Do Evangelho
de João, lido nos dois primeiros domingos de Páscoa, a liturgia do terceiro
domingo passa para o Evangelho de Lucas, propondo a leitura de um dos seus
textos mais profundos: Lc 24,13-35. O episódio narrado nesta passagem,
conhecido popularmente como “os discípulos de Emaús”, retrata a experiência de
encontro de dois discípulos com o Cristo Ressuscitado, enquanto retornavam de
Jerusalém, desiludidos e tristes, após o drama da paixão e o escândalo da cruz.
Além da profundidade teológica, esse texto se destaca também pela beleza; é uma
verdadeira obra prima de Lucas, o autor do Novo Testamento mais refinado na arte
de narrar. Por isso, é um texto que sempre despertou atenção entre os leitores
e leitoras de todos os tempos. Nele, o autor esbanjou suas qualidades de
teólogo, catequista e narrador. Pela extensão literária, não temos condições de
comentá-lo versículo por versículo. Procuramos colher a mensagem central,
destacando alguns versículos e informações mais relevantes.
Sendo um texto
exclusivo de Lucas, esse episódio dos discípulos de Emaús funciona como síntese
e conclusão do Terceiro Evangelho e já pode ser considerado também uma introdução
ao segundo volume de sua obra, o livro de Atos dos Apóstolos. No contexto
narrativo imediato, é apenas um episódio de transição entre a cena da descoberta
do sepulcro vazio (Lc 24,1-12) e a manifestação do Cristo Ressuscitado aos
discípulos reunidos em Jerusalém (Lc 24,36-49). Essa observação nos leva a
reconhecer ainda mais a habilidade de Lucas, pois esse intervalo entre a
descoberta do sepulcro vazio e a aparição do Ressuscitado aos discípulos
reunidos constitui um vazio nos outros evangelhos. E Lucas, não apenas quis
preencher um vácuo, mas o fez dando o melhor de si, construindo um episódio
insuperável. É claro que ele fez isso pensando nas necessidades de suas
comunidades e nos seus leitores e leitoras de todos os tempos. Primeiro, ele
quis mostrar a intensidade daquele dia: não foi um dia qualquer, mas um dia
especial, um dia repleto de novidades, enquanto começo de uma nova história. Um
dia surpreendente em todos os sentidos, a ponto de ter sido reconhecido pelas
primeiras gerações cristãs como o “Dia do Senhor”, o tão esperando “dia que o
Senhor fez para nós” (Sl 117), tão cantado por séculos na liturgia de Israel e,
finalmente realizado, com a ressurreição de Jesus de Nazaré, o Cristo e Filho
de Deus.
É um texto que
sintetiza todo Evangelho de Lucas porque resume o mistério da vida de Jesus,
amplamente marcada pela dinâmica do caminho e pela continuidade com as
profecias do Antigo Testamento. Desde a caminhada de Maria ao encontro de Isabel,
no início do Evangelho (Lc 1,39-45), passando pelas andanças de Jesus na
Galileia e seu longo caminho para Jerusalém com seus discípulos (Lc 9,51–19,44),
Lucas apresentou o caminho como metáfora da história da salvação/libertação e de
todo processo formativo e catequético. Agora, ele apresenta o caminho como meio
indispensável para a experiência com o Ressuscitado. É um texto que pode ser
considerado conclusão do Evangelho, não apenas por se tratar do último capítulo,
literariamente falando, mas porque culmina com a experiência do encontro da
comunidade reunida com o Ressuscitado e o cumprimento da missão de anunciá-lo. Depois
dos eventos narrados neste episódio, a comunidade cristã, em todos os tempos,
tem todas as chaves de leitura para experimentar o Ressuscitado em seu meio,
sentindo a sua presença e compartilhando a experiência com ele. E o caminho é um
meio indispensável para tudo isso. Por isso, percebemos nesse texto também uma
introdução antecipada ao livro de Atos dos Apóstolos, no qual Lucas narra a
expansão da experiência transformadora do encontro com o Ressuscitado até os
confins da terra (At 1,8).
