A liturgia deste sexto domingo do tempo comum continua a
leitura do discurso da montanha, o principal e mais longo dos cinco grandes discursos
que Mateus atribui a Jesus em seu Evangelho, compreendendo três capítulos
inteiros (Mt 5–7). O texto proposto para hoje – Mt 5,17-37 – é bastante longo,
o que nos impede de comentar versículo por versículo. Procuraremos, portanto,
colher a mensagem central, embora seja indispensável evidenciar alguns
versículos em particular. De início, recordamos que só é possível compreender
qualquer trecho do discurso da montanha tendo em mente a sua introdução, as bem-aventuranças (Mt 5,1-12), que correspondem ao programa de vida
realizado plenamente por Jesus e proposto também para os discípulos. Tudo o que
é apresentado ao longo do discurso da montanha é, portanto, desdobramento das
bem-aventuranças.
A vivência das bem-aventuranças pressupõe uma maneira nova de interpretar a Lei de Moisés, bem como todo o conjunto das Escrituras hebraicas, sintetizadas no evangelho de hoje pela expressão “a Lei e os Profetas” (v. 17). De acordo com o evangelista, no discurso da montanha, Jesus apresenta uma interpretação nova de seis casos ou aspectos concretos da Lei, apresentados em sequência, diferente das interpretações vigentes na época, superando o mero legalismo e a interpretação literal tão defendida pelos fariseus e outras correntes mais rígidas do judaísmo. Destes seis casos, quatro são lidos hoje, enquanto os outros dois serão lidos no próximo domingo, o sétimo do tempo comum. É oportuno recordar que, assim como em todo o Evangelho de Mateus, a interpretação da Lei atribuída a Jesus e as controvérsias com os fariseus refletem mais as questões da época da redação do evangelho (década de 80 do primeiro século) do que propriamente o tempo do ministério de Jesus. Diante dos problemas vividos pela sua comunidade, o evangelista recorda qual teria sido a posição de Jesus.
A sequência dos casos ou aspectos concretos da Lei
tratados no discurso da montanha, logo após Jesus ter conferido aos discípulos
a responsabilidade de “dar sabor ao mundo e iluminá-lo”, através das imagens do
sal e da luz (cf. o evangelho do domingo passado, Mt 5,13-16) é precedida de
uma pequena introdução (vv. 17-20) que, de certo modo, ajuda a compreender o
contexto de todo o texto. Eis o primeiro versículo: «Não penseis que eu
vim abolir a Lei e os Profetas. Não vim para abolir, mas para dar-lhes pleno
cumprimento» (v. 17). Essa afirmação dá a entender que tanto Jesus
quanto os cristãos da comunidade de Mateus eram acusados pelo judaísmo oficial
de relativizarem a Lei e até de a revogarem. Para os grupos mais rígidos do
judaísmo, Jesus, com a sua práxis, tinha destruído a Lei. Diante disso, a
comunidade de Mateus reage afirmando que, com a sua atividade libertadora,
Jesus levava a Lei à plenitude, uma vez que sua interpretação colocava o bem do
ser humano acima de qualquer legalismo. É importante observar que
“cumprimento”, aqui, não se refere à simples execução de uma tarefa, mas tem o
sentido de aperfeiçoamento, tornar algo pleno e perfeito. Ou seja, Jesus não
veio ao mundo para destruir a Lei, e nem tampouco para cumprir preceitos e
executar normas, mas para tornar perfeita a Lei de Deus; é isso que significa o
verbo grego empregado pelo evangelista: plerôo (πληρόω) = aperfeiçoar,
dar acabamento, tornar pleno.
Na sequência, ainda em preparação
à apresentação dos casos concretos da interpretação da Lei, temos mais
afirmações que reforçam o apreço de Jesus pela Lei, afirmando inclusive a sua
perenidade (v. 18), bem como a exclusão do Reino a quem deixar de observá-la e
ensinar os outros a fazer o mesmo (v. 19), culminando com o confronto direto
com os mestres da Lei e os fariseus: «Porque eu vos digo: Se a vossa justiça não for maior
que a justiça dos mestres da Lei e dos fariseus, vós não entrareis no Reino dos
Céus» (v. 20). Ora, os mestres da
Lei e os fariseus eram exemplo de fidelidade à Lei, obedecendo, quase
cegamente, preceito por preceito. Para eles, a Lei era um fim em si mesma,
pouco importando o bem das pessoas e as situações concretas do dia-a-dia. Dos seus discípulos, porém, Jesus espera muito mais, começando por uma adesão interior à vontade de
Deus, o que corresponde à verdadeira justiça: conformidade à vontade de Deus,
compreendendo a predileção pelos pecadores, pobres e marginalizados; é fazer o
bem em qualquer circunstância, independentemente se há ou não um preceito que
determine, e sem deixar de fazer, mesmo quando for necessário contrariar certos
preceitos.
