Com a retomada do tempo
comum, também retomamos a leitura do Evangelho segundo Lucas, como prescreve a
liturgia para o ano C, embora no próximo domingo já tenhamos uma nova interrupção,
devido à solenidade dos apóstolos Pedro e Paulo. Neste domingo, o texto
proposto é Lc 9,18-24. Embora curto, esse texto possui uma riqueza
extraordinária; concentra muitos ensinamentos importantes para a compreensão de
todo o Evangelho segundo Lucas e para o discipulado de Jesus em todos os
tempos. Podemos dividi-lo em três pequenas unidades temáticas, embora
interligadas: a) a pergunta de Jesus sobre a sua própria identidade, cuja
resposta mais completa é a confissão de Pedro (vv. 18-21); b) o primeiro
anúncio da paixão (v. 22); as exigências para o discipulado (vv. 23-24).
A nível de contexto, é necessário
recordar alguns elementos fundamentais para uma boa compreensão do texto. O
capítulo nono de Lucas tem uma importância singular no conjunto da obra, pois
marca a transição entre as duas grandes seções do Evangelho, que são,
respectivamente, o ministério de Jesus na Galileia (Lc 4,14 – 9,50) e o longo
caminho em direção a Jerusalém (Lc 9,51 – 19,44). Esse capítulo foi iniciado
com o envio missionário dos Doze, de povoado em povoado para proclamar o Reino de
Deus e libertar (curar) as pessoas (cf. 9,1-6); a repercussão da missão foi
tanta que chegou aos ouvidos de Herodes, deixando-o confuso (cf. 9,7-9). O retorno
dos discípulos foi marcado pelo entusiasmo, fazendo aumentar ainda mais a
multidão que seguia Jesus, culminando com o episódio da partilha dos pães (cf.
9,10ss).
A situação criada desde envio
dos Doze até a partilha dos pães levou Jesus à reflexão. Ele não estava
preocupado com a sua imagem ou reputação, porém se preocupava se a sua mensagem
estava sendo bem compreendida, sobretudo pelos discípulos. Os momentos de reflexão
de Jesus, em Lucas, são marcados pela oração, quando Ele expressa a sua
intimidade e confiança no Pai. Para o autor do terceiro Evangelho, todos os
momentos marcantes da vida de Jesus são precedidos pela oração (cf. 6,12; 9,28;
11,1-2; 22,40ss). A primeira afirmação do texto de hoje, portanto, é um indicativo
da importância que esse episódio tem: “Jesus estava rezando num lugar
retirado, e os discípulos estavam com ele. Então Jesus perguntou-lhes: “Quem
diz o povo que eu sou?” (v. 18). A
oração é o meio para cultivar a intimidade com o Pai. Para Jesus, as relações
com Deus e com o próximo são inseparáveis. Por isso, da oração, que é intimidade
com o Pai, Ele passa a um diálogo confidencial, sincero e transparente com os
discípulos, seus amigos.
Como tinham sido enviados há
pouco tempo para anunciar o Reino de Deus, o projeto de vida de Jesus, os
discípulos também ouviram a seu respeito. Por isso, Jesus quis saber o qual a
imagem que o povo tinha dele. A preocupação de Jesus não era com sua
popularidade, mas com a compreensão da sua mensagem. As respostas não
demonstram fracasso, mas são insuficientes: “Eles responderam: “Uns dizem
que és João Batista; outros que és Elias; mas outros acham que és algum dos
antigos profetas que ressuscitou” (v. 19). Essa resposta mostra que, em
geral, o povo tinha uma boa visão de Jesus; o considerava na linha dos grandes
profetas, mas essa imagem é equivocada. Tanto João Batista quanto Elias foram
profetas reformadores. João Batista, com a sua austeridade, preferiu isolar-se
no deserto, ao invés de enfrentar diretamente as estruturas; inclusive,
acreditava que apenas a passagem pelo rito do batismo já era suficiente para
uma verdadeira conversão. Elias era muito zeloso, mas fanático e intolerante,
pregava a violência e o extermínio dos adversários (cf. 1Rs 18,40; 19,1). Colocar
Jesus nessa linha é um grande equívoco, inclusive porque Ele não veio propor reformas,
mas uma mudança radical de mentalidades e de estruturas, na sociedade e na
religião.
Como os discípulos já tinham
feito um longo percurso com Ele, é de se esperar que tivessem uma visão mais aprofundada
do que o povo. Por isso, “Jesus perguntou: “E vós, quem dizeis que eu sou?”
Pedro respondeu: “O Cristo de Deus” (v. 20). Da resposta dos discípulos,
Jesus sabia como tinha sido o anúncio deles. Pedro responde em nome de todo o
grupo; a sua resposta é coletiva e sintetiza a opinião dos Doze. Que o povo
conhecesse Jesus apenas superficialmente, seria tolerável, mas dos discípulos
espera-se que o conheçam verdadeiramente. A resposta de Pedro é correta, mas
também não é suficiente; Jesus é, de fato, o Cristo; confessá-lo assim é reconhecê-lo
como o messias esperado. Ele é o messias sim, mas não conforme as expectativas
do seu povo. O messias esperado pelos judeus era um personagem glorioso, um guerreiro
nacionalista, alguém que iria restaurar o reino davídico-salomônico com o uso
da força e da violência. Jesus não veio para restaurar a realeza em Israel, mas
para instaurar o Reino de Deus. Sua mensagem não é direcionada a um povo
apenas, mas a toda a humanidade.
