sábado, julho 29, 2023

REFLEXÃO PARA O 17º DOMINGO DO TEMPO COMUM – MATEUS 13,44-52 (ANO A)



A liturgia deste décimo sétimo domingo do tempo comum marca a conclusão da leitura do discurso em parábolas do Evangelho de Mateus, iniciada há dois domingos. O discurso em parábolas é o terceiro dos cinco grandes discursos de Jesus em Mateus, ocupando, assim, uma posição central, o que evidencia a sua importância para a teologia do respectivo Evangelho. Isso corresponde à centralidade do tema do Reino na pregação de Jesus, pois o tema desse discurso é exatamente o Reino dos Céus e sua dinâmica, descrito simbolicamente a partir de sete parábolas. O texto específico que a liturgia oferece para este domingo é Mt 13,44-52, o qual contém as últimas três das sete parábolas, uma vez que as quatro primeiras já foram lidas nos dois últimos domingos. De acordo com o contexto narrativo do Evangelho de Mateus, os destinatários primeiros do discurso foram os discípulos e as multidões que se reuniram à beira-mar para ouvir Jesus (Mt 13,1-2). Porém, mais do que reconstituir e descrever fielmente um acontecimento concreto da vida de Jesus, o evangelista organizou o discurso para responder às necessidades da sua comunidade que vivia um momento de crise, como já contextualizamos nos domingos anteriores.

Tendo em vista que o contexto já foi bastante evidenciado nos dois últimos domingos, podemos dispensar hoje uma contextualização mais ampla, embora seja necessário recordar alguns elementos. Ora, tendo já apresentado as diversas características do Reino dos Céus por meio das quatro parábolas anteriores, nas três de hoje o objetivo do evangelista é motivar os seguidores e seguidoras de Jesus e a própria comunidade a fazer uma opção absoluta pelo Reino, preferindo-o a qualquer outra realidade ou bem. Por isso, as parábolas de hoje são mais motivadoras do que descritivas, propriamente. Isso se evidencia, sobretudo, nas duas primeiras, principalmente, a do tesouro e a do comprador de pérolas (vv. 44-46), respectivamente. Elas são, acima de tudo, motivações para a acolhida do Reino do que uma mera descrição comparada desse. O encontro com o Reino e seus valores exige uma decisão e tomada de posição radicais e inadiáveis. A terceira parábola do texto de hoje e última do discurso retoma a descrição, evidenciando as contradições e a diversidade que compõem o Reino dos Céus, prevenindo a comunidade cristã de qualquer tendência ao puritanismo e segregação, convidando-a à aceitação da diversidade e à inclusão. Certamente, essa era uma das principais preocupações de Jesus e do evangelista Mateus, que via o risco da mentalidade separatista do farisaísmo se instalar na sua comunidade.

Feitas as devidas observações a nível de contexto, olhamos para o texto, começando pela primeira parábola, que é bastante curta, pois corresponde apenas ao primeiro versículo: «O Reino dos céus é como um tesouro escondido no campo. Um homem o encontra e o mantém escondido. Cheio de alegria, ele vai, vende todos os seus bens e compra aquele campo» (v. 44). Um tesouro no contexto da época, era um vaso de argila cheio de moedas valiosas e joias que os proprietários enterravam em suas propriedades quando percebiam perigo de guerras, invasões ou saques. Apesar de não se tratar de um acontecimento tão frequente, a descoberta de um tesouro na antiguidade era uma possibilidade bem real, de modo que os primeiros ouvintes-leitores do Evangelho compreendiam bem a imagem. Ora, quando um proprietário de terras tinha de fugir às pressas por causa de uma invasão, enterrava o seu tesouro, imaginando um dia voltar para recuperá-lo. No entanto, dificilmente retomava a posse da terra; essa passava para outros proprietários que não sabiam do tesouro escondido. Por isso, geralmente, esses tesouros eram encontrados muito tempo depois de enterrados, por pessoas que não sabiam da sua existência; daí a ideia de surpresa subentendida no texto, seguida da mencionada alegria. Por sinal, uma palavra-chave no Evangelho de hoje é exatamente alegria, como uma característica essencial de quem encontrou o Reino e a ele aderiu plenamente.  

