A liturgia
deste vigésimo oitavo domingo do tempo comum propõe, para o evangelho, a leitura
da parábola da festa de casamento do filho do rei – Mt 22,1-14. Com ela,
conclui-se a série de três parábolas contadas por Jesus em seu primeiro
confronto direto com as lideranças religiosas e políticas de Jerusalém. O
contexto, portanto, é o mesmo dos dois últimos domingos. Jesus se encontrava em
Jerusalém, vivendo a última etapa de seu ministério, e enquanto estava
ensinando no templo, foi questionado pelos sacerdotes e anciãos a respeito da
sua autoridade para ensinar e agir como agia (Mt 21,23-23). Em sua resposta,
Jesus contou três parábolas sobre o Reino de Deus (ou dos Céus, como prefere
Mateus), sendo a de hoje a terceira. Ao responder aos seus interlocutores, mais
do que provar a sua autoridade, pois ele não tinha necessidade disso, Jesus
queria mesmo era denunciar a hipocrisia e ilegitimidade com que os chefes de
Israel exerciam o poder. O evangelista recorda isso como advertência para as
comunidades do seu tempo e do futuro não reproduzirem o modelo de religião que
Jesus contestou.
Como a
contextualização já foi bastante enfatizada nos dois últimos domingos, não é
necessário repeti-la minuciosamente hoje. Contudo, é importante recordar que a
parábola lida hoje se destaca sobre as outras duas da série, lidas na liturgia
dos dois últimos domingos: a do pai e os dois filhos (Mt 21,28-32) e a
dos vinhateiros homicidas (Mt 21,33-43). Nelas, o ambiente retratado,
ao qual o Reino era comparado, pertencia ao mundo agrícola. Na de hoje, o Reino
dos Céus é comparado a um banquete, mais precisamente a uma festa de
casamento do filho de um rei. Portanto, retrata um ambiente urbano. Enquanto
a imagem da vinha, predominante nas duas primeiras, possuía um significado mais
restrito, com mais poder de impacto para a cultura semita, a imagem de um
banquete possui um significado bem mais universalista, podendo ser compreendida
com mais facilidade também em outras culturas, embora o casamento em si seja
uma imagem muito empregada para representar a relação entre Deus e Israel. Convém
recordar, ainda, que essa parábola se encontra também no Evangelho de Lucas,
embora localizada num contexto diferente e com algumas diferenças internas (Lc
14,15-24).
O primeiro
versículo nos insere diretamente no contexto, e nos faz perceber que essa
parábola é a continuidade de um discurso já iniciado, embora a tradução do
texto litúrgico não expresse bem isso, ao afirmar que «Jesus voltou a
falar em parábolas» (v. 1). Essa expressão dá a entender que houve uma
interrupção no discurso. Conforme o contexto narrativo do Evangelho e a língua
original do texto – o grego – a tradução mais adequada para essa expressão
introdutória seria “Jesus continuou falando em parábolas”. O auditório é o
mesmo das duas parábolas anteriores: os sumos sacerdotes e anciãos do povo, ou
seja, a elite religiosa de Jerusalém, e não houve interrupção entre a parábola
anterior e a de hoje que conclui a sequência. A propósito do auditório, deve-se
recordar sempre que, independentemente de quem sejam os interlocutores diretos
de Jesus no contexto narrativo, neste caso os sacerdotes e anciãos, os
destinatários primeiros do ensinamento são sempre os discípulos e discípulas de
todos os tempos. À medida em que continua falando em parábolas, Jesus provoca
ainda mais os seus adversários, devido ao aspecto enigmático que as parábolas
possuem, deixando-os pensativos.
Eis, então, a
parábola: «O Reino dos Céus é como a história do rei que preparou a
festa de casamento do seu filho» (v. 2). Trata-se de uma imagem impactante
para o imaginário semita, embora não chegue a ser novidade na linguagem bíblica,
pois os profetas já tinham anunciado a consumação dos tempos messiânicos com a
imagem do banquete (Is 25,6-10). É uma imagem que evoca amor, alegria,
fraternidade. Aqui, Jesus dispensa a linguagem litúrgico-religiosa. Não faz
menção a sacrifício, nem a culto, nem a peregrinações, nem a um templo, mas a
uma festa comum a todos os povos e culturas. E a festa por excelência, na
antiguidade, era a festa de casamento, sobretudo no mundo oriental. Era uma
festa que durava em média sete dias, podendo ser ainda prolongada, a depender
das condições econômicas dos noivos. No caso da parábola, sendo o casamento do
filho de um rei, a duração seria bem maior, assim como a comida e a bebida
seriam da melhor qualidade possível. Dessa imagem usada por Jesus, evocamos, de
imediato, algumas das mais importantes características do Reino: a alegria, o
amor e a perenidade.
