sexta-feira, junho 28, 2024

REFLEXÃO PARA A SOLENIDADE DOS APÓSTOLOS PEDRO E PAULO – MATEUS 16,13-19

 


A exemplo do que ocorreu no ano passado, também neste ano, a liturgia do décimo terceiro domingo do tempo comum é substituída pela solenidade dos apóstolos Pedro e Paulo. Por isso, interrompe-se neste dia a leitura semi-contínua do Evangelho de Marcos. Para esta solenidade, o evangelho é o mesmo em todos os anos: Mt 16,13-19. Esse texto é muito rico e significativo, pois contém o relato do clássico episódio de Cesareia de Filipe, cujo ápice é a confissão de fé de Pedro, que reconhece e proclama Jesus como o Cristo, ou seja, o Messias. Trata-se de um episódio comum aos três evangelhos sinóticos (Mt 16,13-19; Mc 8,27-30; Lc 9,18-21), sendo que a versão de Mateus apresenta mais elementos próprios, como veremos no decorrer da reflexão. E foi exatamente por causa dos seus elementos próprios que o texto de Mateus foi mais valorizado, ao longo dos séculos, sobretudo, no cristianismo católico. Como fazemos em todos os domingos, concentraremos a reflexão no texto bíblico em si, sem transformá-la em mera apologia devocional aos santos apóstolos recordados. No entanto, reconhecemos que a recordação dos apóstolos é sempre importante para a vida da Igreja, porque a ajuda a manter-se alinhada às suas origens, não obstante os desgastes históricos.

Os apóstolos Pedro e Paulo foram imprescindíveis para o cristianismo das origens conservar os ensinamentos de Jesus e, ao mesmo tempo, para se espalhar e crescer, extrapolando os limites culturais e geográficos do judaísmo e da Palestina. Olhando para o exemplo dos dois, a Igreja, de hoje e de sempre, é interpelada, cada vez mais, a renovar-se e edificar-se somente pela fé em Jesus Cristo, sem tomar como parâmetro nenhuma instituição terrena. A recordação dos dois no mesmo dia é também sinal da unidade na diversidade, características da comunidade cristã desde as origens, que devem ser reconhecidas permanentemente. O Novo Testamento mostra divergências e até coflitos entre eles. Pedro, um pescador do pequeno mar da Galileia, foi transformado em pescador de seres humanos; Paulo, um fariseu fanático, perseguidor da comunidade cristã, transformado em apóstolo das nações. Cada um foi transformado pelo encontro com Jesus, passando a viver em contínua conversão a partir de então, com atitudes muitas vezes contraditórias. Ambos assumiram um protagonismo incomparável nas primeiras décadas do cristianismo, a ponto de alguns estudiosos defenderem que o livro de Atos dos Apóstolos poderia tranquilamente ser chamado de Atos de Pedro e Paulo, uma vez que são os principais personagens humanos da obra. Por caminhos e métodos diferentes, como eram tão diferentes e personalidade e história de vida, tiveram em comum a paixão por Jesus Cristo e o zelo pelo seu Evangelho, recebendo como prêmio a coroa do martírio.

Antes de entrarmos na reflexão do texto em si, é necessário fazer algumas considerações a respeito do contexto do relato no conjunto do Evangelho. Convém recordar que esse trecho abre uma série de acontecimentos importantes da vida de Jesus e dos seus seguidores, como a transfiguração (Mt 17,1-7) e os dois primeiros anúncios da paixão (Mt 16,21-23; 17,22). Na verdade, pode-se dizer que esses acontecimentos são consequência do episódio narrado no evangelho de hoje, pois tanto a transfiguração quanto os anúncios da paixão são tentativas de Jesus revelar a sua verdadeira identidade, tendo em vista que os discípulos ainda não tinham tanta clareza dessa. Recordamos acima o que sucede ao texto no conjunto do evangelho, mas também não podemos deixar de recordar o que o antecede: houve uma controvérsia de Jesus com os fariseus, que lhe pediram um sinal do céu (Mt 16,1-4), e uma séria advertência aos discípulos para não se deixarem contaminar pelo fermento dos fariseus e saduceus (Mt 16,5-12). Esse fermento era a mentalidade equivocada sobre Deus e o futuro messias e, principalmente, a hipocrisia em que viviam. Mateus recorda tudo isso porque, certamente, a sua comunidade passava por uma crise de identidade: por falta de clareza da identidade de Jesus e falta de experiência autêntica com o Crucificado-Ressuscitado, o “fermento dos fariseus”, quer dizer a influência da sinagoga, estava atrapalhando a vivência das bem-aventuranças, síntese do programa de Jesus, e impedindo a realização do Reino dos céus naquela comunidade.

Feita a contextualização, olhemos para o texto: «Jesus foi à região de Cesaréia de Filipe e ali perguntou aos seus discípulos: “Quem dizem os homens ser o Filho do homem?”» (v. 13). Como se vê, o texto começa com um indicativo espacial. Cesareia de Filipe estava localizada no extremo norte de Israel, portanto, muito longe de Jerusalém. Como o próprio nome indica (homenagem a César), era um centro do poder imperial e, portanto, lugar de culto ao imperador romano. Certamente o evangelista e sua comunidade tinham um propósito muito claro ao narrar esse episódio e recordar a sua localização. Ora, longe de Jerusalém, os discípulos estariam isentos da influência do fermento dos fariseus e, portanto, aptos a confessarem e professarem livremente a fé em Jesus, fora dos esquemas tradicionais da religião. O distanciamento físico, portanto, é sinal do distanciamento da ideologia que Jerusalém representa. Ao mesmo tempo, estando em uma região de culto ao imperador, a confissão da fé em Jesus se torna um sinal de convicção e adesão ao projeto do Reino dos Céus, e uma demonstração da coragem que deve marcar a vida da comunidade cristã, chamada a testemunhar a Boa Nova, e a continuar a obra de Jesus, mesmo em meio às hostilidades impostas pelo poder imperial. Portanto, pode-se dizer que professar a fé em Jesus é distanciar-se dos esquemas tradicionais do judaísmo e, ao mesmo tempo, desafiar qualquer sistema que não coloque a vida e o bem do ser humano em primeiro lugar, como o império romano. Isso torna a confissão de Pedro um ato extremamente subversivo.

A expressão “Filho do Homem” ao invés do pronome pessoal “eu” é a primeira particularidade de Mateus em relação às versões de Marcos e Lucas, deste episódio. Porém, o sentido aqui é o mesmo. A pergunta de Jesus sobre o que diziam a respeito de si, ou seja, do Filho do Homem, não é demonstração de preocupação com sua imagem pessoal, mas com a eficácia do anúncio da comunidade. Àquela altura da sua vida pública, ele já tinha realizado muitos sinais entre o povo e ensinado bastante, mas pouca gente o conhecia verdadeiramente. Muitos o seguiam pela novidade que ele trazia, uns pelo seu jeito diferente de acolher os mais necessitados e excluídos, outros para aproveitarem-se dos sinais que ele realizava. Foi como consequência disso que ele fez a pergunta: «Que dizem os homens ser o Filho do Homem?» (v. 13b). E a resposta dada pelos discípulos revela a falta de clareza que se tinha a respeito da sua identidade e, ao mesmo tempo, a boa reputação da qual ele já gozava diante do povo; certamente, o povo simples, com quem ele interagia e por quem lutava. Eis a resposta: «alguns dizem que é João Batista; outros, que é Elias, outros, ainda, que é Jeremias ou algum dos profetas» (v. 14). A menção a Jeremias entre os personagens com os quais o povo identificava Jesus é outra exclusividade de Mateus. Marcos e Lucas nomeiam apenas João Batista e Elias. O acréscimo de Mateus é significativo, pois Jeremias foi o profeta mais “parecido” com Jesus, em relação ao estilo de vida, o teor da pregação e a perseguição sofrida.

A resposta mostra o quanto Jesus estava bem-conceituado pelo povo, pois era reconhecido como um grande profeta. Mas ele era e é muito mais. Logo, trata-se de uma resposta incompleta. Ora, embora continuem sempre atuais, os profetas de Israel são personagens do passado. E a comunidade cristã não pode ver Jesus como um personagem do passado que deixou um grande legado a ser lembrado, pois isso a impede de fazer sua experiência com o Ressuscitado, presente e atuante na história. Apesar de importante, a pergunta de Jesus sobre o que as outras pessoas diziam a seu respeito foi apenas um pretexto. Na verdade, o que ele queria saber mesmo era o que os seus discípulos pensavam de si, qual imagem tinham a seu respeito. Por isso, lhes perguntou: «E vós, quem dizeis que eu sou?» (v. 15), uma vez que longe do “fermento dos fariseus”, os discípulos poderiam dar uma resposta sincera, isenta e livre. O texto afirma que «Simão Pedro respondeu: “Tu és o Messias, o Filho do Deus vivo”» (v. 16). Certamente, também os outros discípulos também responderam. O evangelista enfatiza a resposta de Pedro por ser uma síntese do pensamento dos doze. Essa é a resposta do grupo e, portanto, da comunidade, da qual Pedro se faz porta-voz.

