sábado, abril 22, 2023

REFLEXÃO PARA O 3º DOMINGO DE PÁSCOA – LUCAS 24,13-35 (ANO A)

 


Do Evangelho de João, lido nos dois primeiros domingos de Páscoa, a liturgia do terceiro domingo passa para o Evangelho de Lucas, propondo a leitura de um dos seus textos mais profundos: Lc 24,13-35. O episódio narrado nesta passagem, conhecido popularmente como “os discípulos de Emaús”, retrata a experiência de encontro de dois discípulos com o Cristo Ressuscitado, enquanto retornavam de Jerusalém, desiludidos e tristes, após o drama da paixão e o escândalo da cruz. Além da profundidade teológica, esse texto se destaca também pela beleza; é uma verdadeira obra prima de Lucas, o autor do Novo Testamento mais refinado na arte de narrar. Por isso, é um texto que sempre despertou atenção entre os leitores e leitoras de todos os tempos. Nele, o autor esbanjou suas qualidades de teólogo, catequista e narrador. Pela extensão literária, não temos condições de comentá-lo versículo por versículo. Procuramos colher a mensagem central, destacando alguns versículos e informações mais relevantes.

Sendo um texto exclusivo de Lucas, esse episódio dos discípulos de Emaús funciona como síntese e conclusão do Terceiro Evangelho e já pode ser considerado também uma introdução ao segundo volume de sua obra, o livro de Atos dos Apóstolos. No contexto narrativo imediato, é apenas um episódio de transição entre a cena da descoberta do sepulcro vazio (Lc 24,1-12) e a manifestação do Cristo Ressuscitado aos discípulos reunidos em Jerusalém (Lc 24,36-49). Essa observação nos leva a reconhecer ainda mais a habilidade de Lucas, pois esse intervalo entre a descoberta do sepulcro vazio e a aparição do Ressuscitado aos discípulos reunidos constitui um vazio nos outros evangelhos. E Lucas, não apenas quis preencher um vácuo, mas o fez dando o melhor de si, construindo um episódio insuperável. É claro que ele fez isso pensando nas necessidades de suas comunidades e nos seus leitores e leitoras de todos os tempos. Primeiro, ele quis mostrar a intensidade daquele dia: não foi um dia qualquer, mas um dia especial, um dia repleto de novidades, enquanto começo de uma nova história. Um dia surpreendente em todos os sentidos, a ponto de ter sido reconhecido pelas primeiras gerações cristãs como o “Dia do Senhor”, o tão esperando “dia que o Senhor fez para nós” (Sl 117), tão cantado por séculos na liturgia de Israel e, finalmente realizado, com a ressurreição de Jesus de Nazaré, o Cristo e Filho de Deus.

É um texto que sintetiza todo Evangelho de Lucas porque resume o mistério da vida de Jesus, amplamente marcada pela dinâmica do caminho e pela continuidade com as profecias do Antigo Testamento. Desde a caminhada de Maria ao encontro de Isabel, no início do Evangelho (Lc 1,39-45), passando pelas andanças de Jesus na Galileia e seu longo caminho para Jerusalém com seus discípulos (Lc 9,51–19,44), Lucas apresentou o caminho como metáfora da história da salvação/libertação e de todo processo formativo e catequético. Agora, ele apresenta o caminho como meio indispensável para a experiência com o Ressuscitado. É um texto que pode ser considerado conclusão do Evangelho, não apenas por se tratar do último capítulo, literariamente falando, mas porque culmina com a experiência do encontro da comunidade reunida com o Ressuscitado e o cumprimento da missão de anunciá-lo. Depois dos eventos narrados neste episódio, a comunidade cristã, em todos os tempos, tem todas as chaves de leitura para experimentar o Ressuscitado em seu meio, sentindo a sua presença e compartilhando a experiência com ele. E o caminho é um meio indispensável para tudo isso. Por isso, percebemos nesse texto também uma introdução antecipada ao livro de Atos dos Apóstolos, no qual Lucas narra a expansão da experiência transformadora do encontro com o Ressuscitado até os confins da terra (At 1,8).