A respeito do homem que encontra o tesouro, o texto não diz muita coisa. Não sabemos o que fazia antes, se estava no campo por acaso ou trabalhando. O que sabemos é que ele encontrou um motivo para mudar a sua vida. Encontrou algo pelo qual valia a pena renunciar a tudo o que possuía para ficar somente com o bem precioso que tinha acabado de encontrar. A chamada de atenção de Jesus para os discípulos e a multidão, e de Mateus para a sua comunidade, visa deixar ainda mais claro que o Reino deve ser a primeira opção de quem o encontra.  O Reino desestabiliza a normalidade das coisas, é reviravolta, subversão, é o revés da ordem estabelecida, tanto a política quanto a religiosa, embora comece de modo acanhado e silencioso, como a postura do homem ao encontrar o tesouro, que não fez alarde, o manteve escondido até a posse definitiva. Essa discrição inicial do Reino já havia sido mostrada nas parábolas anteriores, sobretudo a da semente de mostarda e a do fermento na massa, lidas no domingo passado. O homem encontrou o tesouro por acaso, ou seja, sem fazer esforço algum. Essa é uma das possibilidades de encontro com o Reino, pois como já tinha dito o próprio Jesus, «o Reino dos céus está próximo» (Mt 10,17), ou seja, é ele quem vem ao encontro das pessoas, embora sejam feitas exigências para experimentá-lo: «convertei-vos» (Mt 10,17)A decisão do homem da parábola significa uma verdadeira conversão, pois foi fruto de uma mudança de mentalidade. Ele se deu conta que não valia a pena continuar com os bens que possuía, tendo encontrado algo muito mais valioso. Ao desfazer-se de todos os bens para possuir um único bem mais valioso do que tudo, ele demonstrou grande desapego, fruto de discernimento, certamente. Ora, não basta contemplar nem saber que o Reino dos céus chegou, é necessário fazer esforço para nele entrar; esse esforço consiste em deixar de lado tudo o que não é compatível com ele, como fez o homem dessa primeira parábola e vai fazer o personagem da segunda

A segunda parábola tem muita semelhança com a primeira. Também nela se evidencia a necessidade de uma tomada de decisão radical, embora sejam bem evidentes também as diferenças. Na segunda, o Reino é comparado à pessoa que procura e encontra algo, e não ao objeto encontrado, propriamente. Eis o que diz o texto: «O Reino dos céus é como um comprador de pérolas preciosas. Quando encontra uma pérola de grande valor, ele vai, vende todos os seus bens e compra aquela pérola» (vv. 45-46). Também nessa, as informações sobre o homem envolvido são poucas. Tudo indica que se trata de um homem experiente e inquieto, capaz de distinguir o valioso do vulgar. É alguém que sabe avaliar as coisas, examinando-as de modo minucioso, como fruto da experiência e da busca constante. Assim como o da parábola anterior, também esse homem encontra algo que lhe faz tomar uma decisão radical. Porém, ao contrário do homem que encontrou o tesouro por acaso, na primeira parábola, nessa segunda se trata de um homem que buscava. Lidas juntas, as duas parábolas mostram que não há contradição entre dom e esforço. A conquista do Reino exige esses dois elementos. O Reino é dom gratuito de Deus ao mundo, mas não se entra nele sem esforço, pois, para fazer parte dele são feitas exigências.

