sábado, janeiro 13, 2024

REFLEXÃO PARA O 2º DOMINGO DO TEMPO COMUM – JOÃO 1,35-42 (ANO B)



Todos os anos, a liturgia do segundo domingo do tempo comum utiliza um texto do Quarto Evangelho. O trecho selecionado varia conforme o ciclo litúrgico vigente (ano A: Jo 1,29-34; ano B: Jo 35-42; Ano C: Jo 2,1-11). Na prática, esse domingo constitui a verdadeira abertura solene do tempo comum, uma vez que não existe um primeiro domingo do tempo comum no calendário litúrgico. Geralmente, o que seria o primeiro domingo é substituído pela festa do batismo de Jesus, mas nesse ano foi substituído ainda pela solenidade da epifania, celebrada domingo passado. Como se sabe, ao longo do ano, a liturgia do tempo comum faz uma apresentação contínua do ministério de Jesus, desde os seus primórdios na Galileia até o seu final em Jerusalém. Recorre-se, portanto, ao Evangelho de João no segundo domingo, porque é esse o que introduz a vida pública de Jesus de modo mais aprofundado. O texto empregado neste ano é Jo 1,35-42. Trata-se do relato do chamado vocacional dos primeiros discípulos de Jesus, que segue uma lógica diferente do episódio correspondente nos evangelhos sinóticos (Mt; Mc; Lc).

O texto lido neste dia faz parte da primeira seção narrativa do Evangelho de João, convencionalmente chamada pelos estudiosos de “semana inaugural” (cf. Jo 1,19–2,21). Nesse intervalo, o evangelista introduz a vida pública de Jesus com indicações temporais que indicam a duração de uma semana. Com isso, o autor pretende apresentar a obra de Jesus como uma nova criação, em alusão à criação originária, desenvolvida também em uma semana (cf. Gn 1,1–2,3). O primeiro dia da “semana inaugural” do evangelho joanino foi marcado por uma comitiva fiscalizadora, enviada pelas autoridades religiosas de Jerusalém para interrogar João sobre sua identidade (cf. Jo 1,19-28), e o último dia ou sétimo é marcado pelas bodas de Caná (cf. Jo 2,1ss), o qual é introduzido pela expressão “no terceiro dia”, mas em relação aos quatro dias anteriores e, portanto, é o sétimo da primeira semana. O episódio narrado no evangelho de hoje corresponde ao terceiro dia da semana. Porém, isso não se percebe na tradução do lecionário, que substituiu o dado temporal do texto original pela genérica fórmula de introdução “naquele tempo”.

E iniciamos a nossa reflexão, portanto, recordando o dado temporal com o qual o evangelho de hoje é introduzido, na língua original. Ora, ao invés da genérica fórmula de introdução “naquele tempo”, o texto começa com uma expressão que poderia ser traduzida como “no dia seguinte” ou um dia depois (em grego: τῇ ἐπαύριον – té epaurion). A princípio, pode parecer uma observação pouco relevante, mas na verdade se trata de algo bastante significativo. Ora, se o evangelista emprega essa expressão quer dizer que o episódio a ser narrado possui relação com o anterior, como de fato tem. Ainda no prólogo, o evangelista tinha anunciado que «houve um homem enviado por Deus, seu nome era João. Ele não era a luz, mas veio para dar testemunho da luz» (Jo 1,6.8). E as primeiras cenas do Quarto Evangelho apresentam exatamente o testemunho de João, o Batista, a respeito de Jesus. O evangelho de hoje se insere nesse contexto. No episódio anterior, correspondente ao segundo dia da semana inaugural, o evangelista narrou o primeiro encontro de Jesus com João. Ali, o Batista tinha reconhecido Jesus como o «cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo» (Jo 1,29), e dado o seu testemunho a respeito dele.