A resposta de Pedro é complexa e profunda: Jesus é «o Messias, o Filho e do Deus vivo». A tradução litúrgica traz a palavra “Messias”, porém, é mais apropriado o termo “Cristo”, conforme o texto na língua original (em grego: Χριστός – Christós). É muito significativo que Jesus seja reconhecido e acolhido como o Messias esperado, ou seja, o Cristo, o enviado de Deus para libertar o seu povo e a humanidade inteira. Como circulavam muitas imagens de messias entre o povo, principalmente a de um messias guerreiro e glorioso, o segundo elemento da resposta de Pedro é de extrema profundidade e importância: «o Filho do Deus vivo». Além de definir a qualidade da messianidade de Jesus, essa expressão serve também para denunciar a falsidade do culto ao imperador romano, o qual exigia ser reverenciado como filho de uma divindade. Por sinal, a expressão «Filho do Deus vivo», na resposta de Pedro, é outra exclusividade de Mateus. Em Marcos, a resposta é apenas «Tu és o Cristo!» (Mc 8,), e em Lucas é «Tu és o Cristo de Deus» (Lc 9,20). Logo, a resposta em Mateus é mais profunda e, sobretudo, universalista. Ora, o título “Cristo” (ou Messias) correspondia às mais profundas expectativas do judaísmo, bastante enraizado na comunidade de Mateus, o que seria um incentivo à preservação da ideologia nacionalista.

Com a expressão «o Filho do Deus vivo», o evangelista ensina que a messianidade de Jesus não corresponde às expectativas de Israel; trata-se de um Messias diferente, que não veio apenas para Israel, mas para a inteira humanidade. Ora, Israel esperava um Messias filho de Davi, cujo título evoca um programa estritamente restauracionista, reformador, visando a restauração da monarquia e do reino davídico-salomônica. Por isso, a afirmação de Pedro é altamente revolucionária e comprometedora. Ora, essa resposta compromete a(s) comunidade(s) cristã(s), em todos os tempos e lugares, a proclamar que Jesus é, de fato, o Cristo, é o Filho do Deus vivo, ou seja, o seu Deus é o Deus da vida, enquanto os deuses pagãos cultuados no império romano e até mesmo o Deus do templo de Jerusalém, completamente desfigurado pela aristocracia sacerdotal de lá, eram privados de vida, eram agentes de morte, sobretudo para o povo simples e excluído que era explorado diariamente. Portanto, a convicção de que Jesus é o Filho do Deus vivo compromete a comunidade a denunciar e desafiar todos os sistemas religiosos e políticos que não favoreçam a promoção da liberdade e da vida plena e abundante para todos.

Jesus aprovou a resposta de Pedro, por isso o proclamou bem-aventurado: «Feliz és tu, Simão, filho de Jonas, porque não foi um ser humano que te revelou isso, mas o meu Pai que está no céu» (v. 17). De agora em diante, até o versículo 19, o texto passa a ser exclusivo de Mateus. O paralelismo com Marcos e Lucas só volta no versículo 20, que já não faz parte da seleção escolhida para a esta liturgia. Considerando que Mateus teve Marcos como fonte para este episódio, os versículos 17-19 são um acréscimo da sua comunidade como resposta a necessidades concretas, sobretudo em relação à diferenciação da comunidade com a sinagoga. A bem-aventurança dirigida a Pedro não é um elogio por um mérito particular, até porque o conhecimento não é dele, mas do Pai que lhe revelou. O que Jesus faz, então, é uma constatação: parece que as coisas começam a funcionar bem na comunidade, pois a voz do Pai está sendo ouvida; e como o Pai só revela seus desígnios aos pequeninos (Mt 10,21), e Pedro estava falando a partir do que o Pai lhe revelou, logo ele estava demonstrando adesão plena ao projeto do Reino, inserindo-se no mundo dos pequeninos! O Reino de Deus ou dos céus, como Mateus prefere, é um projeto alternativo de mundo que só tem espaço para quem aceita a condição de pertencer ao mundo dos pequeninos. A bem-aventurança de Pedro, portanto, consiste em abrir-se à vontade do Pai e deixar-se conduzir por ela.

Na continuidade, Jesus declara: «Por isso eu te digo que tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja» (v. 18a). Jesus está declarando que Pedro está apto a participar da construção da sua comunidade – a Igreja –, por estar aberto às intuições do Pai. Ao contrário da antiga religião judaica que precisava de um templo de pedras, a comunidade cristã é uma construção sim, mas pela sua coesão e unidade, por isso, na sua construção são necessárias pedras vivas, pessoas de fé. E Pedro foi uma destas pedras escolhidas por Jesus, a primeira, sem dúvidas. A pedra fundamental da construção é a fé da comunidade. A força, o equilíbrio e a perseverança da comunidade dependem da solidez da sua fé. Por isso, é necessário que essa fé seja forte como uma rocha, comparável à fé que Pedro tinha acabado de professar. É importante esclarecer que Mateus usa duas palavras gregas muito parecidas para designar Pedro e pedra: (Πέτρος) “Petros” (πέτρα) “petra”. Embora muito próximas, é possível distingui-las: “Petros”, que foi transformada no nome próprio Pedro, designa pedra, pedregulho ou tijolo, uma pedra pequena e removível, uma pedra de construção; “petra”, por sua vez, designa a superfície rochosa, base ideal para os fundamentos de uma construção segura. São estas as bases necessárias para a edificação da Igreja enquanto comunidade do Reino. Portanto, Jesus diz que Pedro (petros) é uma pedra-tijolo da construção, e a pedra-rocha (petra) é a fé que ele professou, a superfície rochosa sobre a qual a Igreja é edificada.

A proclamação de Jesus como Cristo e Filho de Deus é a base da comunidade cristã, a Igreja. Por sinal, essa é a primeira vez que aparece a palavra igreja (em grego: ἐκκλησία – ekklesia) no Evangelho de Mateus, o único que a emprega, e somente duas vezes (Mt 16,18; 18,17); o significado da palavra é assembleia convocada, reunião, comunidade. Ao contrário do templo de Jerusalém e dos templos pagãos que havia na região de Cesaréia de Filipe, construídos sobre pedras concretas e visíveis e, portanto, passíveis de destruição, a comunidade cristã não correrá esse risco se for edificada conforme Jesus pensou, ou seja, tendo a fé por fundamento. Por isso, ele declara: «e o poder do inferno nunca poderá vencê-la» (v. 18b). Aqui, ele se refere às hostilidades que a comunidade irá enfrentar em seu longo percurso até a instauração do Reino aqui na terra, razão da sua existência. O “poder do inferno”, portanto, significa as forças de morte manifestadas nos diversos sistemas de dominação, tanto políticos quanto religiosos. A comunidade precisa de uma fé muito consistente para resistir a tudo isso. Essas forças retardam a concretização do Reino, mas não impedirão a sua realização. Para superá-las é imprescindível uma fé viva e comprometida, como a fé de Pedro e Paulo, e de tantos outros irmãos que doaram a vida pelo Reino.

No último versículo temos mais uma declaração significativa de Jesus a Pedro e à comunidade dos discípulos: «Eu te darei as chaves do Reino dos céus: tudo o que ligares na terra será ligado nos céus; tudo o que desligares na terra será desligado nos céus» (v. 19). Mais do que delegando poderes, Jesus está responsabilizando a comunidade para fazer o Reino dos céus acontecer. No judaísmo, a imagem das “chaves” correspondia à capacidade de interpretação e aplicação da Lei pelos rabinos e escribas. Inclusive, o próprio Jesus vai denunciá-los por terem “fechado” o Reino dos Céus: «Ai de vocês, doutores da Lei e fariseus hipócritas! Vocês fecham o Reino do Céu para os homens. Nem vocês entram, nem deixam entrar aqueles que desejam!» (Mt 23,13). As chaves confiadas a Pedro e a toda a comunidade, portanto, são para abrir o Reino a todas as pessoas, a começar pelas marginalizadas e sofridas, os pobres, as vítimas das mais variadas formas de exclusão. Portanto, Mateus não emprega a imagem das chaves como símbolo de uma instituição, mas como sinal de uma nova relação com Deus. A antiga religião tinha bloqueado, escondido o rosto desse Deus, mas Jesus dá a chave de acesso a ele: a vivência das bem-aventuranças (Mt 5,1-12), que são a síntese de toda a sua mensagem. Logo, a função de “ligar e desligar” representa a responsabilidade da comunidade, e não propriamente poder. Inclusive, no discurso sobre a comunidade, essa mesma função será atribuída a toda a comunidade (Mt 18,18). Isso exige profunda fidelidade da Igreja para viver em perfeita sintonia com Jesus e o Pai, para que tudo o que essa venha a realizar e viver seja referendado por eles.

