Com a liturgia de
hoje, abre-se uma sequência de três domingos de leitura de textos do Evangelho
de João. Para este domingo, o primeiro da série e o terceiro da Quaresma, o
texto proposto é Jo 4,5-42, o relato do episódio do encontro e o diálogo de
Jesus com a mulher samaritana, um episódio exclusivo do Quarto Evangelho. Trata-se
de um dos textos mais ricos de todo o Novo Testamento, tanto do ponto de vista
literário quanto teológico, considerado a obra-prima de João. Devido à sua
extensão, não o comentaremos versículo por versículo; procuraremos colher a
mensagem central, destacando apenas alguns versículos e dados particulares mais
significativos. É um texto que corresponde muito bem aos propósitos da Quaresma,
enquanto itinerário catequético e processo de descobrimento da identidade de
Jesus para dar-lhe adesão decidida e convicta. Nesse texto, o evangelista João
mostra, mais do que nunca, o quanto o encontro com Jesus humaniza e liberta as
pessoas.
Como sempre, é
imprescindível recordar o contexto, tanto literário quanto histórico, para
chegarmos a uma compreensão mais adequada do texto. Do ponto de vista
literário, convém recordar que o episódio contado no texto faz parte de uma
série de acontecimentos importantes do início do ministério de Jesus no
contexto do Quarto Evangelho, desde as bodas de Caná (Jo 2,1-22), passando pelo
desmascaramento do templo, transformado em casa de comércio (Jo 2,13-21), até o
encontro noturno com Nicodemos, um judeu ilustre e reto (Jo 3,1-30), culminando
com o encontro, em plena luz do dia, com uma mulher sem reputação, como era
aquela samaritana (Jo 4,1-42), que corresponde ao evangelho de hoje. Este episódio,
portanto, é o coroamento de uma sequência de eventos significativos do
Evangelho de João que visam revelar a identidade de Jesus enquanto Filho de
Deus e Messias. Não pode passar despercebido o fato que essa série de eventos
começa e termina tendo uma mulher como principal interlocutora de Jesus: a mãe,
em Caná, e a samaritana, na Samaria. Em nenhum dos casos o nome da mulher é
mencionado, porque em ambas as situações ela é personificação da comunidade, tanto
num estágio já de maturidade na fé – a mãe, nas bodas de Caná – quanto num
processo ainda de descoberta – o caso da samaritana.
A nível de contexto
histórico, é importante recordar a rivalidade que havia entre judeus e
samaritanos, como o próprio texto menciona: “De fato, os judeus não se
dão com os samaritanos” (v. 9b). Essa rivalidade teve a sua origem com
o cisma que dividiu o único reino de Israel em dois, ficando Samaria como
capital do reino do Norte, e Jerusalém como capital do reino do Sul. Após o
cisma, Jeroboão I, o primeiro rei de Israel do Norte, construiu vários
santuários em seu reino, para competir com o culto do templo de Jerusalém,
inclusive, proibindo que sua população se dirigisse a Jerusalém para participar
das liturgias do grande templo. O culto praticado nestes santuários era,
obviamente, considerado ilegítimo pelos judeus. Essa ilegitimidade se acentuou
ainda mais após a invasão assíria em 722 a.C.. Ora, além de deportar parte da
população local, a Assíria levou povos de suas outras colônias para repovoar a
Samaria e todo o reino do Norte, constituindo assim um povo mestiço, plural e
sincrético. Os povos estrangeiros levaram seus costumes e tradições para a
Samaria, juntamente com suas diversas práticas cultuais (cf. 2Rs 17,24-28).
Tudo isso levou os judeus a considerarem os samaritanos como impuros e
heréticos. É, portanto, considerando este contexto que devemos ler o evangelho
de hoje. E Jesus veio para superar esse abismo histórico-ideológico, quebrando
as barreiras, abrindo comunicação, ao revelar o verdadeiro rosto de Deus.
