Todos os anos, a liturgia do segundo domingo da Quaresma
utiliza um dos relatos do episódio chamado, tradicionalmente, de
“Transfiguração do Senhor”. Esse é um episódio narrado pelos três evangelhos
sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas), o que possibilita à liturgia oferecer um
texto para cada ano, conforme o ciclo litúrgico (A, B e C), sem necessariamente
repetir, uma vez que, mesmo se tratando do mesmo episódio, cada evangelista o
narra à sua maneira, conforme as suas intenções teológicas, suas habilidades literárias
e, sobretudo, respondendo às necessidades de suas respectivas comunidades. Isso
faz com que os três relatos apresentem diferenças, apesar de serem muito
parecidos. Por ocasião do ciclo litúrgico A, o texto proposto para este ano é o
relato de Mateus: 17,1-9. É um texto muito rico em teologia e simbologia, o que
torna indispensável uma breve contextualização, para uma compreensão mais
adequada.
A nível de contexto, é importante recordar a
localização do texto na estrutura do evangelho. Esse episódio é precedido por
três importantes momentos interligados: a confissão de fé de Pedro (Mt
16,13-20); o primeiro anúncio da paixão (Mt 16,21-23) e a declaração das
exigências para o discipulado (Mt 16,24-28). Se trata de uma sequência
narrativa reveladora da messianidade e do destino de Jesus, cuja conclusão é
exatamente o episódio da transfiguração. Ora, com o primeiro anúncio da paixão,
Jesus deixou os discípulos assustados, pois a concepção de messias que eles
tinham em mente não era compatível com o sofrimento e a cruz, como Jesus havia
predito (Mt 17,21). Os discípulos esperavam um messias glorioso, valente e
guerreiro, conforme as expectativas da época, fruto da ideologia nacionalista
davídica, enquanto Jesus anunciou a doação da vida, comportando sofrimento e cruz,
se necessário, para alcançar a glória e a vida em plenitude. Inclusive, impôs a
disposição para carregar a cruz e doar a própria vida como condição para fazer
parte do seu discipulado. A transfiguração é, portanto, a resposta de Jesus à
incompreensão dos discípulos acerca da sua identidade, e uma demonstração de
que cruz e glória fazem parte de um mesmo caminho: o destino do ser humano é a
glória, mas essa passa pela cruz.
Uma vez contextualizados, vamos olhar para o texto,
começando pelo primeiro versículo: «Naquele tempo, Jesus tomou consigo
Pedro, Tiago e João, seu irmão, e os levou a um lugar à parte, sobre uma alta
montanha» (v. 1). Aqui, a versão litúrgica omitiu um indicativo
temporal importante, substituindo-o pela genérica expressão “naquele tempo”. O
texto original começa com a indicação cronológica “seis dias depois”, como
sinal de relação e continuidade com o último episódio narrado: o primeiro
anúncio da paixão e a contestação de Pedro, com as exigências para o
discipulado (cf. Mt 16,21-28). Ora, Pedro professou sua fé em Jesus como
Messias, mas ao mesmo tempo não aceitou o caminho doloroso da cruz, fazendo
Jesus repreendê-lo duramente, chamando-o de satanás, por tornar-se um empecilho
à realização do projeto de Deus. Portanto, “Seis dias depois” de ter anunciado
a sua morte, Jesus mostra aos discípulos a vida em plenitude; o sexto dia foi o
dia da criação do homem e da mulher (Gn 1,26-31), e é nesse dia que Jesus
manifesta o ser humano em sua máxima dignidade e realização. Logo, ele é o
modelo de humanidade.
Jesus tomou consigo três discípulos: Pedro, Tiago e
João. A
escolha desses três discípulos não significa privilégio, como às vezes se diz,
mas necessidade. Eles não eram os melhores, mas sim os três mais difíceis de
lidar e os que mais tinham dificuldade de assimilar os ensinamentos de Jesus
enquanto Messias sofredor. Pedro é sinônimo de dureza e fechamento; é o
discípulo que Jesus mais repreende durante todo o seu itinerário. Como ele
sempre se antecipa, sendo o primeiro a responder às perguntas de Jesus, é
aquele que mais se expõe e, por isso, é o primeiro a ser corrigido. João e
Tiago, conhecidos como “filhos do trovão” (Mc 3,17), eram os mais fanáticos,
ambiciosos (Mc 10,35-45; Mt 20,20-28), de temperamento difícil, eram também os
mais intolerantes. Pouco tempo após este episódio da transfiguração, Jesus
repreenderá João por proibir a um homem que não fazia parte do grupo de pregar
e expulsar demônios em seu nome (Mc 9,38-39). Os dois, João e Tiago, também foram
repreendidos quando quiseram tocar fogo nos samaritanos que os rejeitaram (Lc
9,51-55). Portanto, Jesus os chama para estarem mais perto de si pela
necessidade de cada um e por não desistir do ser humano, apesar das fraquezas e
debilidades. Eles necessitavam estar mais próximos a Jesus e aprender mais com
ele, como de fato estarão. Na Paixão, esses três – Pedro, João e Tiago – serão
as testemunhas de Jesus durante a agonia no Getsêmani (Mt 26,36-37). Isso
significa que eles mudaram com o tempo, não se tornando perfeitos, mas
aprendendo a cada dia com Jesus, à medida em que conviviam com ele e ouviam
seus ensinamentos.
