quarta-feira, junho 26, 2019

REFLEXÃO PARA A SOLENIDADE DE SÃO PEDRO E SÃO PAULO – MATEUS 16,13-19




Todos os anos, na solenidade dos apóstolos Pedro e Paulo, a liturgia propõe Mateus 16,13-19 para o Evangelho, texto que contém a famosa confissão de fé de Pedro na região de Cesaréia de Filipe. Esse é um relato comum aos três Evangelhos Sinóticos (cf. Mt 16,13-19; Mc 8,27-30; Lc 9,18-21), embora a versão de Mateus apresente mais elementos próprios, o que lhe rendeu uma maior valorização na reflexão teológica ao longo dos séculos, sobretudo, no cristianismo católico.

A recordação dos apóstolos é sempre importante para a vida da Igreja, porque a ajuda a manter-se alinhada às suas origens, não obstante os desgastes históricos. Pedro e Paulo foram imprescindíveis para o cristianismo das origens conservar os ensinamentos de Jesus e, ao mesmo tempo, para se espalhar e crescer, extrapolando os limites culturais e geográficos do judaísmo e da Palestina. Olhando para o exemplo dos dois, a Igreja, de hoje e de sempre, é interpelada, cada vez mais, a renovar-se e edificar-se somente pela fé em Jesus Cristo, sem tomar como parâmetro nenhuma instituição terrena.

Antes de entrarmos na reflexão do texto em si, é necessário fazer algumas considerações a respeito do contexto do relato no conjunto do Evangelho. Esse trecho abre uma série de acontecimentos importantes da vida de Jesus e dos seus seguidores, como a transfiguração (cf. 17,1-7) e os dois primeiros anúncios da paixão (cf. 16,21-23; 17,22). Na verdade, podemos dizer que tais acontecimentos são consequência do episódio narrado no Evangelho de hoje, pois tanto a transfiguração quanto os anúncios da paixão são tentativas de Jesus revelar a sua verdadeira identidade, tendo em vista que os discípulos ainda não tinham tanta clareza dessa.

Recordamos o que sucede ao nosso texto no conjunto do Evangelho, mas também não podemos deixar de recordar o que lhe antecede: uma controvérsia com os fariseus, os quais pediam sinais a Jesus (cf. 16,1-4), e uma séria advertência aos discípulos para não se deixarem contaminar pelo fermento dos fariseus e saduceus (cf. 16,5-12). Esse fermento era a mentalidade equivocada sobre Deus e o futuro messias e, principalmente, a hipocrisia em que viviam. Mateus recorda tudo isso porque, certamente, a sua comunidade passava por uma crise de identidade: por falta de clareza da identidade de Jesus e falta de experiência autêntica com o Crucificado-Ressuscitado, o “fermento dos fariseus”, quer dizer a influência da sinagoga, estava atrapalhando a vivência das bem-aventuranças, e impedindo a realização do Reino dos céus naquela comunidade.

Agora podemos, portanto, direcionar nosso olhar para o texto que a liturgia nos oferece: “Jesus foi à região de Cesaréia de Filipe e ali perguntou aos seus discípulos: ‘Quem dizem os homens ser o Filho do homem?’” (v. 13). O texto começa com um indicativo espacial: Cesaréia de Filipe estava localizada no extremo norte de Israel, portanto, muito longe de Jerusalém. Como o próprio nome indica (homenagem a César), era um centro do poder imperial e, portanto, lugar de culto ao imperador romano. Certamente o evangelista e sua comunidade tinham um propósito muito claro ao narrar esse episódio e recordar a sua localização.

Longe de Jerusalém, os discípulos estariam isentos de qualquer influência da tradição religiosa judaica, ou seja, livres do fermento dos fariseus e, portanto, aptos a confessarem e professarem livremente a fé em Jesus, fora dos esquemas tradicionais da religião. Ao mesmo tempo, estando em uma região de culto ao imperador, a confissão da fé em Jesus seria um sinal de convicção e adesão ao projeto do Reino dos céus e uma demonstração da coragem que deve marcar a vida da comunidade cristã, chamada a testemunhar a Boa Nova e continuar a obra de Jesus, mesmo em meio às hostilidades impostas pelo poder imperial. Podemos dizer que professar a fé em Jesus é distanciar-se dos esquemas religiosos do judaísmo e, ao mesmo tempo, desafiar qualquer sistema que não coloque a vida e o bem do ser humano em primeiro lugar, como o império romano.