Conhecendo a mentalidade dos discípulos,
“Jesus proibiu-lhes severamente que contassem isso a alguém” (v. 21). É importante
reconhecer a relevância dessa “proibição” para o discipulado de outrora e de
hoje. Jesus não manda somente anunciar; manda também calar. A comunidade deve
procurar todos os meios eficientes para o anúncio do Reino chegar a todas as pessoas
e em todos os lugares, deve até pregar sobre os telhados (cf. Lc 12,3), mas
quando o anúncio é distorcido, quando há proselitismo, quando há pretensões de
glória e poder, é necessário calar-se. O desejo de glória e poder estava
implícito na resposta de Pedro. Por isso, Jesus proibiu de anuncia-lo daquela
forma. A urgência da evangelização, em qualquer época, não pode levar a
comunidade a anunciar o Evangelho de qualquer forma, sem antes conhecê-lo em
profundidade. Anunciar Jesus distorcendo ou omitindo a essência libertadora da
sua mensagem é mais danoso do que o silêncio.
Diante da compreensão ainda
não muito clara que os discípulos tinham do seu messianismo, Jesus acrescentou,
alertando-os: “O Filho do Homem deve sofrer muito, ser rejeitado pelos
anciãos, pelos sumos sacerdotes e doutores da Lei, deve ser morto e ressuscitar
no terceiro dia” (v. 22). A expressão “Filho do Homem” nos evangelhos
sinóticos (Mt; Mc; Lc) significa a humanidade autêntica de Jesus; mesmo sendo o
Filho de Deus, Ele viveu intensamente a condição humana, inclusive o sofrimento
e a morte. Aqui, Jesus antecipa o seu destino dramático, fazendo o primeiro dos
três anúncios da paixão (cf. 9,22; 9,43-45; 18,31-34). Esses anúncios são
formas de dizer que Ele não é um Messias conforme as expectativas do povo e da
religião. Um messias sofredor era inadmissível para a tradição. Ele deve morrer
porque levará a cumprimento o projeto do Pai. Não é a vontade do Pai que seu
Filho seja assassinado; a vontade de Deus é que seu Reino se instaure na terra,
mesmo que isso custe o sangue do seu Filho. A morte de Jesus na cruz, portanto,
é fruto da cobiça e da maldade humana, sobretudo das lideranças religiosas; mas
o Pai reverterá essa situação em salvação para a humanidade, com a
ressurreição. Para Lucas, os responsáveis pela morte de Jesus são as
autoridades religiosas.
Tendo esclarecido que não é
um messias conforme as expectativas do povo, Jesus esclarece as exigências para
o seu seguimento. Ele está terminando o seu ministério na Galileia; em pouco
tempo irá iniciar o caminho para Jerusalém, onde viverá o drama da paixão. Para
continuar no seu seguimento, é necessário que os discípulos tenham clareza do
destino e dos riscos que estão correndo, como discípulos de um messias ao
revés. Por isso, o esclarecimento: “Depois Jesus disse a todos: “Se alguém
me quer seguir, renuncie a si mesmo, tome sua cruz a cada dia, e siga-me. Pois
quem quiser salvar a sua vida, vai perde-la; e quem perder a sua vida por causa
de mim, esse a salvará” (vv. 23-24). Antes de tudo, Jesus deixa claro que o
discipulado é uma adesão pessoal e livre: “se alguém me quer seguir”;
Ele não obriga e nem impõe; apenas propõe.
Seguir Jesus exige rupturas. A
primeira ruptura é com a própria pessoa. Renunciar a si mesmo não significa
odiar-se, mas é deixar de lado o egoísmo e todas as convicções pessoais que não
estão em sintonia com a mensagem libertadora do Evangelho; pretensões de poder,
conquista e bem-estar pessoal, devem ser deixadas de lado. A cruz de cada dia
corresponde às consequências de tal escolha. A cruz, como a mais temida das
penas na época, era sinal de perigo; com essa afirmação, Jesus deixa claro que
os seus discípulos, à medida em que viverem o Evangelho com fidelidade, estarão
em perigo constante, pois as opções do Evangelho contradizem os pretensões dos
detentores de poder deste mundo.
Somos convidados hoje, de
modo especial, a procurar conhecer cada vez mais a identidade autêntica de
Jesus, para poder continuar no seu seguimento. Segui-lo é confrontar-se com as
estruturas do mundo que impedem a realização, desde já, do Reino de Deus. O
seguimento e o anúncio devem ser frutos de uma relação de intimidade com Ele e
com o Pai. Sem convicção e conhecimento da sua pessoa, o anúncio tende a ser
distorcido. É preciso romper com estruturas e mentalidades para continuar o seu
seguimento.
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