sábado, novembro 15, 2025

REFLEXÃO PARA O 33º DOMINGO DO TEMPO COMUM – LUCAS 21,5-19 (ANO C)

 


Após dois domingos seguidos de interrupção, por ocasião da comemoração dos fiéis defuntos e da solenidade de dedicação da basílica de São João de Latrão, retoma-se a liturgia dos domingos do tempo comum, celebrando-se hoje o Trigésimo Terceiro, que já é o penúltimo do ano litúrgico. Com isso, retoma-se também a leitura semi-contínua do Evangelho de Lucas, igualmente interrompida. Como se sabe, a reta final do ano litúrgico é sempre marcada pela leitura de textos do gênero literário apocalíptico, como acontece neste domingo. O evangelho proposto para este dia é tirado do discurso escatológico de Jesus no Evangelho de Lucas – Lc 21,5-19. Por tratar-se de um texto bastante longo, não comentaremos versículo por versículo. Procuraremos colher a mensagem central do texto, embora seja necessário destacar e aprofundar alguns versículos específicos, conforme a importância que ocupam no desenvolvimento do discurso. Recordamos que o discurso escatológico de Jesus está presente nos três evangelhos sinóticos (Mt 24–25; Mc 13,1-37; Lc 23,5-38). A versão de Lucas parece ser a mais sóbria, provavelmente porque ele já tinha antecipado alguns elementos típicos desse discurso na ampla catequese do caminho para Jerusalém, principalmente quando mostrava Jesus insistindo com o tema da oração associado ao da vigilância (Lc 12,35-59; 17,20–18,8) E a vigilância é um dos temas predominantes do discurso escatológico. O contexto narrativo deste discurso é o ministério de Jesus em Jerusalém, após um longo caminho, desde a Galileia até a entrada na grande cidade.

Ainda a nível de contexto, é importante fazer algumas considerações sobre o gênero literário ao qual pertence o evangelho de hoje e todo o discurso escatológico. Trata-se do gênero “apocalíptico”, adjetivo derivado do substantivo “apocalipse” (em grego: ἀποκάλυψις – apocalýpsis), cujo significado é “revelação”, “manifestação da verdade” ou “tornar conhecido algo que estava escondido”. O gênero apocalíptico é bastante empregado na Bíblia, nos dois testamentos, mas tem sido muito distorcido ao longo da história, passando a ser tratado como sinônimo de catástrofes e desastres, causando medo nas pessoas, quando, na verdade, comporta uma linguagem usada pelos autores bíblicos para transmitir mensagens de esperança e resistência às comunidades destinatárias. Logo, ao invés de causar terror e medo, a mensagem do evangelho de hoje deve nos animar, como veremos no decorrer da reflexão. Já o adjetivo “escatológico”, esse deriva da palavra grega “éskaton” (ἔσχατον), que significa fim, diz respeito às realidades últimas. Porém, ao falar de fim, os evangelistas pensam em dois sentidos: fim como supressão de tudo o que impede a realização plena do Reino de Deus, e como finalidade da criação, sobretudo do gênero humano, alcançando seu verdadeiro destino.

A mensagem do evangelho de hoje aponta para os dois sentidos: é preciso dar fim a um mundo injusto, tendo como finalidade o surgimento de um mundo novo, plenamente humanizado pelo amor. Infelizmente, a maioria das interpretações têm estimulado uma concepção de fim enquanto extermínio, marcado por uma sequência de catástrofes, o que termina inculcando medo nas pessoas e levando-as a um fundamentalismo extremo. Na verdade, Jesus está anunciando a transição entre os dois reinos ou dois mundos: o mundo vigente, marcado por violência, ódio, injustiças, e o Reino de Deus, no qual prevalecerá o amor e a justiça, com igualdade e vida abundante, marcado pela plena humanização. Por isso, não se trata de um mundo para o além, apenas, mas de criar neste mundo as condições necessárias para o projeto de Deus se realizar já aqui, com justiça, igualdade e fraternidade. Obviamente, pelos contrastes abissais entre os dois mundos, a transição deverá ser marcada por inevitáveis conflitos, tendo em vista que o advento do Reino de Deus pressupõe a superação de todas as forças e mecanismos que o obstaculizam. Por isso, Jesus previne e encoraja os seus discípulos para a inevitável tensão no período de transição e os consequentes perigos. E os discípulos não devem sossegar enquanto não vivenciarem essa transformação que, mesmo sendo dom de Deus, depende do empenho e da colaboração de todos os homens e mulheres que derem adesão ao programa de Jesus.