Na tradição
hebraica, a montanha é, por excelência, o lugar do encontro do ser humano com
Deus. Tanto em Israel quanto nas culturas circunvizinhas, imaginava-se que para
comunicar-se com a divindade, o ser humano precisava escalar um monte. Assim, a
montanha funcionava como um espaço intermediário e necessário: o ser humano era
incapaz de subir aos céus, e Deus grande demais para descer até a terra; daí a
necessidade de um lugar intermediário para os dois se comunicarem. Por isso, a
montanha tornou-se o lugar da revelação no Antigo Testamento (Ex 19,16; 24,15).
Embora a tradição tenha identificado essa montanha com o monte Tabor, esse dado
não possui fundamento nos evangelhos. Essa denominação começou com Cirilo de
Jerusalém e foi consolidada por São Jerônimo, mas hoje é considerada sem
fundamento. É preferível mantê-la anônima, como fizeram os evangelistas, porque
não se trata de um dado geográfico, mas teológico; toda ocasião de encontro e
intimidade com Deus é uma subida à montanha.
E é justamente no Evangelho de Mateus que a montanha
tem mais relevância no Novo Testamento, sendo o lugar onde ele diz que Jesus
viveu momentos importantes do seu ministério: proclamou as bem-aventuranças
(5,1), multiplicou os pães (15,29), e como Ressuscitado, aparecerá aos
discípulos pela primeira vez (28,16). O texto de hoje diz que, no alto da
montanha, Jesus «foi transfigurado diante deles; o seu rosto brilhou
como o sol e as suas roupas ficaram brancas como a luz» (v. 2). quer dizer que
passou por uma transformação no seu aspecto, uma metamorfose. É esse o
significado do verbo empregado pelo evangelista (em grego: μεταμορφόομαι –
metamorfóomai). Diante da incredulidade e resistência dos discípulos em aceitar
a morte, Jesus antecipa para eles o resultado da paixão: a manifestação
gloriosa do Filho do Homem e, portanto, de Deus nele. Não apenas o rosto
brilhou, mas todo o seu ser, inclusive suas vestes. As mesmas imagens e cores
da glória de Deus ao longo da história são reveladas em Jesus; a luz é também
sinal do que é novo: à medida em que o Reino de Deus vai sendo implantado, o
universo todo se renova.
Os personagens do Antigo Testamento mais venerados na
tradição judaica entram em cena: «Nisto, apareceram-lhe Moisés e Elias,
conversando com Jesus» (v. 3). Estes personagens representam a Lei e
os Profetas, obviamente. Temos, com isso, mais uma iniciativa de Deus para
conscientizar os discípulos de que o ensinamento de Jesus está em consonância
com tudo o que a Lei e os Profetas tinham afirmado a respeito do Messias.
Embora o programa de Jesus seja repleto de novidades, não contradiz as
Escrituras; é o seu pleno cumprimento. Os discípulos contemplam, mas somente
Jesus conversa com Moisés e Elias. Esse é mais um dado de grande importância
revelado pelo texto. Ora, a comunidade cristã, representada no episódio pelos
três discípulos, não depende mais do Antigo Testamento; em Jesus, a Lei e os
profetas encerram-se, chegam ao fim enquanto cumprimento e plenitude. Jesus é o
critério de interpretação da Escritura: o Antigo Testamento só tem sentido se
passar por Ele. Por isso, Moisés e Elias nada tem a dizer para a comunidade
cristã senão através de Jesus. Moisés e Elias entregam a Jesus a revelação
parcial que tinha recebido, própria da antiga aliança, e Jesus aperfeiçoa, completa.
Por isso, é necessário passar por ele.
Pedro, ousado como sempre, tomou a palavra e, mais uma
vez, disse coisas reprováveis, apesar das boas intenções: «Então, Pedro
tomou a palavra e disse: ‘Senhor, é bom ficarmos aqui. Se queres, vou fazer
aqui três tendas: uma para ti, outra para Moisés, e outra para Elias’» (v.
4). Três elementos são reprováveis na fala de Pedro: a primeira, é a nova
tentação sugerida a Jesus através do comodismo; permanecer na montanha é
ignorar o mundo real com seus problemas e contradições, é mostrar-se
indiferente às situações desafiadoras e fechar os olhos às injustiças que
assolam o mundo. Mais uma vez, Pedro procura uma maneira de tirar a cruz
do caminho de Jesus; na primeira vez, foi Jesus quem o repreendeu, agora será o
próprio Pai, ao interrompê-lo. O segundo elemento reprovável na fala de Pedro é
o seu apego à tradição e o não reconhecimento de Jesus como o centro da
vida: «uma para ti, uma para Moisés, e outra para Elias». Jesus
ainda não ocupava o centro da vida de Pedro, mas sim Moisés. Para a tradição
hebraica, o personagem mais importante é aquele que é citado em posição
central; Pedro insiste com a antiga tradição: está seguindo Jesus, mas ainda
coloca Moisés e a Lei no centro da vida; resiste em aceitar Jesus e o seu evangelho
como centro. O terceiro elemento reprovável na fala de Pedro é o não
reconhecimento de Jesus como a verdadeira tenda. Ora, no Antigo Testamento,
sobretudo no contexto do êxodo, a tenda é a o lugar do encontro com Deus, o que
agora é a pessoa de Jesus. A ideia de fazer tendas revela incompreensão e não
aceitação de Jesus como o pleno revelador e lugar do encontro com Deus.
