sábado, junho 22, 2019

REFLEXÃO PARA O XII DOMINGO DO TEMPO COMUM – LUCAS 9,18-24 (ANO C)




Com a retomada do tempo comum, também retomamos a leitura do Evangelho segundo Lucas, como prescreve a liturgia para o ano C, embora no próximo domingo já tenhamos uma nova interrupção, devido à solenidade dos apóstolos Pedro e Paulo. Neste domingo, o texto proposto é Lc 9,18-24. Embora curto, esse texto possui uma riqueza extraordinária; concentra muitos ensinamentos importantes para a compreensão de todo o Evangelho segundo Lucas e para o discipulado de Jesus em todos os tempos. Podemos dividi-lo em três pequenas unidades temáticas, embora interligadas: a) a pergunta de Jesus sobre a sua própria identidade, cuja resposta mais completa é a confissão de Pedro (vv. 18-21); b) o primeiro anúncio da paixão (v. 22); as exigências para o discipulado (vv. 23-24).

A nível de contexto, é necessário recordar alguns elementos fundamentais para uma boa compreensão do texto. O capítulo nono de Lucas tem uma importância singular no conjunto da obra, pois marca a transição entre as duas grandes seções do Evangelho, que são, respectivamente, o ministério de Jesus na Galileia (Lc 4,14 – 9,50) e o longo caminho em direção a Jerusalém (Lc 9,51 – 19,44). Esse capítulo foi iniciado com o envio missionário dos Doze, de povoado em povoado para proclamar o Reino de Deus e libertar (curar) as pessoas (cf. 9,1-6); a repercussão da missão foi tanta que chegou aos ouvidos de Herodes, deixando-o confuso (cf. 9,7-9). O retorno dos discípulos foi marcado pelo entusiasmo, fazendo aumentar ainda mais a multidão que seguia Jesus, culminando com o episódio da partilha dos pães (cf. 9,10ss).

A situação criada desde envio dos Doze até a partilha dos pães levou Jesus à reflexão. Ele não estava preocupado com a sua imagem ou reputação, porém se preocupava se a sua mensagem estava sendo bem compreendida, sobretudo pelos discípulos. Os momentos de reflexão de Jesus, em Lucas, são marcados pela oração, quando Ele expressa a sua intimidade e confiança no Pai. Para o autor do terceiro Evangelho, todos os momentos marcantes da vida de Jesus são precedidos pela oração (cf. 6,12; 9,28; 11,1-2; 22,40ss). A primeira afirmação do texto de hoje, portanto, é um indicativo da importância que esse episódio tem: “Jesus estava rezando num lugar retirado, e os discípulos estavam com ele. Então Jesus perguntou-lhes: “Quem diz o povo que eu sou?”  (v. 18). A oração é o meio para cultivar a intimidade com o Pai. Para Jesus, as relações com Deus e com o próximo são inseparáveis. Por isso, da oração, que é intimidade com o Pai, Ele passa a um diálogo confidencial, sincero e transparente com os discípulos, seus amigos.

Como tinham sido enviados há pouco tempo para anunciar o Reino de Deus, o projeto de vida de Jesus, os discípulos também ouviram a seu respeito. Por isso, Jesus quis saber o qual a imagem que o povo tinha dele. A preocupação de Jesus não era com sua popularidade, mas com a compreensão da sua mensagem. As respostas não demonstram fracasso, mas são insuficientes: “Eles responderam: “Uns dizem que és João Batista; outros que és Elias; mas outros acham que és algum dos antigos profetas que ressuscitou” (v. 19). Essa resposta mostra que, em geral, o povo tinha uma boa visão de Jesus; o considerava na linha dos grandes profetas, mas essa imagem é equivocada. Tanto João Batista quanto Elias foram profetas reformadores. João Batista, com a sua austeridade, preferiu isolar-se no deserto, ao invés de enfrentar diretamente as estruturas; inclusive, acreditava que apenas a passagem pelo rito do batismo já era suficiente para uma verdadeira conversão. Elias era muito zeloso, mas fanático e intolerante, pregava a violência e o extermínio dos adversários (cf. 1Rs 18,40; 19,1). Colocar Jesus nessa linha é um grande equívoco, inclusive porque Ele não veio propor reformas, mas uma mudança radical de mentalidades e de estruturas, na sociedade e na religião.

Como os discípulos já tinham feito um longo percurso com Ele, é de se esperar que tivessem uma visão mais aprofundada do que o povo. Por isso, “Jesus perguntou: “E vós, quem dizeis que eu sou?” Pedro respondeu: “O Cristo de Deus” (v. 20). Da resposta dos discípulos, Jesus sabia como tinha sido o anúncio deles. Pedro responde em nome de todo o grupo; a sua resposta é coletiva e sintetiza a opinião dos Doze. Que o povo conhecesse Jesus apenas superficialmente, seria tolerável, mas dos discípulos espera-se que o conheçam verdadeiramente. A resposta de Pedro é correta, mas também não é suficiente; Jesus é, de fato, o Cristo; confessá-lo assim é reconhecê-lo como o messias esperado. Ele é o messias sim, mas não conforme as expectativas do seu povo. O messias esperado pelos judeus era um personagem glorioso, um guerreiro nacionalista, alguém que iria restaurar o reino davídico-salomônico com o uso da força e da violência. Jesus não veio para restaurar a realeza em Israel, mas para instaurar o Reino de Deus. Sua mensagem não é direcionada a um povo apenas, mas a toda a humanidade.