A festa em si,
é sinônimo de alegria e fartura, ainda mais preparada por um rei. É certa a
abundância de comida e bebida, música e muita alegria entre os convivas. O fato
de ser uma festa de casamento, lembra o amor, elemento indispensável para a
vida da comunidade. Sendo uma festa com duração de sete dias ou mais, lembra a
perenidade: um tempo completo e perfeito, que transmite uma ideia de
eternidade. De fato, pelo costume de durar uma semana ou mais, as festas de
casamento eram tidas como festas sem fim, tamanha a grandeza e o cuidado com
que eram preparadas. Por isso, a festa de casamento, literalmente bodas – em
grego: γάμος = gamos – era a mais bela de todas as festas, inclusive sonhada por tanta
gente. As pessoas, na antiguidade, aguardavam com ansiedade um convite para uma
festa assim. Era o momento de exibir roupas, adornos e exagerar na alegria,
inclusive na bebida (Jo 2,1-12), como atesta a própria Bíblia. É surpreendente
que seja com esse tipo de festa que Jesus comparou o Reino, ao invés de uma
reunião litúrgica, como vigília ou procissão.
Além de um
ensinamento para o presente, com essa parábola Jesus dá uma verdadeira lição sobre
a história da salvação aos seus interlocutores, considerando o significado da
imagem e o próprio enredo da parábola. Diz ele que o rei «mandou os
seus empregados para chamar os convidados para a festa, mas estes não quiseram
vir» (v. 3). Aqui, Jesus recorda aos seus interlocutores que foi
Israel o destinatário predileto de Deus, a quem foram enviados os profetas, os
quais não foram ouvidos. O povo de Israel, portanto, é representado na parábola
pelos primeiros convidados. A recusa ao convite de um rei equivale a uma
rebelião. Nesse caso, Jesus enfatiza a rebelião de Israel aos apelos de seu
Deus. Um povo fechado, de coração duro, que não escuta o seu Senhor. Mas, como
Deus não desiste do seu povo, e nem da humanidade, eis que o convite continuou
sendo feito até que, aborrecidos pela insistência do rei, os primeiros
convidados passaram da indiferença à violência, chegando a matar os emissários
do rei (vv. 5-6). Com a insistência do convite e a recusa dos destinatários,
Jesus apresenta uma síntese de toda a história da salvação, denunciando Israel
e advertindo os seus seguidores de outrora e de sempre a não repetirem o mesmo.
Diante da
recusa dos convidados, que agiram não apenas com indiferença, mas também com
violência, chegando a matar os empregados que saíram para convidá-los (v. 6), o
rei toma uma decisão drástica: «O rei ficou indignado e mandou suas tropas
para matar aqueles assassinos e incendiar a cidade deles» (v. 7). Esse
versículo tem gerado muitas discussões entre os estudiosos. Certamente, é um
acréscimo da comunidade de Mateus, pois não consta na versão desta parábola do
Evangelho de Lucas. Alguns vêem aqui uma alusão à destruição da cidade de
Jerusalém e do seu templo pelos romanos, no início dos anos 70 d.C., um fato já
consumado na época da redação do Evangelho de Mateus, escrito já em meados dos
anos 80 d.C. De acordo com essa explicação, a destruição de Jerusalém teria
sido um castigo por ter rejeitado o Messias. Contudo, o atual estágio da
pesquisa já não admite tal hipótese, embora o conflito entre a comunidade
cristã e a sinagoga estivesse muito aceso quando Mateus escreveu o seu
Evangelho. Insistir com ela seria alimentar o antissemitismo. Os anúncios de
castigo na linguagem bíblica funcionam como advertência. Aplicá-los a fatos
históricos concretos não passa de oportunismo. A atitude do rei aqui descrita
exprime sua indignação pela rejeição sofrida e, aplicada à comunidade, visa
advertir os ouvintes/leitores que a vida fora do banquete, ou seja, fora do
Reino, é totalmente privada de sentido.
