sábado, janeiro 20, 2024

REFLEXÃO PARA O 3º DOMIMGO DO TEMPO COMUM – MARCOS 1,14-20 (ANO B)

 


Com a liturgia deste terceiro domingo do tempo comum, iniciamos, de fato, a leitura semi-contínua do Evangelho de Marcos, como é característico do ano litúrgico vigente, o ano B do ciclo litúrgico. No ano de 2019, o papa Francisco instituiu o terceiro domingo do tempo comum como o “Domingo da Palavra de Deus”, com o objetivo de promover uma aproximação maior das pessoas com a Palavra de Deus, evidenciando sua centralidade na vida da Igreja e ainda visando despertar o interesse pelo estudo das Sagradas Escrituras. Na Igreja do Brasil, particularmente, o “Domingo da Palavra de Deus” ainda não foi tão bem assimilado como tal, provavelmente pelo fato de já existir o “dia da Bíblia”, celebrado no último domingo de setembro, o mês da Bíblia, uma tradição bastante consolidada em nossas comunidades. O evangelho para hoje – Mc 1,14-20 – nos situa no início da vida pública de Jesus, destacando os seus primórdios na Galiléia, com o anúncio do Reino de Deus, o convite à conversão e o chamado dos primeiros discípulos para o seu seguimento. Podemos dizer que se trata de um texto programático para a comunidade cristã de todos dos tempos.

Retirado do Evangelho de João, o texto do domingo passado (cf. Jo 1,35-42) funcionava como transição entre a missão de João Batista e a missão de Jesus. Inclusive, as entrelinhas do texto indicavam que o próprio João reconhecia que estava na hora de sair de cena, ao indicar os seus discípulos para o seguimento de Jesus. Naquela ocasião, Jesus convidara os discípulos de João a conhecer o seu estilo de vida: “vinde e ver” (cf. Jo 1,39a), mas não fizera ainda um convite explícito ao seguimento. E a motivação inicial ali foi o testemunho de João, que o apresentou o “Cordeiro de Deus” (cf. Jo 1,36), gerando curiosidade em seus discípulos. Logo, o protagonista daquele episódio ainda foi o Batista. A partir do evangelho de hoje, o protagonismo é todo de Jesus: é ele quem anuncia e chama. Também é importante recordar os três acontecimentos que antecedem o episódio de hoje, para situá-lo no contexto narrativo do Evangelho de Marcos: a pregação de João Batista (cf. Mc 1,2-8), o batismo de Jesus (cf. Mc 1,9-11), e as tentações no deserto (cf. Mc 1,12-13). Esses são acontecimentos introdutórios, que fazem parte da preparação para o início da pregação de Jesus e, consequentemente, da execução do seu programa que começa exatamente com o evangelho de hoje.

Feitas as devidas considerações a nível de contexto, iniciamos o estudo do texto propriamente. Trata-se não apenas de um novo episódio, mas de uma nova etapa, como deixa claro o próprio texto: «Depois que João foi preso, Jesus foi para a Galiléia» (v. 14a). Essa primeira afirmação é muito importante. A prisão de João se torna um divisor de águas na vida de Jesus e na história da salvação. A indicação temporal “depois” (em grego: μετά – metá) quer enfatizar que, embora haja continuidade, as missões do Batista e a de Jesus não coincidem, fazem parte de etapas diferentes da história, como diferentes também são os programas de cada um. Como a sina dos profetas sempre foi a perseguição, a prisão de João significa que sua missão alcançou seu objetivo. Aqui, o evangelista usa o verbo “entregar” (em grego: παραδίδωμι – paradidomi), de modo que a tradução mais compatível com o texto original seria “depois que João foi entregue”; expressa uma entrega por traição ou calúnia, terminando em prisão e condenação à morte. Inclusive, é o mesmo verbo aplicado a Jesus no relato paixão (cf. Mc 14,10). Esse detalhe, aparentemente simples, enfatiza ainda mais a peculiaridade da missão de João. Ora, só é entregue aquele que incomoda, quem anuncia a verdade e a justiça num mundo marcado pela mentira e a injustiça. E assim foi a missão do profeta João Batista.