Se a comunidade/Igreja viver fielmente o Evangelho, sintetizado nas bem-aventuranças, que são as chaves de leitura de toda a obra de Mateus, e de acesso ao Reino, não resta dúvidas de que Jesus e o Pai confirmarão as suas decisões e pleitos lá nos céus. Pedro e Paulo são exemplos concretos de quem fez essa experiência. Eles abriram o Evangelho ao mundo, fazendo o mundo abrir-se ao Evangelho, cada um à sua maneira. Por sinal, pegando essa deixa, é oportuno concluir a reflexão com o seguinte trecho do prefácio desta solenidade: «Hoje, vós nos concedeis a alegria de festejar os Apóstolos São Pedro e São Paulo. Pedro, o primeiro a proclamar a fé, fundou a Igreja primitiva sobre a herança de Israel. Paulo, mestre e doutor das nações, anunciou-lhes o Evangelho da Salvação. Por diferentes meios, os dois congregaram a única família de Cristo e, unidos pela coroa do martírio, recebem hoje, por toda a terra, igual veneração.» (Prefácio de São Pedro e São Paulo, apóstolos).

Pe. Francisco Cornélio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

 

sábado, junho 22, 2024

REFLEXÃO PARA O 12º DOMINGO DO TEMPO COMUM – MARCOS 4,35-41 (ANO B)


A liturgia deste décimo segundo domingo do tempo comum prossegue com a leitura semi-contínua do Evangelho de Marcos, como é característico do ciclo litúrgico em curso (ano B). O texto lido hoje – Mc 4,35-41 – é precisamente a continuação daquele do domingo passado (Mc 4,26-34). Naquela ocasião, fora lida a parte conclusiva do discurso em parábolas sobre o Reino de Deus em Marcos, que corresponde ao primeiro ensinamento de Jesus após a constituição da sua nova família, composta por todas as pessoas com disposição para fazer a vontade de Deus, tornando-se, por consequência, mãe, irmãos e irmãs suas (Mc 3,35). Ora, no discurso em parábolas, Jesus evidenciou o mistério paradoxal e complexo do Reino; trata-se de uma realidade tímida, a princípio, mas com grande força transformadora, tanto é que a imagem predominante nas parábolas foi a da semente: o discurso começou com a parábola do semeador (Mc 4,3) e terminou com a do grão de mostarda (Mc 4,30).

A adesão ao projeto de Reino apresentado por Jesus, portanto, exige mudança de mentalidade, passando pela ruptura e emancipação das pessoas em relações às estruturas, esquemas e instituições tradicionais, a começar pela família patriarcal e a religião do templo (Mc 3,20-35). O evangelho de hoje mostra um passo importante dessa ruptura: a travessia do lago de Genesaré, chamado pelos evangelistas de mar da Galileia. Trata-se de um texto de grande importância para o conjunto do Evangelho de Marcos, pois inaugura uma nova fase no ministério libertador de Jesus. É o ponto de partida para a sua missão fora dos limites de Israel, já que a “outra margem”, na linguagem evangélica, significa o mundo pagão. Pode-se dizer, por isso, que é o lançamento das bases de uma verdadeira “Igreja em saída”. Além disso, a “tempestade acalmada” inaugura uma série de quatro milagres de Jesus, concluída com a ressurreição da filha de Jairo (Mc 5,21-43), mostrando que o centro de todo o seu projeto é o triunfo da vida, objetivo da instauração do Reino. Para isso, é necessário vencer todos os obstáculos e impedimentos. Convém recordar, como sempre, que o objetivo do evangelista com o seu relato é ajudar a manter viva a fé de comunidade(s) em crise, seja por perseguição externa seja por divisões ou falta de entusiasmo interno.

Feita a contextualização, olhemos para o texto: «“Naquele dia, ao cair da tarde, Jesus disse a seus discípulos: “Vamos para a outra margem!”» (v. 35). É muito importante quando a versão litúrgica preserva o indicativo temporal do próprio texto, como hoje, o que é raro, sem substituir pela vaga e genérica expressão “naquele tempo”. Portanto, “aquele dia” foi o dia mesmo do discurso em parábolas, proclamado à beira-mar (Mc 4,1). O cair da tarde significa o início; para a mentalidade semita, é também o início de um novo dia, mas não era o momento ideal para começar uma viagem. A noite evoca perigo, conforme a maneira de pensar nos tempos bíblicos, por isso, era o momento de recolher-se em casa, ainda mais para quem tinha passado o dia inteiro ensinando e, por isso, estava cansado, como era o caso de Jesus. Portanto, o mais logico seria esperar o dia amanhecer para recomeçar as atividades. Porém, Jesus faz o contrário, e convida seus discípulos para uma empreitada desafiadora: «Vamos para a outra margem!». Já temos, assim, dois sinais de perigo, logo no primeiro versículo: a noite e o mar, imagens que simbolizam trevas e caos, ao mesmo tempo. Certamente, os discípulos pescadores estavam acostumados a essa realidade, mas nem todos eram pescadores. Além disso, a atividade pesqueira exigia familiaridade com o mar, mas não necessariamente a chegada à outra margem, embora não fosse difícil em termos de praticidade, uma vez que a largura máxima do lago chamado de mar da Galileia era dezesseis quilômetros.

O mar simboliza o caos, como afirmado acima. Para a mentalidade bíblica, era o lugar onde residiam as forças do mal. A outra margem significa o mundo pagão, considerado impuro pela religião judaica. Para um judeu devoto, era um mundo a ser evitado, mas é para esse mundo que Jesus convoca seus discípulos a andarem com ele. O que era evitado pela religião da época, torna-se prioridade na missão de Jesus, como os últimos se tornam primeiro, como indica sua clara opção preferencial pelos pobres e marginalizados. O mar da Galileia representava, então, uma barreira de separação entre o judaísmo e o mundo pagão, mas quebrar barreiras faz parte da missão de Jesus e da comunidade de seus seguidores e seguidoras. Por isso, discípulos obedeceram: «Eles despediram a multidão e levaram Jesus consigo, assim como estava, na barca. Havia ainda outras barcas com ele» (v. 36). Os discípulos despedem a multidão que tinha se reunido para escutar Jesus, que já se encontrava na barca, uma vez que era da barca mesma que ele tinha ensinado durante todo o dia. Portanto, de púlpito improvisado, a barca (em grego: πλοῖον – ploion) se torna a outra imagem privilegiada da comunidade cristã no Evangelho de Marcos, junto com a casa. Enquanto a casa simboliza a vida fraterna, a irmandade, a barca simboliza a missão, o sair de si, a disposição e a coragem de correr perigos pelo Reino. Sem essas duas dimensões – irmandade e missão – não existe comunidade cristã. A menção a outras barcas que estavam com ele pode indicar que estavam num ponto de ancoragem às margens do lago e poderiam até terem sido usadas por pessoas que tinham vindo ao seu encontro, para ouvir seus ensinamentos.

A passagem para a outra margem não acontece sem riscos e perigos, mas é essencial para a comunidade manter-se fiel aos propósitos de Jesus. As turbulências são inevitáveis, pois essa passagem pressupõe um desestabilizar-se. É um sair de si, deixando de lado todo qualquer sinal de comodismo. E é isso o que mostra o texto: «Começou a soprar uma ventania muito forte e as ondas se lançavam dentro da barca, de modo que a barca já começava a se encher» (v. 37). A “ventania muito forte” é a síntese das principais dificuldades da comunidade do evangelista, na época da redação do Evangelho: a perseguição do império romano, sob o reinado de Nero (início dos anos 60 d.C.), a oposição das lideranças do judaísmo, e o medo/comodismo/desânimo dos próprios membros da comunidade. Tudo isso ameaçava a comunidade, tornando-a semelhante a uma barca em alto-mar durante uma tempestade. Surpreende que, durante a tempestade, «Jesus estava na parte de trás, dormindo sobre um travesseiro» (v. 38a). Isso quer dizer que as turbulências da vida, as tempestades pelas quais passa a comunidade cristã não significam ausência de Jesus, mas pode levar as pessoas a não sentirem e nem reconhecerem a sua presença, e o texto visa chamar a atenção dos ouvintes-leitores sobre isso. Ora, o caminhar da Igreja em saída jamais será tranquilo. Pelo contrário, quanto mais a Igreja sair de si mais encontrará oposição e obstáculos, ou seja, ventanias contrárias muito fortes, a começar pelos seus próprios membros que não aceitam passar para as outras margens, onde estão os pobres e as pessoas marginalizadas em todos sentidos. Portanto, a imagem de Jesus dormindo aqui é uma advertência para a comunidade de todos os tempos. Ela corre o risco de negligenciar a presença do Cristo Ressuscitado. Trata-se, portanto, de uma catequese pascal do evangelista para sua comunidade com dificuldade de encontrar o Ressuscitado e reconhecê-lo num momento histórico tão crítico como estavam vivendo.

