A liturgia deste décimo
sexto domingo do tempo comum propõe a continuação da leitura do discurso em parábolas,
localizado no capítulo treze do Evangelho de Mateus. Como dissemos no domingo
passado, esse é o terceiro dos cinco discursos de Jesus nesse Evangelho, e tem
como tema principal o Reino dos Céus, o qual vem apresentado a partir de sete
parábolas. O texto específico que a liturgia propõe para esse domingo – Mateus
13,24-43 – contém três parábolas: do joio e o trigo (vv. 24-30), a da semente
de mostarda (vv. 31-32), e a do fermento na massa (v. 33). Além das três
parábolas mencionadas, o texto contém ainda uma justificativa para o discurso
em parábolas, com fundamentação na Escritura (vv. 34-35), e a explicação da
parábola do joio e o trigo (vv. 36-43). Essa explicação é um acréscimo
posterior da comunidade de Mateus, provavelmente para amenizar um pouco o
impacto causado pela mensagem provocativa da parábola em específico e de todo o
discurso.
Para
compreender adequadamente qualquer trecho desse discurso, devemos sempre
considerar o seu contexto, como já o fizemos no domingo passado, ao iniciar a
leitura com a parábola do semeador (Mt 13,1-23), e hoje recordamos de novo. Ora,
no contexto narrativo do Evangelho de Mateus, o discurso em parábolas faz parte
da reação de Jesus à rejeição sofrida pela sua atuação na Galiléia, junto com
seus discípulos, tendo sido desacreditado até mesmo pelo seu mentor, João, o
Batista (Mt 11,2-19). Além, da rejeição, havia também a falta de compreensão da
sua mensagem, principalmente da parte dos discípulos, uma vez que o modelo de
Reino anunciado e proposto por Jesus não correspondia às expectativas e
esperanças alimentadas por eles, que esperavam um messias glorioso, poderoso e guerreiro,
conforme a ideologia nacionalista vigente, ancorada no messianismo davídico.
Mateus retoma esse momento da vida de Jesus para responder também ao contexto
de crise pelo qual passava a sua comunidade, há cerca de cinco décadas da morte
de Jesus.
A crise vivida pela comunidade de Mateus, respondida pelas três parábolas de hoje, girava em torno de três grandes problemas ou tentações incompatíveis com a mensagem de Jesus: 1) puritanismo – pretensão de constituir uma comunidade separada, formada apenas por pessoas puras, santas e justas; 2) projeto de grandeza – havia, sobretudo nas lideranças da comunidade, muita sede de poder e desejo de sobreposição sobre os demais grupos; 3) desânimo – vontade de desistir por não ver resultados nem efeitos gerados pela pregação e a forma de vida cristã. Mesmo incompatíveis com a Boa Nova do Reino, essas três tendências têm marcado a história da comunidade cristã, desde as suas origens com os Doze, até hoje. Isso torna o texto de Mateus sempre atual e necessário.
Ao primeiro
problema, Jesus, e posteriormente Mateus, responderam com a parábola do joio e
o trigo, um relato exclusivo do Primeiro Evangelho. Talvez essa tenha sido uma das parábolas de mais difícil aceitação pelas primeiras comunidades, tornando necessário o acréscimo de uma explicação pelo próprio Jesus. Eis o início dessa parábola: «O
Reino dos céus é como um homem que semeou boa semente no seu campo. Enquanto
todos dormiam, veio seu inimigo, semeou joio no meio e foi embora» (vv.
24-25). A introdução da parábola apresenta o Reino em uma realidade de tensão e
hostilidade. Essa tensão é marcada pela presença simultânea da semente boa e da
semente nociva, o mal e o bem, o amor e o ódio, a vida e a morte. Essa forma de
conceber o Reino não agradava a muitos cristãos, inclusive aos discípulos, os
quais imaginavam o Reino como uma comunidade separada, formada apenas por
pessoas santas e justas. Jesus mostra o contrário: quem adere ao seu projeto de
vida deve estar preparado para conviver com o diferente e até mesmo com o mal,
sem compactuar com ele, obviamente.