Na primeira parábola, o tesouro foi encontrado como puro dom, sem nenhuma busca: o homem simplesmente encontrou. Na segunda, o personagem é alguém que procura, seleciona criteriosamente o que tem grande valor e o que não tem. O importante em ambas as situações é a decisão tomada ao encontrar algo que pode mudar o sentido da vida. O mais relevante não é a forma como cada coisa foi encontrada, mas a decisão tomada para possuí-la, conforme a linguagem das parábolas, o que corresponde à busca pelo Reino e a inserção nele. Em cada situação, a decisão tomada de vender todos os bens para possuir o objeto encontrado recorda a decisão dos primeiros discípulos chamados por Jesus, as duas duplas de pescadores às margens do mar da Galileia: ao ouvir o chamado de Jesus, eles deixaram tudo para segui-lo (Mt 4,18-22). Naquela ocasião, não houve venda e compra, mas a decisão de deixar tudo. É claro que a participação no Reino não depende de um processo de compra e venda. Não se trata de relação comercial nem de lógica mercadológica. Os exemplos das parábolas do tesouro e do comprador de pérolas visam apenas ilustrar a necessidade de tomar decisão para entrar no Reino. Por sinal, os objetos de valor em questão – tesouro e pérola preciosa – são imagens tradicionais da Bíblia, sobretudo da tradição sapiencial, para representar realidades de valor imensurável, como a sabedoria e a própria Lei, no Antigo Testamento. Portanto, a decisão dos dois personagens de vender todos os bens corresponde ao deixar tudo dos discípulos e discípulas de Jesus, em todos os tempos, para viver uma vida pautada pelos valores do Reino: justiça, amor, solidariedade, acolhimento, sinceridade, alegria e coragem para lutar contra tudo o que impede o seu crescimento.

A última parábola do discurso, a terceira do evangelho de hoje, é aquela da rede jogada ao mar: «O Reino dos céus é ainda como uma rede lançada ao mar e que apanha peixes de todo tipo. Quando está cheia, os pescadores puxam a rede para a praia, sentam-se e recolhem os peixes bons em cestos e jogam os que não prestam» (vv. 47-48). Muitos estudiosos insistem em relacioná-la com aquela do joio e do trigo, refletida no domingo passado (Mt 13,24-30). É certo que existem semelhanças entre as duas, mas as diferenças são bem maiores. Naquela do joio e do trigo, quem semeou a semente nociva foi um inimigo, enquanto o dono do campo e da semente boa dormia. Nessa da rede, os peixes bons e ruins têm uma mesma origem, não são frutos da ação de dois personagens diferentes. Essa diferença é muito importante. Ora, desde a comunidade apostólica, havia na Igreja a tendência equivocada de querer ser uma comunidade de santos, justos ou eleitos, ou seja, uma comunidade separada e isolada. Essa tendência, comum no judaísmo da época, era e é um entrave para a concretização do Reino. Com essa parábola da rede, bem mais do que com a do joio e o trigo, Jesus apresenta o universalismo do Reino, marcado pela diversidade e inclusão, e sua exposição aos perigos. Como as parábolas respondem a uma situação de crise da comunidade, é interessante retornar às origens, ao primeiro chamado: «Vinde, segui-me, e eu farei de vós pescadores de homens» (v. 4,19). Essa parábola é, portanto, um convite para os discípulos retornarem às origens do chamado. Ora, Jesus não os chamou para irem à procura de pessoas boas e santas, mas simplesmente para “pescar seres humanos”, ou seja, ir ao encontra da humanidade inteira, sem distinção nem classificação, como uma rede que apanha todo tipo de peixe.

