Na
liturgia deste quarto domingo da Quaresma, continuamos a sequência da leitura
de textos do Quarto Evangelho, iniciada no domingo passado com o episódio do
encontro de Jesus com a mulher samaritana. Para hoje, é proposta a leitura do
relato da cura do cego de nascença (Jo 9,1-41), um episódio exclusivo do
Evangelho segundo João, e detentor de uma grande riqueza literária e teológica.
Convém recordar que os evangelhos sinóticos também trazem relatos de cura de
cegos (Mt 12,22-23; Mc 8,22-26; 10,46-52; Lc 18,35-43), mas em nenhum deles há
uma riqueza de detalhes tão grande como este de João. Pela extensão do texto,
quarenta e um versículos, não comentaremos versículo por versículo, mas
procuraremos colher a mensagem central e enfatizar alguns aspectos e trechos
mais importantes.
Antes
de adentrarmos diretamente no conteúdo do texto, é importante fazer uma breve
contextualização. O cenário do relato é a cidade de Jerusalém. Ora, Jesus tinha
ido à “cidade santa” para a festa das tendas (Jo 7,1-2.14), uma das três
grandes festas de peregrinação dos judeus, juntamente com a Páscoa e Pentecostes;
foi com receio, certamente, uma vez que já estava “jurado de morte” (cf. Jo
7,1) pelas autoridades judaicas, devido à fama que se tinha propagado em
decorrências de sua mensagem e, principalmente, por causa dos sinais que estava
cumprindo. Por falar em sinais, a cura do cego de nascença, relatada no
evangelho de hoje, é o sexto dos sete sinais que Jesus realiza no Quarto
Evangelho, a saber: 1) a mudança da água em vinho – Jo 2,1-12; 2) a cura do
funcionário real – Jo 4,46-54; 3) a cura do enfermo (paralítico) de Betesda –
Jo 5,1-18; 4) a multiplicação dos pães – Jo 6,1-15; 5) a caminhada sobre o mar
– Jo 6,16-21; 6) a cura do cego de nascença – Jo 9,1-41; 7) a ressurreição de
Lázaro (reanimação) – Jo 11,1-44.
Ao
realizar os sinais, Jesus manifestava a glória de Deus, ganhava adesão ao seu
projeto e confirmava ser o Cristo, o Filho de Deus (cf. Jo 2,1; 21,30-31). Com
isso, o poder religioso o via cada vez mais como uma ameaça e, por isso, queria
eliminá-lo. Os sinais de Jesus mostravam que Deus não se deixava manipular pela
instituição religiosa. As autoridades religiosas viam desmoronar seus poderes e
privilégios; queriam eliminar Jesus porque ele era uma pessoa perigosa para o
sistema. Durante a festa das tendas, Ele tinha passado dos limites ao se
autoproclamar a “luz do mundo” (cf. Jo 8,12) e o “Filho eterno do Pai” (cf.
8,54-58). Por essa sua ousadia, as autoridades religiosas o consideraram “um
samaritano e endemoniado” (cf. Jo 8,48) e, por isso, queriam apedrejá-lo. É,
portanto, recordando o último versículo do capítulo anterior que devemos ler o
texto de hoje: «Eles pegaram, então, pedras para atirar em Jesus. Mas
Jesus se escondeu e saiu do templo» (Jo 8,59).
Uma
vez contextualizados, voltemos a atenção para o texto de hoje, o qual começa
assim: «Ao passar, Jesus viu um homem cego de nascença» (v.
1). Mesmo apressado, pois estava fugindo da tentativa de apedrejamento, Jesus
vê a necessidade do outro e age com solidariedade e compaixão. Ele não fica
indiferente a nenhuma situação em que uma pessoa humana não esteja vivendo com
dignidade. Sua missão humanizante tinha primazia sobre tudo. Para a mentalidade
da época, todo o tipo de doença e deficiência era sinal de maldição e castigo,
pois tudo isso era considerado consequência do pecado, ou da pessoa mesmo ou
dos antepassados. Acreditava-se também que uma criança pudesse pecar ainda no
ventre materno. Inclusive, os próprios discípulos de Jesus comungavam dessa
mentalidade: «Os discípulos perguntaram a Jesus: ‘Mestre, quem pecou
para que nascesse cego: ele ou os seus pais?’» (v. 2). A cegueira se
destacava entre todas as deficiências, pois impedia que a pessoa pudesse
estudar e conhecer a Lei. Teologicamente, a cegueira era pior até do que a
lepra. Ora, o leproso devia isolar-se completamente da sociedade, mas devido às
aparências e a exposição das feridas; porém, um leproso poderia ter conhecido a
Lei antes de contrair a lepra; já um cego de nascença, não. Como o homem visto
por Jesus era cego de nascença, significa que ele nunca tinha tido contado com
a Lei, portanto, era um condenado; não vivia, mas apenas vegetava, mesmo não
sendo necessário o isolamento do convívio social, por não ter feridas expostas,
como os leprosos.
