Neste
domingo em que celebramos a solenidade da ascensão do Senhor, a liturgia propõe
Lc 24,46-53 para o evangelho, texto que contém os últimos versículos do
Evangelho segundo Lucas. A solenidade da ascensão marca a consumação da
ressurreição: o Ressuscitado penetra no mundo do Pai e confere à sua comunidade
de seguidores e seguidoras a missão de continuar a sua presença no mundo, com a
assistência do Espírito Santo. Embora se trate de uma despedida, a cena
descrita por Lucas é marcada pela alegria, pois Aquele que parte, o
Ressuscitado, não se ausenta dos seus; a sua partida é a garantia de uma
presença ainda mais efetiva, não mais condicionada às circunstâncias de tempo e
espaço, como foi no seu curto ministério de três anos.
Neste
ano temos a oportunidade de ler o relato da ascensão duas vezes: na primeira
leitura (At 1,1-11), como em todos os anos, e no Evangelho, por estarmos
vivenciando o “ano C” da liturgia. Temos hoje, portanto, dois relatos de um
mesmo evento, narrados pelo mesmo autor. Por sinal, Lucas é o único evangelista
que narra a ascensão; Marcos faz apenas um pequeno aceno (cf. Mc 16,19),
enquanto Mateus e João não fazem nenhuma referência. Mesmo se tratando do mesmo
acontecimento, Lucas não conta as duas vezes do mesmo jeito. Há detalhes que diferenciam
os dois relatos, pois cada livro tem uma finalidade específica. No Evangelho, a
ascensão tem a função de marcar a conclusão da missão de Jesus entre os
discípulos; em Atos, a função é preparar a missão da Igreja e mostrar a
continuidade entre essa e Jesus.
A nível
de contexto, é importante recordar que, de acordo com o Evangelho, a ascensão
acontece no mesmo dia da ressurreição, e não após um período de quarenta dias como
em Atos (cf. At 1,3). De fato, o evento narrado no Evangelho de hoje é a sequência
do episódio dos discípulos de Emaús: após se manifestar aos dois que retornavam
desiludidos de Jerusalém (cf. Lc 24,13-35) e a Simão (cf. Lc 24,34), o Senhor
se manifestou também aos demais discípulos que estavam reunidos no cenáculo em
Jerusalém (cf. Lc 24,36), naquele mesmo dia, o primeiro da semana (cf. Lc
24,13). Os estudiosos procuraram explicar essa diferença. Uma das explicações é
que quando o Evangelho já estava pronto, Lucas recebeu novas informações sobre
esse acontecimento e, por isso, acrescentou alguns detalhes em Atos dos
Apóstolos. O mais provável no entanto, é que essa diferença seja intencional e teológica.
Nenhum dos relatos pretende ser uma crônica exata dos fatos. A intenção do
evangelista é mostrar que Jesus consumou a sua obra, retornou para a glória do
Pai e habilitou os seus discípulos a manterem viva a sua presença no mundo, por
meio do testemunho e animados pela força do alto, o Espírito Santo.
O texto
de hoje começa com a continuidade das palavras de Jesus aos discípulos
reunidos. Tendo se manifestado entre eles, Ele lhes transmitiu a paz (cf. Lc
24,36), pois os discípulos estavam assustados (cf. 24,37), mostrou os estigmas
de crucificado (cf. 24,39-40), pediu algo para comer (cf. 24,42), deram-lhe um pedaço
de peixe (24,42), Ele o comeu (cf. 24,43) e começou a falar, explicando o cumprimento
das Escrituras em sua vida (24,44). Hoje, lemos a continuidade e conclusão dessa
explicação: “Assim está escrito: O Cristo sofrerá e ressuscitará dos mortos
ao terceiro dia” (v. 46). É importante que os discípulos, que ainda estavam
apreensivos e decepcionados com os últimos acontecimentos, acolham o desfecho
final da vida de Jesus como cumprimento das Escrituras. Só assim, poderiam aceitá-lo
como o Cristo e proclamá-lo, como fizeram.
