uma breve contextualização, para uma compreensão mais adequada. E
começamos recordando a localização do texto na estrutura do evangelho. Talvez
esse seja o elemento mais decisivo para uma boa compreensão. A transfiguração é
precedida por três importantes momentos interligados: a confissão de fé de
Pedro (Mt 16,13-20); o primeiro anúncio da paixão (Mt 16,21-23) e a declaração
das exigências para o discipulado (Mt 16,24-28). Se trata de uma sequência
narrativa reveladora da messianidade e do destino de Jesus, cuja conclusão é
exatamente o episódio da transfiguração. Ora, com o primeiro anúncio da paixão,
Jesus deixou os discípulos assustados, pois a concepção de messias que eles
tinham em mente não era compatível com o sofrimento e a cruz, como Jesus havia
predito (Mt 17,21). Os discípulos esperavam um messias glorioso, valente e
guerreiro, conforme as expectativas da época, fruto da ideologia nacionalista
davídica, enquanto Jesus anunciou a doação da vida, comportando sofrimento e
cruz, se necessário, para alcançar a glória e a vida em plenitude. Inclusive,
impôs a disposição para carregar a cruz e doar a própria vida como condição
para fazer parte do seu discipulado. A transfiguração é, portanto, a resposta
de Jesus à incompreensão dos discípulos acerca da sua identidade, e uma
demonstração de que cruz e glória fazem parte de um mesmo caminho: o destino do
ser humano é a glória, mas essa passa pela cruz.
Uma vez
contextualizados, vamos olhar para o texto, começando pelo primeiro
versículo: «Naquele tempo, Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João, seu
irmão, e os levou a um lugar à parte, sobre uma alta montanha» (v. 1).
Aqui, a versão litúrgica omitiu um indicativo temporal importante,
substituindo-o pela genérica expressão “naquele tempo”. O texto original começa
com a indicação cronológica “seis dias depois”, como sinal de relação e
continuidade com o último episódio narrado: o primeiro anúncio da paixão e a
contestação de Pedro, com as exigências para o discipulado (Mt 16,21-28). Ora,
Pedro professou sua fé em Jesus como Messias, mas ao mesmo tempo não aceitou o
caminho doloroso da cruz, fazendo Jesus repreendê-lo duramente, chamando-o de
satanás, por tornar-se um empecilho à realização do projeto de Deus. Portanto,
“Seis dias depois” de ter anunciado a sua morte, Jesus mostra aos discípulos a
vida em plenitude. O sexto dia foi o dia da criação do homem e da mulher (Gn
1,26-31), e é nesse dia que Jesus manifesta o ser humano em sua máxima
dignidade e realização. Logo, ele é o modelo de humanidade. É o ser humano
plenamente realizado e humanizado. E a plenitude humana consiste na semelhança
com o criador. E é Jesus quem ensina a humanidade a reencontrar essa semelhança,
começando pelo seu estilo de vida, do qual a transfiguração é o resultado
final.
Jesus tomou consigo três discípulos: Pedro, Tiago e João. A escolha desses três discípulos não significa privilégio, como às vezes se diz, mas necessidade. Eles não eram os melhores, mas sim os três mais difíceis de lidar e os que mais tinham dificuldade de assimilar os ensinamentos de Jesus enquanto Messias sofredor. Pedro é sinônimo de dureza e fechamento; é o discípulo que Jesus mais repreende durante todo o seu itinerário. Como ele sempre se antecipa, sendo o primeiro a responder às perguntas de Jesus, é aquele que mais se expõe e, por isso, é o primeiro a ser corrigido. João e Tiago, conhecidos como “filhos do trovão” (Mc 3,17), eram os mais fanáticos, ambiciosos (Mc 10,35-45; Mt 20,20-28), de temperamento difícil, eram também os mais intolerantes. Pouco tempo após este episódio da transfiguração, Jesus repreenderá João por proibir a um homem que não fazia parte do grupo de pregar e expulsar demônios em seu nome (Mc 9,38-39). Os dois, João e Tiago, também foram repreendidos quando quiseram tocar fogo nos samaritanos que os rejeitaram (Lc 9,51-55). Portanto, Jesus os chama para estarem mais perto de si pela necessidade de cada um e por não desistir do ser humano, apesar das fraquezas e debilidades. Eles necessitavam estar mais próximos a Jesus e aprender mais com ele, como de fato estarão. Na Paixão, esses três – Pedro, João e Tiago – serão as testemunhas de Jesus durante a agonia no Getsêmani (Mt 26,36-37). Isso significa que eles mudaram com o tempo, não se tornando perfeitos, mas aprendendo a cada dia com Jesus, à medida em que conviviam com ele e ouviam seus ensinamentos.
