Na continuidade da oitava de natal, a Igreja
celebra hoje a festa da Sagrada Família: Jesus Maria e José. Por isso, o
evangelho proposto pela liturgia é Lc 2,41-52, trecho que narra o episódio
conhecido popularmente como “a perda e o encontro de Jesus no templo de
Jerusalém”, quando tinha doze anos. Esse é o último episódio da primeira parte
do Evangelho segundo Lucas, conhecida como “evangelho da infância” (cf. Lc 1 –
2), o que reforça ainda mais a sua importância, pois funciona como transição
entre a infância e a vida pública de Jesus; nessa transição, o evangelista
antecipa muitos aspectos importantes de sua teologia. Por isso, o objetivo de
Lucas, ao narrar este episódio, não é apresentar um tratado sobre a família,
mas mostrar elementos do cotidiano de Jesus, compreendendo seus costumes, o
ambiente em que foi criado com suas tradições e, sobretudo, como ele sempre
esteve atento “às coisas do Pai” sem, no entanto, negar a sua condição humana. Se
o objetivo do evangelista fosse simplesmente apresentar o retrato de uma
família perfeita, certamente teria contado a história de outra maneira,
omitindo alguns elementos do relato atual.
Além de ser um dos evangelhos mais tardios, e
escrito provavelmente fora da Palestina, Lucas convivia com um cristianismo
muito entusiasta do anúncio do Cristo Ressuscitado e glorioso, a ponto de quase
esquecer que, mesmo sendo o Filho de Deus, Jesus de Nazaré foi um ser humano,
nascido de uma mulher e crescido em uma família normal, conforme as condições e
os costumes da época. Por isso, é Lucas o evangelho que mais fala da infância
de Jesus e da convivência com seus pais. Para apresentar Jesus inserido na
cultura e na tradição do seu povo, o evangelista apresenta seus pais como fiéis
devotos judeus; por isso, diz que “iam todos os anos a
Jerusalém, para a festa da Páscoa” (v. 41). Conforme a lei, os
judeus adultos tinham a obrigação de ir a Jerusalém para as três grandes festas
anuais: páscoa, a festa das tendas e pentecostes (cf. Dt 16,16); porém, esse
preceito era obrigatório apenas para as pessoas adultas e do sexo masculino.
A peregrinação anual da família
completa de Jesus mostra o quanto seus pais eram fiéis observantes e
cumpridores dos preceitos religiosos de então. Além disso, ainda antecipam as
obrigações do filho: “Quando ele completou doze anos, subiram para a festa,
como de costume” (v. 42). A idade mínima exigida para que o filho homem
começasse a participar publicamente da vida religiosa era treze anos;
evangelista apresenta a precocidade de Jesus para contrastá-lo com as outras
crianças da época, mostrando que ele era portador de traços diferenciados. A
festa inteira da páscoa durava uma semana, mas raramente os peregrinos pobres
passavam todos os sete dias em Jerusalém; geralmente, passavam dois ou três
dias e voltavam; o importante era passar pela cidade santa naquele período. O
evangelista parece reforçar a piedade de José e Maria, fazendo supor que eles
passaram todo o período da festa em Jerusalém, mas ao mesmo tempo mostra uma
grande falta de atenção para com o filho: “Passados os dias da Páscoa,
começaram a viagem de volta, mas o menino Jesus ficou em Jerusalém, sem que
seus pais o notassem” (v. 43). Se o objetivo do evangelista fosse apresentar
uma crônica exata dos acontecimentos e a exemplaridade do casal, certamente
teria omitido esse detalhe.
Durante a páscoa, a população
de Jerusalém triplicava com a grande quantidade de peregrinos que por lá
passavam, tornando a cidade quase intransitável, o que exigia muito cuidado dos
pais para com os filhos, para que não se perdessem. Somente pais muito
desatentos iniciariam a viagem de volta sem dar-se conta do sumiço do filho; e
o evangelista ainda diz mais: “Pensando que ele estivesse na caravana, caminharam
um dia inteiro. Depois começaram a procurá-lo entre os parentes e conhecidos”
(v. 44). Era costume, nas caravanas, que as crianças e as mulheres caminhassem
à frente dos homens; porém, qualquer mãe atenta se certificaria da presença de
um filho antes de iniciar uma viagem longa e perigosa como aquela de Jerusalém para
Nazaré. Depois de um dia inteiro de caminhada, os pais de Jesus “não o tendo
encontrado, voltaram para Jerusalém à sua procura” (v. 45). Supõem-se que
já estivessem bastante longe, após um dia inteiro de caminhada; porém, o
interesse do evangelista é teológico e catequético e, como sabemos, o movimento
e o colocar-se em caminho é um tema muito caro para Lucas, do início ao fim de
sua dupla obra (Evangelho e Atos dos Apóstolos).