Os seis exemplos (casos concretos) que seguem, dos
quais leremos somente quatro hoje, mostram como é que a justiça dos discípulos
e discípulas de Jesus deve superar a dos mestres da Lei e dos fariseus.
Conforme o evangelista, Jesus apresenta um ponto específico da Lei que os
fariseus interpretavam literalmente, e em seguida apresenta a sua interpretação
pessoal que ultrapassa a interpretação convencional. Alguns comentadores
intitulam estes casos de “antíteses”, já que são construídos segundo a fórmula
“Vós ouvistes o que foi dito...; Eu, porém vos digo...”. No entanto, não se
trata propriamente de antíteses, pois o ensinamento de Jesus não contradiz o
convencional, mas alarga o horizonte, inclusive, propondo uma interpretação até
mais radical, ao invés de relativizar a Lei.
O primeiro caso diz respeito ao quinto mandamento do
decálogo (cf. Ex 20,13): «Vós ouvistes o que foi dito aos antigos: ‘Não
matarás! Quem matar será condenado pelo tribunal» (v. 21). De acordo
com uma interpretação literal, como faziam os fariseus, bastava não cometer
homicídio para observar este mandamento. Para Jesus e a dinâmica do seu Reino,
não é suficiente não tirar a vida de outra pessoa para transgredir o
mandamento, mas há muitas outras maneiras, as quais devem ser radicalmente observadas
para agir em conformidade com a vontade de Deus, superando, assim, a justiça
dos fariseus e mestres da Lei. Alimentar ódio e preconceitos contra o próximo,
bem como dirigir-lhe palavras ofensivas (v. 22), são também maneiras de
transgredir o mandamento; na verdade, são maneiras diferentes de ameaçar a vida
e a dignidade do outro e, por isso, é inadmissível que aconteça, especialmente
na comunidade cristã. Uma boa relação com Deus passa necessariamente pela
relação com o próximo. Na verdade, a relação com o próximo é tão indispensável,
que tem primazia até mesmo sobre o culto e os ritos religiosos (vv. 23-24).
Portanto, não basta não matar; é necessário amar, respeitar e viver
reconciliado com o outro para estar bem com Deus. Assim, de um mandamento que
apenas proibia assassinatos, Jesus amplia o seu significado e faz uma ampla
catequese sobre a importância de se cultivar relações harmoniosas e fraternas
na comunidade.
O segundo caso também parte de um mandamento do
decálogo, o sexto (cf. Ex 20,14): «Ouvistes o que foi dito: ‘Não
cometerás adultério’. Eu, porém, vos digo: Todo aquele que olhar para uma
mulher, com o desejo de possuí-la, já cometeu adultério com ela no seu coração» (vv.
27-28). Novamente, a interpretação de Jesus excede a prescrição, superando,
assim, a justiça dos fariseus e dos mestres da Lei. Para Jesus, o adultério não
consiste somente na consumação do ato, mas os pensamentos e desejos, mesmo que
não levem a nenhuma ação concreta, são também transgressão do mandamento.
Novamente, é evidenciada a necessidade de relações saudáveis entre todas as
pessoas, com pureza de coração, segundo o espírito das bem-aventuranças (cf. Mt
5,8). A perspectiva de Jesus também denuncia a cultura machista e patriarcal
predominante na época; a mulher não pode ser tratada como um objeto de consumo.
O reconhecimento da dignidade da mulher é indispensável na comunidade cristã.
Os olhares e pensamentos maliciosos devem ser evitados. É necessário cortar o
mal pela raiz; a ordem para arrancar ou cortar os membros do corpo que levam a
pessoa a pecar é simbólica (vv. 29-30), uma vez que é do coração que saem os
desejos e as más intenções. Significa que a vida não tem sentido quando é
marcada pelo mal.