Diante do absurdo da fala de Pedro, o próprio Deus
intervém e interrompe: «Pedro ainda estava falando, quando uma nuvem
luminosa os cobriu com sua sombra. E da nuvem uma voz dizia: ‘Este é o meu
Filho amado, no qual eu pus todo o meu agrado. Escutai-o!’» (v. 5). A
nuvem luminosa, ao longo da tradição bíblica é também sinal da manifestação e
presença de Deus. Essa cena é, praticamente, uma repetição da cena do batismo
de Jesus: o Pai se manifesta, fala e dá testemunho do Filho. Diante das dúvidas
e falta de convicção nos discípulos sobre a identidade de Jesus, quem tem mais
propriedade para esclarecer é o seu Pai. Essa voz reitera a autoridade de
Jesus: o Pai o credencia como o único que tem autoridade para falar e ser
ouvido pela comunidade. Pedro ainda estava propenso a ouvir Moisés e Elias e o
Pai lhe corrige. Moisés e Elias já disseram o que tinham de dizer; à comunidade
cristã, só interessa o Evangelho, ou seja, o que Jesus ensina e vive.
A primeira reação dos discípulos diante das palavras
do Pai é de completa falência: «Quando ouviram isto, os discípulos
ficaram muito assustados e caíram com o rosto em terra» (v. 6). Ao
longo da Bíblia, é normal o medo e o temor dos seres humanos diante da presença
Deus. Mas nesse caso o medo tem outra causa: as implicações e consequências de
escutar. Ora, escutar Jesus significa aderir plenamente ao seu projeto de vida
e libertação, o que comporta até mesmo a doação da vida. É isso o que causa
medo nos discípulos que imaginavam seguir um messias guerreiro e glorioso.
Diante do medo dos discípulos, eis a reação de Jesus: «se aproximou,
tocou neles e disse: ‘Levantai-vos e não tenhais medo’» (v. 7). É
próprio de Jesus dar força aos caídos e encorajar os amedrontados. O gesto de
tocar é o mesmo que ele faz ao curar os enfermos, restituindo-lhes vida e saúde
(8,3.15; 9,25.29). O medo de assimilar e viver o Evangelho torna a comunidade doente,
necessitada da força de Jesus que a impele a levantar-se. Para superar o medo,
duas coisas são necessárias: escutar Jesus, como o Pai ordenou, e deixar-se
tocar por ele.
O toque de Jesus, que é a sua própria palavra, levanta
e transforma a comunidade dos discípulos: «Os discípulos ergueram os
olhos e não viram mais ninguém, a não ser somente Jesus» (v. 8). Moisés
e Elias desapareceram para que a atenção dos discípulos se voltasse somente
para Jesus, o centro da vida e da comunidade que já não precisa mais deles, mas
somente de Jesus. Já não sai mais nenhuma voz de Deus pela nuvem, porque quem
vê Jesus, vê o Pai (cf. Jo 14,9) e, portanto, quem o escuta, escuta também ao
Pai! A comunidade precisa sempre olhar em volta de si mesma e perceber que seu
único referencial é Jesus Cristo com seu evangelho. Não vendo mais ninguém como
referencial além de Jesus, a comunidade renovada é convidada a descer da
montanha e novamente encarar a realidade, continuar o caminho com seus
percalços e desafios até enfrentar o maior deles: a cruz! A ideia do comodismo
não combina com a comunidade cristã, como soou absurda para Deus a sugestão das
tendas por Pedro.
Jesus pede que não contem nada a ninguém daquilo que
experimentaram (v. 9), por respeito aos propósitos do Pai, pois deveriam
esperar a Ressurreição, e também por prudência, pois se a notícia daquela
experiência se espalhasse, novamente grandes multidões emotivas e curiosas se
aproximariam dele em busca de sinais e milagres, quando na verdade o verdadeiro
sinal estava se aproximando: a cruz e a ressurreição. Eles deveriam anunciar
Jesus, o Evangelho, mas da maneira certa, sem alimentar falsas ilusões, nem
omitir as suas verdades. E somente à luz da ressurreição é que esse anúncio se
torna eficaz e perfeito. É melhor silenciar do que anunciar de modo equivocado.
O anúncio distorcido é, sem dúvidas, consequência de uma escuta superficial.
Aqui está um dos ensinamentos mais importantes para as comunidades de todos os
tempos: a necessita da escuta de Jesus, o Filho Amado.
Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de
Mossoró-RN
Que meus ouvidos estejam sempre atentos a voz de Deus 🙏 Obrigado pela reflexão. Edson Garcez .
ResponderExcluir