O
quarto domingo do advento marca o ápice da preparação para o Natal do Senhor.
Por isso, neste dia, em todos os anos, sempre se lê um trecho de um dos
chamados “evangelhos da infância” (Mt 1–2; Lc 1–2). Neste ano, por ocasião do
ciclo litúrgico A, o texto lido é Mt 1,18-24. Nesse sentido, a liturgia propõe
um verdadeiro caminho pedagógico para expressar as dimensões teológica e
espiritual próprias do advento. Ora, à medida em que o Natal se aproxima, a
liturgia recorda os principais acontecimentos que antecedem o nascimento de
Jesus, bem como os personagens escolhidos por Deus como mediadores imediatos da
sua entrada definitiva na história da humanidade. Se nos dois últimos domingos
– segundo e terceiro do advento – foi evidenciada a figura de João Batista,
enquanto profeta precursor, neste quarto domingo são recordados os personagens
José e Maria, os agentes humanos mais próximos do mistério da encarnação e,
consequentemente, os destinatários primeiros do fazer-se humano de Deus.
No texto de hoje, tudo gira em torno do anúncio da
inesperada gravidez de Maria, por obra do Espírito Santo, com inevitável o
embaraço gerado em José e a providência divina na resolução do problema criado.
Ao contrário de Lucas, que evidencia mais a figura de Maria, na narrativa
mateana o personagem humano que mais se destaca neste contexto do nascimento de
Jesus é José, sendo ele o destinatário do anúncio divino. É importante recordar
que, mais do que descrever fatos, o autor quer mostrar que a vinda de Jesus
Cristo não é obra humana e que, através dessa vinda, Deus faz uma séria
interpelação à humanidade. De fato, à humanidade, representada no texto por
José, é lançada uma proposta de vida e libertação, tendo ela a liberdade de
acolher ou não. O relato evangélico, portanto, não é cronístico, mas teológico
e catequético.
O texto começa com um enunciado bastante rico de
informações: «A origem de Jesus Cristo foi assim: Maria, sua mãe,
estava prometida em casamento a um homem chamado José, e, antes de viverem
juntos, ela ficou grávida pela ação do Espírito Santo» (v. 18). Tudo o
que será desenvolvido nos versículos seguintes é esmiuçamento desse primeiro
enunciado. Além das informações explícitas no texto, também as entrelinhas são
importantes, como veremos ao longo da reflexão. O primeiro passo importante para
compreender melhor a “origem” de Jesus Cristo é recordar a “genealogia”
apresentada nos versículos anteriores (Mt 1,1-16), na qual prevalece a fórmula
“X gerou Y”, com o uso predominante do verbo gerar (em grego: γεννάω – ghennáo) aplicado a grandes personagens da
história de Israel, começando por Abraão, e terminando com o desconhecido Jacó,
o pai de José. Para falar do nascimento de Jesus, o evangelista abandona a
fórmula “X gerou Y”, e apenas diz que ele nasceu de Maria, esposa de José. Com
isso, ele quer mostrar que, mesmo inserido na história do povo eleito, Jesus
provoca rupturas com os esquemas tradicionais, desde a sua concepção. Nenhuma
tradição religiosa ou estrutura familiar e social conseguem emoldurar a pessoa
de Jesus e sua mensagem libertadora, o que ficará ainda mais evidente ao longo
do seu ministério.
Como se vê, o primeiro versículo do evangelho de hoje já
constitui um grande elemento de ruptura: a origem de Jesus é, ao mesmo tempo, a
origem de uma nova humanidade, uma nova criação e, portanto, de novas relações.
No entanto, é importante recordar que nos referimos a ruptura enquanto quebra
de paradigmas. Ao afirmar que Jesus não foi gerado por José, o evangelista está
dizendo que Ele não está atrelado a nenhuma estrutura familiar, é independente,
ou seja, ninguém terá domínio sobre ele. Com isso, quebram-se os paradigmas da
sociedade patriarcal fundada no clã e no domínio do masculino. Aqui, apesar de
não ser mencionado, o Reino dos Céus, nome dado por Mateus ao que os outros
sinóticos chamam de Reino de Deus, o que mais tarde será o objeto da pregação
de Jesus, começa a ser delineado como uma sociedade alternativa, em
contraposição às antigas instituições, principalmente a instituição familiar
patriarcal, base da sociedade igualmente patriarcal, que será profundamente
contestada por Jesus em seu ministério, mediante palavras e gestos.
