Com a liturgia do trigésimo
quarto domingo do tempo comum, o último do ano litúrgico, a Igreja celebra a
solenidade de Jesus Cristo como rei do universo. As leituras desta festa variam
conforme o ciclo litúrgico. Neste ano, por ocasião do ciclo litúrgico B, o
evangelho proposto é Jo 18,33b-37. Como se sabe, ao longo do ano litúrgico B, apesar
de ter como texto evangélico predominante a obra de Marcos, a liturgia se serve
do Evangelho de João em vários domingos, portanto, não é novidade que hoje utilize
um texto seu. O título atribuído a Jesus nesta solenidade, por si só, já nos desperta
bastante atenção e curiosidade, despertando também a necessidade de profunda
reflexão para não distorcermos a natureza da realeza de Jesus. Ao falar de
alguém como rei, a tendência imediata é atribuir-lhe as características
próprias dos reis deste mundo, como coroa, trono, cetro e poder; associar Jesus
a esses sinais de realeza é trair completamente o seu Evangelho, mesmo que as
imagens e representações usadas em muitas igrejas façam isso. Diante disso, podemos
dizer que dar a Jesus trono, cetro e coroa é zombar dele; independentemente do
contexto histórico, é repetir a zombaria dos soldados que o crucificaram: «Os soldados,
tendo feito uma coroa de espinhos, colocaram-na em sua cabeça, e o envolveram
com um manto de púrpura» (Jo 19,2).
Mesmo
concentrando a nossa reflexão no texto evangélico proposto – João 18,33b-37 – é
oportuno e necessário fazermos uma pequena contextualização histórica sobre a
instituição desta solenidade. Trata-se de uma festa relativamente nova, considerando
que a maioria das festas da Igreja encontram suas raízes na antiguidade cristã.
Esta soleidade foi instituída somente no ano de 1925, pelo papa Pio XI. Aquele
era um momento conturbado para a Europa e todo o mundo: a primeira guerra
mundial tinha acabado fazia pouco tempo e já se desenhava o cenário da segunda;
a ganância pelo poder com as consequências drásticas que desse derivam estavam
em efervescência, mais do que nunca. Diversos regimes totalitários se
espalhavam pelo mundo. Na época, já estavam consolidados o fascismo na Itália,
o socialismo na União Soviética (Rússia), e o nazismo estava em gestação na
Alemanha. Também em Portugal e Espanha estavam sendo
gerados projetos ditatoriais, consolidados na década de 30. Havia,
portanto, muita gente buscando poderes absolutos, querendo ser “senhor do
mundo”. Foi nesse contexto que o papa Pio XI instituiu, com muita sabedoria, a
solenidade de Cristo Rei, como um lembrete e advertência para aqueles que
almejavam o senhorio da história e o domínio do mundo.
Uma vez
instituída e consolidada, essa festa não deixa de trazer certos perigos em sua
interpretação. O problema se dá na concepção e representação que se tem feito
da realeza de Jesus. Combater os reinos deste mundo para implantar o Reino de
Deus não é uma simples substituição na detenção do poder, mas uma mudança
radical na forma de conceber o Reino. Assim como Jesus não pretendeu ocupar o
lugar de César (o imperador romano), jamais pretenderia também ocupar o lugar
de Mussolini, Stálin, Hitler ou qualquer outro dirigente totalitário, como os
que ameaçam os regimes democráticos na atualidade. A proposta de reinado (ou Reino) de
Jesus é totalmente incompatível com as experiências de poder até hoje
experimentadas pela humanidade. Jesus não propõe apenas um mundo diferente
deste que tem proporcionado os detentores de poder, mas um mundo totalmente
oposto, com relações completamente novas, capazes de gerar paz, justiça e
fraternidade. Enfim, ele propõe um mundo novo e exige a colaboração dos seus
discípulos e discípulas de todos os tempos na sua construção. E a exigência
básica consiste em viver radicalmente o amor.
O texto
evangélico específico para a liturgia de hoje faz parte do relato da paixão de
Jesus no Quarto Evangelho. É um trecho do processo de Jesus diante de Pilatos,
governador romano da província da Judéia, na época. A capital da província era
a cidade de Cesaréia Marítima, onde morava o governador; porém, nos períodos
das grandes festas, como a páscoa, a governadoria se transferia para Jerusalém,
tanto para monitorar possíveis rebeliões e combatê-las, quanto para mostrar a
força do poder romano, o que era visto pelos judeus como motivo de humilhação.
Por isso, Pilatos teve a oportunidade de interrogar Jesus, pois já se
encontrava em Jerusalém por ocasião da páscoa, conforme o contexto narrativo do
Evangelho. No momento do interrogatório, Jesus estava sozinho diante de Pilatos
com seus soldados, pois os judeus não podiam entrar no palácio, com medo de
ficarem impuros e, assim, não poderiam celebrar a páscoa no dia seguinte. Por
isso, Jesus entrou sozinho no pretório para ser interrogado. O encontro de
Jesus com Pilatos é apenas uma formalidade, pois a sua morte já estava
decidida. A cúpula da religião judaica, incomodada com a pregação e a práxis de
Jesus já planejava a sua morte há muito tempo. Já haviam decidido que daquela
páscoa ele não passaria! Como os chefes religiosos não tinham poder de
execução, mesmo com a pena já decidida, era necessário convencer o poder romano
a fazer a executá-lo.