Na tradição hebraica, a montanha é, por excelência, o lugar do encontro do
ser humano com Deus. Tanto em Israel quanto nas culturas circunvizinhas,
imaginava-se que para comunicar-se com a divindade, o ser humano precisava
escalar um monte. Assim, a montanha funcionava como um espaço intermediário e
necessário: o ser humano era incapaz de subir aos céus, e Deus era grande
demais para descer até a terra; daí a necessidade de um lugar intermediário
para os dois se comunicarem. Por isso, a montanha tornou-se o lugar da
revelação no Antigo Testamento (Ex 19,16; 24,15). Embora a tradição tenha
identificado essa montanha com o monte Tabor, esse dado não possui fundamento
nos evangelhos. Essa denominação começou com Cirilo de Jerusalém e foi
consolidada por São Jerônimo, mas hoje é considerada sem fundamento. É
preferível mantê-la anônima, como fizeram os evangelistas, porque não se trata
de um dado geográfico, mas teológico; toda ocasião de encontro e intimidade com
Deus é uma subida à montanha. E é justamente no Evangelho de
Mateus que a montanha tem mais relevância no Novo Testamento, sendo o lugar
onde ele diz que Jesus viveu momentos importantes do seu ministério: proclamou
as bem-aventuranças (5,1), multiplicou os pães (15,29), e como Ressuscitado,
aparecerá aos discípulos pela primeira vez (28,16).
O texto de
hoje diz que, no alto da montanha, Jesus «foi transfigurado diante
deles; o seu rosto brilhou como o sol e as suas roupas ficaram brancas como a
luz» (v. 2). Isso quer dizer que ele
passou por uma transformação no seu aspecto, uma metamorfose. É esse o
significado do verbo empregado pelo evangelista (em grego: μεταμορφόομαι – metamorfóomai). Diante da incredulidade e resistência dos
discípulos em aceitar a morte, Jesus antecipa para eles o resultado da paixão:
a manifestação gloriosa do Filho do Homem e, portanto, de Deus nele. Não apenas
o rosto brilhou, mas todo o seu ser, inclusive suas vestes. As mesmas imagens e
cores da glória de Deus ao longo da história são reveladas em Jesus; a luz é
também sinal do que é novo: à medida em que o Reino de Deus vai sendo
implantado, o universo todo se renova. Os personagens do Antigo
Testamento mais venerados na tradição judaica entram em cena: «Nisto,
apareceram-lhe Moisés e Elias, conversando com Jesus» (v. 3). Estes
personagens representam a Lei e os Profetas, obviamente. Temos, com isso, mais
uma iniciativa de Deus para conscientizar os discípulos de que o ensinamento de
Jesus está em consonância com tudo o que a Lei e os Profetas tinham afirmado a
respeito do Messias. Embora o programa de Jesus seja repleto de novidades, não
contradiz as Escrituras; é o seu pleno cumprimento. Os discípulos contemplam,
mas somente Jesus conversa com Moisés e Elias. Esse é mais um dado de grande
importância revelado pelo texto. Ora, a comunidade cristã, representada no
episódio pelos três discípulos, não depende mais do Antigo Testamento; em
Jesus, a Lei e os profetas encerram-se, chegam ao fim, enquanto cumprimento e
plenitude. Jesus é o critério de interpretação da Escritura: o Antigo Testamento
só tem sentido se passar por Ele. Por isso, Moisés e Elias nada tem a dizer
para a comunidade cristã senão através de Jesus. Moisés e Elias entregam a
Jesus a revelação parcial que tinha recebido, própria da antiga aliança, e
Jesus aperfeiçoa, completa. Por isso, é necessário passar por ele.