Feitas as devidas considerações sobre o contexto, olhemos então para o complexo texto que nos é proposto. A cena transcorre nas dependências do templo de Jerusalém, ambiente de decepção para Jesus, considerando que, de “casa de oração”, fora transformado em “covil de ladrões”, conforme ele denunciou anteriormente (Lc 19,45-46). Em Marcos e Mateus, no entanto, esta cena está situada no monte das Oliveiras (Mc13,3; Mt 24,3). Ao situá-la no próprio templo, Lucas enfatiza ainda mais a oposição de Jesus à instituição religiosa vigente, mostrando que era urgente que ela fosse abolida, ou seja, destruída. Eis o texto: «Algumas pessoas comentavam a respeito do Templo que era enfeitado com belas pedras e com ofertas votivas» (v. 5). Ora, o Templo de Jerusalém era uma construção magnífica, uma obra faraônica, considerado uma das maravilhas do mundo na época, por isso, chamava a atenção de todas as pessoas que o viam, e podia ser visto de longe, devido à sua alta localização. Como estava na semana da Páscoa, conforme o contexto narrativo do evangelho, aquele ambiente já estava bastante movimentado, com a presença de muitos peregrinos de diversas partes do mundo. Muitos desses peregrinos, provavelmente, estavam lá pela primeira vez. Por isso, a admiração de alguns, que poderiam ser discípulos de Jesus, inclusive. De fato, em Marcos e Mateus são os discípulos mesmos que expressam tal admiração (Mc 13,1; Mt 24,1).

O templo de Jerusalém foi construído, destruído e reconstruído mais de uma vez. Na época de Jesus, estava de pé a construção de Herodes, considerada pelos historiadores como a mais luxuosa de todas, superando até a primeira construção, que tinha sido obra de Salomão. Além de símbolo da identidade de Israel, para os judeus, o templo representava a certeza da presença de Deus no meio deles. Por isso, era o maior motivo do orgulho nacional deles. Quem passava por Jerusalém se admirava com a beleza e o esplendor do templo, por isso, eram muito comuns os elogios como esse dos interlocutores de Jesus. Por sua vez, Jesus via o templo sob outra perspectiva. Ele sabia que o principal entrave para o advento do mundo novo que ele almejava – o Reino de Deus – era exatamente a manipulação religiosa com todas as injustiças que dela derivavam, como a conivência e até conluio com o sistema político e econômico. E era isso o que acontecia em Israel. O esplendor do templo era consequência direta da exploração ideológica e econômica. Além dos altos impostos cobrados pelo império romano, o povo era obrigado a pagar taxas também ao templo. “As belas pedras” que o enfeitavam eram consequência de grande exploração, inclusive das pessoas mais necessitadas, como as viúvas pobres (Lc 21,1-4). E, além dos adornos do templo, a exploração e manipulação religiosa mantinha também todos os privilégios das classes dirigentes de Israel, como os sacerdotes. Por isso, o templo de Jerusalém, para Jesus, era a primeira instituição a ser destruída, para aparecerem os primeiros sinais do mundo novo. Daí, a sua resposta objetiva e clara: «não restará pedra sobre pedra» (v. 6b). Com essa expressão, ele externa seu total descontentamento com aquela instituição, dizendo que não há nada a se aproveitar dela: deve ser exterminada o quanto antes. Com toda certeza, o anúncio da destruição do templo revela a necessidade de uma nova concepção de culto e de relação com Deus.