Eis o que diz
o texto: «Pilatos chamou
Jesus e perguntou-lhe: “Tu és o rei dos judeus?”» (v. 33b). A
pergunta dá a entender que Pilatos já sabia que aquele caso se tratava de uma
questão muito interna da religião judaica, embora representasse também uma
ameaça de rebelião, o que poderia trazer consequências para o poder romano. Na
verdade, todos os governadores romanos enviados para a província da Judéia já
iam prevenidos do risco constante de rebeliões de líderes radicais dos movimentos
populares do judaísmo, principalmente da parte dos galileus, como era Jesus. A
pergunta de Pilatos revela também uma espécie de surpresa: o homem que está
diante dele não aparenta causar perigo algum à ordem imperial, embora tenha
sido entregue como agitador e malfeitor, ou seja, como bandido. Parece que
Pilatos não vê Jesus como ameaça. Além de surpresa, essa pergunta também
expressa escárnio. Mas Jesus não se intimida com a pergunta do governador, e
faz o diálogo fluir: «Estás dizendo isto por ti mesmo
ou outros te disseram isto de mim?» (v. 34). É
costume de Jesus responder a uma pergunta com uma nova pergunta. Com isso, ele
chama a atenção de Pilatos para pensar por conta própria sem deixar-se
manipular pela opinião dos outros. Foi com esse método de responder perguntando
que ele, ao longo do ministério, desmascarou a hipocrisia de tantas pessoas
religiosas, como escribas e fariseus, como também conquistou discípulos para o
seu seguimento, embora àquela altura todos tivessem fugido com medo.
Na
continuidade do diálogo, Pilatos reage à pergunta provocatória de Jesus: «Pilatos falou:
“Por acaso, sou judeu? O teu povo e os sumos sacerdotes te entregaram a mim.
Que fizestes?”» (v. 35). A
intenção do governador é isentar-se ao máximo possível da responsabilidade pela
condenação de Jesus, provavelmente por já ter notícia da força do seu movimento
na Galileia e em todas as regiões por onde passou. Ao tentar provar
neutralidade, Pilatos exerce a pior das hipocrisias: a indiferença diante da
injustiça. Ao mesmo tempo, sintetiza uma realidade que já fora demonstrada ao
longo de todo o Quarto Evangelho: toda a classe dirigente dos judeus estava
contra Jesus: a expressão «o teu povo e os sumos sacerdotes» significa
o complô dos grupos judaicos hegemônicos com os dirigentes do templo. No final,
por mais que o poder romano tenha sido conveniente e executor da condenação de
Jesus, o evangelista deixa claro de onde partiu a iniciativa: das autoridades
religiosas judaicas, que se viam ameaçadas diante da mensagem emancipadora de
Jesus, sobretudo, por revelar que o verdadeiro Deus, o seu Pai, nada tinha a ver
com a caricatura de Deus vendida na templo como mercadoria.
Pilatos tinha
perguntado o que Jesus tinha feito para ser entregue pelo seu próprio povo. Ora,
o que Jesus fez foi amar sem medidas e revelar um Deus que é todo amor, o que a
religião do seu tempo não aceitou. Contudo, a essa pergunta Jesus não
respondeu, preferiu voltar para o tema da primeira pergunta, a respeito da
natureza do seu reino: «O meu reino não é deste mundo. Se
o meu reino fosse deste mundo, os meus guardas lutariam para que eu não fosse
entregue aos judeus. Mas o meu reino não é daqui» (v. 36).
A declaração «o meu reino
não é deste mundo» é bastante
esclarecedora, mas também complexa e, por isso, fácil de ser distorcida. Antes
de tudo, não se trata de uma contraposição entre o céu e a terra. Aqui, Jesus
se refere à origem, à concepção do seu reino, e não à sua efetivação; os reinos
deste mundo se sustentam com o uso da força, da violência, da injustiça e da
hipocrisia de um modo geral. Jesus, com essa afirmação, diz que seu reino não
se baseia nesses meios. Porém, ele não está falando de um reino para o além ou
outro mundo. O seu reino, baseado na justiça, no amor e na fraternidade deve
ser efetivado nesse mundo, onde estão as pessoas com suas necessidades concretas,
com suas angústias e necessidade de humanização. O reino de Jesus não é deste
mundo por não se assemelhar aos reinos deste mundo, mas deve ser construído e
vivido já nesse mundo. Inclusive, em uma das petições do Pai nosso, a oração
modelo da comunidade cristã, pede-se justamente que venha a este mundo o Reino
de Deus, que é um projeto de mundo novo, humanizado pelo amor. E o Pai nosso foi
ensinado pelo próprio Jesus.
