O evangelho lido
na liturgia deste vigésimo nono domingo do tempo comum continua ambientado em
Jerusalém, mais precisamente nas dependências do templo, onde Jesus viveu a
fase mais tensa e intensa do seu ministério. Na verdade, até a conclusão do ano
litúrgico, que já se aproxima, o evangelho será tirado desse contexto. O texto
lido hoje – 22,15-21 – abre uma série de controvérsias ou disputas dos fariseus
com Jesus. Trata-se da disputa sobre a legitimidade do imposto a César, um
episódio que consta também em Marcos e Lucas (Mc 12,13-17; Lc 20,20-26), embora
a versão de Mateus possua mais particularidades. Os fariseus já tinham sido os principais
opositores de Jesus na Galileia, desde o início do seu ministério, e continuam
sendo também em Jerusalém, juntando-se a outros grupos que fazem complô, até a
aliança final com os romanos que terá a morte de cruz como desfecho. Esses
grupos – fariseus, saduceus, sacerdotes, anciãos, herodianos – se alternavam
nas tentativas de emparedar Jesus e silenciá-lo, até forjarem sua condenação.
Enquanto nos últimos três domingos o confronto direto se deu com os sacerdotes
e anciãos, que saem de cena momentaneamente, outros personagens entram em evidência,
nesse caso são os fariseus, mas sempre com os mesmos propósitos de questionar e
deslegitimar a autoridade de Jesus ensinar e agir de maneira livre, humanizante
e libertadora.
Os
questionamentos dos sacerdotes e anciãos tinham um viés mais político, pois
viam o ensinamento de Jesus como uma ameaça ao poder que exerciam. Já as
questões levantadas pelos fariseus são mais relacionadas à doutrina, sobretudo
em relação à interpretação da Lei, embora o caso retratado no texto de hoje possua
também uma acentuada dimensão política. Como sabemos, logo ao entrar na cidade
de Jerusalém, Jesus fez uma grande denúncia contra a situação em que se
encontrava o templo: uma casa de oração transformada em covil de ladrões (Mt
21,12-17), estendendo essa denúncia a todos os que mantinham a religião como
instrumento de exploração e dominação, que eram a casta sacerdotal e os anciãos
do povo, especialmente. A primeira seção dessa denúncia foi ilustrada por três
ricas parábolas, lidas na liturgia dos últimos três domingos: a) O pai, os dois
filhos e a vinha em Mt 21,28-32; b) Os vinhateiros homicidas em Mt 21,33-43; c)
A festa de casamento do filho do rei em Mt 22,1-14. Com essa série de parábolas,
Jesus denunciou a ilegitimidade do poder exercido pelas autoridades religiosas
e políticas de Jerusalém, ao mesmo tempo em que afirmava sua condição de
messias e único autorizado a falar e agir em nome de Deus, o seu Pai. Ao
desmascarar o sistema religioso vigente, Jesus deixava claro o seu projeto de
restituir ao Pai aquilo que o poder político-religioso tinha roubado: o ser
humano e sua dignidade em todas as dimensões. Para isso, ele propõe o Reino de
Deus como única alternativa e realidade que possibilita ao ser humano viver em
plenitude e abundância.
A proposta de
Jesus soava absurda para a elite de Jerusalém, de modo que quanto mais ele
falava, mais essa elite se organizava para pôr fim à sua vida. Como as três
parábolas recordadas deixaram os chefes – sacerdotes e anciãos – sem palavras,
novos grupos entram em cena com o mesmo propósito: provocar em Jesus uma
autocondenação, armando-lhe ciladas. Dessa vez, foram os fariseus quem armaram
a cilada, como atesta o texto: «Os fariseus fizeram um plano para
apanhar Jesus em alguma palavra» (v. 15). O plano consistia em colocar
Jesus em situação constrangedora e, assim, acusá-lo publicamente. Queriam eles
que o próprio Jesus entrasse em contradição e fosse desmoralizado, dando motivo
para ser acusado seja no âmbito religioso ou no campo político. Por isso,
procuram aliados para a execução do plano: «Então mandaram os seus
discípulos, junto com alguns do partido de Herodes» (v. 16a). A
existência de discípulos dos fariseus revela o quanto o movimento era
organizado, inclusive com escolas de formação para rabinos. Esse dado é
exclusivo de Mateus; nos outros dois sinóticos fala-se apenas dos fariseus
junto com os partidários de Herodes, sem referência à categoria de “discípulos”
dos fariseus. O dado reflete a situação da comunidade de Mateus, na época da
redação do seu Evangelho, em meados dos anos oitenta, quando havia uma forte
polarização entre as escolas rabínicas e o movimento dos discípulos de Jesus.