Com a parábola do joio e o trigo Jesus pedia tolerância e paciência. Com essa da rede, Ele vai além: pede inclusão, aceitação e abertura constante, pois a rede envolve, junta, mistura tudo. A semente era jogada em um terreno conhecido, mesmo que não fosse previamente preparado. O mar onde é lançada a rede, ao contrário, é sempre imprevisível, pois o movimento dos ventos e das águas foge de qualquer controle. Isso significa um desafio para a comunidade e uma advertência a qualquer tendência separatista e segregadora. Na comunidade cristã não pode ter juízes, mas apenas irmãos e irmãs. Por isso, a explicação alegórica da parábola projeta, em linguagem apocalíptica, a separação definitiva para o final dos tempos, e diz que essa será feita por anjos, seres de outra esfera, e não pelas lideranças da comunidade: «Assim acontecerá no fim dos tempos: os anjos virão para separar os homens maus dos que são justos. E lançarão os maus na fornalha de fogo. E aí haverá choro e ranger de dentes» (v. 50). As explicações das parábolas são sempre acréscimos do evangelista ou dos continuadores de suas tradições. Aqui, faz-se uma advertência aos membros da comunidade, provavelmente às lideranças, para evitar julgamentos, preconceitos e condenações. É uma forma de dizer que ninguém pode julgar o outro na comunidade. No final do Evangelho, quando retomar o tema do juízo, Jesus dirá que o critério no julgamento será a opção pelos pequenos, pobres e marginalizados. 

No final, após contar toda a série de parábolas, Jesus faz uma pergunta simples, mas profunda, aos discípulos, os primeiros destinatários de todo o discurso: «Compreendestes tudo isso?» (v. 51). Ora, Jesus apresentou o Reino dos céus em sete parábolas; como o número sete evoca perfeição e totalidade, é como se Jesus dissesse que tinha dito tudo sobre o Reino, e que é necessário compreendê-lo em sua totalidade. A compreensão aqui significa a aceitação da sua mensagem com as consequências que essa implica; não se trata da abstração teórica de um conteúdo, mas de assimilar um jeito novo de viver. Embora a resposta dos discípulos tenha sido positiva, a história e a própria continuação do Evangelho de Mateus mostram que, na verdade, eles ainda não tinham compreendido tudo. O importante, no entanto, é a disposição para compreender e, para isso, é necessário fazer da vida uma busca constante pelo maravilhoso tesouro que é «o Reino de Deus e a sua justiça» (Mt 6,33). A conclusão do discurso é um convite reforçado ao discernimento: «Então Jesus acrescentou: ‘Assim, pois, todo o mestre da Lei, que se torna discípulo do Reino dos Céus, é como um pai de família que tira do seu tesouro coisas novas e velhas’» (v. 52). Alguns poucos estudiosos consideram esse versículo como uma nova parábola, mas a aceitação dessa ideia é mínima, sobretudo porque elevaria para oito o número de parábolas do discurso, o que comprometeria a ideia de perfeição da exposição de Jesus sobre o Reino, representada pelo número de sete parábolas. Para muitos estudiosos, esse versículo é também um traço autobiográfico do próprio autor Mateus: ele é um exemplo de escriba (mestre da Lei) que se tornou discípulo, conservou e soube tirar coisas novas e velhas do grande tesouro que são as tradições de Israel. Inclusive, é o evangelista que mais teve cuidado de buscar elementos da Escritura (Antigo Testamento) para justificar e fundamentar a mensagem de Jesus. Nessa perspectiva, as coisas velhas são a Lei e os profetas, enquanto as coisas novas são os ensinamentos de Jesus, que ele mesmo considerou como o pleno cumprimento da Lei e dos profetas (Mt 5,17).

Considerando o evangelho de hoje e o dos últimos domingos, nos quais foi tão bem-apresentado o Reino dos Céus com sua dinâmica e suas características essenciais, urge pensar e repensar o agir cristão atual e as estruturas de nossas comunidades com seus planos e propósitos. É importante questionar se as prioridades assumidas contribuem para a construção do Reino e se evidenciam a sua presença no mundo. Muitas vezes, o que se tem buscado é manter estruturas enrijecidas, obsoletas, incapazes de transmitir vida, amor e humanização. É importante, portanto, despertar o interesse pelo Reino como bem absoluto, com coragem de abrir mão de tudo o que não condiz com a sua dinâmica.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

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