A Pilatos,
Jesus dá uma resposta muito concreta, não apenas com palavras, mas pelo jeito
de ser, de que seu reino, de fato, não é deste mundo: não tem exército nem
guardas para lutar contra a sua condenação. Um exército era a primeira
necessidade para a formação de um reino na antiguidade. De fato, o aparato
básico para alguém considerar-se rei era ter um exército à disposição.
Inclusive, os movimentos judaicos de resistência que, de vez em quando, causavam
preocupação à casta sacerdotal e ao poder romano, proponham sempre a luta
armada, faziam recruta de militantes. E nem com esses o movimento de Jesus se
assemelhava. Na verdade, para Jesus e seus seguidores, a violência nunca pode
ser a resposta. Pelo contrário, à violência, ao ódio e à injustiça e ao mal em
geral, a resposta ensinada por Jesus é sempre o amor. Por isso, é sempre
incoerente caricaturá-lo com os sinais de realeza terrena, come ele vem
representado na maioria das imagens e pinturas que circulam em tantas igrejas.
É uma verdadeira traição ao seu projeto. Por essa razão, também é clara
contradição ao seu Evangelho propagar políticas armamentistas, por exemplo, e a
disseminação de discursos de ódio e intolerância. Ao invés do uso da força,
Jesus propõe a construção do seu Reino pelo amor, o único meio de humanizar o mundo.
Ao dizer que
tem um reino, mesmo não sendo deste mundo, Jesus despertou ainda mais a
curiosidade de Pilatos, que lhe perguntou novamente: «Então tu és
rei?» (v. 37a). A
insistência com a mesma pergunta revela a insegurança e o medo de um possível
concorrente, o que faz parte da lógica dos reinos deste mundo, compostos por
oprimidos e opressores, privilegiados e não privilegiados. A concorrência é a
negação da fraternidade e da igualdade. Quem vê o outro como concorrente deixa
de vê-lo como irmão, como igual. À nova indagação de Pilatos, finalmente, Jesus
confirma que é rei, mas faz questão de reforçar a incompatibilidade entre o seu
reino e aquele que Pilatos representava: «Jesus
respondeu: “Tu o dizes: eu sou rei. Eu nasci e vim ao mundo para isto: para dar
testemunho da verdade. Todo aquele que é da verdade escuta a minha voz”» (v. 37).
Pilatos perguntou, no início, se Jesus era rei dos judeus; a essa pergunta
Jesus se negou a responder. Quando responde ser rei, não se diz de um povo
específico, o que mostra o alcance universal de sua mensagem. Trata-se de um
detalhe importante, pois Jesus não veio ao mundo com uma missão restrita e
destinada a um povo específico, mas trouxe um projeto de reino universal,
inclusivo, alicerçado na verdade.
A verdade (em
grego: ἀληθείᾳ = alethéia) é uma palavra-chave para a construção da missão e da identidade
de Jesus no Evangelho de João. Já no prólogo, no versículo principal daquele
poema, quando o evangelista afirma que “a Palavra se fez carne, como Unigênito
do Pai”, ele diz que esse Unigênito – Jesus – veio “cheio de verdade” (Jo
1,14); também no prólogo, ainda, o evangelista contrapõe a graça à lei, dizendo que
junto com a graça, veio a verdade ao mundo, por meio de Jesus Cristo (Jo 1,17).
Na ceia, ao responder a uma pergunta de Tomé, Jesus se revelou como “o caminho,
a verdade e a vida” (Jo 14,6). Finalmente, no processo, diante de Pilatos,
Jesus reafirma a sua relação com a verdade e sua missão de testemunhá-la. E foi
uma missão irrenunciável, a ponto de custar-lhe a vida. A verdade é um atributo
de Jesus e ao mesmo tempo a sua meta e missão, como deve ser de seu
discipulado. Não se trata de uma doutrina para ser preservada e anunciada, mas
de uma realidade a ser vivida e testemunhada, o que só é possível em estreita
comunhão de vida com ele. Ora, a verdade é, junto à felicidade, a mais alta
aspiração do ser humano. E, como Jesus é a verdade, significa é a comunhão com
ele que torna o ser humano plenamente realizado, ou seja, verdadeiramente
humanizado. E a comunhão se dá à medida em que se dá adesão à sua proposta de
vida em abundância, de mundo novo. É essa comunhão que faz nascer o verdadeiro
reino por Jesus anunciado.
Que neste
domingo em que a Igreja no Brasil celebra também o Dia Nacional do Laicato –
dia de todas as leigas e leigos –, despertemos para uma autêntica busca da
Verdade, a começar pela ressignificação da imagem de realeza que se tem de
Jesus. É preciso recuperar a imagem da Testemunha da Verdade, que caminha lado
a lado com os pequeninos, diferente do imaginário soberano. O despertar para o
“caminhar juntos”, meta de uma Igreja que vive a sinodalidade, precisa sentir a
presença de Jesus na caminhada, muito mais do que nos tronos.
Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues
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