O sono de Jesus lhe ocasiona uma repreensão pelos discípulos: «Os discípulos o acordaram e disseram: “Mestre, estamos perecendo e tu não te importas?”» (v. 38b). É interessante que, aqui em Marcos, os discípulos não pedem uma intervenção propriamente, mas apenas questionam a aparente indiferença de Jesus. Em Mateus e Lucas, por outro lado, eles fazem um pedido explícito de socorro: “Senhor, salva-nos!” (Mt 8,25; Lc 8,24). Ora, o sono de Jesus não significa indiferença diante dos obstáculos vividos pela comunidade, mas sim que esses são inevitáveis. Faz parte da missão mesma a exposição aos perigos, por isso, não quer dizer que ele esteja ausente quando surgem as adversidades. Não há travessia tranquila. As dificuldades só podem ser vencidas se forem enfrentadas, como Jesus estava ensinando aos discípulos, com a proposta de passar à outra margem. Aos discípulos, estava faltando coragem para enfrentar a travessia. Essa é a primeira vez que os discípulos chamam Jesus de mestre, no Evangelho de Marcos, um dado bastante significativo. Aos poucos os discípulos iam compreendendo a posição de Jesus na comunidade e na vida de cada um, mas de maneira muito tímida, ainda. Reconhecê-lo como mestre já é um passo, mesmo que a motivação tenha sido uma situação desesperadora. Nos momentos mais difíceis da vida, saber com quem se pode contar e a quem se dirigir, já é um meio caminho para a solução.

Diante da pressão dos discípulos, eis que «Ele se levantou e ordenou ao vento e ao mar: “Silêncio! Cala-te!” o vento cessou e houve uma grande calmaria» (v. 39). A intervenção de Jesus se dá unicamente por meio da palavra. O evangelista não relata nenhum gesto, além do levantar-se. A ordem dada é praticamente a mesma quando realiza exorcismos (Mc 1,25). Ao ordenar ao vento, ao mar ou a um espírito impuro que se calem, na verdade Jesus está é advertindo os seus discípulos para que não escutem outras palavras que não sejam as suas. A agitação do vento e do mar, neste episódio, simboliza todas as vozes e barulhos que se opõem ao Evangelho, impedindo-o de ser anunciado ou distorcendo-o. E o que fez o vento e o mar silenciarem foi a Palavra de Jesus, enquanto força humanizante. A comunidade precisa fazer essa Palavra ressoar no mundo, fazendo calar o mal. É claro que o evangelista está reforçando sua catequese de apresentação de Jesus como o Messias, o agente de Deus no mundo para destruir as forças do mal, pelo bem, pelo caminho do amor. De fato, no Antigo Testamento a capacidade de acalmar o mar e as tempestades era um sinal do poder de Deus (Sl 89,10; 106,9; Is 51,9-10). Jesus é, portanto, o agente autorizado de Deus para erradicar o mal do mundo e fazer a vida triunfar em plenitude, missão essa compartilhada com seus seguidores e seguidoras de todos os tempos.

Tendo acalmado a tempestade e o mar por meio de sua palavra que é força de vida, Jesus se dirige também aos discípulos em tom de reprovação: «Então Jesus perguntou aos discípulos: “Por que sois tao medrosos? Ainda não tendes fé?”» (v. 40). Trata-se de uma reprovação muito forte. Inclusive, a tradução mais adequada para o termo grego traduzido aqui como “medrosos” seria covardes (em grego: δειλοί – deiloi). Ora, os discípulos imaginavam que o seguimento e a fé em Jesus os isentassem dos perigos e dificuldades que a vida e a missão comportam. Jesus ensina o contrário; a fé e a confiança na sua Palavra dão forças para superar os obstáculos, ou seja, as tempestades, mas não isentam a comunidade e os discípulos de enfrentá-las. Por isso, o questionamento tao duro: «ainda não tendes fé?». Certamente, esse questionamento impactou a comunidade de Marcos. Tanto é que, para amenizar o tom, Mateus trocou “não tendes fé” por “pouca fé” (Mt 8,26). Para Marcos, no entanto, a fé não permite meios termos: ou se tem, ou não se tem. Aqui, é preciso considerar de novo o contexto literário do texto: segue de imediato ao discurso das parábolas do Reino. Os discípulos tinham acabado de ouvir, não apenas as parábolas, mas também as explicações exclusivas que Jesus dava a eles (Mc 4,10). A covardia, portanto, consistia em não levar a sério as palavras de Jesus, e sem a Palavra não há fé. A semente da Palavra não estava germinando no coração dos discípulos, e sem isso o Reino não se instaura. Daí a dureza de Jesus na correção aos discípulos. É importante recordar que a fé reivindicada por Jesus nesta passagem não significa a confiança em seu poder de operar milagres. Significa a confiança da sua presença na missão, fazendo vencer a covardia e, assim, manter a comunidade sempre alinhada ao seu projeto. Por isso, esta é uma das passagens que melhor demonstra que o contrário da fé, para Jesus, não é a incredulidade, mas a covardia e o medo de assumir as consequências que o Evangelho do Reino implica.

A conclusão, porém, mostra um avanço importante na fé dos discípulos, o que significa uma adesão progressiva ao projeto de Jesus: «Eles sentiram um grande medo e diziam uns aos outros: “Quem é este, a quem até o vento e o mar obedecem?”» (v. 41). Aqui, já não se trata de medo, propriamente, de modo que o termo mais justo para a tradução seria temor. Trata-se do temor reverencial, a postura adequada do ser humano quando reconhece o agir de Deus. Diferentemente do medo, o temor não é o oposto da fé; ele não paralisa a comunidade. Pelo contrário, o temor instiga o ser humano a fortalecer a fé, tornando-a mais convicta, estimula a pessoa a conhecer melhor a vontade de Deus, à medida em que gera espanto, admiração e curiosidade. Nesta passagem específica, o temor se torna um estímulo para os discípulos buscarem compreender melhor a identidade de Jesus, à medida em que se questionam. Ora, como sabemos, todo o Evangelho de Marcos gira em torno da clássica pergunta «Quem é Jesus?». E o questionamento final dos discípulos, «Quem é este…?» é uma das variantes dessa mesma pergunta que é constantemente repetida ao longo do Evangelho, tanto por adeptos quanto por opositores ao projeto de Jesus (Mc 1,27; 2,7; 4,41; 6,2.14; 8,27; 11,27; 14,61-62; 15,31-32). A resposta definitiva só será dada no final do livro, por incrível que pareça, por um centurião romano, o qual reconhecerá que Jesus “era mesmo o Filho de Deus” (Mc 15,39). Até lá, os ouvintes-leitores devem um rico caminho de descobertas. À medida em que se avança nesse percurso, pessoa se humaniza constantemente, liberta-se, emancipa-se, passando a fazer parte da família nova de Jesus, cuja exigência é escutar sua Palavra.

O evangelho de hoje, portanto, é um convite à Igreja para que assuma cada vez mais a sua identidade missionária, reconhecendo que sua razão de existir consiste em estar sempre em estado de saída, mesmo enfrentando obstáculos. É preciso romper barreiras e alcançar as outras margens, compreendendo todas as periferias, existenciais e geográficas. E isso só é possível superando os medos, saindo do comodismo e, acima de tudo, confiando na força da Palavra de Deus, cuja revelação plena é Jesus de Nazaré com sua vida e missão.

Pe. Francisco Cornélio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, junho 15, 2024

REFLEXÃO PARA O 11º DOMINGO DO TEMPO COMUM – MARCOS 4,26-34 (ANO B)


A liturgia deste décimo primeiro domingo do tempo comum continua a leitura do Evangelho de Marcos, mesmo saltando alguns trechos em relação à passagem lida no domingo passado. De fato, o que o ciclo litúrgico propõe para os domingos não é exatamente a leitura dos evangelhos na íntegra, mas uma leitura semi-contínua de um evangelho a cada ano. Logo, ao longo do ano, tanto acontece continuidade imediata quanto alguns saltos, como se percebe entre o domingo passado e hoje. O texto proposto para este dia – Mc 4,26-34 – é composto de duas pequenas e importantes parábolas sobre a realidade misteriosa do Reino de Deus. A primeira parábola apresenta o Reino sendo comparado a uma semente, não especificada, que cresce sozinha; já a segunda compara o Reino a um grão de mostarda. Por conhecer bem a realidade de seus ouvintes, Jesus procurava imagens do cotidiano para ilustrar a sua mensagem, tornando-a acessível e, ao mesmo tempo, procurava diminuir as expectativas triunfalistas dos seus discípulos. Enquanto a primeira parábola é exclusiva do Evangelho de Marcos, a segunda consta também os outros evangelhos sinóticos (Mt 13,31-32; Lc 13,18-19), embora com pequenas modificações, uma vez que cada evangelista procura adaptar o material disponível às necessidades de suas respectivas comunidades.