É
claro que Jesus não concordava com a mentalidade vigente. Por isso, corrige
seus discípulos e expressa a sua pressa em sanar a situação de marginalização
vivida pelo homem cego (vv. 3-4). A cegueira não é vontade de Deus e nem
punição a possíveis pecados cometidos. Também não é condição para que a glória
de Deus se manifeste, como poderia ser interpretada sua afirmação no v. 3. No
entanto, onde a vida é escassa, quer dizer, onde a criação não encontrou sua
plenitude, há espaço para que a glória de Deus se manifeste sanando a
deficiência. Para isso, é necessário que toda a comunidade participe, juntando
forças. Por isso, Jesus compartilha com os discípulos a sua responsabilidade de
trabalhar para realizar as obras do Pai que o enviou (v. 4), aprimorando a
criação. E isso deve ser feito com urgência, ou seja, «enquanto é dia» (v.
4). Considerando que seus dias estavam praticamente contados, depois de tantas
ameaças, já não havia mais tempo a perder. A «chegada da noite» (v.
4) significa a sua morte que se tornava cada vez mais próxima. Quando está em
questão a liberdade e a dignidade do ser humano, os discípulos de Jesus devem
agir com pressa, como Ele mesmo agia, mesmo tendo de contrariar códigos e
regras morais, sejam civis ou religiosos.
Destaca-se
neste episódio, especialmente, a bondade e a compaixão de Jesus: o cego não
pede nada, não lhe faz nenhuma súplica, ao contrário de outras curas em que as
pessoas necessitadas lhe suplicam a cura. Para João, o olhar de Jesus já é
suficiente para perceber a necessidade do outro, sentir compaixão e intervir,
como faz aqui: «Jesus cuspiu no chão, fez lama com a saliva e colocou-a
sobre os olhos do cego, e disse-lhe: ‘Vai lavar-te na piscina de Siloé’ (que
quer dizer: enviado). O cego foi, lavou-se e voltou enxergando» (vv.
6-7). O gesto de cuspir no chão e fazer lama com a saliva é carregado de um
forte simbolismo: o barro alude à criação, é a matéria-prima do ser humano,
conforme a mentalidade bíblica. De acordo com essa mesma mentalidade, a saliva
é gerada pelo hálito, e esse é o sopro, o espírito. Com isso, o evangelista
quer dizer que Jesus repete o gesto criador de Deus (cf. Gn 2,7), ou seja,
aperfeiçoa a criação do Pai. O homem que até então vegetava, passou a viver de
verdade a partir do encontro com Jesus que lhe deu vida. A ordem para o homem
lavar-se na piscina de Siloé significa a participação e a responsabilidade
humana na criação e na salvação. Deus não quer o ser humano passivo, mas
participante ativo de sua obra. Como «luz do mundo» (v. 5),
Jesus aponta o caminho e quem o segue encontra a luz, como o cego «voltou
enxergando» da piscina ao cumprir a sua ordem. Quem segue a palavra de
Jesus encontra luz e sentido para a vida. Ao ir à piscina, conforme a ordem de
Jesus, o cego demonstrou adesão ao Evangelho; por isso, passou a enxergar. O
relato poderia ser encerrado aqui, mas o evangelista pretende muito mais.
Entre
aqueles que conheciam o cego, o espanto é geral: ao invés de um homem miserável
e considerado amaldiçoado, eles passam a ver um homem novo, restaurado e
íntegro (vv. 8-12). A admiração começa entre os vizinhos, passa pelos que o
viam mendigando, até chegar nos fariseus e autoridades religiosas. O motivo de
tamanho espanto é compreensível, considerando a afirmação do próprio homem ao
defender-se das acusações: «Jamais se ouviu dizer que alguém tenha
aberto os olhos a um cego de nascença» (v. 32). De fato, em toda a
Bíblia, não há registro de nenhum outro milagre de um cego de nascença. Há
curas de cegos, sim, mas não com essa indicação. Os fariseus, como representantes
do sistema de dominação, reagem com rigor e até com violência, porque vêem que
a luz de Deus, que eles e todo o sistema ofuscavam, brilha em Jesus e em quem
cumpre a sua palavra. A face de Deus, que a religião tinha ofuscado e
transformado em mercadoria, é restituída gratuitamente ao povo por Jesus. Por
isso, inconformados, os líderes religiosos judeus submetem o homem curado a um
longo interrogatório, sem aceitar nenhuma das respostas. E, tudo isso, por
causa da rejeição a Jesus e o medo que o seu projeto libertador representava
para as elites.
