Todos
os anos, o evangelho proposto para a liturgia do Domingo de Páscoa é João
20,1-9. Ao invés de ser um relato da ressurreição, como normalmente vem
chamado, esse é, na verdade, um relato do «sepulcro encontrado vazio»,
pois a ressurreição em si não é relatada, uma vez que é acontecimento
indescritível, ao contrário da paixão e da morte de Jesus, as quais são
descritas minuciosamente pelos evangelhos. Esse fato pode parecer estranho,
considerando que é a ressurreição o evento fundante do cristianismo e, por
isso, o centro da fé cristã, e foi exatamente em função dessa que os evangelhos
foram escritos. Mesmo assim, os evangelistas não conseguiram descrevê-la. O
texto proposto hoje – Jo 20,1-9 – é apenas a introdução daquilo que o Quarto
Evangelho dedica à ressurreição, sem, no entanto, descrevê-la: a descoberta do
sepulcro vazio, o que pode significar muita coisa ou quase nada, a depender de
quem faz a constatação. Três personagens entram em cena nesse texto: Maria
Madalena, Simão Pedro e o Discípulo amado. O número três já é, por si, um
grande e rico sinal; se trata de um indicativo teológico: significa uma
comunidade que, embora se encontre profundamente abalada, devido ao final
trágico de seu líder, aos poucos vai sendo recomposta, à medida em que a esperança
será recuperada.
O
primeiro versículo apresenta o retrato da comunidade antes de vivenciar a
experiência da ressurreição: «No primeiro dia da semana, Maria Madalena
foi ao túmulo de Jesus, bem de madrugada, quando ainda estava escuro, e viu que
a pedra tinha sido retirada do túmulo» (v. 1). O “primeiro dia da
semana” é o dia seguinte ao sábado, último dia da antiga criação. Com essa
expressão, o evangelista indica que há uma nova criação em curso; um novo tempo
e um novo mundo estão sendo gestados, mas ainda está na etapa primordial, o
caos, simbolizado pela expressão «quando ainda estava escuro»; o
escuro, como sinônimo de caos, fora constatado também na primeira criação (Gn
1,1-2). Na verdade, o indicativo temporal «bem de madrugada» e
seu complemento enfático «quando ainda estava escuro» não é
apenas uma indicação temporal; significa o estado da comunidade naquelas
circunstâncias. A ausência de Jesus e a procura pelo seu corpo na morada dos
mortos – o túmulo – reflete uma realidade de trevas na comunidade. Essa
situação de trevas não se deve à ausência da luz física, mas significa que a
vida não está triunfando na comunidade, ou seja, a morte está prevalecendo.
Trevas é ausência de vida e de esperança, sobretudo na teologia de João. E a
primeira atitude de inconformismo diante das trevas é de Maria Madalena. Sua
atitude vai despertar toda a comunidade a buscar uma saída para a superação das
trevas.
Sem
a experiência do Ressuscitado, a situação da comunidade é caótica, pois essa
fica sem rumo, sem saber o que fazer, como vemos na postura de Maria
Madalena: «Então, ela saiu correndo e foi encontrar Simão Pedro e o
outro discípulo, aquele que Jesus amava, e lhes disse: ‘Tiraram o Senhor do
túmulo e não sabemos onde o colocaram’» (v. 2). A pressa e as palavras
de Maria Madalena indicam uma situação de quase desespero. Embora o texto de
João registre apenas a ida de Maria Madalena ao sepulcro, é mais provável que
tenha sido um grupo de mulheres, como consta nos evangelhos sinóticos (Mt 28,1;
Mc 16,1; Lc 24,1); João cita somente a Madalena para recordar o protagonismo
dela na comunidade primitiva e para delimitar o número três com os dois
discípulos mencionados (Pedro e o Discípulo Amado), dando uma ênfase teológica
maior ao fato, indicando uma comunidade, pois o número três significa
completude.