O outro passo necessário à compreensão desta passagem é o
entendimento do contexto sócio-histórico por trás do relato, recordando a
estrutura do casamento judaico no tempo de Jesus, como recurso essencial para
entender o significado da expressão «Maria estava prometida em
casamento a José» (v. 18b). Ora, isso quer dizer que, para efeitos
legais, eles já estavam casados. O casamento judaico se realizava em duas
etapas: a primeira – a da promessa – consistia no compromisso firmado entre os
noivos e suas respectivas famílias, inclusive com assinatura de contrato, não
podendo mais ser dissolvido, a não ser por motivo grave. Essa etapa durava
aproximadamente um ano, sendo que os noivos continuavam morando com os pais e
ainda não podiam ter relações sexuais. Como casava-se muito cedo, geralmente as
mulheres tinham entre 12 e 13 anos nessa etapa, e os homens entre 18 e 24. Esse
costume dos homens casarem mais velhos era a principal causa para a existência
de muitas viúvas em Israel, passando a ser sinônimo de vulnerabilidade social,
necessitando de proteção especial na Lei e, posteriormente, na comunidade
cristã (At 6,1-7). Foi, então, durante a fase da promessa que Maria quando
ficou grávida. Embora ainda não vivessem juntos, já estavam literalmente
casados. A segunda etapa do casamento iniciava-se quando os esposos passavam a
viver juntos. Essa etapa era inaugurada por uma grande festa, que poderia durar
até uma semana, a depender das condições econômicas dos noivos, sendo que na
primeira noite da festa já havia a consumação, ou seja, a relação sexual.
A grande surpresa do texto é a afirmação de que «antes
de viverem juntos, ela ficou grávida pela ação do Espírito Santo» (v.
18c). Trata-se de um fenômeno extraordinário e inexplicável, como, de fato, são
os planos de Deus. A originalidade de Jesus começa exatamente aqui: gerado pelo
Espírito Santo, sem a participação da figura masculina, marcando, assim, uma
ruptura total com a sociedade patriarcal. Isso será determinante para a
independência e liberdade do seu ministério, como será demonstrado ao longo do
Evangelho. Inclusive, ele mesmo vai confirmar, já no ápice da vida pública, ao ordenar
aos seus discípulos que, «na terra, não chamem a ninguém de Pai, pois
um só é o Pai de vocês, aquele que está no céu» (Mt 23,9). Ora, a
figura do pai na família patriarcal, como expressão de autoridade máxima, era
um impedimento à construção de uma comunidade igualitária e fraterna. Por isso,
Jesus faz de tudo para tirar essa figura do horizonte da comunidade de seus
discípulos e discípulas. Assim, mais do que a contemplar um nascimento
prodigioso, o evangelista nos convida a aderir às novas relações inauguradas
com esse nascimento. É o surgimento de um mundo novo e um novo tempo.
A sequência do texto, como desenvolvimento do primeiro
versículo (v. 18), apresenta o esposo de Maria com boas credenciais: «José,
seu marido, era justo e, não querendo denunciá-la, resolveu abandonar Maria, em
segredo» (v. 19). Uma informação que o texto não traz de modo
explícito, mas implicitamente devemos imaginar, é a forma como José tomou
conhecimento da gravidez de Maria. É necessário percebermos o vácuo entre o
versículo 18 e o 19 para imaginarmos essa cena: o texto diz que ela ficou
grávida do Espírito Santo (v. 18) e, em seguida, que José, como homem justo,
não quis denunciá-la (v. 19), mas não diz como ele ficou sabendo. É muito
provável que Maria mesma tenha lhe contado. Mesmo não se tratando de um relato
de crônica, é impossível o leitor não questionar e imaginar a cena. Aqui,
recordemos que o anjo do Senhor só entra em cena quando José pensa em
abandoná-la. O plano de abandoná-la prova que a explicação de Maria não fora
convincente a José. Reconstruir essas entrelinhas do texto é essencial para colher
e acolher melhor a mensagem.