O
fato de Jesus ter curado em dia de sábado já era, por si só, motivo de
escândalo, ainda mais da forma como fez: «era sábado, o dia em que
Jesus tinha feito lama e aberto os olhos do cego» (v. 14). Ao tocar na
terra para fazer lama, Jesus realizou um trabalho braçal em dia de sábado, um
pecado abominável para os judeus. Esse foi o principal motivo do cerco contra o
homem e contra o próprio Jesus. Os judeus consideravam o mandamento do sábado
como o maior de todos, pois é o único que até mesmo Deus observou (cf. Ex
20,110); era assim que eles ensinavam sobre a sacralidade do sábado. Com isso,
eles passaram a ter ainda mais motivos para rejeitar Jesus e o seu programa. É
importante recordar que João usa o termo “judeus” referindo-se às autoridades
religiosas, e não a todo o povo. Neste episódio ele varia entre judeus e
fariseus (vv. 13; 15; 16; 18; 22; 24; 34; 40), mas sempre em referência às
lideranças, e não a todo o povo.
O
ex-cego é literalmente encurralado pelos líderes religiosos porque deixou de
ser um dominado; tornou-se um sujeito autônomo, um homem livre. A situação
chega ao ponto de ser necessário o depoimento dos seus pais (vv. 18-23). Com
medo da repressão, os pais passam a responsabilidade para o filho: é ele quem
tem que responder por seus atos (v. 21). Reconhecendo-se incapazes de convencer
com argumentos e testemunho, os chefes judeus apelam para a violência, como
acontece com todos os sistemas opressores. Por isso, «expulsaram-no da
comunidade» (v. 34b), ou seja, o baniram da sinagoga. É a religião
agindo com tirania, banindo a vida, ao invés de protegê-la. É claro que não
havia espaço para Jesus e seu projeto libertador numa religião como aquela. Na
verdade, esse conflito reflete o ambiente das comunidades joaninas, e não
propriamente o tempo de Jesus. Escrito no final dos anos 90 d.C., o Evangelho
segundo João testemunha a separação das comunidades cristãs da sinagoga. Os
cristãos foram, de fato, expulsos da sinagoga ao declararem Jesus como o
Messias (v. 22). E esse episódio foi a melhor oportunidade que João encontrou
para retratar essa realidade, uma vez que «dar vista aos cegos» era
um dos principais sinais messiânicos anunciados pelos profetas (cf. Is 29,18;
42,7).
Jesus
se manifesta novamente, ao saber que o homem tinha sido expulso da comunidade
sinagogal e vem ao seu encontro (v. 35). Embora a versão litúrgica afirme que
Jesus «encontrou» o homem, a tradução correta seria «foi
encontrá-lo» (v. 35), o que significa que Jesus foi procurá-lo, saiu
em busca do homem. Como sempre, Jesus resgata o que a religião descartou. A
religião exclui e Jesus inclui; os sistemas dominantes separam e Jesus junta; a
religião do templo oprime e Jesus liberta, humaniza. No final da discussão,
Jesus mostra a grande inversão de valores e de papéis: os verdadeiros cegos são
os fundamentalistas que, apegados à Lei e aos mais diversos códigos de conduta,
sufocam a vida do ser humano, privando-o da liberdade e da dignidade. Para esse
tipo de cegueira, não há justificativa (v. 41).
Assim
como João escreveu pensando na sua comunidade, também devemos pensar nas
comunidades de atualmente: se essas não promovem a vida e a liberdade do ser
humano, estão distantes da proposta de Jesus. Se prevalece a norma sobre a caridade,
o Evangelho é esquecido. Se o conhecimento continua concentrado em um pequeno
grupo que controla tudo, está mais para a sinagoga do que para a comunidade
cristã. Se há imposição de ideias, decisões e normas, continua-se a gerar
cegos, ao invés de pessoas conscientes e iluminadas.
Pe.
Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
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