O joio (em
grego: ζιζάνια– zizânia) semeado pelo inimigo enquanto todos dormiam (v. 25), era uma
planta muito parecida com o trigo, cujos grãos são tóxicos, capazes de provocar
sérios danos à saúde de quem os consumir. É obra das trevas, por isso, «semeado
enquanto todos dormiam», ou seja, à noite, o que na Bíblia significa aquilo
que está longe de Deus. É um sinal de perigo e, portanto, uma ameaça à colheita
da boa semente semeada no mesmo campo. Por isso, a ideia dos servos zelosos é
arrancar o quanto antes: «Queres que vamos arrancar o joio?» (v.
28b). A esses servos, correspondem as pessoas muito religiosas de todos os
tempos, dos fariseus dos tempos de Jesus aos cristãos-católicos piedosos de
hoje, e de outras religiões também. São as pessoas intolerantes que, por causa
de um falso zelo, alimentam disseminam ódio e violência. Quem pensa dessa
maneira, obviamente, não está em sintonia com o projeto de Jesus, mesmo que use
o seu nome.
A resposta
prudente do dono do campo revela a atitude que Jesus espera de seus
seguidores: «Não! Pode acontecer que, arrancando o joio, arranqueis
também o trigo. Deixai crescer um e outro até a colheita» (vv.
29-30a). Jesus quer mostrar que, antes de tudo, o cristão não pode
apresentar-se como juiz de ninguém. Julgar é prerrogativa de Deus apenas, e
esse não julga pelas aparências, sem antes ver os frutos. Enquanto não chegar o
tempo da colheita, não é possível distinguir o bem do mal, o saudável daquilo
que é nocivo. Somente pelos frutos é possível conhecer a árvore. A pressa
daqueles servos em arrancar logo o joio poderia comprometer toda a colheita.
Isso revela extremismo, intolerância, falta de capacidade para conviver com as
diferenças. Essa tendência continua presente ainda em muitos seguimentos da
religião cristã, infelizmente. O Reino dos céus proposto por Jesus não é uma
sociedade de pessoas perfeitas, alheia à história e às contradições da
existência, não é uma comunidade de puros. O Reino só pode ser construído no
meio do conflito. Por isso, exige capacidade de diálogo, respeito às diferenças
e paciência.
A segunda
parábola, ainda relacionada ao mundo agrícola, a do grão de mostarda (vv.
31-32) é a resposta de Jesus aos desejos de grandeza e poder na sua comunidade.
Essa parábola encontra-se também em Marcos e Lucas (Mc 4,30-32; Lc 13,18-19). Diante
da estrutura imperial e da grande organização da sinagoga, o projeto de Jesus se
apresentava praticamente invisível. Os discípulos, sedentos de poder, não se
conformavam com aquela situação. Diante disso, a resposta de Jesus foi
desconcertante: «O Reino dos céus é como uma semente de mostarda que um
homem pega e semeia no seu campo» (v. 31). Com isso, ele ensina que a
comunidade dos discípulos deve aceitar a condição de pequenez em que se
encontra e deve reconhecer essa pequenez como necessidade para compreender a
dinâmica do Reino e se inserir nele. Ora, Reino, não pode impor-se por sinais
de grandeza nem de espetáculo. O importante é que esse seja cultivado, mesmo
como uma semente pequena, e colocar-se no mundo para servir, como acontece com
a mostarda: depois que a planta cresce «os pássaros vêm e fazem ninhos
em seus ramos» (v. 32b). A única preocupação dos que lutam pelo Reino
deve ser se estão sendo abrigo e serviço para os mais necessitados, pois é isso
que atesta a fidelidade a Jesus.