O terceiro caso está relacionado ao segundo. Não é
tirado do Decálogo, mas do chamado “código deuteronômico” (Dt 12 – 26),
precisamente da lei sobre o divórcio (cf. Dt 24,1-4), que dava liberdade ao
homem para divorciar-se da mulher por qualquer motivo, inclusive se a achasse
“sem graça”, ou seja, “feia” (cf. Dt 24,1). Era uma lei totalmente favorável ao
homem e danosa para a mulher. De todos os exemplos levantados por Jesus, esse é
de mais difícil compreensão, pois não é muito claro: «Foi dito também:
‘Quem se divorciar de sua mulher, dê-lhe uma certidão de divórcio’. Eu, porém,
vos digo: Todo aquele que se divorcia de sua mulher, a não ser por motivo de
união irregular, faz com que ela se torne adúltera; e quem se casa com a mulher
divorciada comete adultério» (v. 32). Aqui, infelizmente, a tradução
litúrgica não favorece uma interpretação adequada; ao invés da expressão “faz
com que ela se torne adúltera”, o correto seria “faz com que ela cometa
adultério”, sendo o homem culpado por isso. Dando a certidão de divórcio por
qualquer motivo, o culpado pelo adultério da mulher é o homem, na perspectiva
da comunidade de Mateus, contrariando a interpretação dos fariseus e as
práticas vigentes na época. Visando manter a sacralidade do matrimônio, a
interpretação de Jesus alivia o peso e a culpabilidade da mulher,
responsabilizando também o homem. Em outras palavras, o homem deixa de ter
poderes absolutos no matrimônio.
O último caso lido hoje diz respeito aos juramentos.
No mundo antigo, onde prevalecia a cultura oral, como em Israel, os juramentos
tinham muita importância. Embora não esteja diretamente no Decálogo, havia
muitas prescrições sobre os juramentos em toda a Lei (cf. Lv 19,12; Nm 30,3-15;
Dt 5,20; 23,21), sobretudo exigindo fidelidade e cumprimento da palavra quando
fosse feito um juramento. Era uma prática recorrente fazer juramentos como
sinal de compromisso com Deus e com o próximo, em Israel. Isso acontecia em
todos os âmbitos da vida: relações interpessoais, política, negócios e
religião. A posição de Jesus é de total repúdio à prática dos juramentos: «Vós
ouviste também o que foi dito aos antigos: ‘Não jurarás falso’, mas cumprirás
os teus juramentos feitos ao Senhor’. Eu, porém, vos digo: Não jureis de modo
algum: nem pelo céu, porque é o trono de Deus» (v. 34). É importante
recordar que a Lei não determinava que as pessoas jurassem; porém dava
permissão para tal, exigindo, no entanto, que, uma vez feitos, os juramentos
fossem cumpridos. A necessidade de jurar, porém, pressupõe a desconfiança. Por
isso, Jesus repudia completamente essa prática (vv. 35-37). Ora, na comunidade
cristã, embrião do Reino dos céus, cuja regra de vida é as bem-aventuradas, todas
as relações devem ser sinceras. Necessita-se de juramentos onde não há
confiança absoluta; onde predomina a fraternidade, as relações são todas
transparentes, fala-se somente a verdade em todas as circunstâncias. Por isso,
não há necessidade de juramentos, pois todos devem viver segundo o amor
recíproco.
No próximo domingo teremos a continuidade da leitura
dos casos ou exemplos concretos que Jesus apresenta como demonstração de como a
justiça dos seus discípulos e discípulas deve superar a dos fariseus e mestres
da Lei. Como vimos, isso não se faz cumprindo com mais rigor os mínimos
detalhes da Lei, mas superando-a, indo além daquilo que é prescrito,
considerando sempre que o bem do ser humano deve estar acima de tudo. A
assimilação das bem-aventuranças torna as normas da Lei até desnecessárias; é a
vivência delas que permite faz a Lei chegar à sua plenitude, a ponto de não ser
mais transgredida, pois, interiorizando as bem-aventuranças, já não há mais
necessidade sequer de olhar para as normas e regras da Lei. Quem absorve no
coração os ensinamentos de Jesus, torna-se incapaz de fazer o mal, por isso,
nada lhe pode ser proibido.
Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
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