Pedro, ousado
como sempre, tomou a palavra e, mais uma vez, disse coisas reprováveis, apesar
das boas intenções: «Então, Pedro tomou a palavra e disse: ‘Senhor, é
bom ficarmos aqui. Se queres, vou fazer aqui três tendas: uma para ti, outra
para Moisés, e outra para Elias’» (v. 4). Na versão de Marcos, que
serviu de fonte para Mateus e Lucas, se diz que «Pedro não sabia o que
estava dizendo, pois estava fora de si» (Mc 9,6); estar «fora de si» na
linguagem bíblica significa um estado de loucura; esse detalhe só reforça o absurdo
da sua proposta. Três elementos são reprováveis na fala de Pedro: a primeira, é
a nova tentação sugerida a Jesus através do comodismo; permanecer na montanha é
ignorar o mundo real com seus problemas e contradições, é mostrar-se
indiferente às situações desafiadoras e fechar os olhos às injustiças que
assolam o mundo. Mais uma vez, Pedro procura uma maneira de tirar a cruz
do caminho de Jesus; na primeira vez, foi Jesus quem o repreendeu, agora será o
próprio Pai, ao interrompê-lo. O segundo elemento reprovável na fala de Pedro é
o seu apego à tradição e o não reconhecimento de Jesus como o centro da
vida: «uma para ti, uma para Moisés, e outra para Elias». Jesus
ainda não ocupava o centro da vida de Pedro, mas sim Moisés. Para a tradição
hebraica, o personagem mais importante é aquele que é citado em posição
central; Pedro insiste com a antiga tradição: está seguindo Jesus, mas ainda
coloca Moisés e a Lei no centro da vida; resiste em aceitar Jesus e o seu
evangelho como centro. O terceiro elemento reprovável na fala de Pedro é o não
reconhecimento de Jesus como a verdadeira tenda. Ora, no Antigo Testamento,
sobretudo no contexto do êxodo, a tenda (em grego: σκηνή – skenê) é a o
lugar do encontro com Deus, o que agora é a pessoa de Jesus. A ideia de fazer
tendas revela incompreensão e não aceitação de Jesus como o pleno revelador e
lugar do encontro com Deus.
Diante do
absurdo da fala de Pedro, o próprio Deus intervém e o interrompe: «Pedro
ainda estava falando, quando uma nuvem luminosa os cobriu com sua sombra. E da
nuvem uma voz dizia: ‘Este é o meu Filho amado, no qual eu pus todo o meu
agrado. Escutai-o!’» (v. 5). A nuvem luminosa, ao longo da tradição
bíblica é também sinal da manifestação e presença de Deus. Essa cena é,
praticamente, uma repetição da cena do batismo de Jesus: o Pai se manifesta,
fala e dá testemunho do Filho. Por sinal, o batismo e a transfiguração são os
únicos episódios dos evangelhos em que Deus fala diretamente. Atribuir palavras
diretamente a Deus é um recurso teológico e literário frequente no Antigo
Testamento, mas muito raro no Novo. Isso porque é Jesus, o Filho, quem revela
Deus e fala em seu nome, no Novo. Aqui, a voz de Deus ocupa o lugar central do
texto, o que evidencia ainda mais a importância da sua intervenção. Diante das
dúvidas e falta de convicção nos discípulos sobre a identidade de Jesus, quem
tem mais propriedade para esclarecer é o seu Pai. Essa voz reitera a autoridade
de Jesus: o Pai o credencia como o único que tem autoridade para falar e ser
ouvido pela comunidade. Pedro ainda estava propenso a ouvir Moisés e Elias e o
Pai lhe corrige. Moisés e Elias já disseram o que tinham de dizer; à comunidade
cristã, só interessa o Evangelho, ou seja, o que Jesus ensina e vive.