À terceira
tentação ou problema, o desânimo e falta de paciência, Jesus dá como resposta a
parábola do fermento, a mais difícil de ser aceita e compreendida entre as
três, pelos discípulos de então: “O Reino dos céus é como o fermento
que uma mulher pega e mistura com três porções de farinha, até que tudo fique
fermentado” (v. 33). Essa se encontra também no Evangelho de Lucas (Lc
13,20-21) e é considerada uma das mais revolucionárias de Jesus porque
apresenta o Reino dos céus sendo comparado a um elemento considerado impuro
pela tradição judaica, o fermento, e com a atividade de uma mulher. Ora, para a
cultura e tradição da época, a mulher pouco teria a contribuir com um projeto
de sociedade como era o Reino dos céus e, no entanto, Jesus apresenta o seu
agir como imagem da construção do seu Reino. Isso deve ter sido considerado um
escândalo para os primeiros ouvintes e leitores, pois esperava-se a instauração
do Reino como uma intervenção divina extraordinária na história. Enquanto isso,
Jesus mostra o Reino como uma construção que surge nas bases, a partir das
coisas simples e das pessoas pouco importantes.
O
fermento era símbolo da subversão, porque tinha a capacidade de, mesmo em
pequena quantidade, transformar a massa, dando-lhe nova forma e fazer crescer.
O uso do pão fermentado era, inclusive, proibido para o uso litúrgico dos
judeus (Ex 12,19; 13,7; Dt 16,3). Além de adulterar a massa, ainda exigia
bastante paciência até que seu efeito se tornasse visível no pão. E era
exatamente a paciência que estava acabando nos discípulos e levando-os ao
desânimo. Como não viam efeito algum na pregação deles e de Jesus, pois o mundo
continuava do mesmo jeito, estavam propensos a desistir, à medida em que
aumentavam as exigências de coragem e disposição. Com uma parábola como essa,
Jesus quis injetar ânimo e perseverança neles e, ao mesmo tempo, desconstruir a
imagem distorcida de um Reino marcado pela grandeza e pelos sinais exteriores.
O Reino de Deus, pelo contrário, se constrói no anonimato e na simplicidade.
Ninguém vê o fermento agindo dentro da massa. Uma vez que ele é injetado, se
torna invisível ao misturar-se com a massa. No entanto, quem tiver paciência de
esperar o seu efeito, o verá, e até de modo surpreendente.
A comunidade cristã tem o papel do fermento: de modo subversivo, ou seja, mesmo contra a legalidade, irradiar um jeito alternativo de viver, a partir de relações de solidariedade, igualdade, justiça e amor, até contagiar toda a massa, ou seja, as sociedades com seus padrões convencionais de comportamento. Esse trabalho de injetar fermento na massa é inclusivo, deve ser feito por todos e todas, mas começa pelos mais excluídos e desprezados da história, como as mulheres, conforme o exemplo da parábola. Enfim, são os gestos pequenos e simples, de pessoas humildes, marginalizadas, como era a mulher na época do texto, que podem transformar o mundo e torná-lo apto à vivência do Evangelho. São os pequenos e humildes os agentes privilegiados de Deus para introduzir o seu Reino no mundo. A última parte do texto é a explicação da parábola do joio e do trigo (vv. 36-43), considerada um acréscimo redacional da comunidade. Ao todo, somente duas parábolas recebem uma explicação atribuída a Jesus: a do semeador, lida no domingo passado, e a do joio e o trigo, lida hoje. A explicação da do joio e o trigo deve-se à dificuldade de aceitação nas primeiras comunidades, pois seu ensinamento visa estimular a paciência e a tolerância com todas as adversidades que possam aparecer na comunidade e na vida de cada pessoa, incluindo o próprio mal.
Com essas três
parábolas de hoje, de modo brilhante, Mateus respondeu aos questionamentos da
sua comunidade, recordando como Jesus também reagia às crises do grupo dos Doze.
Certamente, essas respostas são válidas para todos os momentos da história. É
preciso reforçar sempre que no Reino dos céus não há espaço para classificação
entre bons e maus, puros e impuros, porque é uma comunidade de iguais, cujos
distintivos são apenas os frutos; é uma comunidade pequena, mas acolhedora e
servidora e, sobretudo, transformadora, para aqueles que aceitam ser
subvertidos pelo Evangelho.
Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
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