O que mais
chama a atenção, no entanto, é a aliança dos fariseus com os partidários de
Herodes, pois eram grupos rivais, considerados até inimigos. O acordo dos dois
grupos ou movimentos mostra que a conveniência leva adversários a se unirem
quando há um inimigo comum. Os herodianos, como eram chamados os membros do
partido de Herodes, constituíam o grupo de apoio público à dominação romana, e
reconheciam a divindade do imperador. Já os fariseus, como o mais devoto dos
grupos religiosos judaicos, viam a dominação romana como um abomínio, por isso
esperavam constantemente pelo envio de um Messias glorioso e guerreiro que
ressuscitasse o reino davídico-salomônico, para libertar Israel da dominação
romana. Mesmo assim, pagavam convenientemente todos os impostos exigidos por
Roma para evitar o rótulo de rebeldes e subversivos, como os zelotas. Apesar de
contrários à dominação romana, não apresentavam nenhum tipo de resistência. O
jogo de conveniência entre fariseus e herodianos é imagem do plano futuro que
levará Jesus à morte; significa a religião e o império unidos para pôr fim a um
personagem incômodo e indesejado para os dois: Jesus de Nazaré.
Como o plano
era apanhar Jesus pela palavra, eis a investida deles: «Mestre, sabemos
que és verdadeiro e que, de fato, ensinas o caminho de Deus. Não te deixas
influenciar pela opinião dos outros, pois não julgas um homem pelas aparências» (v.
16). Todas estas palavras elogiosas faziam parte do plano. São palavras que demonstram
respeito, admiração e conhecimento da pessoa de Jesus, mas pronunciadas
ironicamente por pessoas falsas e mal-intencionadas. Se, de fato, reconhecessem
Jesus como mestre, não estariam armando-lhe ciladas. Pelo contrário, aceitariam
sua mensagem libertadora e sua proposta de vida. Essa descrição correspondia mesmo
à identidade humana de Jesus era: um homem sincero, autêntico e verdadeiro, que
não julga pelas aparências. Inclusive, é o maior elogio que Jesus recebe no
Evangelho de Mateus. Nem mesmo seus discípulos jamais dirigiram-lhe palavras
assim. Contudo, era um elogio falso, pois não correspondia ao que eles – os fariseus,
sobretudo – pensavam de Jesus. Na verdade, o falso elogio não passava de um
pretexto ou um passo a mais para chegarem ao golpe final, com a pergunta
tendenciosa e maliciosa: «Dize-nos, pois, o que pensas: é lícito ou não
pagar imposto a César?» (v. 17). Era aqui aonde eles queriam chegar,
imaginando estar colocando Jesus em um beco sem saída. E, realmente, a situação
era desfavorável para Jesus, pois ele deveria opinar sobre um dos temas mais
delicados da vida cotidiana do povo judeu da época.
Na verdade, a
questão do imposto é uma questão difícil de lidar em todas as épocas. Já foi
motivo de muitas guerras e rebeliões, sobretudo na antiguidade, inclusive em Israel.
