Todos os anos,
a liturgia do quarto domingo da Páscoa utiliza um trecho do capítulo décimo do
Evangelho de João, no qual Jesus se auto apresenta como o único, autêntico e
bom pastor. Por isso, este domingo ficou conhecido como o «Domingo do
bom pastor» e, oportunamente, instituído como o «Dia mundial de oração
pelas vocações», pelo Papa Paulo VI, no ano de 1964. Embora o evangelho deste
dia seja sempre tirado do mesmo capítulo – Jo 10 –, alternam-se os textos,
conforme o ciclo litúrgico vigente. Neste ano, por ocasião do ciclo litúrgico
A, faz-se a leitura da primeira parte do capítulo: Jo 10,1-10. Por sinal,
nestes versículos Jesus ainda não é diretamente apresentado como o pastor, mas
como a porta única por onde devem passar ovelhas e pastores. Ele só começa a
ser apresentado como pastor a partir do primeiro versículo que sucede ao texto
de hoje (Jo 10,11). Curiosamente, o termo ovelhas (em grego: πρόβατα – próbata)
aparece sete vezes no texto de hoje, e é em função das ovelhas que o pastor
existe.
Faremos hoje a
contextualização em dois níveis: num nível mais amplo, considerando a imagem do
pastor no cristianismo e em Israel e, em seguida, num nível mais literário,
considerando a posição do texto no conjunto do Quarto Evangelho. A imagem de
Jesus como bom pastor caiu na graça do cristianismo desde os seus primórdios.
Tornou-se clássico representá-lo como um pastor carregando uma ovelha nos
ombros, imagem bonita, mas que não corresponde exatamente em nada ao décimo
capítulo do Evangelho de João. Ora, aquela bela imagem do pastor com a ovelha
nos ombros corresponde ao personagem de Lucas na chamada «parábola da ovelha
perdida» (Lc 15,1-7). A imagem de pastor presente no Quarto Evangelho é bem
diferente: ele não carrega nem conduz ninguém nos ombros, pois isso é sinal de
dependência e privação da liberdade. O pastor verdadeiro é aquele que aponta
caminhos, é seguido porque conhece suas ovelhas e se deixa conhecer por elas.
Jesus é um pastor que humaniza e educa para a liberdade.
Também é
importante recordar que a figura do pastor sempre foi muito significativa para
o povo de Israel. Desde o Antigo Testamento, essa imagem foi associada a Deus e
também aos líderes que assumiram funções de guia e comando sobre o povo, como
reis e sacerdotes, principalmente. Devido às infidelidades e descaso desses
líderes, essa imagem foi se desgastando ao longo do tempo, sendo alvo de
denúncias da parte dos profetas. Uma das denúncias mais fortes foi aquela do
profeta Ezequiel: lamentando-se dos pastores de Israel que apascentavam a si
mesmos, ao invés de apascentar o (povo) rebanho (Ez 34,1-2), Deus toma a
iniciativa de destituí-los e cuidar ele mesmo do rebanho (Ez 34,11). Jesus
atualiza a perspectiva do profeta: sendo ele o único e autêntico pastor, estão
destituídos os sacerdotes do templo e os mestres da lei. Suas palavras tiveram
grande repercussão porque mexiam com os privilégios da classe dirigente de
Israel, composta por funcionários do sagrado, ao invés de pastores verdadeiros.
A prova do incômodo causado pelas palavras de Jesus está na reação dos líderes
judeus após esse discurso: uns diziam que ele estava endemoniado (Jo 10,20),
outros queriam prendê-lo (Jo 10,39). A mensagem de Jesus foi uma ameaça aos
dirigentes que apascentavam apenas a si e às suas economias, explorando o povo
ao invés de protegê-lo.
A nível de
contexto literário, é oportuno recordar que esse décimo capítulo do Quarto
Evangelho é precedido pelo polêmico episódio da cura do cego de nascença, do
qual surgiu um caloroso conflito entre Jesus e os fariseus (Jo 9,1-41). Por
sinal, o episódio do cego de nascença – o sexto dos sete sinais realizados por
Jesus no Evangelho de João – foi lido no quarto domingo da Quaresma deste ano,
por ocasião do ciclo litúrgico A. Para os fariseus e os dirigentes judeus, o
gesto libertador de Jesus, ao curar o cego, era uma ameaça aos seus
privilégios, por isso, o rechaçaram veemente, mas Jesus não se deu por vencido
e, por isso, continuou sua investida para desmascará-los. É clara a relação
entre os dois textos: Jesus abre os olhos para que as pessoas não se deixem
enganar pelos falsos pastores, e para que adquiram lucidez e conhecimento para
seguirem ao único e verdadeiro pastor, entrando e saindo pela única porta que
conduz à vida em plenitude. Isso era inadmissível para um sistema religioso que
dominava a partir da imposição e do medo. O cenário do episódio é a cidade de
Jerusalém, provavelmente as imediações do templo. Olhemos, pois, para o texto.