No episódio de hoje, um dia depois, eis que os dois novamente se encontram, como diz o evangelista: «No dia seguinte, João estava com dois de seus discípulos e, vendo Jesus passar, disse: “Eis o Cordeiro de Deus!’» (vv. 35-36). É importante recordar que esse é o terceiro dia da semana e, portanto, seu significado é de grande importância. Ora, o terceiro dia na Bíblia não é simplesmente a soma de três dias cronológicos seguidos, mas é um sinal de intervenção de Deus. É o dia em que coisas importantes acontecem, como a ressurreição, por exemplo. Portanto, esse episódio tem um valor bastante significativo para o todo Evangelho de João. Trata-se do relato do nascimento da comunidade dos discípulos de Jesus, embrião do mundo novo, o Reino de Deus. Antes, João Batista tinha apresentado Jesus como o «Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo», agora o apresenta apenas como «Cordeiro de Deus», uma vez que mais importante que a função é a própria pessoa de Jesus. Ao designar Jesus assim, João considera o ambiente e a situação em que o povo se encontrava: instituições corrompidas, sistema religioso sem credibilidade e um império repressivo, gerando dor e sofrimento na população mais pobre. Essa situação degradante era consequência de uma sociedade dirigida por verdadeiros lobos. Daí, a necessidade de alguém que assuma o papel de cordeiro, ou seja, como sinal de paz, de luta contra o mal e a violência, um líder que não faça uso de nenhum dos instrumentos usados pelos dirigentes da época: força, violência, repressão, corrupção e exploração.

Certamente, ao chamar Jesus de «Cordeiro de Deus», João não pensa apenas no cordeiro pascal do sacrifício, mas no líder-cordeiro, ou seja, pacífico e humilde. É importante que o conhecimento da identidade de Jesus seja revelado para que seus discípulos tenham verdadeiras convicções do seguimento. João apresenta Jesus como cordeiro para os seus próprios discípulos, fazendo assim uma espécie de transição entre a sua missão de precursor e a missão de Jesus como Salvador e luz da humanidade. Ele reconhece que sua missão de testemunha está chegando ao cumprimento, e o evangelista mostra isso muito bem, ao dizer que «João estava» enquanto Jesus passava. João estava parado, numa posição estática, pois chegou aonde tinha de chegar, por isso, parou. Por outro lado, Jesus passava, estava em movimento, como sinal de que a nova dinâmica gira em torno do seu seguimento. É preciso colocar-se também em movimento para tornar-se discípulo ou discípula dele. Essa diferença de atitudes entre João e Jesus, um parado e o outro passando constitui um dos detalhes mais importantes de todo o texto. Revela a consciência de João, ao perceber que sua missão foi cumprida e a necessidade da comunidade cristã colocar-se em movimento, pôr-se em caminho para, de fato, seguir a Jesus.

Outro detalhe importante que se percebe logo no início do texto é a percepção de João: ele viu Jesus passar. O verbo ver possui um significado muito forte no Quarto Evangelho; faz parte do vocabulário da fé e do seguimento de Jesus, para o respectivo evangelista. Na língua original do livro, o grego, há vários verbos que significam ver ou olhar, que designam diferentes jeitos ou níveis de percepção no ato de ver ou olhar. O que o evangelista emprega aqui (ἐμβλέπω – emblepo) é um dos mais profundos, significa ver por dentro, expressa a mais alta intensidade e profundidade do olhar. E um olhar que permite conhecer a interioridade. Esse verbo é usado duas vezes no evangelho de hoje: para expressar o olhar de João para Jesus, e o de Jesus para Simão (v. 42). Nas outras ocasiões em que também se emprega o verbo ver, o evangelista usa os significados menos intensos (vv. 38-39). A profundidade do olhar de João é confirmada pelas suas palavras, ao reconhecer Jesus como o Cordeiro de Deus. Ora, Jesus não possuía traços excepcionais que o distinguissem das demais pessoas. O reconhecimento de João, portanto, é fruto da sua profundidade interior.

O testemunho de João era convincente para seus discípulos, certamente pela coerência de vida, pelo exemplo. Isso é demonstrado pela reação dos seus discípulos: «Ouvindo essas palavras, os dois discípulos seguiram Jesus» (v. 37). Ora, os discípulos seguiram a Jesus porque confiaram no testemunho de João.  Assim como em toda a tradição bíblica, a escuta tem grande importância na transmissão da fé. Aqui começa a formação do discipulado de Jesus no Quarto Evangelho. Enquanto nos evangelhos sinóticos o chamado acontece praticamente de improviso, com Jesus chamando diretamente os primeiros discípulos à beira-mar, no Evangelho de João o chamamento faz parte de um processo iniciado pela pregação do Batista. A pregação do Batista chega ao seu objetivo e, ao mesmo tempo, esgota-se. Assim, o gesto dos dois discípulos seguindo Jesus representa o cumprimento da antiga aliança e o início da nova, a qual será celebrada solenemente na conclusão da primeira semana com as bodas de Caná (cf. Jo 2,1-12). Seguir Jesus significa a disposição de acolher a sua proposta de vida e viver como Ele; é abandonar todos os caminhos anteriores e andar somente nos seus. Significa também a dinâmica do Reino: enquanto o Batista tinha um ponto fixo para sua pregação, a missão de Jesus é dinâmica e universal.