O texto começa
afirmando que “Jesus chegou a uma cidade da Samaria, chamada Sicar,
perto do poço que Jacó tinha dado ao seu filho José” (v. 5). A
recordação dos patriarcas em si, já é sinal de que se trata de um local
importante para o povo de Israel. É um lugar que representativo, com
significado expressivo para a fé do povo. O poço possui uma rica simbologia na
Bíblia; é o lugar do encontro e da renovação das forças, símbolo de vida
fecunda e transformação. E o evangelista acrescenta uma informação muito
importante sobre o estado em que Jesus se encontrava, para enfatizar ainda mais
a importância do poço no contexto do episódio: Jesus estava “cansado da
viagem” (v. 6b). Essa é a única vez que um evangelista retrata
explicitamente o cansaço de Jesus, o que João faz empregando o termo grego “kekopiakos”
(κεκοπιακώς) para cansado. É um dado relevante pois expressa a
humanidade de Jesus em sua dimensão mais profunda: um homem cansado e sedento,
embora portador de uma água viva, que ao final do episódio será reconhecido
como o salvador do mundo (v. 42). Cansado e sedento, Jesus não tem medo de pedir
ajuda nem de relacionar-se com as pessoas, mesmo as sem reputação, que a
sociedade da época excluía. Por isso, pede de beber a uma mulher samaritana que
também se encontrava no poço (v. 7), demonstrando que não estava condicionado
às barreiras impostas pela sociedade e a religião. Para os padrões da época,
não era aconselhável para um homem conversar com uma mulher sozinha, ainda mais
com uma mulher samaritana, personagem duplamente marginalizada: primeiro, por
ser mulher, numa sociedade patriarcal; segundo, por ser samaritana, uma raça de
gente desprezível, como os judeus consideravam.
A sede de Jesus indica
sua mais intensa humanidade. E mais: numa terra quente, em pleno meio-dia, a
sede é também sinal de fragilidade, impotência. A princípio, parece ser mais
pretexto para abrir um diálogo transformador com aquela mulher, como ele mesmo
revela que tinha uma água viva para dar, mas é acima de tudo uma demonstração
da sua humanidade (v. 10). Com isso, o evangelista revela a harmonia entre o
humano e o divino na pessoa de Jesus: o homem que sente sede e pede água é o
mesmo que possui uma água viva, capaz de saciar eternamente. É um paradoxo
desconcertante que o evangelista João mostra com uma habilidade brilhante. À medida
em que o diálogo flui, a mulher chega a reconhecer Jesus como portador de um
dom de Deus, a ponto de pedir-lhe da sua água viva: “Senhor, dá-me
dessa água para que eu não tenha mais sede e nem tenha de vir até aqui para
tirá-la” (v. 15). Quanto mais o diálogo se estende, mais Jesus ganha a
confiança da mulher, levando-a à sinceridade, inclusive, reconhecendo a
ilegitimidade de sua união com um esposo ilegítimo, o sexto marido, o que é
imagem das diversas divindades com as quais a Samaria já entrou em relação (vv.
16-18). De fato, entre os cinco maridos anteriores daquela mulher e o da época
do encontro com Jesus, os estudiosos identificam a idolatria da Samaria,
associando os países dominantes e as divindades adoradas. Revelando sua
identidade pecadora, a mulher demonstra também o desejo de conversão, embora a
religião não lhe seja favorável, causando-lhe confusão acerca da verdadeira
adoração; ela não sabe onde e nem como prestar o culto verdadeiro (vv. 19-20).
Jesus se interessa cada vez mais pela causa da mulher samaritana, como se
interessa pela causa de toda pessoa marginalizada; declara que não importa o
lugar do culto, mas a qualidade (vv. 21-24).
Independentemente do
lugar de culto que frequentasse, aquela mulher seria vítima de preconceitos e
discriminações. Consciente disso, Jesus lhe indica o culto verdadeiro: a “adoração
em espírito e verdade” (v. 24). Ao contrário do que muitas
interpretações afirmam, essa adoração não significa um culto intimista, pessoal
e sincero, mas sim um culto ao Pai que passe pelo Espírito Santo e pelo próprio
Jesus, e culmina em obras de amor. O “Espírito”, aqui, é o dom de Deus, a água
viva que Jesus possui e a destina à toda a humanidade, é o mesmo Espírito que ele,
ressuscitado, soprará sobre os discípulos; a “verdade” é a sua própria pessoa
enquanto plenitude da revelação, ou seja, de tudo o que o Pai tem a dizer à
humanidade inteira. A adoração em Espírito e em verdade, portanto, é a relação
nova que se inaugura entre Deus e a humanidade: não mais intermediada pela Lei
e nem pelos sacerdotes dos templos, mas pelo Espírito Santo e Jesus. Esse culto
é acessível a todas as pessoas, de todos os tempos e lugares, e terá como sinal
de autenticidade as obras de amor geradas a partir dele.