O texto começa com um indicativo temporal importante: «Naquele mesmo dia, o primeiro da semana» (v. 13a). Sobre o sentido deste dia, já acenamos um
pouco na introdução. É importante perceber que o evangelista faz questão de
apresentar momentos diferentes de um mesmo dia: a ida das mulheres ao sepulcro
nas primeiras horas (24,1), e depois a ida de Pedro (24,12) e, no final do dia,
a viagem dos dois discípulos, conforme o texto de hoje, até o encontro fraterno
dos Onze e os demais discípulos em Jerusalém (24,33ss). Portanto, o dia do
acontecimento é o dia mesmo da Páscoa, o domingo da ressurreição. Foi um dia
intenso, único e irrepetível. Contudo, a comunidade tem a missão de estendê-lo para
sempre, torná-lo perene. A vida cristã é um prolongamento contínuo daquele dia,
que é hoje e todo novo dia; não a repetição, pois aquele dia não tem fim! Na
sequência, diz o texto que, naquele mesmo domingo, «dois dos discípulos de
Jesus iam para um povoado, chamado Emaús, distante onze quilômetros de
Jerusalém» (v. 13); essa expressão também traz informações muito
importantes: se dois discípulos tinham saído de Jerusalém, e quando voltam
encontram os Onze reunidos (v. 33), logo, o grupo de discípulos era muito mais
vasto que o grupo dos apóstolos propriamente ditos. Ao apresentar esses dois,
Lucas resgata a grande missão dos setenta e dois, quando Jesus os enviou dois a
dois (Lc 10,1-20). Esse é mais um passo em preparação aos Atos dos Apóstolos e
um modo de dizer que a missão não é monopólio dos Doze menos um (os Onze após a
saída de Judas), mas é aberta, inclusiva e universal.
Muito se tem
discutido, na exegese atual, sobre a identidade desses dois discípulos. O texto
vai informar o nome de um deles, apenas, chamado Cléofas (v. 18). Alguns estudiosos
defendem a tese de que era um casal, logo, o outro discípulo seria uma mulher. Trata-se
de uma hipótese considerável, mas não indispensável. Ao longo de todo o seu
Evangelho, Lucas já deu demonstração suficiente da importância das mulheres na
vida de Jesus e na missão da Igreja e, sobretudo, na sua perspectiva teológica.
Por isso, essa suposição é indiferente para o valor do texto, sobretudo, porque
não se trata de uma crônica, e sim de uma narrativa catequética. O lugar da
mulher na teologia e visão de Igreja de Lucas já está assegurado. O destino dos
discípulos antecipa o estado de ânimo em que se encontravam, e o texto vai
revelar posteriormente: «iam para um povoado chamado Emaús, distante onze
quilômetros de Jerusalém» (v. 13); após toda uma vivência com Jesus, o
retorno ao povoado é sinal de incompreensão e decepção, pois o povoado
significa o fechamento de mentalidade, é o lugar onde o que vale é aquilo que
está na Lei. O nome Emaús significa «fonte quente»; esse povoado teve
importância no tempo dos macabeus, pois fora palco de uma batalha dos judeus
liderados por Judas Macabeu contra os pagãos, e vencida pelos judeus (1Mc 3,40
– 4,27). Se trata de um lugar que evoca nacionalismo, por isso, Lucas enfatiza
esse povoado como antítese ao seu projeto missionário: em Emaús se cultivava o
ideal tradicional e triunfalista do judaísmo; logo, não era lugar para os
discípulos de Jesus! Isso se explica pelo fato de que eles não permanecerão em
Emaús após o reconhecimento do Ressuscitado.
Nesse texto, Lucas preserva
e reforça a função pedagógica do caminho, presente em toda a sua teologia e
amplamente confirmada aqui. Por isso, ele diz que, enquanto caminhavam, os
discípulos «Conversavam sobre todas as coisas que tinham acontecido» (v.
14). Caminhar é aprender e ensinar, é partilhar. Mais do que fazer um percurso
físico, caminhar, na perspectiva de Lucas, significa assumir a condição de
discípulo e discípula, aprendente. O caminho constitui um verdadeiro estilo de
vida, por isso, em Atos dos Apóstolos será um dos nomes da Igreja. Obviamente,
para quem tinha seguido Jesus, o assunto não poderia ser outro senão os últimos
acontecimentos da sua vida. Para dizer que os discípulos conversavam, o
evangelista emprega um verbo grego que significa literalmente «fazer homilia» (em grego: ὁμιλέω – homileô). Com isso, ele
indica que é a vida de Jesus que deve ser o conteúdo do anúncio e de tudo o que
se conversa na comunidade de fé. A vida de Jesus é o parâmetro. Os discípulos
caminhavam tristes, certamente discutiam sobre as esperanças que imaginavam ter
perdido e os sonhos frustrados, como gente que perdeu tempo seguindo a um
fracassado que morreu na cruz; tudo isso fica claro na conversa a três, quando
Jesus surge no caminho e passa a interagir com eles. O escândalo da cruz deixou
os discípulos decepcionados, mas levavam as recordações, não tinham esquecido o
que tinham vivido, apesar da desilusão e decepção.