O
evangelista não faz uma interpretação fundamentalista da Escritura, não cita passagens
isoladas, mas fala do seu conjunto; é a totalidade da Escritura que aponta para
o Cristo. Da recordação das Escrituras, emerge a missão da comunidade, que
consiste no anúncio e no testemunho: “e no seu nome serão anunciados a
conversão e o perdão dos pecados a todas as nações, começando por Jerusalém. Vós
sereis testemunhas de tudo isso” (v. 47-48). Aqui Jesus resume a sua missão
e antecipa a da comunidade cristã. O elemento primordial da missão é oferecer a
reconciliação a todos os povos, sem distinção. Nada de proselitismos e nem
doutrinação. A primeira tarefa da comunidade cristã é oferecer ao mundo o amor
misericordioso de Deus, como Jesus fez em seu curto ministério, e Lucas fez disso
o tema central de seu Evangelho. A comunidade cumpre a sua missão quando assume
um estilo de vida semelhante ao de Jesus.
Jesus
quer que todos os povos recebam os benefícios da sua ressurreição. O começo por
Jerusalém é muito significativo; não se trata de um privilégio, mas de uma
necessidade. Essa cidade era símbolo do poder, sobretudo o religioso. Era lá
onde o poder matava em nome de Deus, e o próprio Jesus fora vítima dessa
prática. Nessa cidade, praticava-se um culto estéril e mercantilista,
caracterizado pelo mero ritualismo e o sacrifício de animais; o sangue desses
sacrifícios não geravam comunhão com Deus, pois o único sangue com força de salvação
fora derramado por Jesus. Por isso, como o amor misericordioso de Deus não faz
distinção de pessoas, Jesus habilita seus discípulos a começarem o
anúncio-testemunho onde as pessoas estavam mais longe de Deus e, paradoxalmente,
era na cidade santa onde as pessoas mais estavam distantes de Deus, onde mais
havia necessidade de uma “mudança de mentalidade”, como significa propriamente
o termo conversão.
Como
responsáveis pelo prolongamento da missão de Jesus, os discípulos não poderiam levá-la
a cumprimento sozinhos; por isso, Jesus promete enviar-lhes o que o próprio Pai
prometeu: “eu enviarei sobre vós aquele que meu Pai prometeu. Por isso,
permanecei na cidade, até que sejais revestidos da força do alto” (v. 49). Esse
versículo contém as últimas palavras de Jesus no Evangelho, e essas são
carregadas de esperança. O próprio Jesus só iniciou a sua vida pública após o
batismo, momento em que desceu sobre Ele o Espírito Santo (cf. Lc 3,22); ao
pregar pela primeira vez na sinagoga de Nazaré, declarou estar investido do
Espírito Santo e, por isso, autorizado para tal (cf. Lc 4,18). Sem o Espírito
Santo, portanto, não haveria missão alguma. Os discípulos devem esperar esse
momento, o que Lucas ilustrará tão bem com a narrativa de Pentecostes (cf. At 2,1-13).
O Espírito Santo aqui é referido como “força do alto”, uma expressão que
atendia melhor às necessidades dos discípulos naquele momento em que estavam
com medo; por isso, necessitavam de uma “força” (em grego: δύναμις – dynâmis) que
os movesse. Do termo grego empregado
pelo autor, derivam palavras que expressam bem a natureza missionária da
Igreja, como “dinamismo” e “dinâmica”, o que se opõe a uma instituição estática
e parada no tempo. O livro todo dos Atos dos Apóstolos mostra que os discípulos
compreenderam bem essa dimensão, e cabe aos discípulos/as de todos os tempos
atualizarem sempre.
Tendo
concluída a fala, começa a cena da ascensão propriamente dita, com Jesus colocando
os discípulos em movimento, tirando-os do cenáculo e até da cidade de Jerusalém:
“então Jesus levou-os para fora, até perto de Betânia. Ali ergueu as mãos e
abençoou-os” (v. 50). O gesto de levá-los para fora é uma atualização do
êxodo, o que fora tema da conversa de Jesus com Elias e Moisés, na
transfiguração (cf. Lc 9,28-36); mesmo narrada pelos três sinóticos (cf. Mt
17,1-9; Mc 9,2-10; Lc 9,28-36), somente Lucas empregou o termo “êxodo” naquela ocasião,
e agora mostra a sua realização. Ir para “Perto de Betânia” significa refazer o
caminho da entrada triunfante em Jerusalém, porém em sentido oposto (cf. Lc 19,29).
