sábado, março 11, 2023

REFLEXÃO PARA O 3º DOMINGO DA QUARESMA – JOÃO 4,5-42 (ANO A)



Com a liturgia de hoje, abre-se uma sequência de três domingos de leitura de textos do Evangelho de João. Para este domingo, o primeiro da série e o terceiro da Quaresma, o texto proposto é Jo 4,5-42, o relato do episódio do encontro e o diálogo de Jesus com a mulher samaritana, um episódio exclusivo do Quarto Evangelho. Trata-se de um dos textos mais ricos de todo o Novo Testamento, tanto do ponto de vista literário quanto teológico, considerado a obra-prima de João. Devido à sua extensão, não o comentaremos versículo por versículo; procuraremos colher a mensagem central, destacando apenas alguns versículos e dados particulares mais significativos. É um texto que corresponde muito bem aos propósitos da Quaresma, enquanto itinerário catequético e processo de descobrimento da identidade de Jesus para dar-lhe adesão decidida e convicta. Nesse texto, o evangelista João mostra, mais do que nunca, o quanto o encontro com Jesus humaniza e liberta as pessoas.

Como sempre, é imprescindível recordar o contexto, tanto literário quanto histórico, para chegarmos a uma compreensão mais adequada do texto. Do ponto de vista literário, convém recordar que o episódio contado no texto faz parte de uma série de acontecimentos importantes do início do ministério de Jesus no contexto do Quarto Evangelho, desde as bodas de Caná (Jo 2,1-22), passando pelo desmascaramento do templo, transformado em casa de comércio (Jo 2,13-21), até o encontro noturno com Nicodemos, um judeu ilustre e reto (Jo 3,1-30), culminando com o encontro, em plena luz do dia, com uma mulher sem reputação, como era aquela samaritana (Jo 4,1-42), que corresponde ao evangelho de hoje. Este episódio, portanto, é o coroamento de uma sequência de eventos significativos do Evangelho de João que visam revelar a identidade de Jesus enquanto Filho de Deus e Messias. Não pode passar despercebido o fato que essa série de eventos começa e termina tendo uma mulher como principal interlocutora de Jesus: a mãe, em Caná, e a samaritana, na Samaria. Em nenhum dos casos o nome da mulher é mencionado, porque em ambas as situações ela é personificação da comunidade, tanto num estágio já de maturidade na fé – a mãe, nas bodas de Caná – quanto num processo ainda de descoberta – o caso da samaritana.

A nível de contexto histórico, é importante recordar a rivalidade que havia entre judeus e samaritanos, como o próprio texto menciona: “De fato, os judeus não se dão com os samaritanos” (v. 9b). Essa rivalidade teve a sua origem com o cisma que dividiu o único reino de Israel em dois, ficando Samaria como capital do reino do Norte, e Jerusalém como capital do reino do Sul. Após o cisma, Jeroboão I, o primeiro rei de Israel do Norte, construiu vários santuários em seu reino, para competir com o culto do templo de Jerusalém, inclusive, proibindo que sua população se dirigisse a Jerusalém para participar das liturgias do grande templo. O culto praticado nestes santuários era, obviamente, considerado ilegítimo pelos judeus. Essa ilegitimidade se acentuou ainda mais após a invasão assíria em 722 a.C.. Ora, além de deportar parte da população local, a Assíria levou povos de suas outras colônias para repovoar a Samaria e todo o reino do Norte, constituindo assim um povo mestiço, plural e sincrético. Os povos estrangeiros levaram seus costumes e tradições para a Samaria, juntamente com suas diversas práticas cultuais (cf. 2Rs 17,24-28). Tudo isso levou os judeus a considerarem os samaritanos como impuros e heréticos. É, portanto, considerando este contexto que devemos ler o evangelho de hoje. E Jesus veio para superar esse abismo histórico-ideológico, quebrando as barreiras, abrindo comunicação, ao revelar o verdadeiro rosto de Deus.