A parábola
continua a sua sequência natural no versículo oitavo: «Em seguida, o
rei disse aos empregados: ‘a festa de casamento está pronta, mas os convidados
não foram dignos dela’» (v. 8) A conclusão do rei é uma acusação ao
fechamento dos primeiros convidados – Israel – à não aceitação do convite, ou
seja, à conversão. De fato, é notório, ao longo da história, o quanto a
mensagem profética foi rechaçada em Israel, sobretudo pelas autoridades
religiosas. A falta de dignidade dos convidados foi comprovada pela indiferença
e violência com que trataram os enviados do rei. Porém, a rejeição dos
primeiros convidados não muda os propósitos salvíficos de Deus para com a
humanidade inteira, ou seja, não levam o rei a desistir da festa. Ora, a imagem
da festa de casamento expressa, de modo condensado, a totalidade dos bens
messiânicos, com abundância de amor, alegria e fraternidade. É uma das melhores
imagens aplicadas ao Reino, pois simboliza a vida plena. Por isso, o rei não
desiste dela, assim como Deus não abre mão do seu projeto de Reino. Ser digno
ou indigno de participar da festa é uma questão de aceitação dos valores do
Reino, o que passa pela assimilação da mensagem dos profetas e de Jesus, para a
comunidade cristã.
Tendo constatado
a rejeição – indignidade – dos primeiros convidados, o rei toma uma decisão que
corresponde à insistência de Deus e à perenidade de sua oferta de vida plena para
toda a humanidade: «Portanto, ide até às encruzilhadas dos caminhos e
convidai para a festa todos os que encontrardes» (v. 9). Podemos
considerar esse o versículo central de toda a parábola. Aqui está o embrião de
uma Igreja-comunidade em saída! A expressão “encruzilhadas” significa o
encontro com as periferias. A expressão usada na língua original do texto
significa a literalmente a saída da cidade (em grego: διεξόδος – diecsódos).
Portanto, faz parte do vocabulário do êxodo e evoca libertação. Era na saída da
cidade onde ficavam todas as pessoas de atividades “vergonhosas”, ou seja, o
que era considerado escória da sociedade, como prostitutas, mendigos,
assaltantes e doentes considerados impuros. Quem não tinha acesso aos bens que
a cidade oferecia, incluindo os serviços religiosos, ficava nas encruzilhadas. Eram
as pessoas descartadas pela sociedade da época, mas destinatárias da libertação
oferecida por Jesus, com sua mensagem humanizante. Esse versículo é um convite
claro para que os seguidores e seguidoras de Jesus se voltem para as margens,
para as periferias. Aqui, de modo definitivo, é apresentada a nova dinâmica do
Reino, destacando seu aspecto inclusivo: todos os que forem encontrados devem
ser convidados! Acabou o tempo das distinções, dos rótulos, das separações.
Finalmente, o
convite tornou-se efetivo: quando foi endereçado a todos, sem distinção: a maus
e bons. O resultado foi este: «a sala ficou cheia de convidados» (v.
10c). Enquanto os enviados dirigiam-se a uma elite privilegiada e indiferente,
a sala permaneceu vazia. Somente quando saíram para as margens o convite
encontrou adesão. Aqui está um alerta da comunidade de Mateus para as
comunidades de todos os tempos. O convite, ou seja, o anúncio, deve ser feito a
todos e todas, sem distinção alguma. Maus e bons são convidados para o Reino.
Porém, aceitar o convite-anúncio comporta exigências e compromissos da parte dos
convidados. Considerando a trama da parábola, para a gente simples das
encruzilhadas o convite para uma festa de casamento de um filho de rei não
passava de um sonho muito distante, como foi a proximidade de Jesus com os
pecadores, prostitutas, leprosos, crianças. Nunca um mestre tinha se misturado
tanto com o povo simples quanto Jesus. Por isso, a parábola se torna metáfora do
seu ministério inclusivo e próximo de todos. A sala cheia, portanto, é imagem
de um mundo justo, fraterno e igual, como é o Reino de Deus.