Quando caminhava da Galileia a Jerusalém, ele parou entre o monte das Oliveiras
e Betânia para solicitar o jumentinho e entrar na cidade. Se de “perto de
Betânia” Ele marchou para a cruz, da mesma localidade ele marcha
definitivamente para a glória do Pai. Com isso, o evangelista enfatiza a
inseparabilidade entre a cruz e a glória.
O último
gesto de Jesus entre os discípulos foi dar-lhes a bênção: “Enquanto os
abençoava, afastou-se deles e foi levado para o céu” (v. 51). Essa é a única
vez que Lucas atribui a Jesus a função de abençoar, e essa coincide com a
subida ao céu. Na linguagem Bíblica, a bênção é um elemento performativo, transmite
uma força eficaz e irrevogável; comunica a essência daquele que abençoa nos que
são abençoados. Os discípulos, abençoados, irão difundir essa bênção e, através
dela, farão novos discípulos. Com a bênção de Jesus aqui na conclusão, o
evangelista recorda o início do seu Evangelho, quando o povo estava privado de
bênção, devido à incredulidade e ineficiência do antigo sacerdócio do templo,
personificado na figura de Zacarias: “o povo que estava à espera de Zacarias,
admirava-se com a sua demora no santuário; tendo saído dali, não podia falar”
(Lc 1,21-22). A bênção de Deus que fora bloqueada pelo sacerdócio do templo,
agora é destravada por Jesus; antes, era restrita apenas aos judeus homens, os
únicos que podiam entrar no átrio onde os sacerdotes pronunciavam a bênção. Com
Jesus, a bênção de Deus deixa de ser propriedade de uma casta, e é destinada a
todo o mundo.
Convictos
da novidade, eis a reação dos discípulos: “Eles o adoraram. Em seguida
voltaram para Jerusalém, com grande alegria. E estavam sempre no Templo,
bendizendo a Deus” (vv. 52-53). Essa é também a primeira vez que os
discípulos “adoram” a Jesus, de acordo com Lucas. O fazem porque têm certeza da
consumação da sua obra, com a confirmação da sua introdução definitiva no mundo
do Pai. Sabem que Jesus é realmente o salvador, por isso expressam uma “grande
alegria”, sentimento semelhante ao dos pastores com o anúncio do nascimento (cf.
Lc 2,10). Essa “grande alegria” é uma característica essencial do discipulado,
na perspectiva de Lucas; fora antecipada no início do livro por Maria (cf.
1,47), pelos pastores e pelos anjos (cf. 2,8-20), e agora toma conta dos
discípulos e, através deles, se estenderá por todo o mundo.
Os discípulos
já não sentem medo. Estão dispostos a assumir os desafios e as consequências da
missão, e serão habilitados para isso pelo Espírito Santo. Essa alegria brota
da fé e da certeza de que de agora em diante a presença do Ressuscitado será
ainda mais eficaz. Continuam frequentando o templo, mas com uma nova finalidade:
vão lá para “bendizer” a Deus; esse verbo (em grego: ευλογέω – euloguéo)
significa também louvar e dar graças. Fazer isso no templo é uma novidade, pois
a função primordial do templo era o oferecimento de sacrifícios, o que os discípulos
não fazem, pois têm consciência de que o único sacrifício eficaz foi o de Cristo.
Louvam a Deus pelas maravilhas feitas entre eles, assim como Maria, no início
do Evangelho (cf. 1,46-56), e pelas que ainda serão feitas em todo o mundo.
Louvam a Deus porque percebem a construção de um mundo novo, cujos agentes são
as pessoas mais humildes, e a prova incontestável disso é a glorificação de um
crucificado.
Na
festa da ascensão, portanto celebramos a presença constante do Ressuscitado na
comunidade e na missão perene da Igreja, da qual não se espera outra coisa
senão o testemunho, o que consiste em espalhar o amor misericordioso de Deus no
mundo com grande alegria.
Pe. Francisco
Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
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