A fórmula
solene de introdução empregada pelo autor, (em grego: αμήν, αμήν – amén, amén)
traduzida por «Em verdade, em verdade» (v. 1), indica a importância do que será
ensinado; é uma fórmula exclusiva do Quarto Evangelho, empregada sempre no
início de declarações importantes de Jesus, funcionando como uma chamada de
atenção aos interlocutores para a importância do que está para ser dito. Tudo o
que é introduzido por essa fórmula deve ser levado muito a série pela
comunidade cristã. É sempre um ensinamento com autoridade. Logo, o conceito de
pastor apresentado no décimo capítulo de João é vital para a comunidade cristã;
é algo não pode ser esquecido e nem distorcido. À introdução solene, segue a
declaração: «Quem não entra no redil das ovelhas pela porta, mas sobe
por outro lugar, é ladrão e assaltante» (v. 1). Com essa afirmação,
Jesus está fazendo uma dura acusação e denúncia à ilegitimidade dos chefes
religiosos do seu tempo, e aos seus interlocutores diretos, os fariseus (9,40-41);
assim, ele aplica a imagem tradicional de ovelhas/rebanho ao povo, acusando
seus dirigentes de ladrões e bandidos.
O termo que o
texto do lecionário traduz por «redil» (em grego: αυλή – aulê), significa
exatamente pátio ou átrio; com isso, percebe-se que Jesus se refere ao templo
de Jerusalém, dominado por uma casta sacerdotal ilegítima, que tinha tomado o
lugar do verdadeiro pastor, que é o próprio Deus e seu filho, Jesus. Também a
palavra assaltante não corresponde à ideia do autor; inclusive a prática de
assaltar já está contemplada na palavra ladrão. Ao invés de assaltante o termo
mais adequado é «bandido», pois corresponde melhor à palavra grega empregado
pelo autor (ληστής – lestês), a
qual designa mais a pessoa que pratica violência. Essa observação é importante,
pois evidencia ainda mais o teor da denúncia. Ora, as denúncias de Jesus às
arbitrariedades do poder religioso de seu tempo foram iniciadas ainda no
segundo capítulo de João, no episódio da chamada «purificação do templo» (Jo
2,13-22). Portanto, os ladrões e bandidos do texto de hoje são os mesmos que
tinham ajudado a transformar «a casa do Pai em uma casa de negócio» no início
do Evangelho (Jo 2,16). São ladrões e assaltantes porque assumiram uma função
sem a designação do Pai, ou seja, estão ali, mas não entraram pela porta.
Ao contrário
dos dirigentes e dos fariseus, «quem entra pela porta, é o pastor das
ovelhas» (v. 2), e esse alguém é o próprio Jesus, como ele mesmo vai
se autodefinir na continuação do discurso (vv. 11.14). De fato, somente Ele
recebeu permissão do Pai para comunicar-se diretamente com as ovelhas, o povo.
E a comunicação estabelecida entre Jesus e as ovelhas – a humanidade inteira –
é altamente libertadora e humanizadora. A Jesus, o único pastor
autêntico, «o porteiro abre, e as ovelhas escutam a sua voz; ele chama
as ovelhas pelo nome e as conduz para fora» (v. 3). Obviamente, é o
Pai quem envia e autoriza Jesus a entrar no recinto da falida instituição
religiosa para libertar o povo oprimido pelo poder religioso. O porteiro, nesta
imagem, é o próprio Deus, o Pai. O primeiro passo nesse processo de libertação
é a escuta da voz de Jesus, contida somente no Evangelho; quem realmente escuta
o Evangelho, não se permite ser aprisionado nem controlado por nenhum sistema
religioso ou político, mesmo que esse se autodenomine cristão. Assim como a
comunidade joanina, também as de hoje devem estar atentas ao que lhes é
ensinado: quando não for a voz de Jesus, ou seja, o Evangelho, devem repulsar e
rejeitar sem medo.
O pastor autêntico «chama as ovelhas pelo nome e as conduz para fora», ou seja, não trata o povo como massa de manobra, mas o tira do anonimato, valorizando a cada pessoa em sua individualidade e liberdade, por isso, chama pelo nome, criando um laço de intimidade. Como se sabe, chamar alguém pelo nome significa conhecer a sua identidade e reconhecer seu valor e dignidade. E chamar pelo nome pressupõe o conhecimento recíproco, marcado pela intimidade. A relação já não é mais entre dominador e dominado, mas entre pessoas que se conhecem e se amam reciprocamente. «Conduzir para fora» é libertar, tirar da opressão, livrar o povo de um poder arbitrário, inautêntico que usa o nome de Deus para explorar e até matar; é dessa situação que Jesus quer tirar todos os que escutam a sua voz. Inclusive, o evangelista emprega aqui o mesmo verbo do êxodo (em grego: ἐξάγω – exagô), indicando que a ação de Jesus conduzir as ovelhas para fora é semelhante a de Deus libertando o povo hebreu da escravidão do Egito. Jesus quer, portanto, promover um novo êxodo, denunciando que a elite religiosa do seu tempo era tão nociva para o povo quanto o faraó do Egito e seu regime de escravidão.