Como vemos, Jesus começa seu ministério quando João sai de cena; essa é a perspectiva dos evangelhos sinóticos (Mt, Mc e Lc), que apresentam João com um papel de precursor bem definido, ao contrário do Quarto Evangelho que atribui ao Batista o papel de testemunha e mostra uma transição mais detalhada entre os dois. As causas de João ter sido entregue serão contadas somente quando vier recordada a sua morte, mais adiante, na dinâmica do Evangelho (cf. Mc 6,14-29). Depois que o Batista sai de cena, começa o protagonismo de Jesus, como diz o texto: «Jesus foi para a Galiléia» (v. 14b). Aqui está o primeiro sinal de ruptura, ou seja, as principais diferenças entre os dois personagens começam a aparecer. Ora, João tinha desenvolvido sua atividade na Judeia, às margens do rio Jordão. Provavelmente, Jesus tinha participado dessa atividade como seu discípulo, esperando o momento de apresentar-se como autônomo em relação aos homens, e dependente somente de Deus, o seu Pai. E, uma vez cumprida a missão do Batista, Jesus inicia a sua com proposta e metodologia novas. Por isso, ele começou «pregando o Evangelho de Deus» (v. 14c). E ele mesmo é o Evangelho de Deus, enquanto Filho, enviado para humanizar o mundo, mediante sua mensagem e, sobretudo, o estilo de vida. Por isso, o Evangelho de Deus e o Evangelho de Jesus são uma coisa só, porque é a sua própria pessoa. É Jesus de Nazaré, aquele passou a vida fazendo o bem (cf. At 10,38)

Enquanto realizada na Judéia, a missão de João Batista visava purificar judeus, através, do batismo, para reintegrá-los à religião oficial, seja à sinagoga/templo seja a algum movimento ascético no interior do judaísmo. Era na Judéia que estava Jerusalém com seu magnífico templo. Jesus, ao contrário, veio para incluir pessoas no Reino de Deus, e não para recrutar devotos para uma religião decadente, como era o judaísmo oficial da época. Por isso inicia a sua atividade longe da sede da instituição religiosa, como diz o texto. Ele “foi para a Galiléia”, ou seja, para onde estavam os marginalizados, um povo quase pagão. Por isso, mais do que uma mudança geográfica, a ida de Jesus para a Galileia representa uma mudança de perspectiva social e teológica. Os galileus eram considerados perigosos pela religião oficial e pelo poder romano; eram um povo rebelde e subversivo. É no meio desse povo rotulado negativamente que Jesus começa a agir. Enquanto a missão de João estava centralizada num espaço fixo, as margens do Jordão, o ministério de Jesus será dinâmico, itinerante. João esperava que o povo fosse ao seu encontro. Jesus, ao contrário, andará em direção ao povo, especialmente os mais distantes e marginalizados, como era a população da Galileia.

A pregação de Jesus consistia no anúncio do Reino de Deus e o convite à conversão: «O tempo já se completou e o Reino de Deus está próximo. Convertei-vos e crede no Evangelho» (v. 15). A compreensão do cumprimento do tempo é essencial na pregação de Jesus. Aqui, o evangelista se refere ao tempo com o termo grego kairós (καιρός), que não significa o tempo cronológico, mas o tempo oportuno e favorável, uma oportunidade única que não pode ser desperdiçada. É o tempo que os profetas do Antigo Testamento tanto sonharam. E o inaugurador desse tempo é Jesus. De fato, em um mundo insuportável, marcado pelas injustiças e opressão, com lideranças religiosas e políticas totalmente corrompidas, a oportunidade de criação de um mundo novo não poderia ser desperdiçada e nem adiada. E esse mundo novo é o Reino de Deus, o conteúdo da pregação de Jesus, que consiste exatamente na alternativa de mundo e sociedade ao sistema vigente na época. É claro que essa proposta continua é válida para todos os tempos.