É claro que o anúncio da destruição do templo causou espanto e desconforto nos interlocutores de Jesus. Para quem usufruía daquela estrutura, esse anúncio significava ameaça e perda de privilégios; para quem era vítima da estrutura, significava esperança de libertação. Para os judeus mais devotos, era uma grande blasfêmia, pois, sendo o templo a morada de Deus na terra, sua destruição significava o distanciamento de Deus. Para Jesus, pode ter sido uma causa a mais para a sua iminente condenação à morte na cruz. Por isso, os questionamentos dos seus interlocutores são compreensíveis e inevitáveis: «Quando acontecerá isso? Qual o sinal de que estas coisas estão para acontecer?» (v. 7). A perguntas desse gênero, Jesus responde com muita cautela e precisão, embora não diga quando, pois não é competência sua, nem se trata de algo relevante. O que ele pede, na verdade, é que seus discípulos não se apavorem com os acontecimentos que refletem os antigos sinais do fim dos tempos, preditos ao longo da história de Israel pelos profetas: guerras, revoluções e catástrofes naturais, como terremotos e pestes (vv. 9, 10, 11). A estes fenômenos e acontecimentos, ele aponta outro perigo, mais grave, até: a manipulação de seu nome por falsos pregadores e espertalhões que predizem, sem fundamentação alguma, o final dos tempos e apresentam-se como conhecedores das realidades futuras: «Cuidado para não serdes enganados, porque muitos virão em meu nome dizendo: “Sou eu!” e ainda: “O tempo está próximo”. Não sigais essa gente» (v. 8). Como se vê, ele pede para a comunidade não se deixar enganar por esse tipo de gente que continua presente nos tempos atuais, talvez até com mais astúcia. E essa é a primeira advertência de Jesus: é preciso ter cuidado com as pessoas que usam o seu nome, apresentando-se como ele mesmo ou como seus mensageiros mais autorizados! As pessoas mais perigosas, para Jesus, são aquelas que provocam medo nas pessoas em seu nome, são aquelas que se apresentam como seus representantes, para fazer o mal, para explorar os outros e distorcer sua mensagem.

Na sequência, Jesus chama ainda mais a atenção dos seus discípulos para as consequências da fidelidade ao seu projeto de construção de um mundo novo: uma sociedade alternativa baseada em novos valores e princípios. Obviamente, o advento de um mundo novo requer a superação de um mundo antigo, o que exige a substituição dos valores tradicionais, cultivados pela sociedade e a religião do tempo de Jesus, pelos valores que compõem o seu Evangelho. Eis porque os conflitos se tornam inevitáveis: quem aceitar o Evangelho com seus valores, rejeitará os princípios da antiga ordem estabelecida, mantida pela aparelhagem ideológica da religião e do estado. Tais consequências culminam com as perseguições nos mais diversos âmbitos: religioso, político e até familiar. Quanto às perseguições, que muitos viam como o fim dos tempos, Jesus as apresenta como meios que conduzirão o mundo ao seu verdadeiro fim (finalidade): são sinais de que o Reino de Deus se aproxima. De fato, a fidelidade de seus discípulos será medida pela reação de três instituições a eles: a religião, o poder político e a família. Por isso, Jesus diz que os seguidores do seu Evangelho serão perseguidos e entregues às sinagogas (v. 12), prova de que sua mensagem desmascarava a religião institucional de seu tempo; serão conduzidos diante de reis e governadores (v. 12), sinal da oposição radical entre o Reino de Deus e os poderes políticos vigentes; e serão entregues e mortos até mesmo pelos próprios familiares (v. 16), o sinal de que até mesmo a instituição familiar tradicional é abalada pela mensagem renovadora e libertadora de Jesus.

Diante de uma proposta tão exigente e ousada, Jesus faz um forte apelo à fidelidade e à perseverança dos seus discípulos, encorajando-os a não desanimarem diante das adversidades. Antes de tudo, Ele garante que, quando estas coisas começarem a acontecer, os discípulos terão a oportunidade de dar testemunho da fé nele (v. 13). Ora, testemunho, em grego “martyrion” (μαρτύριον), significa testemunhar e assumir as consequências desse testemunho, dando a vida se for preciso, como Jesus mesmo prevê (v. 16b). Ele aconselha os discípulos também a confiarem plenamente nele, sem preocupações com o que dizer e o jeito de se defenderem diante das perseguições (vv. 14-15). Basta confiar e testemunhar. E é inevitável que, testemunhando Jesus, os discípulos estarão alimentando o ódio daqueles que querem permanecer ligados às antigas instituições e fechados à novidade do Evangelho. Porém, Jesus garante que o mais importante – a vida – será preservada em sua plenitude: «não perdereis um só fio de cabelo de vossa cabeça» (v. 18). Ora, o fio de cabelo significava a menor parte da vida de uma pessoa na mentalidade hebraica; assim, Jesus diz que a vida do discípulo e discípula que perseverar no testemunho corajoso do seu Evangelho será ganha em sua totalidade e abundância. Por isso, a palavra-chave de todo o texto é “perseverança”, embora a tradução litúrgica a tenha substituído pela expressão “permanecendo firmes” (v. 19). Mas, “perseverança” (em grego: ὑπομονῇ - hipomonê), além de traduzir mais adequadamente o termo grego, expressa melhor a atitude que Jesus espera dos discípulos: uma espera com esperança e luta, que não comporta comodismo, nem desânimo; uma espera com disposição e esforço, transformando a pessoa que espera em agente de transformação e libertação.