Há espaço para
todos no banquete do Reino, sobretudo depois de Jesus ter aberto as suas portas
com sua mensagem e práxis humanizantes. Contudo, as pessoas são livres e podem
se autoexcluir, ao não fazer comunhão com os demais. É esse o sentido do
convidado que não portou o «traje de festa» (v. 11), uma
imagem importante, mas fácil de ser distorcida. Ora, caso se tratasse de uma
veste real, nenhum dos convidados estaria apto, afinal, todos foram pegos de
surpresa com o convite feito de última hora. Através da percepção do rei, o
evangelista, chama a atenção da sua comunidade, fazendo uma advertência que
serve para as comunidades de todos os tempos: não basta estar na sala,
participar de reuniões e atos litúrgicos, receber sacramentos, sem disposição
para a vida comunitária. O traje de festa é, aqui, o sinal de unidade entre os
convivas do banquete e, portanto, dos membros da comunidade cristã: a prática
das bem-aventuranças – síntese da justiça do Reino –, o conteúdo programático
do discipulado no Evangelho de Mateus. Todas as pessoas são convidadas e podem entrar
na sala de festa, mas só permanece quem se abre ao espírito das
bem-aventuranças. É o “revestir-se” de Cristo, expressão que foi inserida nas
fórmulas de batismo desde as primeiras comunidades cristãs (Rm 13,14; Gl 3,27).
A reação do
rei ao convidado sem o traje de festa parece violenta (vv. 12-13), mas apenas
reflete o uso do gênero literário apocalíptico, tão empregado na época entre os
rabinos e utilizado também pelos pregadores cristãos das primeiras gerações.
Equivale à destruição da cidade diante da rejeição dos primeiros convidados,
como vimos anteriormente (v. 7). Não significa um castigo propriamente, mas,
dentro da pedagogia divina, indica uma advertência. Visa evidenciar o perigo da
autoexclusão do próprio convidado. A ausência do traje de festa é, portanto, a
falta de abertura e disposição para “revestir-se” de Cristo, ou seja,
é o fechamento ao espírito das bem-aventuranças (Mt 5,1-12). As
bem-aventuranças são o caminho da felicidade e da realização plena. Quem as
vive, permanece no banquete do Reino; quem não as vive, priva-se de viver
plenamente feliz e realizado, e é isso o que a imagem tão forte indica: perder
o sentido da vida. Ter os pés e as mãos amarrados, chorar e ranger os dentes
(v. 13), é a imagem do desespero último do ser humano. Só é desesperado quem
não aceita participar do banquete da vida. Não se trata de uma descrição, mas
de uma comparação, como é toda a parábola. Não aceitar participar do banquete
com alegria, amor e justiça é, portanto, privar-se da vida em plenitude.
O evangelista
ensina, com tudo isso, que o simples fato de alguém participar de uma
comunidade ou igreja não é sinal de nenhuma garantia de vida. Só vive
plenamente quem aceita fazer comunhão e põe em prática o programa de vida de
Jesus. A parábola é concluída com uma nota proverbial explicativa: «Porque
muitos são os chamados, e poucos são os escolhidos» (v. 14). Mesmo
dentro da comunidade, lugar do início da concretização do Reino, há sérios
riscos de alguém ficar privado de vida plena. O evangelista enfatiza exatamente
isso: não basta ter sido convidado ou convidada, afinal, todos são,
indistintamente: bons e maus. O importante é, ao sentir o chamado, conduzir a
vida segundo o programa de vida daquele que chama. Portanto, a expressão
«poucos são os escolhidos» significa que nem todos escolhem participar e
permanecer no banquete do Reino, porque nem todos tem a disposição de viver à
maneira de Jesus.
Todos são chamados, mas só participa plenamente da festa, ou seja, do
Reino, quem porta o traje das bem-aventuranças, sinal único e distintivo dos
cristãos e cristãs. O certo mesmo é que Deus quer a sala cheia; para as igrejas
e comunidades eclesiais precisam ir às encruzilhadas e fazer o convite com
amor, alegria diálogo e espírito de acolhimento.
Pe. Francisco Cornélio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
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