A festa do batismo de Jesus marca
a conclusão do tempo do Natal, tanto nas dimensões cronológica e teológica. Neste
ano, por uma questão de adaptação do calendário litúrgico, ela é celebrada na
segunda-feira após a epifania. Por estarmos vivenciando o ciclo litúrgico B, o
evangelho proposto neste ano é Mc 1,7-11. O batismo de Jesus é o marco
inaugural da sua vida pública, ou seja, do seu ministério. Se trata de um
evento programático, no qual são reveladas, antecipadamente, a identidade de
Jesus e as principais coordenadas da sua missão. A nível de introdução e
contexto, é importante recordar que o batismo é um dos eventos narrados pelos
evangelhos que os estudiosos vêem com maior probabilidade de ter sido,
realmente, um fato histórico da vida de Jesus. Contribui para essa visão o fato
de ser um dos poucos acontecimentos presentes nos quatro evangelhos:
explicitamente nos três sinóticos (Mt 3,13-17; Mc 1,9-11; Lc 3,21-22) e
implicitamente em João (1,19-34). O fato de estar presente nos quatro
evangelhos, não significa uniformidade. Cada evangelista narrou o batismo à sua
maneira, adaptando os dados tradicionais às suas habilidades literárias e às
necessidades de suas respectivas comunidades. Além dessa pluralidade literária,
o que mais tem contribuído para a aceitação do batismo de Jesus como um
acontecimento real são os problemas de interpretação deste evento desde as
primeiras gerações cristãs. Ora, se não se tratasse de um fato histórico e
importante da vida de Jesus, certamente os evangelistas o teriam omitido em
seus escritos.
Os principais problemas e
questionamentos suscitados pela presença do batismo nos evangelhos, observados
por teólogos e exegetas, são os seguintes: sendo o batismo um rito de
purificação destinado a pecadores arrependidos, por que Jesus passou por esse rito
se não era pecador? Supondo que o ministro do batismo tem autoridade sobre a
pessoa batizada, porque Jesus aceitou ser batizado por João, se era superior a
ele? Questões desse tipo surgiram muito cedo. Por isso, acredita-se que
dificilmente os relatos evangélicos teriam recordado um evento tão problemático
se não fosse realmente importante e histórico. A historicidade do evento, no
entanto, não isenta o relato de conter artifícios literários e elementos
simbólicos. Na verdade, os relatos evangélicos contêm a interpretação teológica
do evento, e não uma mera crônica descritiva. Ao colocá-lo como marco inaugural
do ministério de Jesus, os evangelistas – especialmente os sinóticos (Mt, Mc e
Lc) – apresentaram o batismo como um evento de revelação, revestindo-o de
elementos típicos de teofanias do Antigo Testamento, como veremos na sequência
da reflexão. Como na maioria dos episódios comuns aos demais evangelhos, o
relato do batismo em Marcos é marcado pela brevidade e sobriedade. O mesmo
acontece com a apresentação da missão de João Batista, a qual contém apenas uma
breve síntese da sua atividade batizadora (Mc 1,2-6) e uma pequena descrição da
sua pregação (Mc 1,7-8).
Feitas as devidas considerações a
nível de contexto, iniciamos o estudo do texto, propriamente, cujos dois
primeiros versículos correspondem à pregação de João: «João Batista
pregava, dizendo: ‘Depois de mim virá alguém mais forte do que eu. Eu
nem sou digno de me abaixar para desamarrar suas sandálias. Eu vos batizei com
água, mas ele vos batizará com o Espírito Santo’» (vv. 7-8). Nesses
dois versículos estão todas as palavras de João no evangelho de Marcos.
Percebe-se a sobriedade acenada anteriormente; faltam os elementos
apocalípticos e a mensagem ameaçadora, presentes em Mateus e Lucas. Temos em
Marcos a imagem de um precursor mais manso, cuja pregação se limita ao anúncio
de Jesus, apresentado como o “Mais forte”, uma expressão que revela um dos
traços da identidade de Deus no Antigo Testamento (Dt 10,17; Jr 32,18; Dn 9,4;
Is 49,24). A expressão “depois de mim” (em grego: όπίσω μου – opísso mú) possui um sentido
que vai além de uma indicação temporal, sobretudo na obra de Marcos, pois está
relacionada ao seguimento, ou seja, ao discipulado (cf. Mc 1,17; 8,33).