O texto começa afirmando que “Jesus chegou a uma cidade da Samaria, chamada Sicar, perto do poço que Jacó tinha dado ao seu filho José” (v. 5). A recordação dos patriarcas em si, já é sinal de que se trata de um local importante para o povo de Israel. É um lugar que representativo, com significado expressivo para a fé do povo. O poço possui uma rica simbologia na Bíblia; é o lugar do encontro e da renovação das forças, símbolo de vida fecunda e transformação. E o evangelista acrescenta uma informação muito importante sobre o estado em que Jesus se encontrava, para enfatizar ainda mais a importância do poço no contexto do episódio: Jesus estava “cansado da viagem” (v. 6b). Essa é a única vez que um evangelista retrata explicitamente o cansaço de Jesus, o que João faz empregando o termo grego “kekopiakos” (κεκοπιακώς) para cansado. É um dado relevante pois expressa a humanidade de Jesus em sua dimensão mais profunda: um homem cansado e sedento, embora portador de uma água viva, que ao final do episódio será reconhecido como o salvador do mundo (v. 42). Cansado e sedento, Jesus não tem medo de pedir ajuda nem de relacionar-se com as pessoas, mesmo as sem reputação, que a sociedade da época excluía. Por isso, pede de beber a uma mulher samaritana que também se encontrava no poço (v. 7), demonstrando que não estava condicionado às barreiras impostas pela sociedade e a religião. Para os padrões da época, não era aconselhável para um homem conversar com uma mulher sozinha, ainda mais com uma mulher samaritana, personagem duplamente marginalizada: primeiro, por ser mulher, numa sociedade patriarcal; segundo, por ser samaritana, uma raça de gente desprezível, como os judeus consideravam.

A sede de Jesus indica sua mais intensa humanidade. E mais: numa terra quente, em pleno meio-dia, a sede é também sinal de fragilidade, impotência. A princípio, parece ser mais pretexto para abrir um diálogo transformador com aquela mulher, como ele mesmo revela que tinha uma água viva para dar, mas é acima de tudo uma demonstração da sua humanidade (v. 10). Com isso, o evangelista revela a harmonia entre o humano e o divino na pessoa de Jesus: o homem que sente sede e pede água é o mesmo que possui uma água viva, capaz de saciar eternamente. É um paradoxo desconcertante que o evangelista João mostra com uma habilidade brilhante. À medida em que o diálogo flui, a mulher chega a reconhecer Jesus como portador de um dom de Deus, a ponto de pedir-lhe da sua água viva: “Senhor, dá-me dessa água para que eu não tenha mais sede e nem tenha de vir até aqui para tirá-la” (v. 15). Quanto mais o diálogo se estende, mais Jesus ganha a confiança da mulher, levando-a à sinceridade, inclusive, reconhecendo a ilegitimidade de sua união com um esposo ilegítimo, o sexto marido, o que é imagem das diversas divindades com as quais a Samaria já entrou em relação (vv. 16-18). De fato, entre os cinco maridos anteriores daquela mulher e o da época do encontro com Jesus, os estudiosos identificam a idolatria da Samaria, associando os países dominantes e as divindades adoradas. Revelando sua identidade pecadora, a mulher demonstra também o desejo de conversão, embora a religião não lhe seja favorável, causando-lhe confusão acerca da verdadeira adoração; ela não sabe onde e nem como prestar o culto verdadeiro (vv. 19-20). Jesus se interessa cada vez mais pela causa da mulher samaritana, como se interessa pela causa de toda pessoa marginalizada; declara que não importa o lugar do culto, mas a qualidade (vv. 21-24).

Independentemente do lugar de culto que frequentasse, aquela mulher seria vítima de preconceitos e discriminações. Consciente disso, Jesus lhe indica o culto verdadeiro: a “adoração em espírito e verdade” (v. 24). Ao contrário do que muitas interpretações afirmam, essa adoração não significa um culto intimista, pessoal e sincero, mas sim um culto ao Pai que passe pelo Espírito Santo e pelo próprio Jesus, e culmina em obras de amor. O “Espírito”, aqui, é o dom de Deus, a água viva que Jesus possui e a destina à toda a humanidade, é o mesmo Espírito que ele, ressuscitado, soprará sobre os discípulos; a “verdade” é a sua própria pessoa enquanto plenitude da revelação, ou seja, de tudo o que o Pai tem a dizer à humanidade inteira. A adoração em Espírito e em verdade, portanto, é a relação nova que se inaugura entre Deus e a humanidade: não mais intermediada pela Lei e nem pelos sacerdotes dos templos, mas pelo Espírito Santo e Jesus. Esse culto é acessível a todas as pessoas, de todos os tempos e lugares, e terá como sinal de autenticidade as obras de amor geradas a partir dele.