Ir
ao túmulo é a atitude de quem acredita que a morte triunfou, pois o túmulo é a
morada dos mortos, é um depósito de cadáver, mas é também uma manifestação de
amor por aquele que julgava estar morto. A surpresa e o espanto de Maria
Madalena são causados exatamente pela ausência do cadáver no túmulo. A cultura
da morte e o desânimo estavam tão presentes na mente dos discípulos que nem
mesmo a pedra removida do túmulo fora suficiente para animá-los. De fato, a
remoção da pedra e a ausência do corpo de Jesus causaram, inicialmente,
preocupação e espanto, ao invés de alegria e esperança. Na fala de Maria
Madalena vem expressa a falência da comunidade: mesmo reconhecendo Jesus como
“Senhor”, ela sente a falta de um cadáver; quer saber onde está o corpo morto
para reverenciá-lo, provavelmente com os perfumes, e chorar junto dele. É a
situação de quem ainda estava agindo na escuridão, sem reconhecer o novo dia
que estava para nascer.
Com
o aviso de Maria Madalena, também Pedro e o Discípulo Amado tomam a iniciativa
de ir ao túmulo para conferir a veracidade da informação, uma vez que a palavra
da mulher não era digna de credibilidade naquela sociedade: «Saíram,
então, Pedro e o outro discípulo e foram ao túmulo» (v. 3). Continuando,
diz o texto que «Os dois corriam juntos, mas o outro discípulo correu
mais depressa que Pedro e chegou primeiro ao túmulo» (v. 4). A pressa
do Discípulo Amado revela sua fidelidade, testada e comprovada aos pés da cruz
(19,25-27), característica da pessoa amada. Somente quem fez uma autêntica e
profunda experiência de amor com o Senhor é capaz de opor-se ao clima de morte
reinante na comunidade, por isso, esse discípulo é anônimo; o evangelista não
lhe dá um nome, mas apenas um adjetivo: amado.
Os
personagens anônimos no Evangelho segundo João têm a função de paradigmas para
a sua comunidade e os seus leitores de todos os tempos; assim, todo aquele que
ler esse evangelho deve tornar-se um “discípulo amado” também. Ele, o Discípulo
Amado chegou primeiro e comprovou que a informação da Madalena era
verídica: «viu as faixas de linho no chão, mas não entrou» (v.
5). À pressa do Discípulo Amado opõe-se a lentidão e o desânimo de Pedro, após
ter sido tão incoerente com o Mestre na fase final de sua vida: opôs-se a ele
na ceia, no momento do lava-pés (Jo 13,6-8), e o negara durante o processo (Jo
18,15-27). A falta de motivação de Pedro foi, certamente, marcada pelo remorso
da negação e outras incoerências, o que será transformado quando experimentar o
Ressuscitado em sua vida.
O
Discípulo Amado, embora tenha chegado primeiro, espera que Pedro também chegue
e faça ele mesmo a sua experiência: «Chegou também Simão Pedro, que
vinha correndo atrás, e entrou no túmulo. Viu as faixas de linho no chão» (v.
6). Tendo entrado no túmulo, Pedro comprova a ausência do corpo de Jesus e,
certamente, faz uma longa reflexão a respeito de tudo o que tinha acontecido
nos últimos dias. Embora a tradução litúrgica diga que ele “viu” as faixas de
linho, o evangelista emprega um verbo de significado muito mais profundo:
“contemplar” (em grego: θεωρέω theorêo),
o que significa mais que simplesmente ver; inclusive, desse verbo grego deriva
a palavra teoria, como consequência de uma observação profunda: um olhar
contemplativo, processado na mente e no coração.
Depois
de Pedro, entra também o Discípulo Amado no túmulo. Tendo chegado primeiro,
poderia ter entrado logo, mas preferiu esperar que Pedro chegasse e entrasse
logo. Não se trata de uma preeminência de Pedro, como sugerem algumas interpretações,
uma vez que na comunidade joanina não ainda havia espaço para hierarquia, como
Jesus mesmo deixou claro no lava-pés; era na verdade uma questão de
necessidade: quem, de fato, necessitava de uma experiência mais forte era
Pedro, pois, depois de Judas, foi o discípulo que mais tinha fracassado até
então, impondo sempre resistências aos propósitos de Jesus, além da negação
durante o processo. Já o Discípulo Amado tinha feito uma experiência autêntica
com o Senhor durante toda a sua vida, por isso, «viu e acreditou» (v.