O quarto capítulo do Evangelho de Marcos é marcado pela presença de uma série de parábolas sobre o Reino de Deus, que visam responder às situações de inquietação e crise vividas pela comunidade dos discípulos de primeira hora, inicialmente, e pela comunidade do próprio evangelista, mais tarde. Apesar de conter menos parábolas, é comparável ao capítulo treze de Mateus e, por isso, também pode ser chamado de “discurso parabólico”. Para compreendê-lo, é necessário recordar que o capítulo terceiro, como vimos no domingo passado (Mc 3,20-35), fora concluído com duas situações de desconforto para Jesus e, consequentemente, para os seus discípulos: a acusação caluniosa dos mestres da Lei (escribas) de que ele estava endemoniado (Mc 3,22-30), e a incompreensão dos seus próprios familiares, imaginando que ele estivesse fora de si, ou seja, louco e, por isso, queriam levá-lo à força, de volta para Nazaré (3,20.31-35). Sem dúvidas, essas situações repercutiram também na vida dos seus discípulos, gerando uma crise na comunidade, pois colocavam em xeque a credibilidade de Jesus como mestre e Messias. Ora, como poderiam levar a sério um Messias “excomungado” pela religião e menosprezado pela família? Tudo isso ocasionou a primeira crise do ministério de Jesus na Galileia, após o aparente sucesso inicial, sobretudo o êxito da “jornada de Cafarnaum (Mc 1,21-39).

Diante dessa situação, é certo que a credibilidade de Jesus e de sua mensagem foram postas em dúvidas pelos seus próprios discípulos. Ora, os primeiros discípulos tinham deixado família, trabalho e bens, pensando em algo melhor para suas vidas, inclusive, esperando sucesso, fama e poder. Aos poucos, iam percebendo que estavam seguindo a uma pessoa que a religião oficial condenava (os mestres da lei o acusaram de estar endemoniado) e nem os seus familiares o levavam a sério. Portannto, poderia não proporcionar o que eles esperavam. Após a empolgação inicial do chamado, as expectativas diminuíam, pois Jesus não apresentava o perfil do Messias esperado. Paralelo às desconfianças dos discípulos, também Jesus percebia as contradições e incompreensões neles: eles sonhavam com poder e força, queriam construir um sistema de dominação semelhante às grandes potências da terra, algo que nada tinha a ver com o seu projeto de Reino, ou seja, o Reino de Deus. A continuidade do Evangelho de Marcos irá mostrar com mais clareza o contraste entre as expectativas dos discípulos e a proposta de Jesus.

Algumas décadas mais tarde, também na comunidade de Marcos surgiram problemas semelhantes. A comunidade era perseguida por todos os lados: pela dominação romana e pelas lideranças do judaísmo, a ponto de parecer diminuir a cada dia, ao invés de crescer, como esperavam que acontecesse. Isso causava desânimo, desconfiança e impaciência, com fortes tendências à desistência, pois não se viam resultados. O anúncio do Evangelho e a forma de vida cristã pareciam não surtir efeitos em meio a tantas hostilidades. O evangelista respondeu à crise da sua comunidade recordando a resposta de Jesus, outrora, aos primeiros discípulos: é necessário ter paciência, humildade e confiança na força da Palavra para fazer o Reino de Deus crescer. As parábolas do Evangelho de hoje são introdução e síntese dessa resposta. É importante recordar que, mesmo tendo a multidão como auditório, o público-alvo das parábolas é sempre o grupo dos discípulos, os quais, no contexto específico do Evangelho de hoje, ainda, ainda confusos com os últimos acontecimentos, e a comunidade cristã de todos os tempos. Com última observação a nível de contexto, é importante recordar que, apesar da crise instalada entre os discípulos, as multidões continuavam se aglomerando em torno de Jesus. O discurso do qual as parábolas de hoje fazem parte foi preferido diante de uma multidão numerosa, e Jesus teve até que improvisar uma barca como púlpito, para poder ensinar (Mc 4,1).

Feitas as considerações a nível de introdução e contexto, iniciamos o estudo do texto propriamente, começando pela primeira parte da primeira parábola: «O Reino de Deus é como quando alguém espalha a semente na terra. Ele vai dormir e acorda, noite e dia, e a semente vai germinando e crescendo, mas ele não sabe como isso acontece» (vv. 26-27). Essa parábola é exclusiva do Evangelho de Marcos e é considerada uma das mais impressionantes do Novo Testamento. Ora, como o Reino de Deus não poderia ser comparado com nenhum sistema de organização social até então experimentado, todos marcados pelo poder e a dominação, Jesus o comparava com elementos da natureza, privilegiando a imagem da semente, também para valorizar as origens camponesas da maior parte do seu auditório. O Reino de Deus (em grego:  βασιλεία τοῦ θεοῦ – hé basileia tú Theú) proposto por Jesus não é um espaço ou uma realidade para depois da morte, mas um projeto de vida e de sociedade para ser implantado já nesse mundo, com novas relações conduzidas pelo amor, a justiça, a solidariedade e a igualdade, sem nenhum sinal de grandeza ou poder. Por isso, requer a humanização do mundo, e é isso que Jesus propõe com sua vida e mensagem. Pode-se dizer, portanto, que o Reino proposto por Jesus é uma alternativa de mundo e sociedade baseado na fraternidade, onde todos são irmãos, irmãs e mães, conforme a conclusão do evangelho do domingo passado (Mc 3,35).

Os discípulos ainda cultivavam a ideologia nacionalista, sonhando com a restauração do reino davídico-salomônico, um projeto de poder que visava a dominação de Israel sobre as outras nações e, por isso, tinham muita dificuldade de aceitar a proposta inovadora de Jesus. Ao comparar com uma semente jogada na terra, Jesus mostra a simplicidade e, ao mesmo tempo, a complexidade do Reino de Deus. Por mais que os discípulos colaborem, afinal são eles que devem lançar a semente, o mérito nunca será deles, mas sempre da força da Palavra, a semente na parábola. Por isso, ele diz que «A terra, por si mesma, produz o fruto: primeiro aparecem as folhas, depois vem a espiga e, por fim, os grãos que enchem a espiga; quando as espigas estão maduras, o homem mete logo a foice, porque o tempo da colheita chegou» (vv. 28-29). A primeira iniciativa para a construção do Reino de Deus é lançar a semente na terra, sem grandes pretensões, o que não significa dar pouca importância. É claro que é importante pensar nos frutos. Mas a terra e a semente possuem dinâmicas próprias que independem do trabalho do agricultor. Assim é o Reino, ele também possui uma dinâmica própria que ultrapassa nossos esquemas. O processo de desenvolvimento da semente é próprio e autônomo, não pode ser manipulado por ninguém, como é pessoal a acolhida da Palavra em cada coração. É claro a parábola reflete as técnicas agrícolas da época, muito rudimentares em comparação às atuais. Na época, era inimaginável a manipulação das sementes e da terra.

E a terra na parábola é a consciência e o coração de cada pessoa que recebe o anúncio da Palavra. Se a semente é jogada na terra, essa produz fruto por si mesma. Há uma fase da semeadura que não está ao alcance do agricultor: o desenvolvimento da semente debaixo da terra. Trata-se de algo invisível e misterioso que requer paciência e cuidado. Por mais competente que seja o agricultor, a qualidade dos frutos será sempre mérito da semente. Assim é a Palavra na vida das pessoas: a comunidade não pode cobrar respostas imediatas, nem moldar as pessoas; cada um e cada uma tem seu jeito próprio de fazer a Palavra germinar dentro de si e frutificar depois. Por isso, é necessário respeitar as diversas etapas do processo. À comunidade, cabe a paciência e o discernimento para reconhecer o tempo de plantar e o tempo de colher. É importante recordar que a primeira parábola deste capítulo quarto de Marcos foi a parábola do semeador (Mc 4,1-9), saltada pela liturgia, mas bastante conhecida. Nela, é enfatizada a diversidade de terrenos. Portanto, mesmo sabendo que “a terra, por si mesma, produz fruto”, não se pode esquecer que cada terreno tem sua própria dinâmica. Os frutos colhidos não serão os mesmos em todos os terrenos. Por isso, nesta primeira parábola de hoje fala-se apenas de semente, sem especificar o tipo de fruto ou de grão que será colhido, tampouco sobre a diversidade de terrenos.