Enquanto a mulher samaritana dava adesão a Jesus, por meio do diálogo fluente, os discípulos que já conviviam com ele há mais tempo continuavam presos à mentalidade antiga, certamente imposta pela religião, por isso, se admiraram com sua atitude dele falar com uma mulher (v. 27). Por sinal, o diálogo é a principal chave de leitura deste episódio e de toda mensagem e vida de Jesus. Enquanto Palavra eterna (Jo 1,1-18), ele veio ao mundo para o Pai dialogar com a humanidade de modo transparente, claro. E ele demonstrou isso com sua práxis, da qual o evangelho de hoje pode ser considerado uma síntese. Os discípulos ainda estavam condicionados aos preceitos da Lei e fechados ao Espírito. Andavam com Jesus, mas não tinham ainda sido saciados pela água viva que ele tinha a oferecer, certamente porque não tinham ainda tanta disponibilidade para dialogar, pois só conhece Jesus quem dialoga com ele. A samaritana dialogou, por isso conheceu e se transformou. Convicta de ter encontrado sentido para a sua vida no encontro com Jesus, a mulher toma uma atitude decisiva e fundamental: “deixou o seu cântaro e foi à cidade” (v. 28) para anunciar a experiência vivida. Deixar o cântaro significa abandonar a Lei para aderir ao Espírito e ao programa de vida de Jesus. É a passagem ao discipulado; de mulher rejeitada e excluída, ela se tornou discípula e anunciou, convidando os demais a fazerem a mesma experiência que ela tinha acabado de fazer, convencendo toda a cidade a buscarem o mesmo (v. 28-30). A fé autêntica e verdadeira é contagiante, inevitavelmente se espalha. É importante recordar que em momento algum Jesus a repreendeu pelos erros passados; levou-a a reconhecer quantos maridos teve, porém, sem incriminá-la; o resultado foi uma conversão autêntica, o que os discípulos pareciam ainda não ter experimentado, como dá a entender pela sutil advertência que Jesus lhes faz com uma pequena parábola da colheita (vv. 34-38). A colheita abundante é a fé dos samaritanos, a adesão dos que estavam distantes, confirmando que Jesus rompe barreiras e todos os muros de separação, religiosos e ideológicos, para quem se deixa encantar pela sua pessoa e a sua mensagem.

O desfecho da história é uma grande adesão causada, inicialmente, pelo testemunho da mulher (v. 39) e, em seguida, pela experiência pessoal que cada um fez (v. 42), culminando com o reconhecimento de Jesus como o Salvador do mundo. Os judeus esperavam um messias nacionalista, restaurador do reino de Israel; os samaritanos reconhecem Jesus como Salvador do mundo. São duas visões bem diferentes entre si, que revelam as diferenças entre quem permanece preso aos preceitos da Lei, sem coragem de abandonar o cântaro, ou seja, de mudar de vida, e quem reconhece a necessidade de beber da água viva que Jesus doa. Enquanto o cântaro da Lei aprisiona, a água viva que Jesus doa liberta e sacia. Os samaritanos, povo marginalizado e impuro para os judeus, proporcionam a primeira adesão comunitária à pessoa de Jesus: o testemunho da mulher contagiou a cidade inteira. Sentindo o peso da rejeição e marginalização impostas pela religião, os samaritanos acolheram o dom de Deus revelado por Jesus e destinado a todos e todas, especialmente aos mais rejeitados.

O encontro transformador de Jesus com a samaritana, portanto, deve ser parâmetro para nossa relação com ele e para todo processo de descoberta e crescimento na fé. A mulher samaritana progrediu na fé gradualmente. Inicialmente, Jesus era apenas um judeu viajante cansado e com sede, visto com suspeitas por ela, inclusive. Com a fluência do diálogo, ela foi transformando sua percepção sobre ele, chegando a reconhecê-lo como um profeta (v. 19), um homem de conhecimentos excepecionais (v. 29) e, finalmente, como o Messias. Ela fez a própria descoberta porque abriu diálogo e Jesus se deixa conhecer por quem dialogo com ele. Que a Quaresma nos ajude a encontrar Jesus e nos abra ao diálogo transformador, deixando-nos humanizar por ele.

Pe. Francisco Cornélio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

Um comentário:

  1. Que eu consiga ter diariamente um encontro com Jesus que me humanize e me transforme, assim como a mulher samaritana. Amém 🙌

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