Na continuação, diz o texto que, como «José, seu
marido era justo e, não querendo denunciá-la, resolveu abandonar Maria em
segredo» (v. 19). Aqui, ao afirmar que José era esposo (marido), mais
uma vez se confirma a informação de que os dois já eram casados, de fato,
embora ainda na primeira etapa do casamento. Mas, o centro do versículo é o
adjetivo atribuído a José: justo (em grego: δίκαιος – dikaios), o que confirma, ainda mais, a revolução
e inversão de valores apresentada por Mateus. Ora, o que caracterizava um judeu
como “justo” era a observância minuciosa e exata da Lei, e aqui, José é
considerado justo por recusar-se a aplicar a lei que recomendava o
apedrejamento para a mulher que engravidasse de outro na primeira etapa do
casamento, a fase da promessa (Dt 22,23-27). O plano de abandonar Maria em
segredo mostra que José já tinha compreendido o sentido verdadeiro da Lei, da
qual Jesus será constituído o intérprete oficial, credenciado por Deus, seu
verdadeiro Pai (Mt 5,17-48), ao trocar o mero preceito pela misericórdia. De
fato, a intenção de abandonar Maria em segredo quer dizer que ele se recusou a
expô-la publicamente, rompeu com a sinagoga ao não buscar testemunhas entre os
anciãos da sua cidade para testemunharem o divórcio e o consequente
apedrejamento, como era o costume. Certamente, uma grande crise envolveu José,
levando-o a muitas reflexões e discernimento.
Como Deus tinha agido em Maria, também agiu nele: «Enquanto
José pensava nisso, eis que o anjo do Senhor apareceu-lhe, em sonho, e lhe
disse: “José, Filho de Davi, não tenhas medo de receber Maria como tua esposa,
porque ela concebeu pela ação do Espírito Santo”» (v. 20). Certamente,
ele não tinha acreditado plenamente na explicação de Maria, ficando na dúvida e
amadurecendo a ideia de abandoná-la. De repente, algo de extraordinário se
apresenta, introduzido pela expressão “eis que”. Sempre que essa fórmula de
introdução “eis que” (em grego: ἰδού – idú) aparece no Novo Testamento, significa que a
informação que lhe segue é uma novidade e tem grande importância; é sempre algo
surpreendente; inclusive, no idioma original do Evangelho, o grego, se trata de
uma interjeição com função demonstrativa, cuja tradução literal seria “vê!”. De
fato, é muito importante a intervenção de Deus através do anjo, seu mensageiro,
personagem relevante para a mentalidade judaica, considerando a distância entre
Deus e os seres homens e, portanto, muito propícia para a existência de um ser
intermediário. Assim, a expressão “anjo do Senhor” significa o próprio Deus; os
autores bíblicos a empregam para diminuir o impacto de uma intervenção direta
de Deus na vida do ser humano. A expressão “em sonho”, por sua vez, mais do que
traduzir um estado psíquico, na Bíblia, indica uma atitude orante. Logo, o
evangelista quer dizer que foi na oração que José tomou conhecimento e
consciência dos planos de Deus para a sua vida e o mundo. Ele já estava com uma
decisão praticamente tomada – abandonar Maria em segrego –, mas resolver
discernir melhor em oração, ou seja, na intimidade com Deus, e eis que, orando,
encontrou a luz necessária para decidir em favor da vida – da mulher e da
criança.
E as palavras do anjo são muito encorajadoras, convidam
José a participar diretamente da nova humanidade criada por Deus, recebendo
Maria como esposa, ou seja, levando o casamento à segunda etapa. Mas, ao mesmo
tempo deixa claro que ele não terá nenhum domínio sobre o menino, uma vez que
Maria concebeu pelo Espírito Santo, sem intervenção humana. Contudo, a José,
cabe um papel relevante, que é dar o nome à criança, como recorda o
evangelista: «Ela dará à luz um filho, e tu lhe darás o nome de Jesus, pois
ele vai salvar o seu povo dos seus pecados» (v. 21). Na Bíblia, o nome
significa a identidade e a própria essência da pessoa. Como o nome Jesus
significa “Deus salva”, isso já indica a sua missão: salvar o seu povo de seus
pecados. Essa informação é carregada de significado e, mais uma vez, expressa a
novidade de Deus que Jesus veio inaugurar. Ora, esperava-se um Messias para
condenar o povo por causa dos pecados; Jesus vem salvar o povo dos seus
pecados, o que significa libertar o povo das injustiças e dos erros,
individuais e comunitários, inclusive do sentimento de culpa por erros do passado,
o que tanto pesava sobre o povo judeu. Isso Jesus fará muito bem ao longo do
seu ministério, com sua práxis libertadora. O povo carregava o sentimento de
culpa pelos pecados devido aos pesados fardos que a religião tinha imposto.
Jesus vem salvar e libertar, instaurando vida nova nas realidades velhas,
humanizando o mundo e as pessoas que o habita, ao inaugurar uma nova maneira de
se relacionar com Deus, cuja base é o amor.