O texto começa com um indicativo temporal importante: «Naquele mesmo dia, o primeiro da semana» (v. 13a). Sobre o sentido deste dia, já acenamos um pouco na introdução. É importante perceber que o evangelista faz questão de apresentar momentos diferentes de um mesmo dia: a ida das mulheres ao sepulcro nas primeiras horas (24,1), e depois a ida de Pedro (24,12) e, no final do dia, a viagem dos dois discípulos, conforme o texto de hoje, até o encontro fraterno dos Onze e os demais discípulos em Jerusalém (24,33ss). Portanto, o dia do acontecimento é o dia mesmo da Páscoa, o domingo da ressurreição. Foi um dia intenso, único e irrepetível. Contudo, a comunidade tem a missão de estendê-lo para sempre, torná-lo perene. A vida cristã é um prolongamento contínuo daquele dia, que é hoje e todo novo dia; não a repetição, pois aquele dia não tem fim! Na sequência, diz o texto que, naquele mesmo domingo, «dois dos discípulos de Jesus iam para um povoado, chamado Emaús, distante onze quilômetros de Jerusalém» (v. 13); essa expressão também traz informações muito importantes: se dois discípulos tinham saído de Jerusalém, e quando voltam encontram os Onze reunidos (v. 33), logo, o grupo de discípulos era muito mais vasto que o grupo dos apóstolos propriamente ditos. Ao apresentar esses dois, Lucas resgata a grande missão dos setenta e dois, quando Jesus os enviou dois a dois (Lc 10,1-20). Esse é mais um passo em preparação aos Atos dos Apóstolos e um modo de dizer que a missão não é monopólio dos Doze menos um (os Onze após a saída de Judas), mas é aberta, inclusiva e universal.

Muito se tem discutido, na exegese atual, sobre a identidade desses dois discípulos. O texto vai informar o nome de um deles, apenas, chamado Cléofas (v. 18). Alguns estudiosos defendem a tese de que era um casal, logo, o outro discípulo seria uma mulher. Trata-se de uma hipótese considerável, mas não indispensável. Ao longo de todo o seu Evangelho, Lucas já deu demonstração suficiente da importância das mulheres na vida de Jesus e na missão da Igreja e, sobretudo, na sua perspectiva teológica. Por isso, essa suposição é indiferente para o valor do texto, sobretudo, porque não se trata de uma crônica, e sim de uma narrativa catequética. O lugar da mulher na teologia e visão de Igreja de Lucas já está assegurado. O destino dos discípulos antecipa o estado de ânimo em que se encontravam, e o texto vai revelar posteriormente: «iam para um povoado chamado Emaús, distante onze quilômetros de Jerusalém» (v. 13); após toda uma vivência com Jesus, o retorno ao povoado é sinal de incompreensão e decepção, pois o povoado significa o fechamento de mentalidade, é o lugar onde o que vale é aquilo que está na Lei. O nome Emaús significa «fonte quente»; esse povoado teve importância no tempo dos macabeus, pois fora palco de uma batalha dos judeus liderados por Judas Macabeu contra os pagãos, e vencida pelos judeus (1Mc 3,40 – 4,27). Se trata de um lugar que evoca nacionalismo, por isso, Lucas enfatiza esse povoado como antítese ao seu projeto missionário: em Emaús se cultivava o ideal tradicional e triunfalista do judaísmo; logo, não era lugar para os discípulos de Jesus! Isso se explica pelo fato de que eles não permanecerão em Emaús após o reconhecimento do Ressuscitado.

Nesse texto, Lucas preserva e reforça a função pedagógica do caminho, presente em toda a sua teologia e amplamente confirmada aqui. Por isso, ele diz que, enquanto caminhavam, os discípulos «Conversavam sobre todas as coisas que tinham acontecido» (v. 14). Caminhar é aprender e ensinar, é partilhar. Mais do que fazer um percurso físico, caminhar, na perspectiva de Lucas, significa assumir a condição de discípulo e discípula, aprendente. O caminho constitui um verdadeiro estilo de vida, por isso, em Atos dos Apóstolos será um dos nomes da Igreja. Obviamente, para quem tinha seguido Jesus, o assunto não poderia ser outro senão os últimos acontecimentos da sua vida. Para dizer que os discípulos conversavam, o evangelista emprega um verbo grego que significa literalmente «fazer homilia» (em grego: ὁμιλέω – homileô). Com isso, ele indica que é a vida de Jesus que deve ser o conteúdo do anúncio e de tudo o que se conversa na comunidade de fé. A vida de Jesus é o parâmetro. Os discípulos caminhavam tristes, certamente discutiam sobre as esperanças que imaginavam ter perdido e os sonhos frustrados, como gente que perdeu tempo seguindo a um fracassado que morreu na cruz; tudo isso fica claro na conversa a três, quando Jesus surge no caminho e passa a interagir com eles. O escândalo da cruz deixou os discípulos decepcionados, mas levavam as recordações, não tinham esquecido o que tinham vivido, apesar da desilusão e decepção.