É, portanto, urgente e necessário conceber a adesão ao ensinamento de Jesus como ruptura com as estruturas e instituições tradicionais para, de fato, testemunhar, de modo livre e novo, os valores que seu Evangelho comporta. É urgente que abracemos seu projeto de mundo novo, caracterizado por novas relações em todos os âmbitos da vida, motivadas única e exclusivamente pelo amor, deixando para trás todas as experiências ultrapassadas, mesmo que usem o nome de Deus, como usava o esplêndido templo de Jerusalém, o qual não merecia outro destino, senão a destruição completa. Por isso, temos a certeza de que Jesus pregava o fim de um mundo antigo insustentável, tendo como finalidade a construção de um mundo novo, humanizado baseado nos valores do seu Evangelho. E, recordando a jornada mundial dos pobres, instituída pelo Papa Francisco, é importante que o primeiro fruto da transformação desejada por Jesus seja um mundo inclusivo, justo e fraterno.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, novembro 08, 2025

REFLEXÃO PARA A SOLENIDADE DA DEDICAÇÃO DA BASÍLICA DE SÃO JOÃO DE LATRÃO (CATEDRAL DE ROMA) – JOÃO 2,13-22

 


Neste ano, a liturgia do trigésimo segundo domingo do Tempo Comum é substituída pela Solenidade da Dedicação da Basílica de São João de Latrão, a catedral de Roma. A precedência sobre o domingo expressa a importância desta solenidade para toda a Igreja. De fato, a Basílica de São João de Latrão, em Roma, é a igreja “mãe de todas as igrejas”. É a verdadeira catedral da Diocese de Roma, cujo bispo é o papa. Foi consagrada no ano 324, pelo Papa São Silvestre I, sendo dedicada inicialmente ao Santo Salvador. Alguns séculos mais tarde, sua dedicação estendeu-se também aos santos de nome João: o Batista e o Evangelista, dando origem ao título atual. Latrão – Laterano em italiano e latim – é o nome da família proprietária do terreno onde a igreja foi construída. Como em todas as dioceses a igreja catedral constitui o verdadeiro centro de unidade, assim é a Basílica de São João do Latrão para o mundo inteiro. Isso faz desta solenidade um sinal forte da comunhão universal da Igreja. Com ela, recordamos que vivemos uma só fé e uma só esperança, unidos pelo mesmo amor. Paradoxalmente, o evangelho escolhido para esta solenidade é Jo 2,13-22, o relato do episódio em que Jesus expulsa os vendedores e cambistas do templo de Jerusalém. Na ocasião, ele decreta a abolição dos templos de pedra, propondo à humanidade uma nova maneira de relacionar-se com Deus, cujo modelo é a sua própria relação com o Pai, marcada pelo amor e a comunhão plena.

Alguns elementos do contexto são essenciais para uma boa compreensão do texto. De início, recordamos que esse é um dos poucos episódios da vida de Jesus narrado pelos quatro evangelistas. Não resta dúvidas de que esse dado atesta a importância do episódio e a alta probabilidade de corresponder a um fato real da vida de Jesus, o que não o isenta de ser revestido de elementos simbólicos pelos evangelistas, conforme as necessidades catequéticas de suas respectivas comunidades. Chama a atenção a localização do episódio no Quarto Evangelho: logo no começo do livro e, por conseguinte, no início do ministério de Jesus, enquanto nos sinóticos aparece já na parte final, na chamada “última semana”, vivida em Jerusalém (Mt 21,12-16; Mc 11,15-19; Lc 19,45-46). Ora, João apresenta Jesus participando de três festas de Páscoa, em Jerusalém, enquanto nos sinóticos registra-se apenas uma participação, na qual ele fora condenado e morto. O motivo da antecipação em João se deve ao caráter programático da cena: se trata do episódio que melhor descreve a proposta de ruptura de Jesus com as instituições de Israel. Essa ruptura é essencial para a inauguração de um novo tempo, com um jeito novo de relacionar-se com Deus. E o inteiro ministério de Jesus será uma demonstração desse novo relacionamento.