por isso, os cobradores de impostos eram pessoas tão odiadas naquele tempo,
como retratam os evangelhos. Poucos anos antes da atuação de Jesus, houve uma
revolta na Galileia contra Roma, liderada por Judas, o Galileu, cuja motivação
foi o aumento dos impostos. Dessa revolta, nasceu o movimento dos zelotas, que
pregava a lutava armada contra a dominação romana. Com a pergunta sobre o
imposto, portanto, os adversários de Jesus imaginavam deixar Jesus sem
possibilidade de saída. Se respondesse que é lícito pagar imposto a César,
Jesus estaria agradando aos herodianos e, consequentemente, sendo conivente com
a dominação romana e seu sistema de exploração. Ao mesmo tempo, estaria
ganhando a antipatia das multidões que até pouco tempo lhe tinham aclamado na
entrada de Jerusalém (Mt 21,1-11), passando a ser considerado um traidor do seu
povo. Além disso, estaria reconhecendo o senhorio de César, ou seja, do
imperador romano. Se respondesse que não é lícito pagar o imposto, agradaria às
multidões, ao povo simples que o acompanhava e, ao mesmo tempo, anteciparia a
sua condenação como um rebelde e subversivo político. Recusar pagar o imposto
significava declarar guerra ao sistema dominante. O que seus adversários
queriam era um motivo para condená-lo a partir da sua resposta: respondendo
sim, seria condenado pelo povo e pela religião como traidor; respondendo não,
seria preso e condenado imediatamente pelo império. A pergunta, portanto,
refletia um plano que parecia perfeito.
Exatamente por
ser verdadeiro e não julgar pelas aparências (v. 16), Jesus não caiu na armadilha
seus adversários, e logo os repreendeu, desmascarando-os: «Jesus percebeu
a maldade deles e disse: ‘Hipócritas! Por que me preparais uma armadilha?” (v.
18). Nessa resposta, o autor emprega duas palavras duras para caracterizar os
adversários de Jesus: maldade (em grego: πονηρία – poneria) e hipócritas (em
grego: ὑποκριταί – hipocritai). Isso quer dizer que os fariseus e herodianos, juntamente
com os adversários da controvérsia anterior, eram pessoas más, falsas,
dissimuladas, mascaradas e, por isso, não mereciam nenhuma credibilidade.
Estavam agindo por conveniência para encontrar uma maneira de eliminar Jesus,
esperando que ele mesmo pronunciasse palavras que servissem de prova para a sua
condenação. Como já tinha acontecido em outras ocasiões, Jesus se sobressai de
uma situação desconfortável e termina deixando seus adversários em apuros: «‘Mostrai-me
a moeda do imposto!’ Levaram-lhe então a moeda» (v. 19). Diante de
questões delicadas, Jesus nunca dava respostas simples como “sim” ou “não”, mas
provocava uma reflexão mais profunda, como tinha feito pouco tempo antes com os
sumos sacerdotes, contando-lhes três parábolas, ao invés de responder
diretamente ao questionamento sobre a sua autoridade. E o que os interlocutores
queriam era uma resposta com um sim ou um não.
Como estavam
na área interna do templo, espaço considerado sagrado, não era permitido
circular ali com a moeda romana. Por isso, havia as bancas de câmbio de moeda
na entrada do templo. Jesus começa a desmascará-los daí, e eles que tinham
armado a cilada, são agora os que caem: na moeda romana havia a figura e os
títulos do imperador com seu reconhecimento divino inscritos: “Tibério César,
Augusto filho do divino Augusto, Sumo Sacerdote”. A figura e a inscrição
gravadas na moeda poderiam ser consideradas como idolatria, pois transgredia o
primeiro mandamento do decálogo (Ex 20,4), conforme a interpretação rígida dos
fariseus, os mais fiéis observadores da Lei. Jesus, ao ver a moeda,
perguntou-lhes: «De quem é a figura e a inscrição desta moeda?» (v.
20). Eles não tinham outra resposta senão admitir: «De césar» (v.
21a). Ora, os mesmos que demonstravam observar a Lei com tanta fidelidade, eram
os primeiros a transgredi-la, pois, a moeda era uma forma de propaganda do
império e da pessoa do imperador como ser divino e absoluto. Certamente, os
adversários ficaram desconcertados, talvez até arrependidos da pergunta, uma
vez que a armadilha tinha falhado. Como a pergunta tinha sido se era lícito ou
não pagar o imposto, a resposta de Jesus vai muito além disso. Se seus
adversários carregavam a imagem de César, participavam da sua dominação, eram
adeptos do sistema. Logo, não havia motivo para questionar se era lícito ou não
o imposto, pois eles já estavam a serviço de César. Aqui, César não é um nome
próprio, mas um título. É o símbolo do poder e dominação romana.