Os dois discípulos seguiram Jesus porque ouviram João testemunhar a seu respeito. Mas esse é apenas o primeiro passo de um verdadeiro seguimento, é a descoberta inicial. Para tornar-se discípulo, é necessário muito mais. Por isso, o evangelista diz que, «voltando-se para eles e vendo que o estavam seguindo, Jesus perguntou: ‘O que estais procurando?’» (v. 38a). Esse trecho é muito importante, cheio de profundidade. Aliás, todo o texto é profundo, mas essa passagem se destaca mais devido ao seguinte detalhe: essa pergunta «o que estais procurando?» é a primeira fala de Jesus no Evangelho de João; são as suas primeiras palavras. E é interessante perceber que o diálogo de Jesus com a humanidade não começa com um discurso ou uma proclamação solene, nem com imperativos moralistas, mas com um questionamento, com uma pergunta. Com isso, o evangelista ensina que Jesus se interessa pelas pessoas, ele gosta de escutar o que as pessoas têm a dizer sobre seus anseios, sonhos e projetos. É um Deus plenamente envolvido na vida cotidiana das pessoas. A pergunta de Jesus é de fundamental importância, por isso continua válida ainda hoje e sempre será. Também é relevante recordar que as primeiras palavras dele ressuscitado serão praticamente as mesmas, na dinâmica do Evangelho de João, ao dirigir-se a Maria Madalena, no jardim do sepulcro: «Mulher, por que choras? A quem procuras?» (Jo 20,15). Com isso, o evangelista recorda que a vida cristã é, acima de tudo, uma busca. O verbo grego empregado nas duas ocasiões (ζητέω – zetêo) expressa busca por algo ou alguém que possui grande importância, sendo capaz de mudar a vida. É a busca por aquilo que preenche o ser humano de vida e de sentido para a vida.

E a resposta dos discípulos mostra que eles também estavam no rumo certo e, portanto, que a catequese de João, o Batista, como testemunha, tinha sido bem-feita. Quer dizer, João tinha dado testemunho autêntico. Eis a resposta dos discípulos, que também é uma pergunta: «Eles disseram: ‘Rabi (que quer dizer: Mestre), onde moras?’» (v. 38b). Com essa expressão os discípulos não pedem o endereço de Jesus, mas algo muito mais profundo. Temos aqui outro verbo relevante para a teologia do Quarto Evangelho: morar, permanecer (em grego: μένω – meno); possui significado próximo a viver, de modo que a pergunta «onde moras?» revela o interesse dos discípulos pelo estilo de vida de Jesus, o jeito de viver dele, mais do que pelo espaço físico onde ele se alojava. Com todo respeito ao antigo mestre, os discípulos de João reconhecem que não é a sua vida que devem imitar, mas a vida de Jesus de agora em diante. João disse que Jesus é o Cordeiro, os discípulos não se contentam com essa informação e querem conhecer, experimentar a vida de cordeiro vivida por Jesus. E, diante da pergunta dos discípulos, Jesus faz um convite decisivo: «Jesus respondeu: ‘Vinde ver’» (v. 39a). O anúncio oral, como fez João Batista, é apenas o primeiro passo, é somente uma etapa no caminho para o discipulado. Para tornar-se verdadeiramente discípulo ou discípula é necessário fazer a experiência do encontro, do convívio, do estar com Ele. Aqui Jesus faz uma firme denúncia, embora sutil, à religião do seu tempo baseada na doutrinação. Ele quer dizer que sua vida e sua mensagem não são explicáveis com palavras. Nenhuma doutrina é capaz de contê-lo, pois ele não é um conteúdo, mas pessoa de relação. 