A primeira
reação dos discípulos diante das palavras do Pai é de completa falência: «Quando
ouviram isto, os discípulos ficaram muito assustados e caíram com o rosto em
terra» (v. 6). Ao longo da Bíblia, é normal o medo e o temor dos seres
humanos diante da presença Deus. Mas nesse caso o medo tem outra causa: as
implicações e consequências de escutar. Ora, escutar Jesus significa aderir
plenamente ao seu projeto de vida e libertação, o que comporta até mesmo a
doação da vida. É isso o que causa medo nos discípulos que imaginavam seguir um
messias guerreiro e glorioso. Diante do medo dos discípulos, eis a reação de
Jesus: «se aproximou, tocou neles e disse: ‘Levantai-vos e não tenhais
medo’» (v. 7). É próprio de Jesus dar força aos caídos e encorajar os
amedrontados. O gesto de tocar é o mesmo que ele faz ao curar os enfermos,
restituindo-lhes vida e saúde (8,3.15; 9,25.29). O medo de assimilar e viver o
Evangelho torna a comunidade doente, necessitada da força de Jesus que a impele
a levantar-se. Para superar o medo, duas coisas são necessárias: escutar Jesus,
como o Pai ordenou, e deixar-se tocar por ele. O toque de Jesus, que é a sua
própria palavra, levanta e transforma a comunidade dos discípulos: «Os
discípulos ergueram os olhos e não viram mais ninguém, a não ser somente Jesus» (v.
8). Moisés e Elias desapareceram para que a atenção dos discípulos se voltasse
somente para Jesus, o centro da vida e da comunidade que já não precisa mais
deles, mas somente de Jesus. Já não sai mais nenhuma voz de Deus pela nuvem,
porque quem vê Jesus, vê o Pai (Jo 14,9) e, portanto, quem o escuta, escuta
também ao Pai! A comunidade precisa sempre olhar em volta de si mesma e
perceber que seu único referencial é Jesus Cristo com seu evangelho. Não vendo
mais ninguém como referencial além de Jesus, a comunidade renovada é convidada
a descer da montanha e novamente encarar a realidade, continuar o caminho com
seus percalços e desafios até enfrentar o maior deles: a cruz! A ideia do
comodismo não combina com a comunidade cristã, como soou absurda para Deus a
sugestão das tendas por Pedro.
Jesus pede que
não contem nada a ninguém daquilo que experimentaram (v. 9), por respeito aos
propósitos do Pai, pois deveriam esperar a Ressurreição, e também por
prudência, pois se a notícia daquela experiência se espalhasse, novamente
grandes multidões emotivas e curiosas se aproximariam dele em busca de sinais e
milagres, quando na verdade o verdadeiro sinal estava se aproximando: a cruz e
a ressurreição. Eles deveriam anunciar Jesus, o Evangelho, mas da maneira
certa, sem alimentar falsas ilusões, nem omitir as suas verdades. E somente à
luz da ressurreição é que esse anúncio se torna eficaz e perfeito. É melhor
silenciar do que anunciar de modo equivocado. O anúncio distorcido é, sem
dúvidas, consequência de uma escuta superficial. Aqui está um dos ensinamentos
mais importantes para as comunidades de todos os tempos: a necessita da escuta
de Jesus, o Filho Amado.
Pe. Francisco
Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
Obrigado Pe Francisco. Seu texto nos ajuda muito a colocar Jesus no centro das nossas vidas.
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