Ao longo de
seu ministério, Jesus já tinha manifestado sua posição frente ao império romano
e a todo sistema injusto de poder, como a aristocracia sacerdotal de Jerusalém.
O embate anterior com os sumos sacerdotes demonstra isso. Sua resposta a tudo
isso foi a proposta do Reino de Deus. Ele já tinha rejeitado a política falsa
da “pax romana” logo no início de seu ministério, com a proclamação das
bem-aventuranças, e na continuação do discurso da montanha tinha desmascarado a
prática religiosa dos fariseus, ensinando o jeito certo de relacionar-se com
Deus (Mt 5–7). Agora deixa ainda mais claro o seu posicionamento com a sua
resposta: «Dai, pois, a César o que é de César e a Deus o que é de Deus» (v.
21). A tradução do lecionário se equivoca ao empregar o verbo dar; na verdade,
o verbo empregado na língua original do texto corresponde a restituir ou
devolver (em grego: ἀποδίδωμι – apodídomi),
uma vez que a César nada deve ser dado, mas apenas devolvido, tendo em vista
que nada dele é bom e, por isso, ninguém deve reter para si o que é dele. A
resposta de Jesus parece complexa, à primeira vista, e fácil de ser distorcida,
como foi por muito tempo e continua sendo.
Com essa
clássica afirmação, que na verdade é um imperativo, Jesus não estabeleceu duas
esferas de poder, uma temporal e outra espiritual, nem traçou a harmonia das
relações entre estado e igreja, como frequentemente se tem interpretado. A
ordem para devolver a César o que lhe pertence consiste em abandonar tudo o que
não condiz com o Reino. Nesse sentido, o imposto passa a ser apenas um aspecto
de uma realidade muito mais ampla e complexa. É necessário deixar de compactuar
com a lógica imperial de um modo geral. Isso exige uma consciência nova e uma
atitude vigilante constante. É necessário construir uma nova sociedade a partir
de perspectiva e lógica diferentes, substituindo o poder pelo serviço, com uma
nova justiça baseada no amor. Devolver a César o que é dele exige um esforço da
comunidade, a começar por uma autocrítica. Muitas lideranças religiosas parecem
combater o poder de César para assumir o seu lugar. Essa mentalidade estava
presente em alguns dos primeiros discípulos, na comunidade de Mateus e tem
estado em muitos momentos da história do cristianismo.
Devolver a
Deus o que lhe pertence é restituir o ser humano, imagem única de Deus, à sua
dignidade originária, incluindo o cuidado com a criação inteira. A religião do
templo de Jerusalém e o império romano tinham roubado o que Deus fez de melhor:
o ser humano, transformado em produto, em mera mercadora, pela combinação dos
poderes político-econômico-religioso. A mercantilização do ser humano fere e
nega a sua dignidade. Esse foi um problema denunciado pelos profetas desde os
tempos de Amós, o qual denunciou que o ser humano tinha se tornado um produto
comprado ou vendido por um par de sandálias (Am 2,6; 8,6). Esse ser humano que
tem a imagem de Deus, tem de ser, de novo, humanizado e devolvido a Deus; a moeda com a figura de
César seja restituída a César, juntamente com toda a lógica perversa do
império.
A opção pelo
Reino apresentada por Jesus torna-se cada vez mais exigente, à medida que a sua
vida vai sendo ameaçada. Longe de ser uma via conciliatória entre duas
realidades, a frase imperativa de Jesus é um convite à reflexão e a uma tomada
de posição. A comunidade cristã deve se posicionar diante dos acontecimentos,
eliminando de suas bases e estruturas tudo o que não pertence à lógica do
Reino, ou seja, o que não é de Deus. Se Jesus tivesse buscado conciliação entre
o projeto de César e o de Deus, não teria morrido na cruz.
Pe.
Francisco Cornélio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
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