Certamente, nesse trecho, indica que Jesus foi discípulo de João, antes de
constituir o seu próprio movimento.
Apesar de tê-lo entre os seus
discípulos, João reconhece a superioridade de Jesus: «Eu nem sou digno
de me abaixar para desamarrar suas sandálias». Ora, desamarrar as sandálias
do outro era um gesto bastante humilhante, que competia aos escravos.
Inclusive, somente aos escravos estrangeiros, em Israel; os escravos hebreus
eram dispensados deste serviço, tendo em vista a humilhação que tal gesto representava.
Essa declaração atribuída a João, mostrando a superioridade de Jesus em relação
a ele, revela a preocupação das lideranças das primeiras comunidades para que
não houvesse confusão e nem dúvidas em relação ao verdadeiro Messias. É
inegável que João chegou a ser confundido com o Messias. Por isso, os
evangelistas insistem tanto em apresentar João em condição inferior. Alguns
exegetas vêem essa expressão também como alusão ao à lei do levirato (cf. Lv
25,5-10; Rt 3,5-11), mas essa relação é mais provável no Evangelho segundo
João, cuja chave de leitura principal é a metáfora do matrimônio. Na tradição
sinótica, trata-se mesmo de uma declaração da humildade de João e da
superioridade de Jesus em relação a ele.
A distinção entre os dois
personagens se torna ainda mais clara quando o próprio João declara a
provisoriedade do seu batismo e a superioridade do batismo que Jesus realizará:
«Eu vos batizei com água, mas ele vos batizará com o Espírito Santo» (v.
8). A água era um sinal externo de purificação e penitência; é um elemento que
não penetra no íntimo da pessoa, permanece na exterioridade. O batismo com o
Espírito Santo significa que esse batismo penetra no íntimo da pessoa,
transformando-a interiormente. Aqui, fica clara, mais uma vez, a sobriedade do
relato de Marcos com a ausência dos elementos apocalípticos na pregação de
João; em Lucas, por exemplo, acrescenta-se o fogo como característica do
batismo de Jesus (cf. Lc 3,16). A distinção entre os dois batismos era muito
necessária para as primeiras comunidades; até mesmo quando João não era mais
confundido com o Messias, o seu batismo continuava sendo realizado como se
fosse o batismo cristão; muita gente não compreendia a diferença, e isso gerava
confusão em algumas comunidades, como em Éfeso, por exemplo (cf. At 19,1-7). É
por isso que os evangelistas insistiram tanto com essa distinção.
Tendo apresentado João e sua
missão, com o devido cuidado para não ser confundido com o Messias, o
evangelista passa a apresentar Jesus e sua missão, cujo marco inaugural é o
batismo: «Naqueles dias, Jesus veio de Nazaré da Galileia e foi
batizado por João no rio Jordão» (v. 9). Apesar de solene, a expressão
temporal “naqueles dias” é bastante genérica e vaga. O mais importante, no
entanto, é o que se diz em seguida: a procedência de Jesus. É exatamente aqui
que começa a revolução de valores do Evangelho de Marcos, que é uma narrativa
contra hegemônica. Ora, no primeiro versículo da obra, Jesus fora apresentado
como o Cristo (Messias) e Filho de Deus (cf. Mc 1,1); o Batista tinha acabado
de apresentá-lo como o “Mais forte” (v. 7); de repente, o evangelista traz um
dado que parece contradizer esses predicados: Jesus vem de Nazaré da Galileia,
um lugar desprezível e sem importância. Essa afirmação é chocante. A Galileia
era considerada uma terra semi-pagã pelos judeus ortodoxos; seus habitantes
eram considerados gente da pior espécie. Nazaré era uma aldeia tão sem
importância, que não é mencionada uma única vez no Antigo Testamento.
Jesus vem do lugar mais
improvável para um Messias e Filho de Deus, e isso é desconcertante. Inclusive,
outros evangelistas, como Mateus e Lucas, ilustraram seus relatos com longas
genealogias, para relacionar Jesus com os grandes personagens da história de
Israel (cf. Mt 1,1-17; Lc 3,23-38), e ainda localizaram o seu nascimento em
Belém, nas proximidades de Jerusalém, a cidade mais importante da região,
conferindo, assim, melhores credenciais ao Nazareno. Iniciando sua apresentação
de Jesus com características tão depreciativas para a época, Marcos deixa claro
que sua narrativa será marcada pelo contraste entre centro e periferia. É a
partir desse contraste que ele apresentará Jesus como o Messias e Filho de
Deus, identificado com os últimos, os pequenos e marginalizados da história,
com quem se fez solidário desde o início da sua missão, ao aceitar ser batizado
por João. Ora, se o Batista fora apresentado com características humildes,
também o gesto de Jesus se submeter ao seu batismo é uma grande demonstração de
humildade.
