A liturgia deste sétimo domingo do tempo comum continua
a leitura do “discurso da montanha” de Mateus, iniciada há três domingos. O
trecho lido neste dia – Mt 5,38-48 – é a conclusão da sequência dos seis casos
específicos da Lei que Jesus usa para demonstrar que veio ao mundo para dar
plenitude à Lei e aos Profetas, ao invés de abolir (cf. Mt 5,17), como foram
acusados tanto ele quanto os cristãos da comunidade de Mateus, posteriormente.
Destes seis casos, equivocadamente chamados de antíteses por alguns
comentadores, quatro foram lidos no domingo passado, ficando para hoje a
leitura dos dois últimos. É importante recordar que a leitura de qualquer
trecho do “discurso da montanha” deve considerar sempre a sua parte
introdutória, correspondente às “bem-aventuranças” (Mt 5,1-12), o programa de
vida de Jesus, pois tudo o que é proposto ao longo do discurso deriva desse
programa ou são exigências para a sua implantação.
Ainda a nível de introdução e contexto, também é
importante recordar que a interpretação que Jesus apresenta dos seis casos
concretos da Lei é uma demonstração de como os seus discípulos devem superar os
fariseus e os mestres da Lei na prática da justiça (cf. Mt 5,20), inclusive,
como condição para entrarem no Reino dos Céus. Por Reino dos Céus, Mateus
compreende a sociedade alternativa que Jesus veio propor à humanidade, cujas
relações devem ser motivadas somente pelo amor, resultando num mundo fraterno,
justo, solidário e igual. Esse Reino é dos céus, porque sua origem é o amor de
Deus, mas é destinado à terra, como superação dos sistemas de poder injustos
até então experimentados. Os mestres da Lei e os fariseus eram irrepreensíveis
na observância da Lei em seus mínimos detalhes, mas não estavam aptos ao Reino
anunciado por Jesus, pois não é esse tipo de justiça que Jesus quer dos seus
seguidores.
Em todos os seis casos que Jesus toma como exemplo de
como a justiça dos seus seguidores deve ser superior à dos fariseus e mestres
da Lei, está em jogo a relação com o próximo, pois é dessa que depende
essencialmente a relação do ser humano com Deus. No primeiro caso, dos dois
empregados na liturgia de hoje, Jesus toma como exemplo a chamada “Lei de
Talião”: «Vós ouvistes o que foi dito: ‘Olho por olho e dente por
dente!’» (v. 38). Embora não faça parte do decálogo, a “Lei de
Talião”, que fazia parte dos códigos legislativos de outros povos da
antiguidade, foi incorporada à legislação de Israel (cf. Ex 21,24; Lv 24,20; Dt
19,21; 25,11-12). A princípio, parece tratar-se de algo absurdo, pois é praticamente
uma regulamentação da vingança; é uma recomendação a que se pague com a mesma
moeda. No entanto, essa lei foi muito importante na antiguidade, pois as
vinganças eram excessivas, sobretudo nas sociedades mais arcaicas, terminando
sempre em morte. Inclusive, a própria Bíblia mostra alguns casos assim, como o
de Lamec, um dos descendentes de Caim, o qual se vangloria de, ao vingar-se,
ter matado um homem por causa de uma ferida e uma criança por causa de um
arranhão (cf. Gn 4,23). Diante disso, a Lei de Talião propõe um equilíbrio,
determinando a proporção entre o dano causado e a pena. Inclusive, o termo
“Talião” é uma derivação da palavra latina “talis”, que significa tal, idêntico
ou tal e qual. A expressão “olho por olho e dente por dente”, portanto,
significa que se alguém fosse ferido num olho, ao vingar-se, não poderia ferir
mais do que o olho daquele lhe tinha ferido primeiro; o mesmo valia para os
demais membros do corpo e os bens materiais em geral. Por mais que pareça
absurda, essa lei serviu para evitar muitas catástrofes na antiguidade,
coibindo as vinganças excessivas. Por isso, acabou sendo incorporada em Israel,
na Lei de Moisés.