A nível de contexto, o mais importante, porém, é associar este episódio ao relato que lhe precede no Evangelho: as bodas de Caná (Jo 2,1-12). A transformação da água em vinho, ali, representou a passagem da Lei para o amor, da letra para o Espírito, antecipando a substituição da antiga pela nova aliança. E assim como não combina «vinho novo em odres velhos» (Mt 9,14-17; Mc 2,18-22; Lc 5,33-39), também não combina aliança nova e culto antigo. Por isso, após inaugurar a nova aliança, Jesus parte para instaurar um novo culto, e isso exigia a supressão do antigo em sua máxima expressão visível: o magnífico templo de Jerusalém. Foi por causa dessa relação que João transferiu esse episódio para o início do ministério de Jesus, adequando as tradições recebidas às suas intenções teológicas e catequéticas, as quais refletem a necessidade da sua comunidade. Portanto, conforme a dinâmica narrativa e teológica do Evangelho de João, o texto de hoje é o complemento das bodas de Caná. Aquele culto mercantilizado e separado da vida não permitia que se sentisse o sabor do novo vinho: o amor do Pai manifestado no Filho. Logo, as bodas de Caná e o episódio lido hoje constituem a introdução e síntese de todo o programa de Jesus, que visa estabelecer uma nova maneira de relacionamento entre Deus e a humanidade.

Olhemos, então para o texto, começando do primeiro versículo: «Estava próxima a Páscoa dos judeus e Jesus subiu a Jerusalém» (v. 13).  Com a expressão “páscoa dos judeus” o evangelista já faz uma importante advertência: aquela Páscoa já não pertencia mais a Deus, tinha perdido a sua sacralidade; era uma Páscoa dos homens, era apenas uma festa religiosa, na qual Deus já não era mais o centro. É importante recordar que, ao longo do seu Evangelho, João usa o termo “judeus” para designar a hierarquia religiosa, e não o povo judeu em si, ao qual pertencia Jesus e as primeiras gerações de seus seguidores e seguidoras. Com isso ele diz que a classe dirigente da religião sediada no templo tinha se apoderado do que é de Deus e, portanto, a comunidade dos seguidores e seguidoras de Jesus deveria distanciar-se daquela instituição. A Páscoa do Senhor tinha sido desvirtuada, transformada em Páscoa dos sacerdotes, dos comerciantes e cambistas. Logo, não era mais de Deus, e o evangelista adverte a sua comunidade e os leitores de todos os tempos. Subir a Jerusalém significa o deslocamento feito pelas pessoas até lá, sobretudo para quem ia da Galileia, como Jesus. É também uma referência à localização da cidade na região montanhosa da Judeia.

Ao chegar em Jerusalém, Jesus se enfurece porque no espaço considerado mais sagrado de Israel – o templo –, ele não encontrou o que deveria encontrar: «No Templo, encontrou os vendedores de bois, ovelhas e pombas e os cambistas que estavam aí sentados» (v. 14). Ora, o que deveria ser encontrado no templo era pessoas de coração sincero, adoradores e adoradoras de Deus. Nesse versículo está o retrato de uma religião degenerada, transformada em mercado. Os animais mencionados, bois, ovelhas e pombas, eram comercializados no recinto sagrado para serem oferecidos em sacrifícios pelos pecados do povo, que a própria religião determinava. A variedade de animais, de bois a pombas, quer dizer que nenhuma classe social escapava, ou seja, ricos e pobres, aproximando-se do templo, eram praticamente obrigados a compactuar com o sistema, comprando animais para oferecer em sacrifício. Geralmente, esses animais pertenciam às famílias dos próprios sacerdotes que constituíam a aristocracia da época. A presença dos cambistas evidencia, ainda mais, o completo desvirtuamento do templo: o sistema econômico funcionava sob as bênçãos da religião; banco e altar conviviam em harmonia no mesmo lugar. O templo possuía um verdadeiro sistema econômico, com moeda própria e as ofertas em dinheiro só eram aceitas nessa moeda. Por isso, quem levava a moeda do império romano ou moedas estrangeiras deveria fazer o câmbio na entrada, certamente pagando altas taxas. Por isso havia cambistas lá.