A pergunta de Jesus sobre o que dizem a respeito de si, ou seja, do Filho do Homem, não é demonstração de preocupação com sua imagem pessoal, mas com a eficácia do anúncio da comunidade. Até então, Jesus já tinha realizado muitos sinais entre o povo e ensinado bastante, mas pouca gente o conhecia verdadeiramente. Muitos o seguiam pela novidade que Ele trazia, uns pelo seu jeito diferente de acolher os mais necessitados e excluídos, outros para aproveitarem-se dos sinais que Ele realizava. Ele percebia tudo isso e, por causa disso, fez essa pergunta: “Que dizem os homens ser o Filho do Homem?” (v. 13b).

A resposta dos discípulos à pergunta de Jesus revela a falta de clareza que se tinha a respeito da sua identidade e, ao mesmo tempo, a boa reputação da qual ele já gozava diante do povo, certamente o povo simples, com quem Ele interagia e por quem lutava. Eis a resposta: “alguns dizem que é João Batista; outros, que é Elias, outros, ainda, que é Jeremias ou algum dos profetas” (v. 14). Sem dúvidas, Jesus estava bem-conceituado pelo povo, pois era reconhecido como um grande profeta. Mas Jesus é muito mais. Embora continuem sempre atuais, os profetas de Israel são personagens do passado. A comunidade cristã não pode ver Jesus como um personagem do passado que deixou um grande legado a ser lembrado. Isso impede a comunidade de fazer sua experiência com o Ressuscitado, presente e atuante na história.

A pergunta sobre o que as outras pessoas diziam a seu respeito foi apenas um pretexto. Na verdade, Jesus queria saber mesmo era o que seus discípulos pensavam de si. Por isso, lhes perguntou: “E vós, quem dizeis que eu sou?” (v. 15), uma vez que longe do “fermento dos fariseus”, os discípulos poderiam dar uma resposta sincera, isenta e livre. O texto afirma que “Simão Pedro respondeu: “Tu és o Messias, o Filho do Deus vivo” (v. 16). Não resta dúvida que os demais discípulos componentes do grupo dos doze também responderam. O evangelista enfatiza a resposta de Pedro por ser uma síntese do pensamento dos doze. Essa é a resposta do grupo e, portanto, da comunidade.

A resposta é complexa e profunda: Jesus é Messias e Filho e do Deus vivo. É muito significativo que Ele seja reconhecido e acolhido como o Messias esperado, ou seja, o Cristo, o enviado de Deus para libertar o seu povo e a humanidade inteira. Como circulavam muitas imagens de messias entre o povo, principalmente a de um messias guerreiro e glorioso, o segundo elemento da resposta de Pedro é de extrema profundidade e importância: “o Filho do Deus vivo” (em grego: ό υίός τού Θεού τού ζώντος – hó hiós tú Theú tú zontos). Além de definir a qualidade e especificidade do messianismo de Jesus, essa expressão serve também para denunciar a falsidade do culto ao imperador romano, o qual exigia ser reverenciado como filho de uma divindade.

Com a resposta de Pedro, a comunidade cristã é chamada a proclamar que Jesus é, de fato, o Cristo (termo mais fiel ao texto grego do que Messias), é o Filho do Deus vivo, ou seja, seu Deus é o Deus da vida, enquanto os deuses pagãos cultuados no império romano e até mesmo o Deus oferecido pelo templo de Jerusalém eram privados de vida, eram agentes de morte, sobretudo para o povo simples e excluído. A convicção de que Jesus é o Filho do Deus vivo compromete a comunidade a denunciar e desafiar todos os sistemas religiosos e políticos que não favoreçam a promoção da liberdade e da vida plena e abundante para todos.