Como é típico nos evangelhos, e mais ainda no de Mateus,
o uso de textos e expressões do Antigo Testamento é imprescindível, sobretudo
em momentos marcados pela dúvida e o medo. A citação do Antigo Testamento tem a
função de confirmar, dar respaldo ao que está para ser dito. Por isso, o autor
recorre ao profeta Isaías com o “oráculo do Emanuel” (Is 7,14) para confirmar
que o fato presente tem respaldo na história da salvação e, por isso, pertence
aos planos de Deus: «Tudo isso aconteceu para se cumprir o que o Senhor
havia dito pelo profeta: “Eis que a virgem conceberá e dará à luz um filho. Ele
será chamado de Emanuel, que significa Deus está conosco”» (v. 23).
Como se vê, o nome de Isaías não é mencionado, embora o texto citado seja dele.
De fato, quando se fazia uma citação dele, não tinha necessidade de dizer o seu
nome. Quando se dizia “o profeta”, os ouvintes e leitores já sabiam que se tratava
de Isaías, cujo livro é o texto profético mais lido na liturgia da sinagoga e
das comunidades cristãs, provavelmente por se tratar do livro mais longo de
todos os profetas. Mais do que cumprimento de promessa e atestado da virgindade
de Maria, a citação profética quer evidenciar que é necessário buscar
referências nas Sagradas Escrituras para a construção da história e a
compreensão do presente e, sobretudo, para afirmar no que consiste o nascimento
de Jesus: a presença definitiva de Deus Conosco, ou seja, Deus no meio da gente
e como gente. Quer dizer que o divino veio definitivamente ao encontro da
humanidade para habitar em seu meio. Como se sabe, nem a criança anunciada por
Isaías, que provavelmente foi o rei Ezequias, filho de Acaz (séc. VIII-VII
a.C.), e nem Jesus receberam o nome de Emanuel. Na verdade, não se trata de um
nome próprio, mas de um título funcional, que expressa um traço característico
do Deus de Jesus e nosso: ele é próximo da humanidade, ou seja, está conosco,
sempre.
Com a citação de Isaías 7,14, Mateus apresenta uma das
principais chaves de leitura de sua grande obra: Deus está presente no
dia-a-dia da comunidade. Por isso, o seu Evangelho pode ser chamado o
“evangelho da presença”, pois do começo ao fim, essa presença é evidenciada: no
início, com o anúncio do anjo (1,23), no discurso sobre a vida em comunidade,
quando Jesus promete ficar no meio «quando dois ou mais se reunirem em
seu nome» (cf. 18,20), e no final, nas últimas palavras do
Ressuscitado, quando ele promete estar com os discípulos para sempre, até o fim
dos tempos (28,20). À comunidade, de outrora e de hoje, foi conferida a
responsabilidade de manifestar essa presença com o anúncio e o testemunho,
sobretudo. Após o anúncio do anjo, o evangelista diz que «José fez
conforme o anjo do Senhor havia mandado e aceitou sua esposa» (v. 24). Ao
invés de seguir a letra morta da Lei, José obedeceu à Palavra viva de Deus,
anunciada pelo anjo, antecipando o que Jesus recomendará aos seus discípulos
(Mt 5,17-48; 9,13). José foi o primeiro a perceber, segundo a perspectiva de
Mateus, que Deus não estava mais na antiga Lei, mas está conosco, no próximo
que necessita de acolhida e compreensão. Por isso, o que Maria representa no
“evangelho da infância” de Lucas (Lc 1–2), José representa em Mateus: modelo
antecipado de discípulo que soube trocar a Lei pelo amor e a misericórdia.
Enfim, ele foi o primeiro a superar os escribas e fariseus na justiça, como
Jesus exigirá dos seus discípulos, mais tarde (Mt 5,20)
Nas entrelinhas, Mateus diz que Deus deixou a letra, o
livro, para tornar-se humano. E, no discurso escatológico, no final do
Evangelho (Mt 25,31-46), ele vai especificar a categoria humana que Deus se
fez: os pequeninos – pobres e desvalidos, famintos, nus, prisioneiros, pessoas
marginalizadas em geral. Logo, a preparação para o Natal depende essencialmente
da nossa capacidade de acolher e estar do lado destas pessoas que são carne
viva do Emanuel.
Pe. Francisco Cornélio F. Rodrigues – Diocese de
Mossoró-RN

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