Durante o caminho, o evangelista diz que «Enquanto conversavam e discutiam, o próprio Jesus se aproximou e começou a caminhar com eles» (v. 15). A novidade do texto começa exatamente aqui. O Cristo Ressuscitado é um caminhante, um peregrino, como foi Jesus de Nazaré durante o seu curto ministério. Porém, em seu curto ministério, os caminhos percorridos por Jesus de Nazaré também foram curtos, condicionados às circunstâncias de tempo e espaço. O caminho do Ressuscitado, pelo contrário, é ilimitado e universal. Em qualquer lugar e em qualquer tempo, ele se aproxima e caminha junto, sobretudo, de quem já caminhava por causa dele, como os dois que retornavam para Emaús. Mas a presença de Jesus não é reconhecida de imediato, o que se explica pela cegueira dos discípulos, recordada pelo evangelista (v. 16). Obviamente, não se trata de uma cegueira física, o que os impediria de caminhar sozinhos; é uma cegueira de mentalidade. É interessante perceber que, embora desiludidos e decepcionados, aqueles discípulos falavam de Jesus e tinham um bom conceito a seu respeito: «Jesus, o Nazareno, que foi um profeta poderoso em obras e palavras, diante de Deus e diante de todo o povo» (v. 19). Como se vê, os dois discípulos não estão longe da verdade. Lamentam ter de voltar ao “povoado”, pois já sabem que o mal está na tradição quando afirmam com muita clareza que foram «os sumos sacerdotes e os chefes que o entregaram para ser condenado à morte e o crucificaram» (v. 20); por isso, não querem mais submeter-se a ela. Estavam voltando por falta de perspectivas. Mas em nenhum momento foram pessoas fechadas, apesar da cegueira.

O motivo da decepção e do não reconhecimento de Jesus em seu meio está na concepção equivocada de messias, como eles mesmos afirmam: «Nós esperávamos que ele fosse libertar Israel» (v. 21). Ora, eles eram judeus nacionalistas e, por isso, esperavam o Messias restaurador, triunfalista e guerreiro. Como não tinham compreendido a mensagem libertadora de Jesus, também não compreenderam a sua morte de cruz. De fato, a cruz foi escândalo para eles e para todos os que alimentaram expectativas triunfalistas com a messianidade de Jesus. Ora, Jesus não veio ao mundo para libertar Israel, mas a humanidade inteira! Essa mentalidade equivocada só pode ser corrigida com uma boa interpretação da Escritura, como faz o próprio Jesus: «E, começando por Moisés e passando pelos profetas, explicava aos discípulos todas as passagens da Escritura que falavam a respeito dele» (v. 27). Aqui começa a reviravolta no episódio. Jesus passa a explicar as Escrituras para convencer os discípulos decepcionados a mudar a mentalidade. É necessário abrir o horizonte da consciência para compreender e aceitar que a mensagem libertadora de Jesus é universal, e não destinada a um único povo. Essa nova compreensão da Escritura não é tudo, mas é um passo importante no processo de reconhecimento do Ressuscitado; a ela, deve-se acrescentar a experiência comunitária da partilha, da comunhão de mesa, como se dará, finalmente (vv. 30-31).