Jesus convida os discípulos a fazerem uma experiência de encontro verdadeiro com ele. É um convite a fazer descobertas. Só conhece Jesus quem vive com ele, quem vai ver e permanece com ele, como fizeram aqueles dois discípulos: «Foram, pois, ver onde ele morava e, nesse dia, permaneceram com ele. Era por volta das quatro da tarde» (v. 39b). Aqui está o primeiro modelo de discípulo e de encontro. Ir ver onde ele mora e permanecer é acatar a sua proposta de vida. Isso se faz somente em comunidade: foram em dois e permaneceram com ele. Eles não foram conhecer um espaço físico determinado, mas foram viver como ele. Como o dia terminava às seis horas, essa indicação temporal «quatro da tarde» significa que permaneceram até o fim com Ele e, por isso, quando surgir o novo dia, aqueles discípulos já estarão revestidos de uma vida nova, ou seja, do estilo de vida de Jesus. Na verdade, ao dizer que os discípulos permaneceram naquele dia, pode significar também que permaneceram com ele a partir daquele dia, sobretudo porque a morada de Jesus, mais do que um espaço físico é sua própria vida e mora com ele quem assimila sua mensagem de libertação. E assim nasce a comunidade cristã. 

Até então, nenhum dos discípulos citados fora chamado pelo nome. Finalmente, um deles se torna conhecido: «André, irmão de Simão Pedro, era um dos dois que ouviram as palavras de João e seguiram Jesus» (v. 40). O evangelista reforça aqui, mais uma vez, a eficácia do anúncio de João: os discípulos seguiram Jesus porque ouviram o testemunho de João a seu respeito, reconhecendo-o publicamente como Cordeiro de Deus. Enquanto André tem seu nome revelado, o outro discípulo permanece anônimo. Muitos estudiosos o identificam como o discípulo que, mais adiante no Evangelho, ficará conhecido como o Discípulo Amado. O efeito do encontro com Jesus se torna visível no tornar-se missionário do discípulo: André «Ele foi encontrar seu irmão Simão e lhe disse: ‘Encontramos o Messias’ (que quer dizer: Cristo)» (v. 41). Essa passagem é muito significativa para a catequese do evangelista e, por consequência, para a vida cristã em todos os tempos. Mostra que quem faz a experiência da comunhão de vida com Jesus, quem o vê e permanece com ele sente a necessidade de dá-lo a conhecer para as outras pessoas, partilhando essa mesma experiência. Ao encontrar o Messias-Cordeiro, André encontrou sentido para a vida, percebeu que os lobos de então (dirigentes políticos e religiosos) não tinham a palavra final, mas uma nova ordem e um novo tempo estavam surgindo a partir do fracos e pequenos, representados pela imagem do cordeiro.

Por causa do testemunho de João, André deu o primeiro passo: se colocou em estado de busca e seguiu Jesus. Atendendo ao convite de Jesus, foi ver e morar com ele, fazendo a experiência do encontro e da convivência. Desse modo, descobriu que ele é o Messias. Isso faz de André o primeiro a reconhecer Jesus como Messias no Evangelho de João, e o faz de modo surpreendente, pois até então Jesus ainda não tinha realizado nenhum sinal (milagre) que revelasse sua identidade. A antecipação de André, portanto, recorda a eficácia do testemunho de João e, acima de tudo, a força da convivência com Jesus, do morar com ele. E, tudo isso transformou André em nova testemunha e missionário. À medida em que a experiência de viver com Jesus vai sendo partilhada, o discipulado vai se dilatando, como se vê no último versículo: «Então André conduziu Simão a Jesus. Jesus olhou bem para ele e disse: ‘Tu és Simão, filho de João; tu serás chamado Cefas’ (que quer dizer: Pedra)» (v. 42). É interessante que o evangelista não concede a palavra a Simão. O entusiasmo era todo de André. Subentende-se uma admiração silenciosa e imóvel de Pedro, a ponto de ser necessário um encorajamento de Jesus com o acréscimo do nome Cefas (Pedra - Pedro). Assim, o grupo dos seguidores se ampliava quando a experiência vivida era compartilhada.

Que o anúncio da palavra em nossas comunidades gere inquietações e inconformismos e, assim, possamos buscar o conhecimento de Jesus fazendo a experiência de comunhão de vida com a sua pessoa, indo aonde ele mora e levando-nos a reconhecê-lo no encontro com os irmãos e irmãs. Só Ele comunica vida em plenitude. E essa vida não pode ser experimentada pela mera repetição de fórmulas doutrinais, mas somente no encontro com a sua pessoa.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

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