Conhecendo a mentalidade dos discípulos, “Jesus proibiu-lhes severamente que contassem isso a alguém” (v. 21). É importante reconhecer a relevância dessa “proibição” para o discipulado de outrora e de hoje. Jesus não manda somente anunciar; manda também calar. A comunidade deve procurar todos os meios eficientes para o anúncio do Reino chegar a todas as pessoas e em todos os lugares, deve até pregar sobre os telhados (cf. Lc 12,3), mas quando o anúncio é distorcido, quando há proselitismo, quando há pretensões de glória e poder, é necessário calar-se. O desejo de glória e poder estava implícito na resposta de Pedro. Por isso, Jesus proibiu de anuncia-lo daquela forma. A urgência da evangelização, em qualquer época, não pode levar a comunidade a anunciar o Evangelho de qualquer forma, sem antes conhecê-lo em profundidade. Anunciar Jesus distorcendo ou omitindo a essência libertadora da sua mensagem é mais danoso do que o silêncio.

Diante da compreensão ainda não muito clara que os discípulos tinham do seu messianismo, Jesus acrescentou, alertando-os: “O Filho do Homem deve sofrer muito, ser rejeitado pelos anciãos, pelos sumos sacerdotes e doutores da Lei, deve ser morto e ressuscitar no terceiro dia” (v. 22). A expressão “Filho do Homem” nos evangelhos sinóticos (Mt; Mc; Lc) significa a humanidade autêntica de Jesus; mesmo sendo o Filho de Deus, Ele viveu intensamente a condição humana, inclusive o sofrimento e a morte. Aqui, Jesus antecipa o seu destino dramático, fazendo o primeiro dos três anúncios da paixão (cf. 9,22; 9,43-45; 18,31-34). Esses anúncios são formas de dizer que Ele não é um Messias conforme as expectativas do povo e da religião. Um messias sofredor era inadmissível para a tradição. Ele deve morrer porque levará a cumprimento o projeto do Pai. Não é a vontade do Pai que seu Filho seja assassinado; a vontade de Deus é que seu Reino se instaure na terra, mesmo que isso custe o sangue do seu Filho. A morte de Jesus na cruz, portanto, é fruto da cobiça e da maldade humana, sobretudo das lideranças religiosas; mas o Pai reverterá essa situação em salvação para a humanidade, com a ressurreição. Para Lucas, os responsáveis pela morte de Jesus são as autoridades religiosas.

Tendo esclarecido que não é um messias conforme as expectativas do povo, Jesus esclarece as exigências para o seu seguimento. Ele está terminando o seu ministério na Galileia; em pouco tempo irá iniciar o caminho para Jerusalém, onde viverá o drama da paixão. Para continuar no seu seguimento, é necessário que os discípulos tenham clareza do destino e dos riscos que estão correndo, como discípulos de um messias ao revés. Por isso, o esclarecimento: “Depois Jesus disse a todos: “Se alguém me quer seguir, renuncie a si mesmo, tome sua cruz a cada dia, e siga-me. Pois quem quiser salvar a sua vida, vai perde-la; e quem perder a sua vida por causa de mim, esse a salvará” (vv. 23-24). Antes de tudo, Jesus deixa claro que o discipulado é uma adesão pessoal e livre: “se alguém me quer seguir”; Ele não obriga e nem impõe; apenas propõe.

Seguir Jesus exige rupturas. A primeira ruptura é com a própria pessoa. Renunciar a si mesmo não significa odiar-se, mas é deixar de lado o egoísmo e todas as convicções pessoais que não estão em sintonia com a mensagem libertadora do Evangelho; pretensões de poder, conquista e bem-estar pessoal, devem ser deixadas de lado. A cruz de cada dia corresponde às consequências de tal escolha. A cruz, como a mais temida das penas na época, era sinal de perigo; com essa afirmação, Jesus deixa claro que os seus discípulos, à medida em que viverem o Evangelho com fidelidade, estarão em perigo constante, pois as opções do Evangelho contradizem os pretensões dos detentores de poder deste mundo.

Somos convidados hoje, de modo especial, a procurar conhecer cada vez mais a identidade autêntica de Jesus, para poder continuar no seu seguimento. Segui-lo é confrontar-se com as estruturas do mundo que impedem a realização, desde já, do Reino de Deus. O seguimento e o anúncio devem ser frutos de uma relação de intimidade com Ele e com o Pai. Sem convicção e conhecimento da sua pessoa, o anúncio tende a ser distorcido. É preciso romper com estruturas e mentalidades para continuar o seu seguimento.


 Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

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