A situação encontrada por Jesus no templo era inaceitável. Por isso, sua atitude foi bastante dura: «Fez então um chicote de cordas e expulsou todos do Templo, junto com as ovelhas e os bois; espalhou as moedas e derrubou as mesas dos cambistas» (v. 15). João é o evangelista que mais enfatiza a postura furiosa de Jesus; somente ele faz referência ao chicote de cordas, um dos elementos mais significativos da cena. Mais do que a descrição de um gesto, o evangelista quer evidenciar a postura e o sentimento de Jesus diante de uma religião exploradora. A comercialização do sagrado, independentemente da época e do lugar, deixa Jesus enfurecido, inconformado. Com esse gesto ele propõe que toda estrutura de exploração deve ser desestabilizada, destruída, ainda mais quando essa se apoia no nome de Deus. Esse gesto se configura também como uma ação simbólica típica dos profetas do Antigo Testamento. Quando as palavras não eram suficientes, eles cumpriam gestos e ações, tanto para anunciar quanto para denunciar. Porém, em relação ao culto, os profetas ousaram denunciar com palavras (Is 1,10-20; Am 5,21-23), enquanto Jesus foi muito além, passando das palavras à ação. A crítica ao culto mercantilizado sempre foi uma das principais causas dos profetas. E Jesus assume essa linha, ao cumprir esse gesto.

Das categorias de vendedores, o evangelista faz questão de destacar uma delas: «E disse aos que vendiam pombas: “Tirai isso daqui! Não façais da casa de meu Pai uma casa de comércio!”»  (v. 16). O evangelista não mostra Jesus dirigindo a palavra aos outros vendedores, mas apenas cumprindo o gesto. Aos vendedores de pombas ele repreende também verbalmente, dando-lhes uma ordem. Ora, as pombas eram a matéria do sacrifício que os pobres ofereciam; por isso, a ordem é severa “tirai isso daqui!”. Como em qualquer sistema injusto, eram os pobres os mais afetados pela exploração. Quem comprava as ovelhas e bois eram os peregrinos mais abastados; também eles eram explorados, mas Jesus tem mais urgência em combater a exploração dos pobres. Por isso, os primeiros comerciantes denunciados diretamente foram aqueles que vendiam para os pobres. Custava para Jesus ver a casa do Pai transformada em comércio e, consequentemente, Deus transformado em mercadoria. Diante disso, os pobres terminavam sendo as verdadeiras vítimas sacrificadas, pois eram eles os mais explorados. Por isso, a solução ali não seria purificar o templo, mas suprimi-lo, acabar completamente com aquele sistema injusto e explorador.

A motivação para Jesus agir dessa forma é muito clara: o zelo pela casa do Pai: «Seus discípulos lembraram-se, mais tarde, que a Escritura diz: “O zelo por tua casa me consumirá”» (v. 17). O que é recordado pelos discípulos, segundo o evangelista, é uma citação do Salmo 69,10. De fato, toda a ação de Jesus em seu ministério, e mais ainda na perspectiva de João, será motivada pelo incansável zelo pelas coisas do Pai, sobretudo pelo ser humano que tinha sua dignidade roubada por um sistema tão injusto e explorador como tinha se tornado o templo de Jerusalém. O “zelo pela casa” significa muito mais do que uma preocupação cultual ou apego a uma construção. É zelo pela habitação de Deus, que os judeus queriam delimitar à estrutura do templo, mas Jesus sabia muito bem onde Deus realmente estava. Esse zelo que o consume expressa, acima de tudo, o seu amor pelo ser humano, morada privilegiada de Deus. Ele foi tão “consumido” por esse zelo, a ponto de ter sido condenado por isso. De fato, o processo que será movido contra ele pelas autoridades políticas e religiosas da época, será consequência de suas opções radicais em favor daquilo que o Pai deseja: amor, justiça, fraternidade, dignidade, misericórdia e paz para todo o gênero humano. Para Jesus, a verdadeira casa de Deus é a pessoa humana. E toda vez que uma pessoa é injustiçada e explorada a casa de Deus está sendo profanada.