Ao ressignificar toda a Lei, levando-a à plenitude e
colocando-a totalmente a serviço do bem do ser humano, Jesus cancela esse
preceito específico com uma proposta inovadora e revolucionária, propondo que
se quebre o círculo da violência: «Eu, porém, vos digo: Não enfrenteis
quem é malvado! Pelo contrário, se alguém te dá um tapa na face direita,
oferece-lhe também a esquerda!» (v. 39). Ao mal, não se responde com o
mal em nenhuma circunstância; em linhas gerais, é isso que significa essa
afirmação. Jesus está propondo o fim da corrente da violência, mostrando que o
mal só pode ser combatido e vencido pelo bem. A violência sempre gera mais
violência; por isso, ela é inaceitável na comunidade cristã. A primeira parte
do versículo não está bem traduzida; o mais correto seria «não
enfrenteis violentamente o malvado». A forma como está traduzido passa a
ideia de uma passividade da comunidade cristã diante do mal e da violência. É
claro que o mal deve ser enfrentado e combatido, e é responsabilidade dos
cristãos fazerem isso; porém, não com os mesmos métodos e meios do sistema
opressor. A segunda parte do versículo indica como isso deve ser feito:
propondo alternativas de paz que, de certo modo, desestabilizam o sistema
opressor, ou seja, aquele que comete violência, seja individual ou todo o
sistema. Oferecer a outra face é sinal de que não foi intimidado pela violência
recebida, é uma forma sutil de denúncia, o que vem reforçado com mais três
exemplos citados (vv. 40-42). Mais uma vez, está claro que não é um convite à
aceitação passiva do mal e da violência, mas uma alternativa que leva o próprio
praticante do mal a reconhecer a ineficácia de suas práticas, sentindo-se ele
mesmo humilhado. Predominavam duas formas de responder ao mal e à violência:
aceitar passivamente o mal sofrido ou reagir violentamente; Jesus propõe uma
terceira via, a única capaz de fazer o opressor reconhecer a ineficácia e a
covardia de suas práticas. É claro que não se trata de aceitar
passivamente a injustiça, mas sim de combatê-la a ponto de desarmar os
injustos.
No último dos seis exemplos que Jesus mostra como os
seus discípulos devem superar os mestres da Lei e os fariseus na prática da
justiça, ele fala diretamente do mandamento do amor, embora esse já estivesse
presente nos casos anteriores, pelo menos implicitamente. Eis a afirmação de
Jesus: «Vós ouvistes o que foi dito: ‘Amarás o teu próximo e odiarás o
teu inimigo!’» (v. 43). A base desta afirmação é o mandamento de Lv
19,18, o qual afirma: «amarás o teu próximo como a ti mesmo». De
acordo com o evangelista, Jesus omite o “como a ti mesmo”, porque propõe o amor
de Deus como parâmetro (v. 45), e não o amor das pessoas. A respeito do ódio
aos inimigos, não havia nenhuma prescrição na Lei que recomendasse isso; porém,
o evangelista não está inventando nada. As tradições orais de interpretação da
Lei tinham valor semelhante ao das leis escritas em Israel. Porém, o mandamento
escrito exigia somente o amor ao próximo, e era considerado o próximo em Israel
somente o irmão, membro do mesmo clã, e o compatriota, membro da mesma tribo e
do próprio país; daí, alguns rabinos mais radicais passaram a interpretar que
quem não fizesse parte deste círculo de relação e pertença poderia ser odiado e
tratado como inimigo. Em muitos ambientes essa interpretação foi recebida como
vontade de Deus e componente da Lei; talvez até fosse ensinado nas sinagogas de
onde a comunidade de Mateus estava inserida. Rompendo definitivamente com o
judaísmo, os cristãos já não eram mais considerados membros do povo eleito, mas
tratados como pagãos, pelas correntes mais radicais do judaísmo, sendo, por
isso, odiados.