O evangelista quer ensinar que encontro
autêntico com Jesus é consequência de uma busca que todas as pessoas devem
fazer, independente da familiaridade com ele. Nas comunidades do evangelista
havia muitas pessoas seguras em si mesmas, fechadas em suas convicções, e
outras muito vulneráveis e sem ânimo para acolher a boa nova; diante disso,
Lucas insiste que é necessário buscar sempre o Senhor, pois ele não é posse de
ninguém, como não foi sequer da sua família. Até mesmo quem conviveu com ele,
como seus pais, tiveram que procurá-lo e só o encontravam depois de um certo
esforço: “Três dias depois, o encontraram no Templo. Estava sentado no meio
dos mestres, escutando e fazendo perguntas” (v. 46). Com essa cena, o
evangelista antecipa o drama da comunidade dos discípulos na próxima vez em que
Jesus for a Jerusalém para celebrar também a páscoa: após o drama da paixão, só
o reencontrarão no terceiro dia, ressuscitado. Assim, o evangelista reforça
ainda mais, para a sua comunidade, a continuidade entre Jesus de Nazaré, o
filho de Maria e José, e o Senhor ressuscitado.
Chama a atenção o local e o
contexto em que os pais de Jesus o encontraram: no templo, interagindo com os
mestres da lei e conhecedores das Escrituras. Além dos mestres, os
interlocutores, supõem-se que havia também um público considerável assistindo
ao debate entre o adolescente e os mestres: “Todos os que ouviam o menino
estavam maravilhados com sua inteligência e suas respostas” (v. 47).
Durante as festas, era normal que os mestres rabinos se apresentassem com seus
discípulos, exibindo conhecimento e domínio da lei entre as colunas do templo,
muitas vezes apenas para chamar a atenção dos peregrinos; porém, esses iam com
perguntas e respostas previamente ensaiadas entre eles, para evitar
constrangimentos. Como Jesus era muito novo e não fazia parte de nenhuma
escola, a sua desenvoltura chamava a atenção de todos. Nesse aspecto também, há
uma antecipação da sua futura atuação: o curto ministério em Jerusalém, na
semana da paixão, será marcado por discussões doutrinais com os mestres da lei,
escribas e sacerdotes (cf. Lc 20 – 21).
Diante de uma cena como essa:
um menino de Nazaré, uma aldeia pobre e distante, discutindo com a elite
intelectual do judaísmo, quem mais tinha motivos para se admirar eram os seus
pais, como afirma o evangelista: “Ao vê-lo, seus pais ficaram muito
admirados e sua mãe lhe disse: “Meu filho, por que agiste assim conosco? Olha
que teu pai e eu estávamos, angustiados, à tua procura” (v. 48). Na perspectiva
de Lucas, Maria é quem assume a liderança da família, dando protagonismo à
mulher. Além da admiração com a cena inusitada, a mãe repreende o filho pela
situação desagradável e preocupação que os fez passar. A incompreensão dos
pais, aqui, é um sinal de que não será fácil também para os discípulos compreenderem
Jesus com suas opções. A aceitação e a compreensão de Jesus e sua mensagem é um
processo longo; no início, os pais, durante a vida pública, os discípulos,
todos têm dificuldade de compreender Jesus.
Em resposta à reação de seus
pais e às repreensões da mãe, o autor faz Jesus falar pela primeira vez neste
evangelho: “Jesus respondeu: “Por que me procuráveis? Não sabeis que devo
estar na casa de meu Pai?” (v. 49). Numa crônica descritiva de um modelo de
família, certamente também essa resposta de Jesus teria sido omitida. Em
público, diante dos mestres e dos demais ouvintes, ele responde à mãe como um
adolescente meio rebelde e malcriado; uma criança obediente, apenas baixaria a
cabeça e, se respondesse, seria um pedido de desculpas aos pais pelo preocupação
e constrangimento causados. Essa resposta, no entanto, consiste na primeira revelação
que Jesus faz de sua identidade; até então, sua identidade divina tinha sido
revelada pelo anjo (cf. 1,28-35; 2,10), por Isabel (cf. 1,42-43), por Zacarias
(cf. 1,67-79) por Ana e Simeão (cf. 2,25-40); dessa vez, foi o próprio Jesus
que falou de si. Ele não dispensa seus pais terrenos, mas afirma que é a Deus
que deve obedecer e fazer a sua vontade. Na verdade, Jesus não fala em “casa do
Pai”, como consta na tradução litúrgica, mas em “coisas do Pai”; até porque, no
futuro ele defenderá a destruição do templo. Em resposta à sua mãe, ele diz que
deve estar tratando “do que é do Pai”, provavelmente contestando a doutrina dos
mestres da lei que ofuscava a identidade do Pai.
Em relação aos seus pais, Maria
e José, é claro que “Eles, porém, não compreenderam as palavras que lhes
dissera” (v. 50), mas Maria se antecipa, mais uma vez, como modelo de
discípula: “Sua mãe porém, conservava no coração todas estas coisas” (v.
51b). Para ser verdadeiro discípulo ou discípula, o mais importante não é a
compreensão, mas a disposição e a capacidade de conservar no coração aquilo que
é essencial: a fé, a confiança em Deus e a disponibilidade para o serviço,
mesmo sem compreender. Mais uma vez, o evangelista reforça a inserção e
pertença de Jesus à sua família: “Jesus desceu então com seus pais para
Nazaré, e era-lhes obediente” (v. 51a), mostrando que isso não o impedia de
ser também o Filho de Deus; por isso, sintetiza o seu crescimento nas duas
dimensões, a humana e a divina: “E Jesus crescia em sabedoria, estatura e
graça, diante de Deus e diante dos homens” (v. 52). Que possamos aprender a
cuidar e tratar somente das coisas do Pai, como Jesus, e a conservar tudo no
coração, mesmo sem compreender tudo, como Maria e os demais discípulos.
Pe. Francisco Cornelio F.
Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
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