Não é fácil dar uma definição completa e precisa de Reino de Deus. Nem os evangelhos dão, apesar das inúmeras referências que fazem. O próprio Jesus, quando fala do Reino de Deus não o faz a partir de conceitos, mas com parábolas, que têm a função de tornar o ensinamento mais acessível e, ao mesmo tempo, manter um certo mistério. Contudo, é certo que o Reino de Deus não é uma promessa de esperança para um bem-estar futuro, não é uma promessa para o além, mas a proposta de Deus para o hoje da história. No Pai-nosso, a oração cristã por excelência, não se pede para alcançar o Reino no futuro, mas que o Reino venha até nós. Logo, trata-se de algo concreto e urgente. A instauração do Reino consiste na transformação deste mundo num mundo novo, numa sociedade com novas relações, baseadas na justiça, no amor, no perdão e no serviço; um mundo marcado pela igualdade e fraternidade. Resumindo, podemos dizer que a o Reino é a realização do projeto libertador de Deus no mundo, que consiste, acima de tudo, num mundo humanizado. Esse Reino “está próximo”, diz Jesus, porque é Ele o Reino em pessoa. Aqui, mais do que a temporalidade do Reino, a proximidade exprime a materialidade. A presença de Jesus no mundo significa que o Reino de Deus começou a ser construído. Essa proximidade do Reino será evidenciada pelo modelo de vida de Jesus e pelos sinais realizados por Ele, os quais dirão que o Reino, de fato, chegou.

Para participar do Reino não são necessários rituais de purificação, mas apenas conversão e adesão ao Evangelho. A participação na comunidade da antiga aliança, por exemplo, dependia de questões genealógica e étnica, além da observação minuciosa de inúmeros preceitos. O Reino de Deus comporta uma lógica diferente, tendo como condição a adesão ao imperativo «Convertei-vos e crede no Evangelho» (v. 15a). A necessidade de conversão é uma constante na vida do seguidor de Jesus. Converter-se e crer no Evangelho é, portanto, uma atitude contínua. Ora, converter-se não significa assimilar um rito, nem intensificar as práticas penitenciais e devocionais; não significa tornar-se uma pessoa mais religiosa. Conversão significa mudança radical de mentalidade, que envolve o jeito de ser, de pensar e de agir. Essa mudança de mentalidade se torna verificável na vida da pessoa pela adesão ao Evangelho, cujo resultado concreto é a assimilação do estilo de vida de Jesus de Nazaré. E crer no Evangelho, por consequência, significa aceitar e aderir ao projeto libertador de Deus por meio de Jesus Cristo, fazendo opções iguais às dele.

Após sintetizar a atividade e o anúncio de Jesus (vv. 14-15), o evangelista apresenta o início da formação do discipulado, com o chamado dos primeiros discípulos. O chamado inicial é direcionado a quatro homens, duas duplas de irmãos: Simão e André, João e Tiago (vv. 16-20), todos pescadores, sinônimo de gente simples. Certamente, o número quatro significa a universalidade, representando os quatro cantos da terra ou os quatro pontos cardeais. Quer dizer que o Reino e o Evangelho são destinados a toda a humanidade. Eis o primeiro chamado: «E, passando à beira do mar da Galiléia, Jesus viu Simão e André seu irmão, que lançavam a rede ao mar, pois eram pescadores» (v. 16). Como se vê, o chamado se dá de modo improviso. À medida em que passa à beira do mar, Jesus vê as pessoas em seu cotidiano, exercendo a profissão que gerava o sustento. Tendo chamado os dois primeiros, provavelmente já em companhia deles, eis que «Caminhando mais um pouco, viu também Tiago e João, filhos de Zebedeu. Estavam na barca, consertando as redes; e logo os chamou» (vv. 19-20a). Novamente, ele chamou a partir do que viu às margens do mar. E mais uma vez chamou dois irmãos, pescadores como os primeiros. Esses quatro discípulos constituem o núcleo fundante da comunidade do Reino. Não significa que eles fossem os melhores, e o Evangelho vai mostrar muitas incoerências deles, como o medo (cf. Mc 832), a ambição (cf. Mc 10,35-45) e até a covardia (cf. Mc 14,66-72). Eles são os primeiros porque a comunidade do Reino precisava de um ponto de partida e Jesus os escolheu para o início do seu projeto.