Ao continuar sua apresentação do Reino de Deus, Jesus interage com o seu auditório, com uma pergunta retórica para prender a atenção dos ouvintes. Talvez, tenha até percebido reações negativas diante da parábola anterior ou se sentido incompreendido. Eis então, a pergunta: «E Jesus continuou: “Com que mais poderemos comparar o Reino de Deus? Que parábola usaremos para representá-lo?”» (v. 30). A impressão é que ele parecia não saber mais o que dizer sobre o Reino, parecia estar até com sua imaginação esgotada, provavelmente como consequência da crise instalada, como foi recordado na introdução. É importante reforçar que o Reino de Deus é indescritível porque ainda não foi completamente experimentado, por isso, só pode ser comparado, jamais descrito. E o gênero literário da parábola (em grego: παραβολῇ – parabolê) significa exatamente isso: comparação, analogia; é a explicação de uma realidade desconhecida tomando uma imagem conhecida como comparação. O cuidado em comparar o Reino com realidades pequenas e insignificantes funciona como advertência aos discípulos para não alimentarem sonhos de grandeza. Também indica o quanto o Reino de Deus está ao alcance de todos; ele é construído no dia-a-dia, a partir de coisas simples e quase invisíveis, enquanto os “reinos deste mundo” eram edificados por meio de guerras, violência e exploração.  

Após a pergunta, eis que Jesus apresentou a parábola conclusiva da série: «O Reino de Deus é como um grão de mostarda que, ao ser semeado na terra, é a menor de todas as sementes da terra» (v. 31). Com essa parábola, Jesus responde aos projetos de grandeza e poder alimentados pelos seus discípulos de outrora e pela comunidade cristã em todos os tempos, a começar pela comunidade do evangelista. Ora, diante da força e poderio do império romano e da estrutura da religião judaica, com sinagogas espalhadas em todos os lugares, o projeto de Jesus era praticamente invisível e parecia não causar efeito algum no mundo. Para os discípulos, alguns movidos por ambições pessoais (Mc 10,35-45), era difícil compreender e aceitar aquela situação. Por isso, Jesus apresentou essa parábola, e o evangelista recordou à sua comunidade, lembrando a importância de aceitar e acreditar na força do que é pequeno. Ora, grão de mostarda era o menor grão conhecido até então. Com essa imagem, Jesus afirma que a comunidade precisa aceitar a condição de pequenez em que se encontra, e deve reconhecer essa pequenez como necessidade para compreender a dinâmica do Reino. Esse, o Reino, não pode impor-se por sinais de grandeza nem de espetáculo.

O importante é que seja cultivado, mesmo como uma semente pequena, e colocar-se no mundo para servir, como acontece com o grão de mostarda: «Quando é semeado, cresce e se torna maior do que todas as hortaliças, e estende ramos tão grandes, que os pássaros do céu podem abrigar-se à sua sombra» (v. 32). Mesmo em seu máximo crescimento, a planta que brota de um grão de mostarda é sempre uma hortaliça, alcançando no máximo três metros de altura; jamais será uma árvore imponente, nem atraente pela beleza. Contudo, apesar não chegar a ser uma grande árvore, é clara a diferença entre a pequena semente e o resultado final: a maior das hortaliças. É essa realidade paradoxal que o evangelista quer destacar. Por meio dele, ele ensina que a força transformadora da Palavra é incontestável. A comunidade cristã não pode almejar triunfos nem apoteoses; como embrião do Reino de Deus, ela deve ter somente a pretensão de servir: oferecer sombra e abrigo para quem necessitar, como o pé de mostarda abriga os pássaros com seus ninhos, apesar de ser pequena em relação a outras árvores. Mesmo em seu máximo desenvolvimento e cumprimento, o Reino de Deus será, aparentemente, sempre tímido, porque não pode ser edificado sob os mesmos alicerces dos “reinos deste mundo”. Ora, os reinos deste mundo se destacavam visivelmente pelo esplendor dos palácios, pelos carros de guerra, a multidão dos exércitos, etc. No Reino de Deus, o que menos importa é a aparência, e assim deve ser a comunidade cristã. O que deve preocupar os seguidores e seguidoras de Jesus é se, de fato, estão sendo sombra e abrigo para os mais necessitados, mesmo no anonimato e na simplicidade. Comparada aos decretos imperiais e às leis religiosas impostas pelos escribas, a pregação simples de Jesus parecia insignificante.

A sequência de parábolas é concluída com um importante e sintético enunciado: «Jesus anunciava a Palavra usando muitas parábolas como estas, conforme eles podiam compreender. E só lhes falava por meio de parábolas, mas, quando estava sozinho com os discípulos, explicava tudo» (vv. 33-34). A primeira informação relevante do enunciado é que os evangelhos escritos contêm apenas algumas das “muitas parábolas” contadas por Jesus. A pregação do Nazareno foi bem mais ampla, indo muito além daquilo que os evangelistas conseguiram resgatar. Como bom mestre, Jesus falava conforme a capacidade de entendimento das pessoas que estavam ao seu redor, seja para revelar os mistérios do Reino, seja para ocultá-los, a depender das circunstâncias. Ele sabia ler os sinais dos tempos e adaptar-se às diferentes realidades, como devem fazer as comunidades de hoje. O evangelista distingue os discípulos das multidões: «quando estava sozinho com os discípulos, explicava tudo»Com essa distinção, ele não pretende criar uma classe de privilegiados, mas acentua a responsabilidade de ser discípulo e discípula. Não basta ouvir uma vez aleatoriamente o anúncio; é necessário sentar com Jesus e ruminar a sua palavra para, de fato, ela frutificar na vida de cada um. O evangelista não via a multidão como uma massa excluída e anônima, em oposição ao privilégio dos discípulos, mas como uma primeira etapa do discipulado. A Palavra que ecoa no meio da multidão, de modo tímido e anônimo, é capaz de germinar, crescer e frutificar, gerando assim novos discípulos e discípulas para o Reino.

Com essas duas parábolas, de modo brilhante, Jesus respondeu aos questionamentos gerados pela crise entre os discípulos, e Marcos resgatou-as para responder também a uma situação semelhante de crise na sua comunidade. Certamente, essa resposta é válida para todos os momentos da história. O Reino de Deus, como um mundo de justiça, amor, solidariedade, fraternidade e igualdade, não surgirá repentinamente; é uma realidade misteriosa, dinâmica e lenta, que exige paciência e humildade em sua edificação. Além de paciência, humildade e discernimento, a sua construção exige, sobretudo, confiança na força transformadora da Palavra. O Evangelho de hoje é um convite ao resgate dessa confiança.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, junho 08, 2024

REFLEXÃO PARA O 10º DOMINGO DO TEMPO COMUM – MARCOS 3,20-35 (ANO B)



A liturgia deste décimo domingo do tempo comum prossegue com a leitura semi-contínua do Evangelho de Marcos, retomada no domingo passado, após a longa interrupção de mais de três meses, para a vivência de todo o ciclo pascal e as solenidades sucessivas. O evangelho proposto para a liturgia de hoje é Mc 3,20-35. Trata-se de um texto relativamente logo e bastante significativo para a compreensão de todo o ministério e mistério da vida de Jesus, enquanto Messias e Filho de Deus, enviado ao mundo para instaurar o Reino de Deus e combater as forças do mal, mediante sua mensagem humanizadora e agir libertador. Com o trecho lido na liturgia de hoje, o evangelista retrata mais um momento importante da missão de Jesus na Galileia, com as tradicionais reações de adesão e oposição à sua missão libertadora, mostrando que nenhum esquema religioso, social e cultural é capaz de contê-lo ou controlá-lo. O fato de ser o primeiro episódio narrado por Marcos após a constituição do grupo dos Doze (Mc 3,13-19) reforça ainda mais a importância desse texto, como veremos na contextualização, a seguir.

O episódio narrado faz parte ainda do início do ministério de Jesus na Galileia, embora sua fama já tivesse bem espalhada. Na verdade, não há consenso entre os estudiosos se o texto contém apenas um episódio ou mais de um. Após a última controvérsia com os fariseus, quando curou um homem da mão seca, na sinagoga em dia de sábado (Mc 3,1-6), a multidão que o acompanhava em busca de milagres e prodígios, só crescia (Mc 3,7-12). Isso o levou a constituir o grupo dos Doze (Mc 3,13-19), para que sua ação libertadora se expandisse cada vez mais (Mc 3,14-15). Inclusive, esse conjunto de acontecimentos aqui recordados é tudo o que foi saltado pela liturgia, entre o nono e o décimo domingo. À medida em que as multidões sedentas de dignidade, de justiça e de amor, cansadas de tanta opressão, aumentavam ao redor de Jesus, também aumentava a oposição daqueles que não aceitavam o seu comportamento fora dos padrões estabelecidos pela sociedade e a religião. É isso que o Evangelho de hoje mostra: Jesus rodeado por uma multidão na casa e, ao mesmo tempo, sendo contestado e mal compreendido pelos familiares e pelas autoridades religiosas do seu tempo.