Jesus se alegra com a resposta de Pedro e o proclama bem-aventurado: “Feliz és tu, Simão, filho de Jonas, porque não foi um ser humano que te revelou isso, mas o meu Pai que está no céu” (v. 17).  Não se trata de um elogio por um mérito particular de Pedro, até porque o conhecimento não é dele, mas do Pai que lhe revelou. O que Jesus faz é uma constatação: as coisas começam a funcionar na comunidade, pois a voz do Pai está sendo ouvida; como o Pai só revela seus desígnios aos pequeninos (cf. 10,21), e Pedro está falando a partir do que o Pai lhe sugere, ele está demonstrando adesão plena ao projeto do Reino, inserindo-se no mundo dos pequeninos! O Reino de Deus ou dos céus, como Mateus prefere, é um projeto alternativo de mundo que só tem espaço para quem aceita a condição pertencer ao mundo dos pequeninos. A bem-aventurança de Pedro consiste em abrir-se à vontade do Pai e deixar-se conduzir por essa.

Na continuidade, Jesus declara: “Por isso eu te digo que tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja” (v. 18a). Jesus está declarando que Pedro está apto a participar da construção da sua comunidade, por estar aberto às intuições do Pai. Ao contrário da antiga religião judaica que precisava de um templo de pedras, a comunidade cristã é uma construção sim, mas pela sua coesão e unidade, por isso, na sua construção são necessárias pedras vivas. Pedro é uma destas pedras escolhidas por Jesus, a primeira, sem dúvidas. A pedra fundamental da construção é a fé da comunidade. A força, o equilíbrio e a perseverança da comunidade dependem da solidez da sua fé. Por isso, é necessário que essa fé seja forte como uma rocha, comparável a fé que Pedro tinha acabado de professar.

É importante esclarecer que Mateus usa duas palavras gregas muito parecidas para designar Pedro e pedra: Πέτρος– Petros e πέτρα - petra. Embora muito próximas, é possível distingui-las: “Petros”que foi transformada no nome próprio Pedro, designa pedra, pedregulho ou tijolo, uma pedra pequena e removível, uma pedra de construção; “petra”, por sua vez, designa a superfície rochosa, base ideal para os fundamentos de uma construção segura. São estas as bases necessárias para a edificação da Igreja enquanto comunidade do Reino. Portanto, Jesus diz que Pedro (petros) é uma pedra-tijolo da construção, e a pedra-rocha (petra) é a fé que ele professou, a superfície rochosa sobre a qual a Igreja é edificada.

Ao contrário do templo de Jerusalém e dos templos pagãos que haviam na região de Cesaréia de Filipe, construídos sobre pedras concretas e visíveis e, portanto, passíveis de destruição, a comunidade cristã não correrá esse risco se for edificada conforme Jesus pensou, ou seja, tendo a fé por fundamento. Por isso, Ele declara: “e o poder do inferno nunca poderá vencê-la” (v. 18b). Aqui Ele se refere às hostilidades que a comunidade irá enfrentar em seu longo percurso até a realização plena do Reino aqui na terra. São as forças de morte manifestadas nos diversos sistemas de dominação, tanto políticos quanto religiosos. A comunidade precisa de uma fé muito consistente para resistir a tudo isso.

No último versículo temos mais uma declaração significativa de Jesus a Pedro e à comunidade dos discípulos: “Eu te darei as chaves do Reino dos céus: tudo o que ligares na terra será desligado nos céus; tudo o que desligares na terra será desligado nos céus” (v. 19). Mais que delegando poderes, Jesus está responsabilizando a comunidade para fazer o Reino dos céus acontecer já aqui na terra. A comunidade recebe “as chaves do Reino dos céus” porque é nela que se faz a experiência da fé e da comunhão profunda com Deus, através da prática das bem-aventuranças (cf. 5,1-12), e é isso que torna alguém apto para entrar nos céus. Qualquer um que professa convictamente a fé em Jesus e vive seu programa de vida expresso nas bem-aventuranças tem a chave de acesso ao Reino. “Ligar e desligar” é, portanto, responsabilidade, e não poder. 

Com essas imagens tão fortes (chaves – ligar – desligar) Jesus convida a sua Igreja, comunidade do Reino, a viver sempre em perfeita sintonia com Ele mesmo e com o Pai, de modo que tudo aquilo que a comunidade experimentar será referendado pelos céus! Ele dá as chaves para a sua comunidade abrir a todos o Reino que os escribas e fariseus tinham trancado (cf. 23,13). Todo cristão e cristã possui as chaves do Reino, porque o seu testemunho pode abrir ou fechar o Reino para alguém! Que a memória dos apóstolos Pedro e Paulo renove na Igreja a fé autêntica no Crucificado-Ressuscitado, e a sua índole missionária.


Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

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