A advertência de Jesus é alerta para que os cristãos
não façam a mesma coisa: «Eu, porém, vos digo: ‘Amai os vossos inimigos
e rezai por aqueles que vos perseguem!’» (v. 44). A resposta cristã ao
ódio é o amor e a oração. E essa se constitui como um dos principais
diferenciais da mensagem cristã em relação a qualquer outra experiência de vida
religiosa e social. O amor e a oração pelos inimigos vai muito além do rejeitar
a violência ou ignorar aqueles que atacam e perseguem. Significa amá-los,
apesar de tudo. O amor em si já é um modo de resistência ao mal, é uma denúncia
à violência. E é o amor livre, ilimitado e incondicional, que tem como parâmetro o
amor do próprio Deus, que deve caracterizar os seguidores de Jesus, dando-lhes
a dignidade de filhos de Deus: «Assim, vos tornareis filhos do vosso
Pai que está nos céus, porque ele faz nascer o sol sobre maus e bons, e faz
cair a chuva sobre justos e injustos» (v. 45). De acordo com a
mentalidade semítica, o filho é aquele que se assemelha ao pai, sobretudo no
comportamento e no caráter. É preciso, portanto, sair do horizonte limitado da
Lei, pois ela foi dada a um povo, exclusivamente, e recuperar a lógica da criação,
que é universal. Justos e injustos ou maus e bons, aqui, significa a totalidade
da humanidade e da criação, e quer dizer que tudo pertence a Deus. No entanto, é
necessário ir além da simples pertença: é preciso tornar-se filho ou filha. E,
para Jesus, o critério da filiação já não é a pertença a uma religião ou etnia,
mas a disposição de amar.
Para reforçar a importância do amor ilimitado,
incondicional e universal, são citadas duas novas categorias de pessoas: os
cobradores de impostos (v. 46) e os pagãos (v. 47), as duas categorias mais
desprezíveis pelos judeus. Recordar isso é importante, bem como recordar as
duas categorias de pessoas citadas no início da sequência: os mestres da Lei e
os fariseus (v. 20). Nem a maneira de interpretar a Lei dos fariseus e escribas
é ideal, e nem o modo de viver dos pagãos e cobradores de impostos. Fechar-se
aos limites do próprio grupo social ou religioso é imitar esses. Diante das
perseguições, os cristãos corriam esse risco. Por isso, o evangelista insiste
para que isso seja evitado. Diante disso, o evangelista Mateus procura abrir os
horizontes da sua comunidade, para que os cristãos não desanimem e não desistam
de viver o ideal proposto por Jesus, e imprimam no mundo um modelo de vida novo
e original. Daí, o convite conclusivo: «Portanto, sede perfeitos como o
vosso Pai celeste é perfeito!» (v. 48). Aqui, vem atualizado o
mandamento de Lv 19,2: «Sede santos, como eu, o vosso Deus, sou santo».
Ora, como santo significa “separado”, Israel usou esse mandamento para
justificar o seu exclusivismo e fechamento diante dos outros povos. O Evangelho
corrige: em Lucas o «ser santo» é substituído por «ser
misericordioso» (cf. Lc 6,36), e aqui em Mateus por «ser
perfeito». Cada evangelista adaptou conforme a sua própria teologia e as
necessidades das suas respectivas comunidades. Aqui em Mateus, o adjetivo
perfeito (em grego: τέλειος – téleios) significa pleno, completo,
incluindo a sintonia com a vontade de Deus. Como a principal característica de
Deus, o Pai celeste, é o amor ilimitado e incondicional, dirigido aos bons e
aos maus, esse é o grau de perfeição que os cristãos devem alcançar. O amor
parcial, dirigido aos que fazem parte do mesmo círculo de convivência e que
compartilham de um mesmo ideal torna a comunidade semelhante aos fariseus e
mestres da Lei ou aos cobradores de impostos e pagãos. É preciso, portanto,
assimilar o amor indistinto e incondicional, ensinado por Jesus, para
assemelhar-se ao Pai, ou seja, tornar-se filhos e filhas dele.
Como se vê, Jesus propõe um novo estilo de vida, com uma
verdadeira revolução de valores. Ao propor o pleno cumprimento da Lei, o que
ele quer mesmo é que todas as pessoas se sintam filhas de Deus e irmãs umas das
outras. E a responsabilidade de iniciar essa transformação começa pelos seus discípulos e discípulas. A interpretação convencional da Lei visava uma relação servil com Deus,
enquanto Jesus propõe uma relação filial. Por consequência, a relação entre os
filhos e filhas deve ser fraterna, com as relações orientadas pelo amor e suas
principais derivações: justiça e solidariedade. Isso é o resultado da vivência
das bem-aventuranças, cujo resultado é a realização do Reino de Deus.
Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de
Mossoró-RN
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