A constituição do grupo dos Doze aconteceu na montanha (Mc 3,13), lugar especial para a oração e o encontro com Deus, conforme a mentalidade judaica. Logo após esse acontecimento, diz o evangelista que «Jesus voltou para casa com os seus discípulos. E de novo se reuniu tanta gente que eles nem sequer podiam comer» (v. 20). Como se vê, logo no primeiro versículo, o texto de hoje aparece muito rico de significado. Da montanha, o lugar privilegiado da oração e contemplação, Jesus passa direto para a casa, o lugar do encontro e do contato próximo com as pessoas. A casa (em grego: οἶκος – oikos) possui um valor muito significativo em toda a Bíblia e, mais ainda, para o Evangelho de Marcos, pois representa a alternativa proposta por Jesus para a realização do seu projeto em sua primeira dimensão espacial. Funciona como oposição à sinagoga e a qualquer instituição religiosa ou política. A casa é o espaço eclesial por excelência, pois é o lugar da fraternidade, da partilha e da solidariedade. É na casa onde Jesus fala abertamente com seus discípulos e vice-versa. Na casa, tudo é familiar, tudo é conhecido e de uso comum. A Igreja primitiva adotou a casa como o lugar da liturgia, da catequese e do encontro. Se é na casa onde acontece a vida, deve ser na casa o culto ao Deus da vida; um culto não ritual, mas serviçal e fraterno, acima de tudo. 

Essa casa para onde Jesus volta com seus discípulos, após a experiência na montanha, onde tinha acabado de constituir o grupo dos doze (Mc 3,13-19), obviamente, não é a casa de seus pais, em Nazaré, mas a casa adotada por ele em Cafarnaum. Provavelmente, era a casa dos irmãos André e Simão Pedro (Mc 1,29; 2,1). Ele tinha se estabelecido em Cafarnaum, apesar de manter seu grupo como um movimento itinerante, pelas oportunidades que essa cidade oferecia para a difusão da sua mensagem, principalmente pela localização às margens do lago da Galileia. A multidão reunida ao seu redor demonstra a aceitação de sua proposta pelas camadas mais populares da sociedade, sobretudo. Com tanta gente ao redor, Jesus e seus discípulos «nem sequer podiam comer»porque a prioridade era o serviço; com essa expressão o evangelista ressalta o aparente sucesso e, ao mesmo tempo, a dimensão do serviço na vida da comunidade. O discípulo deve pensar mais no outro do que em si próprio; nada de egoísmo na comunidade de Jesus. Com esse dado, o evangelista quer mostrar que a atenção primeira na comunidade deve ser dada às necessidades do próximo. Ora, Jesus e os discípulos “nem sequer podiam comer” porque estavam dando atenção às pessoas que lhes tinham procurado. E, certamente, as pessoas que o procuravam eram necessitadas, os pobres, doentes e pecadores, com quem ele tanto se identificava e, por isso, tinha feito opção clara por elas, desde os primeiros momentos de seu ministério.

Como já acenamos, a acolhida à mensagem de Jesus não era igual entre todos os grupos ou classes sociais. Ao contrário da multidão que o buscava constantemente, havia quem o contestasse e procurasse desqualificar a sua atuação libertadora, seja por incompreensão ou mesmo por maldade e medo de perder privilégios. Entres os que não o compreendiam, estavam os seus familiares. Talvez a incompreensão dos seus familiares fosse causada mais pelo que ouviam a seu respeito, uma vez que eles já não moravam mais juntos. Diante disso, o evangelista afirma que, «Quando souberam disso, os parentes de Jesus saíram para agarrá-lo, porque diziam que estava fora de si» (v. 21). Ora, Jesus já tinha deixado a família em Nazaré há algum tempo, e adotado a cidade de Cafarnaum como ponto de apoio para seu ministério itinerante. Porém, como sua fama se espalhava com facilidade, também chegaram notícias suas em Nazaré e, por sinal, não muito boas. Provavelmente, envergonhados pelo seu comportamento subversivo e fora dos padrões, seus familiares chegaram à conclusão de que ele só podia estar “fora de si”. Na verdade, a expressão mais adequada, conforme a língua original do texto é “tinha enlouquecido” (em grego ἐξέστη – exéste), expressão empregada para dizer que alguém tinha perdido o uso da razão e, por isso, deveria ser retirado do convívio social.

A maneira como Jesus se relacionava com todos, sobretudo o amor e a acolhida para com as pessoas desprezadas da sociedade, dava a impressão de que ele, realmente, estava louco, para quem estava apegado à mentalidade conservadora da época, imposta pela sociedade e a religião. Na verdade, louco e subversivo, era isso que Jesus parecia, conforme os padrões de comportamento da época. Diante disso, seus familiares tomaram a decisão de procurá-lo para prendê-lo, levá-lo para casa e, assim, evitar que ele continuasse a envergonhar o nome da família com um comportamento fora dos padrões estabelecidos. O verbo que o texto litúrgico traduz por agarrar significa mais precisamente “prender à força” ou “capturar” (em grego: κρατέω – kratêo), de acordo com a língua original do texto. Jesus estava se comportando tão fora do normal, que seus familiares saíram de Nazaré para Cafarnaum dispostos a levá-lo à força. De fato, a proximidade de Jesus com a escória da sociedade – prostitutas, enfermos, pecadores, etc – rendia-lhe o rótulo de louco, e isso causava vergonha nos seus familiares, incluindo a mãe. Alem de juntar-se com as pessoas mais sem reputação da época, ele ainda enfrentava publicamente as autoridades, tanto no campo religioso quanto político. Por isso, a incompreensão dos seus familiares eram motivadas também por um certo cuidado com sua própria integridade física, pois ele corria perigos constantemente, alem da vergonha que lhes causava.

Com rapidez, a fama de Jesus chegou também em Jerusalém, centro do poder religioso e político, onde estavam as autoridades constituídas para manter a ordem e o controle social e ideológico. Se na pequena Nazaré Jesus era considerado louco, na capital era visto como “endemoniado”, provocando a ida de uma comitiva oficial para Cafarnaum, a fim de tentar impedir que ele continuasse o seu ministério. Assim atesta o evangelista: «Os mestres da Lei, que tinham vindo de Jerusalém, diziam que ele estava possuído por Beelzebu, e que pelo príncipe dos demônios ele expulsava os demônios» (v. 22). Os mestres da Lei ou escribas constituíam a elite intelectual da época; eram refinados teólogos, intérpretes oficiais da Lei e de toda a Escritura. Para a religião oficial da época, eram eles quem decidiam se uma doutrina era válida ou não, ou seja, se vinha de Deus ou de satanás. E a acusação que fazem a Jesus é bastante grave, considerando o teor e o contexto. Enquanto Jesus anuncia a chegada do Reino de Deus, compreendido como um projeto de sociedade marcado pela igualdade, justiça e amor, seus adversários tentam desqualificá-lo, acusando-o de agir em nome do demônio. Beelzebu, cujo nome significa “senhor das moscas” ou “senhor do esterco”, era uma divindade filisteia, considerada a portadora de doenças em Israel. Era a expressão máxima do mal para os judeus mais devotos. Associar Jesus a essa entidade era desqualificar sua atividade ao extremo.

Além de perversa e hipócrita, a acusação dos mestres da Lei era também contraditória, por isso foram desmascarados instantaneamente, como diz o texto: «Então Jesus os chamou e falou-lhes em parábolas: “Como é que Satanás pode expulsar Satanás?”» (v. 23). Ora, se toda a atividade de Jesus, desde o início do seu ministério, consistia no anúncio do Reino de Deus e, consequentemente, na eliminação do mal, a acusação dos mestres da Lei não tinha o mínimo fundamento. “Satanás” é a expressão do antagonista de Deus, conforme a mentalidade bíblica e, por isso, era o opositor de Jesus, aquele que precisava ser derrotado. Logo, se Jesus, com seu agir libertador e humanizante estava tirando as pessoas do domínio de satanás, não poderia ser seu aliado. Para deixar ainda mais claro o quanto os mestres da Lei estavam mal-intencionados, Jesus aprofunda a contradição deles com duas mini parábolas: tanto um reino quanto uma casa não podem sobreviver com divisões internas; as divisões são sempre causas de ruína e destruição (v. 24-27). A argumentação de Jesus é lógica e sensata. Com isso, ele afirma de maneira incontestável que sua missão é combater o mal, como já tinha demonstrado nas ações ou milagres até então realizados, incluindo o perdão dos pecados. Portanto, não tinha fundamento a afirmação dos mestres da Lei. Jesus combate Satanás e todo o mal presente no mundo, não com rituais e fórmulas doutrinárias, como os mestres da Lei e sacerdotes da época, mas fazendo o bem: curando, amando e perdoando, enfim, com seu agir humanizante.