8); não se deixou vencer pelos sinais de morte vistos dentro do túmulo, mas
reforçou ali a sua fé.
Para
Pedro, foi necessário um pouco mais de tempo, pelo menos algumas horas, para
convencer-se de que o Senhor ressuscitou e vive (Jo 20,19ss). Mas, os sinais
estão apontando para isso: interiormente, ele já estava “teorizando” sua fé,
reconstruindo-a lentamente, uma vez que os acontecimentos do lava-pés ao
julgamento de Jesus foram muito fortes e deixaram suas expectativas bastante comprometidas.
Será o próprio Senhor Ressuscitado a ajudá-lo no processo de reconstrução da
fé, posteriormente, com a tríplice pergunta: «Pedro, tu me amas?» (Jo
21,15-19). Sem amor, não há discipulado e, muito menos, experiência pascal. As
percepções diferentes do sepulcro vazio por Maria, Pedro e o Discípulo Amado
são sinais da diversidade que marca comunidade cristã desde os seus primórdios.
Os três viram o mesmo fenômeno, mas cada um reagiu à sua maneira: Maria com
espanto e choro (Jo 20,11), Pedro com silêncio, e o Discípulo Amado com fé.
Embora a dimensão comunitária da fé seja indispensável, as experiências de
percepção e reação diante do mistério são sempre pessoais e devem ser
respeitadas.
É o
conhecimento da Escritura que, gradativamente, vai habilitando a comunidade a
crer na ressurreição (v. 9), pois é na Escritura que os planos de Deus são
indicados e conhecidos. A fé de Pedro, de Maria Madalena e dos demais será
reformulada aos poucos, a cada “primeiro dia” quando se reunirem para a
comunhão fraterna, compreendendo a partilha do pão e a leitura da Escritura. A
comunidade que não coloca a Escritura no centro da sua existência, tende a
repetir a situação inicial desanimadora de Maria Madalena, pois sem a
Escritura «não sabemos onde está o Senhor» (v. 2). A propósito
de Maria Madalena, é necessário considerar o fato de todos os evangelistas
mencionarem as mulheres como as primeiras personagens dos acontecimentos do
“primeiro dia”; mesmo não acreditando em primeira hora, é a partir da visão e
das palavras delas que a ressurreição vai se tornando realidade na vida da
comunidade. Ora, se os evangelistas, e João em particular, pretendem apresentar
uma nova criação, a gestação de um novo mundo e um novo tempo, é imprescindível
que o papel da mulher seja evidenciado. Mulher é sinônimo de vida nova, pois
ela é, por excelência, geradora de vida. Mesmo quando a vida nova não é gerada
no ventre de uma mulher, como no caso extraordinário da ressurreição, mas é da
intuição e da perspicácia de uma mulher (ou de várias, como nos evangelhos
sinóticos) que brotam as razões para a constatação dessa nova vida. Se na
antiga criação a mulher não passava de uma companheira para o homem, na nova
criação ela assume um protagonismo ímpar: é a primeira a ver e a falar.
Além
da compreensão da Escritura, é necessária a experiência do amor autêntico para
a fé e o encontro com o Ressuscitado. O Discípulo Amado já tinha completado
essas duas etapas, por isso, somente Ele acreditou em primeira mão, pois foi
capaz de ler os sinais do sepulcro aberto e o corpo ausente à luz do amor e das
Escrituras. Só crê num primeiro momento quem ama e sente-se amado, como aquele
Discípulo sem nome, ao qual o evangelista quer que todos os seus leitores se
assemelhem! Assim, concluímos voltando para o nosso início: a ressurreição não
pode ser descrita, pode apenas ser experimentada. Para isso, é necessário fazer
a experiência do amor profundo e do conhecimento da Escritura.
Pe.
Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
Nenhum comentário:
Postar um comentário