É importante perceber que a explicação de Jesus compreende a totalidade da Escritura, e não passagens isoladas. Ele faz uma leitura do complexo que constitui a Escritura – Moisés e os Profetas – para mostrar a continuidade da sua mensagem e sua conformidade aos planos de Deus. O verbo grego empregado pelo evangelista e traduzido por “explicar” significa literalmente “fazer hermenêutica” (em grego: διερμηνεύω – diermenuô). Com isso, Lucas diz que Jesus é o verdadeiro hermeneuta da Escritura. A mensagem de Moisés e dos Profetas só tem sentido para a comunidade cristã se passar por Jesus, enquanto critério de interpretação. Ora, os chefes de Israel – escribas, anciãos e sacerdotes – condenaram Jesus, em conluio com o poder romano, também com base numa interpretação da Escritura. Isso serve de advertência para a comunidade cristã em todos os tempos: é preciso aplicar à Escritura uma hermenêutica libertadora, que gere vida, ou seja, uma explicação que conduza para o bem e suscite amor na comunidade. O mau uso, a má explicação da Escritura gera fundamentalismo, fechamento e, por consequência, gera morte. E a hermenêutica – explicação – de Jesus mexeu com os discípulos. Mesmo não reconhecendo ainda a presença do Ressuscitado naquele desconhecido companheiro de viagem, os discípulos parecem não ter perdido completamente a esperança; na verdade, a esperança parece que começou a renascer dentro deles depois que o forasteiro começou a caminhar com eles, tanto que “imploram” que permaneça com eles: «Fica conosco, pois já é tarde e a noite vem chegando!» (v. 29). Portanto, os discípulos perceberam que não podiam ficar sozinhos no povoado e, por isso, imploraram que o forasteiro permanecesse com eles, porque daquela conversa, a esperança estava voltando; por isso, queriam evitar o retorno às trevas da vida no povoado, que significa o retorno ao julgo da Lei. A expressão «a noite vem chegando», mais do que um dado cronológico, é um dado teológico: é a vida fechada, sem perspectivas e esperanças, da qual eles tinham saído e não queriam mais voltar.

Jesus, ainda como forasteiro, atende aos discípulos que imploram a sua presença e senta-se com eles à mesa (v. 30). A refeição tem um sentido muito profundo no Evangelho de Lucas e é, portanto, necessário perceber essa importância para não reduzirmos esse texto a uma mera descrição de uma celebração eucarística, como muitas interpretações reducionistas tem feito. Ao longo de todo o Evangelho, Lucas apresentou Jesus sentando à mesa com pessoas de diferentes classes sociais e religiosas: fez refeição na casa de um fariseu de nome Simão (cf. 7,36-50); outra vez foi na casa de um dos chefes dos fariseus (cf. 14,1-6); ao hospedar-se na casa de Zaqueu, pecador público, também se sentou com ele à mesa e fez refeição (cf. 19,1-10). É necessário, pois, ter em mente que a mesa-refeição é, ao longo de todo o Evangelho de Lucas, um espaço-momento de revelação da identidade de Jesus, pois significa, partilha, fraternidade, companheirismo e acolhida. Como tinham sido profundamente incomodados pela explicação da Escritura que Jesus tinha dado, o que os levou a uma revisão de conceitos e de compreensão da mesma, faltava pouco para seus olhos abrirem-se, ou seja, para saírem definitivamente da situação de trevas em que se encontravam. E, foi, portanto, a experiência da partilha que proporcionou a certeza da presença do ressuscitado no meio deles.

Essa é a resposta que Lucas quis dar às suas comunidades: o Ressuscitado está presente no dia-a-dia, quando a comunidade caminha, reflete sobre a Palavra, dialoga e partilha o pão; são essas as ocasiões propícias para a comunidade abrir os olhos (v. 31a). Quem segue esses passos, já não necessita mais de uma visão ou aparição (v. 31b). Finalmente, como último passo de uma comunidade que faz a experiência do encontro com o Ressuscitado, Lucas apresenta a missão, tema caro para a sua teologia e que será mais desenvolvido no livro dos Atos dos Apóstolos, antecipado no Evangelho de hoje pela iniciativa dos discípulos: «se levantaram e voltaram para Jerusalém» (v. 33). Para Lucas, contudo, Jerusalém não significa apenas chegada, mas o ponto de partida da missão universal. O retorno dos discípulos para lá, portanto, significa que eles abraçaram o projeto de salvação universal de Jesus.

Somos, portanto, hoje e sempre, interpelados por Lucas a fazer um esforço constante de reconhecimento do ressuscitado, percebendo sua presença na comunidade para que jamais falte esperança, amor, partilha, solidariedade e companheirismo. Para isso, é necessário caminhar, se aprofundar no conhecimento da Escritura e viver, acima de tudo, a partilha. De fato, o critério último e definitivo de reconhecimento da experiência com o Ressuscitado é a partilha do pão; essa, não pode ser reduzido a um rito ou gesto, mas deve ser o resultado de um estilo de vida.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró

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