É interessante
perceber o objetivo da libertação proposta por Jesus: a vivência plena da
liberdade! Por isso, «ao fazer sair todas, caminha à sua frente, e as
ovelhas o seguem, porque conhecem a sua voz» (v. 4); Jesus não quer
tirar o povo de um sistema dominante opressor para começar a dominar também;
domínio e imposição não fazem parte da sua práxis. Ele liberta e, após a
libertação, apenas aponta caminhos, ou seja, Ele «caminha à frente» sem
controlar e, obviamente, quem escutar verdadeiramente a sua voz, ou seja, quem
aceitar o Evangelho como proposta de libertação, o seguirá tranquilamente por
conhecer uma voz autêntica. Antes de tudo, é para a liberdade que ele aponta e
conduz. Mais uma vez, ressaltamos o cuidado do evangelista para com a
comunidade cristã, para que na mesma não surjam líderes impostores. Onde a voz
do Evangelho é conhecida, não há dominadores e dominados, e será esse o traço
característico da comunidade cristã. Destituindo o poder da antiga instituição
religiosa, Jesus não propõe nenhuma forma de poder e dominação para sua
comunidade. Ele quer apenas que a comunidade seja livre, autônoma e capaz de
discernir e optar pelo bem, ou seja, pelo Evangelho, o qual, como única voz de
Jesus, dispensa todo código ou sistema doutrinal e moral, mesmo que elaborado
em seu nome.
Conforme Jesus
já tinha denunciado no capítulo anterior (cf. 9,40-41), o sistema opressor é
cego e leva os que estão sob seu domínio também à cegueira, por isso, «não
entenderam o que Jesus queria dizer» (v. 6) com essa comparação ou
parábola. Diante da cegueira e da falta de compreensão de seus interlocutores (9,40-41;
10,6), Jesus passa a falar de modo mais claro e objetivo, apresentando-se como
a própria porta (v. 7). De fato, como único mediador entre a humanidade e o
Pai, Ele pode mesmo reivindicar para si a função, embora simbólica, de porta,
pois é Ele e seu Evangelho o critério único de pertença ao Pai. A denúncia aos
que se auto intitulavam representantes de Deus na terra continua, ao chamá-los
de ladrões e bandidos e anunciar o fim do antigo sistema (v. 8); esses estão
sendo desmascarados e caindo em descrédito, à medida em que a voz de Jesus vai
sendo ouvida, através do Evangelho. Portanto, quando mais o Evangelho for
ouvido, mais emancipada se torna a comunidade, e mais humanas se tornam as
pessoas que se deixam conduzir pela única Palavra que liberta e gera vida.
À medida em
que repete sua autoafirmação como a porta (v. 9), Jesus ressalta a falência da
instituição religiosa de Israel. Como o Evangelho e a lei são inconciliáveis, «só
será salvo quem entrar por Ele»; somente assim alguém poderá «entrar e sair»
encontrando a pastagem necessária para a vida. Seu programa de vida é marcado
pela liberdade e só será plenamente livre quem ouvir sua voz, passando por Ele
e vivendo a proposta de vida contida no Evangelho. O movimento de entrar e sair
é a expressão máxima de liberdade e, ao mesmo tempo, oposição à Lei e ao
sistema religioso que aprisionava e até matava em nome de Deus. A pastagem que
se encontra quando passa por Ele é a liberdade e a vida plena e abundante que
Ele quer nos comunicar (v. 10). A vida em abundância é, na verdade, a vida
livre, digna e plena de amor, para a qual o Evangelho direciona e da qual a lei
privava o ser humano. Não se trata de uma vida para o além, mas da realização
plena do ser humano em sua vida neste mundo, a qual não será destruída pela
morte.
Podemos dizer,
à guisa de conclusão, que em nossas comunidades a voz do Pastor, o único, é
ouvida quando a verdade e o amor superam qualquer código de normas e doutrinas
pré-concebidas mesmo que em nome de Deus. Jesus é porta em nossas comunidades
quando não há segregação, nem discriminação e nem exclusão. Somos comunidades
guiadas por Jesus, quando a única proposta que nelas se apresentam está de
acordo com o Evangelho e as pessoas podem entrar e sair livremente.
Pe. Francisco
Cornélio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
Nenhum comentário:
Postar um comentário