Durante o caminho, o
evangelista diz que «Enquanto conversavam e discutiam, o próprio Jesus se
aproximou e começou a caminhar com eles» (v. 15). A novidade do texto começa
exatamente aqui. O Cristo Ressuscitado é um caminhante, um peregrino, como foi Jesus
de Nazaré durante o seu curto ministério. Porém, em seu curto ministério, os caminhos
percorridos por Jesus de Nazaré também foram curtos, condicionados às circunstâncias
de tempo e espaço. O caminho do Ressuscitado, pelo contrário, é ilimitado e
universal. Em qualquer lugar e em qualquer tempo, ele se aproxima e caminha
junto, sobretudo, de quem já caminhava por causa dele, como os dois que retornavam
para Emaús. Mas a presença de Jesus não é
reconhecida de imediato, o que se explica pela cegueira dos discípulos, recordada
pelo evangelista (v. 16). Obviamente, não se trata de uma cegueira física, o
que os impediria de caminhar sozinhos; é uma cegueira de mentalidade. É
interessante perceber que, embora desiludidos e decepcionados, aqueles
discípulos falavam de Jesus e tinham um bom conceito a seu respeito: «Jesus, o Nazareno, que foi um profeta poderoso em obras e palavras, diante
de Deus e diante de todo o povo» (v. 19). Como se vê, os dois discípulos não estão longe da verdade.
Lamentam ter de voltar ao “povoado”, pois já sabem que o mal está na tradição
quando afirmam com muita clareza que foram «os sumos sacerdotes e os chefes
que o entregaram para ser condenado à morte e o crucificaram» (v. 20); por
isso, não querem mais submeter-se a ela. Estavam voltando por falta de
perspectivas. Mas em nenhum momento foram pessoas fechadas, apesar da cegueira.
O motivo da decepção e do não reconhecimento de Jesus em seu meio está na
concepção equivocada de messias, como eles mesmos afirmam: «Nós esperávamos que ele fosse libertar Israel» (v. 21). Ora, eles eram judeus nacionalistas e,
por isso, esperavam o Messias restaurador, triunfalista e guerreiro. Como não tinham
compreendido a mensagem libertadora de Jesus, também não compreenderam a sua morte
de cruz. De fato, a cruz foi escândalo para eles e para todos os que alimentaram
expectativas triunfalistas com a messianidade de Jesus. Ora, Jesus não veio ao
mundo para libertar Israel, mas a humanidade inteira! Essa mentalidade
equivocada só pode ser corrigida com uma boa interpretação da Escritura, como
faz o próprio Jesus: «E, começando por
Moisés e passando pelos profetas, explicava aos discípulos todas as passagens
da Escritura que falavam a respeito dele» (v. 27). Aqui começa a reviravolta no episódio.
Jesus passa a explicar as Escrituras para convencer os discípulos decepcionados
a mudar a mentalidade. É necessário abrir o horizonte da consciência para
compreender e aceitar que a mensagem libertadora de Jesus é universal, e não
destinada a um único povo. Essa nova compreensão da Escritura não é tudo, mas é
um passo importante no processo de reconhecimento do Ressuscitado; a ela,
deve-se acrescentar a experiência comunitária da partilha, da comunhão de mesa,
como se dará, finalmente (vv. 30-31).