Enquanto a mulher
samaritana dava adesão a Jesus, por meio do diálogo fluente, os discípulos que
já conviviam com ele há mais tempo continuavam presos à mentalidade antiga,
certamente imposta pela religião, por isso, se admiraram com sua atitude dele
falar com uma mulher (v. 27). Por sinal, o diálogo é a principal chave de leitura
deste episódio e de toda mensagem e vida de Jesus. Enquanto Palavra eterna (Jo
1,1-18), ele veio ao mundo para o Pai dialogar com a humanidade de modo
transparente, claro. E ele demonstrou isso com sua práxis, da qual o evangelho
de hoje pode ser considerado uma síntese. Os discípulos ainda estavam
condicionados aos preceitos da Lei e fechados ao Espírito. Andavam com Jesus,
mas não tinham ainda sido saciados pela água viva que ele tinha a oferecer,
certamente porque não tinham ainda tanta disponibilidade para dialogar, pois só
conhece Jesus quem dialoga com ele. A samaritana dialogou, por isso conheceu e
se transformou. Convicta de ter encontrado sentido para a sua vida no encontro
com Jesus, a mulher toma uma atitude decisiva e fundamental: “deixou o seu
cântaro e foi à cidade” (v. 28) para anunciar a experiência vivida.
Deixar o cântaro significa abandonar a Lei para aderir ao Espírito e ao
programa de vida de Jesus. É a passagem ao discipulado; de mulher rejeitada e
excluída, ela se tornou discípula e anunciou, convidando os demais a fazerem a
mesma experiência que ela tinha acabado de fazer, convencendo toda a cidade a
buscarem o mesmo (v. 28-30). A fé autêntica e verdadeira é contagiante,
inevitavelmente se espalha. É importante recordar que em momento algum Jesus a
repreendeu pelos erros passados; levou-a a reconhecer quantos maridos teve,
porém, sem incriminá-la; o resultado foi uma conversão autêntica, o que os
discípulos pareciam ainda não ter experimentado, como dá a entender pela sutil
advertência que Jesus lhes faz com uma pequena parábola da colheita (vv.
34-38). A colheita abundante é a fé dos samaritanos, a adesão dos que estavam
distantes, confirmando que Jesus rompe barreiras e todos os muros de separação,
religiosos e ideológicos, para quem se deixa encantar pela sua pessoa e a sua
mensagem.
O desfecho da
história é uma grande adesão causada, inicialmente, pelo testemunho da mulher
(v. 39) e, em seguida, pela experiência pessoal que cada um fez (v. 42),
culminando com o reconhecimento de Jesus como o Salvador do mundo. Os judeus
esperavam um messias nacionalista, restaurador do reino de Israel; os
samaritanos reconhecem Jesus como Salvador do mundo. São duas visões bem
diferentes entre si, que revelam as diferenças entre quem permanece preso aos
preceitos da Lei, sem coragem de abandonar o cântaro, ou seja, de mudar de
vida, e quem reconhece a necessidade de beber da água viva que Jesus doa.
Enquanto o cântaro da Lei aprisiona, a água viva que Jesus doa liberta e sacia.
Os samaritanos, povo marginalizado e impuro para os judeus, proporcionam a
primeira adesão comunitária à pessoa de Jesus: o testemunho da mulher contagiou
a cidade inteira. Sentindo o peso da rejeição e marginalização impostas pela
religião, os samaritanos acolheram o dom de Deus revelado por Jesus e destinado
a todos e todas, especialmente aos mais rejeitados.
O encontro
transformador de Jesus com a samaritana, portanto, deve ser parâmetro para
nossa relação com ele e para todo processo de descoberta e crescimento na fé. A
mulher samaritana progrediu na fé gradualmente. Inicialmente, Jesus era apenas
um judeu viajante cansado e com sede, visto com suspeitas por ela, inclusive. Com
a fluência do diálogo, ela foi transformando sua percepção sobre ele, chegando
a reconhecê-lo como um profeta (v. 19), um homem de conhecimentos excepecionais
(v. 29) e, finalmente, como o Messias. Ela fez a própria descoberta porque abriu
diálogo e Jesus se deixa conhecer por quem dialogo com ele. Que a Quaresma nos
ajude a encontrar Jesus e nos abra ao diálogo transformador, deixando-nos humanizar
por ele.
Pe. Francisco
Cornélio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
Que eu consiga ter diariamente um encontro com Jesus que me humanize e me transforme, assim como a mulher samaritana. Amém 🙌
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