Jesus encerra a discussão com os mestres da Lei, com uma declaração solene bastante impactante: «Em verdade vos digo: tudo será perdoado aos homens, tanto os pecados, como qualquer blasfêmia que tiverem dito. Mas quem blasfemar contra o Espírito Santo, nunca será perdoado, mas culpado de um pecado eterno» (v. 28-29). A introdução solene “em verdade vos digo” (em grego: Ἀμὴν λέγω ὑμῖν – Amén lêgo hymin) significa que aquilo que está para ser anunciado é de fundamental importância para o auditório, como é o que ele declara aqui: o pecado contra o Espírito Santo é imperdoável. Mas, qual é mesmo o pecado contra o Espírito Santo? Ora, é exatamente aquilo que os mestres da lei estavam fazendo: de maneira lúcida e voluntária, eles negavam a ação de Deus e do seu Espírito em Jesus. É inadmissível que não se reconheça que tudo o que Jesus fazia e faz é trazer Deus para a vida das pessoas, tornando-o acessível e presente. Na verdade, era essa acessibilidade a Deus, livre e gratuita, oferecida por Jesus, o que irritava os mestres da Lei e as demais autoridades religiosas do seu tempo, pois isso significava para elas perda de poder e privilégios.

Conhecendo o Deus amoroso revelado por Jesus, as pessoas deixavam de aceitar e de submeter-se ao Deus juiz, vingativo e mercantilista do templo. A pregação de Jesus era uma ameaça à sobrevivência daquela religião e de qualquer instituição que negasse a liberdade das pessoas, incluindo a própria família. Por isso, as autoridades faziam de tudo para impedir Jesus de continuar o seu ministério. E para Jesus, a tentativa de bloquear a ação de Deus na história, revelada por ele com sua mensagem e práxis, é a verdadeira blasfêmia, é o grande pecado. O pecado contra o Espírito Santo é, portanto, a pretensão de todo sistema religioso de determinar ou negar o agir de Deus na história. O que as lideranças religiosas da época, representadas no texto pelos mestres da Lei, consideravam blasfêmia de Jesus era a sua maneira de curar, amar, perdoar e acolher as pessoas marginalizadas. Ora, a acolhida de Jesus a essas pessoas desmentia o que era ensinado pela religião, por isso, ele era detestado pelos mestres da Lei, sacerdotes e fariseus. A religião dizia que as pessoas sofriam por vontade de Deus ou porque estavam pagando pelos pecados delas ou dos antepassados; ensinava que o mundo injusto e desigual era querido por Deus. Jesus desmente tudo isso. Os mestres da Lei, com todo o conhecimento que tinham da Escritura, tinham meios suficientes para não cultivar uma mentalidade tão hipócrita e maléfica para a vida das pessoas. Por isso, o pecado deles era imperdoável, pois estavam negando a ação do Espírito Santo no agir libertador e humanizador de Jesus.

A sequência do texto dá a impressão de que Jesus ainda estava em discussão com os mestres da Lei quando chegam seus familiares. Com isso, o evangelista enfatiza o quanto ele era perseguido. Ainda estava tentando desmascarar a comitiva de Jerusalém e, ao mesmo tempo, tem de se justificar perante seus familiares de Nazaré. Eis o que diz o evangelista: «Nisto chegaram sua mãe e seus irmãos. Eles ficaram do lado de fora e mandaram chamá-lo. Havia uma multidão sentada ao redor dele. Então lhe disseram: “Tua mãe e teus irmãos estão lá fora à tua procura”» (vv. 31-32). Ora, Jesus estava na casa e circundado por uma multidão que, certamente, o escutava atentamente. De propósito, o evangelista enfatiza duas posturas opostas diante dele: ficar do lado de fora e apenas ouvir o que se diz a seu respeito, ou entrar na casa e sentar-se ao seu redor, experimentando pessoalmente o amor e a plenitude de vida que ele transmite por meio de palavras de gestos de libertação. Quem fica do lado de fora, sabe pouco sobre ele; e o pouco que sabe, o sabe superficialmente e distorcido. Quem senta ao seu redor, pelo contrário, não apenas o escuta, mas olha nos seus olhos, sente a sua presença, como deve ser a postura da comunidade dos seus discípulos e discípulas. À medida em que ficam do lado de fora, seus familiares de sangue não estão sendo sua família, não tem sequer coragem de dirigir-se diretamente a ele, mandam apenas um recado. Esse é o retrato da relação superficial.

É claro que o evangelista não pretende mostrar nem criar oposição ou rivalidade entre os familiares de Jesus e a comunidade dos discípulos; ele quer apenas ajudar a sua comunidade a compreender que, aceitar a proposta de vida de Jesus implica assumir uma maneira diferente de viver, com novos critérios de pertença e relação. É isso o que fica claro com a pergunta e a sequência da declaração de Jesus: «“Quem é minha mãe, e quem são meus irmãos?”. E olhando para os que estavam sentados ao seu redor, disse: “Aqui estão minha mãe e meus irmãos. Quem faz a vontade de Deus, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe”» (v. 33-35). A pergunta como introdução a um ensinamento constituía um importante recurso retórico, tanto para a pedagogia judaica quanto para a grega. Tem a função de chamar a atenção dos ouvintes, gerando curiosidade e, assim, prender a atenção. A sequência do ensinamento é muito importante. Com ela, ao invés de menosprezar os seus familiares de sangue, Jesus está dando a oportunidade de também eles entrarem na dinâmica do Reino de Deus e, ao mesmo tempo, mostrando que qualquer pessoa, independentemente da origem, pode fazer parte da sua família. É muito provável que essa afirmação seja uma advertência do evangelista à comunidade pós-pascal de Jerusalém, dirigida por Tiago, parente muito próximo de Jesus. Conforme dados de Atos dos Apóstolos e da Carta aos Gálatas, esse personagem pretendia monopolizar as decisões da comunidade. A reivindicação do parentesco com Jesus poderia favorecer a imposição de ideias e costumes sobre a comunidade.

Independentemente do provável pano de fundo histórico, o importante é que a afirmação atribuída a Jesus propõe uma ressignificação de conceitos e de valores. Ora, juntando o que ele diz sobre a família ao desmascaramento do poder religioso, no embate anterior com os mestres da Lei, ele desestabiliza as principais instituições da sociedade israelita: a família e a religião. É claro que Jesus não faz oposição à família em si, até porque o seu projeto de sociedade baseia-se na fraternidade, na irmandade, o que pressupõe o cultivo de relações familiares. A própria casa, como instância espacial primeira da comunidade, evoca a necessidade de relações familiares. O que ele propõe são novos critérios de pertença. A vivência do amor fraterno não pode ser limitada à consanguinidade, e o que importa na sua comunidade é a vivência do amor fraterno e materno; por isso, Jesus não cita a figura do pai no modelo de família que deve ser a comunidade cristã. Ora, na sociedade patriarcal o pai é sinônimo de concentração de poder e domínio absoluto; tudo na família depende das suas decisões. Por isso, o pai não figura no modelo de família que Jesus propõe enquanto comunidade. É claro que tem espaço para os pais de família na comunidade de Jesus, mas não com as funções que a sociedade patriarcal lhes atribuía. O que não tem espaço na comunidade é a concentração de poderes absolutos por uma única pessoa, como o pai na família patriarcal. Irmãos e irmãs significam a disposição de viver intensamente a fraternidade, mãe significa a capacidade de amar e gerar Cristo para o outro. 

Todo mundo que vive o amor fraterno e, com o jeito de viver, gera Cristo para o próximo, esse é irmão, irmã e mãe de Jesus. É isso o que ele ensina com a conclusão do evangelho de hoje, e é essa a missão de todo cristã e cristã. Para isso, é necessário sentar-se ao seu redor e ouvi-lo. A adesão ao Reino exige uma conversão completa, ou seja, mudança de mentalidade, inclusive na concepção de família. O seguimento a Jesus não comporta meios termos. Seu projeto de vida exige tomada de decisão. As notícias a seu respeito se espalhavam de Jerusalém a Nazaré, o que gerava muitas incompreensões. Diante de isso, era e continua sendo indispensável “entrar na casa” e sentar-se ao seu redor para escutá-lo; sem essa experiência, qualquer juízo sobre a sua pessoa será distorcido ou parcial. E o que ele realmente quer é que a humanidade inteira se torne sua família.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

REFLEXÃO PARA O 23º DOMINGO DO TEMPO COMUM – MARCOS 7,31-37 (ANO B)

O evangelho deste vigésimo terceiro domingo do tempo comum é Mc 7,31-37, texto que compreende o relato da cura de um surdo-mudo por Jesus,...