Tanto é significativa a maneira como o chamado acontece quanto o cenário: o mar da Galiléia. Ora, o mar é sinônimo de hostilidade e perigo para a mentalidade bíblica. Embora esse da Galiléia fosse apenas um lago, o evangelista o denomina de mar numa perspectiva teológica. Por isso, esse mar ocupa um espaço tão significativo na missão de Jesus e dos primeiros discípulos. É um lago de 21 km de comprimento com 13 de largura, com diversas cidades e povoados às suas margens. Era um lugar estratégico para a comunicação e a economia da época. Ao escolhê-lo como cenário principal da sua missão, Jesus demonstrava que não fazia distinção de ambientes, não temia perigos e enfrentava as adversidades com naturalidade. A “beira do mar” é um lugar de circulação de pessoas de diversas proveniências, expressa pluralidade e diversidade, além de perigo. Ao invés da comodidade dos átrios do templo ou das sinagogas, por onde circulavam as pessoas mais “santas”, Jesus prefere circular em meio ao perigo, entre as pessoas sem reputação. Foi com base no que viu, e não no que dizia a doutrina, que ele escolheu seus primeiros seguidores. As pessoas não são escolhidas por Jesus enquanto estão rezando ou praticando atos devocionais, mas enquanto estão trabalhando; é para o cotidiano das pessoas que Jesus olha e chama. Ele não faz uma pesquisa de opinião pública, não pede cartas de recomendação, não vai aos lugares sagrados observar quem tem “cara de santo”. Inclusive, à exceção de André, estes primeiros serão mais recordados ao longo do Evangelho pelos aspectos negativos: Simão, já com o nome de Pedro, por não aceitar a cruz (cf. Mc 8,32) e pelas negações (cf. Mc 14,27-31), e os irmãos Tiago e João pela ambição e sede de poder (cf. Mc 10,35-45).

E o convite de Jesus é simples e profundo, ao mesmo tempo: «Segui-me e eu farei de vós pescadores de homens» (v. 17). Ao imperativo “segui-me” (em grego: όπίσω μου – ópisso mú), que literalmente significa “venham atrás de mim”, corresponde a necessidade de o discípulo viver como Jesus vive. Segui-lo é configurar-se ao seu modo de vida. É um convite ao desprendimento e para que os discípulos se coloquem em estado constante de aprendizado. Somente andando atrás do mestre o discípulo poderá caminhar na direção certa. Aqui, Ele se distancia completamente do modelo de mestre do seu tempo, estabelecendo uma nova concepção: enquanto os rabinos do seu tempo eram procurados por candidatos ao discipulado, é Jesus mesmo quem busca e escolhe os seus discípulos. E, ao chamar, já deixa clara a missão: ser “pescadores de homens” (v. 17b). Essa expressão é muito passível de interpretações equivocadas que podem distanciar e distorcer o sentido aplicado pelo evangelista, como tem acontecido. Geralmente, se tem usado ela para justificar as mais diversas formas de proselitismos e até abusos, como se fosse uma ordem para recrutar fiéis. É necessário, portanto, compreender o sentido do mar para o mundo bíblico: é sinônimo de perigo; evoca morte e domínio do mal. Portanto, ser “pescador de homens” é ser sinal de vida, tirar seres humanos das mais diversas situações de morte. Assim é a missão dos seguidores de Jesus: restituir aos homens e mulheres, ou seja, à humanidade, a vida e a dignidade, livrando-a de todas as ameaças à vida em plenitude: a violência, o ódio, a corrupção, a injustiça, a fome, e todos os males nos quais a humanidade possa “afogar-se”.

A resposta positiva dos primeiros discípulos é uma interpelação aos cristãos de todos os tempos: converter-se e acreditar no Evangelho são as condições necessárias para fazer parte do Reino de Deus. A autenticidade dessa conversão depende do seguimento fiel a Jesus. Para isso, é necessário deixar tantas redes que continuam a prender e atrapalhar o seguimento do Mestre. Uma vez que o Reino se tornou próximo, e essa oportunidade única não pode ser desperdiçada, criemos coragem de deixar imediatamente, como os quatro primeiros, todos os obstáculos ao seguimento.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

 

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