É importante perceber que a explicação de Jesus compreende a totalidade da
Escritura, e não passagens isoladas. Ele faz uma leitura do complexo que
constitui a Escritura – Moisés e os Profetas – para mostrar a continuidade da
sua mensagem e sua conformidade aos planos de Deus. O verbo grego empregado
pelo evangelista e traduzido por “explicar” significa literalmente “fazer
hermenêutica” (em grego: διερμηνεύω – diermenuô). Com isso, Lucas diz que Jesus é o
verdadeiro hermeneuta da Escritura. A mensagem de Moisés e dos Profetas só tem
sentido para a comunidade cristã se passar por Jesus, enquanto critério de
interpretação. Ora, os chefes de Israel – escribas, anciãos e sacerdotes –
condenaram Jesus, em conluio com o poder romano, também com base numa interpretação
da Escritura. Isso serve de advertência para a comunidade cristã em todos os
tempos: é preciso aplicar à Escritura uma hermenêutica libertadora, que gere
vida, ou seja, uma explicação que conduza para o bem e suscite amor na
comunidade. O mau uso, a má explicação da Escritura gera fundamentalismo, fechamento
e, por consequência, gera morte. E a hermenêutica – explicação – de Jesus mexeu
com os discípulos. Mesmo não
reconhecendo ainda a presença do Ressuscitado naquele desconhecido companheiro
de viagem, os discípulos parecem não ter perdido completamente a esperança; na
verdade, a esperança parece que começou a renascer dentro deles depois que o
forasteiro começou a caminhar com eles, tanto que “imploram” que permaneça com
eles: «Fica conosco, pois já é tarde e a noite vem chegando!» (v. 29).
Portanto, os discípulos perceberam que não podiam ficar sozinhos no povoado e,
por isso, imploraram que o forasteiro permanecesse com eles, porque daquela
conversa, a esperança estava voltando; por isso, queriam evitar o retorno às
trevas da vida no povoado, que significa o retorno ao julgo da Lei. A expressão
«a noite vem chegando», mais do que um dado cronológico, é um dado teológico: é
a vida fechada, sem perspectivas e esperanças, da qual eles tinham saído e não
queriam mais voltar.
Jesus, ainda
como forasteiro, atende aos discípulos que imploram a sua presença e senta-se
com eles à mesa (v. 30). A refeição tem um sentido muito profundo no Evangelho
de Lucas e é, portanto, necessário perceber essa importância para não
reduzirmos esse texto a uma mera descrição de uma celebração eucarística, como
muitas interpretações reducionistas tem feito. Ao longo de todo o Evangelho,
Lucas apresentou Jesus sentando à mesa com pessoas de diferentes classes
sociais e religiosas: fez refeição na casa de um fariseu de nome Simão (cf.
7,36-50); outra vez foi na casa de um dos chefes dos fariseus (cf. 14,1-6); ao
hospedar-se na casa de Zaqueu, pecador público, também se sentou com ele à mesa
e fez refeição (cf. 19,1-10). É necessário, pois, ter em mente que a
mesa-refeição é, ao longo de todo o Evangelho de Lucas, um espaço-momento de
revelação da identidade de Jesus, pois significa, partilha, fraternidade,
companheirismo e acolhida. Como tinham sido profundamente incomodados pela
explicação da Escritura que Jesus tinha dado, o que os levou a uma revisão de
conceitos e de compreensão da mesma, faltava pouco para seus olhos abrirem-se,
ou seja, para saírem definitivamente da situação de trevas em que se
encontravam. E, foi, portanto, a experiência da partilha que proporcionou a
certeza da presença do ressuscitado no meio deles.
Essa é a resposta que Lucas quis dar às suas comunidades: o Ressuscitado está presente no dia-a-dia, quando a comunidade caminha, reflete sobre a Palavra, dialoga e partilha o pão; são essas as ocasiões propícias para a comunidade abrir os olhos (v. 31a). Quem segue esses passos, já não necessita mais de uma visão ou aparição (v. 31b). Finalmente, como último passo de uma comunidade que faz a experiência do encontro com o Ressuscitado, Lucas apresenta a missão, tema caro para a sua teologia e que será mais desenvolvido no livro dos Atos dos Apóstolos, antecipado no Evangelho de hoje pela iniciativa dos discípulos: «se levantaram e voltaram para Jerusalém» (v. 33). Para Lucas, contudo, Jerusalém não significa apenas chegada, mas o ponto de partida da missão universal. O retorno dos discípulos para lá, portanto, significa que eles abraçaram o projeto de salvação universal de Jesus.
Somos,
portanto, hoje e sempre, interpelados por Lucas a fazer um esforço constante de
reconhecimento do ressuscitado, percebendo sua presença na comunidade para que
jamais falte esperança, amor, partilha, solidariedade e companheirismo. Para
isso, é necessário caminhar, se aprofundar no conhecimento da Escritura e
viver, acima de tudo, a partilha. De fato, o critério último e definitivo de
reconhecimento da experiência com o Ressuscitado é a partilha do pão; essa, não
pode ser reduzido a um rito ou gesto, mas deve ser o resultado de um estilo de
vida.
Pe. Francisco
Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró
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