Na continuidade, diz o texto
que «E logo, ao sair da água, viu o céu se abrindo, e o Espírito, como
pomba, descer sobre ele» (v. 10). A abertura dos céus é uma imagem
comum na literatura judaica bíblica e extra bíblica. Significa, antes de tudo,
a disposição de Deus em se comunicar com a humanidade. Quando os tempos estavam
muito difíceis, imaginava-se que Deus tinha fechado os céus e não mais se
comunicava com a humanidade. Quando o profeta Isaías (Terceiro Isaías) se
lamenta do julgo da dominação persa, após o exílio, expressa o desejo de ver
“os céus se rasgando para Deus descer em socorro” (cf. Is 63,19). A abertura do
céu no evangelho de hoje, portanto, significa que em Jesus a comunicação entre
Deus e a humanidade é restabelecida definitivamente. Já a imagem do Espírito
descendo como pomba é uma novidade na linguagem bíblica, embora alguns
estudiosos tenham tentado conciliar essa imagem com o “pairar” do Espírito de
Deus sobre as águas no princípio da criação (cf. Gn 1,2), ou com a pomba que
Noé soltou da arca durante o dilúvio (cf. Gn 8,8); essas interpretações, no
entanto, já não são mais convincentes. O acontecimento é inovador em tudo, até
mesmo na simbologia.
As imagens mais usadas para o
Espírito de Deus na Bíblia são o fogo e o vento (cf. At 2,1-13). Porém, tanto o
fogo quanto o vento, simbolizam o Espírito Santo pela força e a capacidade de
criação e transformação; em Jesus essas imagens não teriam sentido, pois o
Espírito não desceu sobre ele para transformá-lo, mas apenas para confirmá-lo
como o Filho amado do Pai, e para tornar pública essa confirmação. O Espírito
preenche e transforma quem é carente dele; em quem já o possui em plenitude,
como Jesus, apenas confirma. Desde a sua geração na eternidade, e encarnação no
ventre de Maria, Jesus já possuía o Espírito Santo em plenitude. A pomba evoca
serenidade, tranquilidade, paz e consolo; não causa assombro algum; é esse o
sentido da manifestação do Espírito com essa forma no batismo de Jesus: ele não
foi transformado pelo Espírito naquele momento, porque já era fruto desse mesmo
Espírito.
Mais importante do que a imagem
em si é a comunicação restabelecida entre a humanidade e Deus, não passando
mais pela mediação das lideranças religiosas de Jerusalém, mas somente pela
pessoa de Jesus. O céu se abre, Deus fala e afirma que o “seu bem-querer”, ou
seja, a sua satisfação, não está nos inúmeros sacrifícios oferecidos no templo
de Jerusalém, mas no seu Filho Amado. Mesmo com ecos antico-testamentários (cf.
Is 42,1; Sl 2,7), a afirmação de Deus aqui é completamente nova de significado,
superando todas as expectativas e promessas: «E do céu veio uma voz:
‘Tu és o meu Filho amado, em ti ponho meu bem-querer» (v. 11). O
Messias que povo das expectativas tradicionais era apenas um servo de Deus e
filho de Davi, o que seria um mediador a mais. Deus envia o seu próprio Filho
como único mediador. A voz que sai do céu significa Deus falando diretamente
com a humanidade e que tem prazer por Jesus realizar a sua vontade. Isso é
realmente a inauguração de um novo tempo.
Que a recordação do batismo de
Jesus reforce em nós a necessidade de estarmos em sintonia com o Pai, ouvindo a
sua voz com sensibilidade aos impulsos do Espírito Santo que se manifesta nas
diversas situações cotidianas. Que sejamos confirmados como filhos e filhas de
Deus, em seu amor, para viver como irmãos e irmãs, à maneira de Jesus de
Nazaré, o Filho Amado que fez apenas o bem por onde passou (cf. At 10,38).
Pe. Francisco Cornélio F.
Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
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