Diante do que estavam vendo, e inconformados com aquilo, «os judeus perguntaram a Jesus: “Que sinal nos mostras para agir assim?”» (v.18). Aqui novamente a expressão “os judeus” significa os dirigentes, os quais não aceitavam ser questionados, pois isso implicava em perda de credibilidade e de privilégios. Ainda quando o questionador era um simples galileu, como Jesus, sem nenhum sinal distintivo de messianidade. Os judeus pediam sinais, ou seja, credenciais que autorizassem Jesus a agir daquela maneira. Jesus poderia reivindicar a seu favor o pensamento de tantos profetas que ao longo da história já tinham identificado aquele culto como obstáculo para o encontro com o Pai (Is 1,10-20). Mas preferiu falar do futuro, das realidades novas que estavam para ser inauguradas: a supressão definitiva daquele falso culto, o qual estava com os dias contados, e sua ressurreição como instauração definitiva do novo culto, verdadeiro e sincero: «Destruí este Templo, e em três dias eu o levantarei» (v. 19). Obviamente, as pessoas que ouviram essa declaração se admiraram, sem compreender. Até mesmo os discípulos só compreenderam após a ressurreição (v. 22). Os judeus, inconformados com tudo o que estavam vendo, ainda questionaram o sentido da declaração de Jesus: «Os judeus disseram: “Quarenta e seis anos foram precisos para a construção deste santuário e tu o levantarás em três dias?”» (v. 20). Como se percebe, o pensamento deles é todo voltado para o que é material, por isso não compreendiam o gesto nem as palavras de Jesus, como, aliás, faziam questão de demonstrar a incompreensão e oposição aos gestos e palavras de Jesus ao longo de todo o seu ministério.

Além da mentalidade fechada, a incompreensão das autoridades dos judeus em relação à desproporcionalidade entre os mais de quarenta anos de construção do templo e a proposta de Jesus de levantá-lo em três dias expressa um dos recursos literários mais caros ao evangelista João: o mal-entendido. Contudo, todos os recursos retórico-literários empregados nos evangelhos estão a serviço da mensagem teológica e espiritual dos respectivos textos. O mal-entendido mostra que os interlocutores de Jesus compreendem suas palavras ao pé da letra, por isso ficaram perplexos, enquanto ele quis revelar uma realidade espiritual mais profunda, como explica o evangelista, na sequência: «Mas Jesus estava falando do Templo do seu corpo» (v. 21). O questionamento foi feito pelos judeus, mas a incompreensão naquele momento estava também nos discípulos, embora esses não tivessem coragem de questioná-lo. Eles só compreenderam as palavras de Jesus após a ressurreição: «Quando Jesus ressuscitou, os discípulos lembraram-se do que ele tinha dito e acreditaram na Escritura e na palavra dele» (v. 22). O mistério pascal ilumina os acontecimentos, dando vida nova. A Páscoa de Jesus faz o que era velho tornar-se novo, inclusive suas palavras. É, portanto, à luz do mistério pascal que devem ser lidos todos os escritos do Novo Testamento.

O culto autêntico, compatível com a nova aliança celebrada no amor, já não necessita de templos de pedras, mas apenas de corações sinceros que busquem e adorem a Deus em espírito e em verdade, como Jesus dirá posteriormente, no encontro com a mulher samaritana (Jo 4,23). Aquele templo de pedras, imponente e faraônico, ao invés de aproximar, distanciava as pessoas de Deus; por isso, deveria ser destruído. Enquanto isso, um templo novo e definitivo estava para ser inaugurado, graças à ressurreição de Jesus (vv. 21-22), como vitória definitiva da vida sobre a morte. Com isso, a vida em plenitude, o culto por excelência agradável a Deus, se torna acessível a toda a humanidade, sem mais a necessidade de sangue de animais e ofertas, mas a partir do coração de cada um. Os sinais e gestos proféticos de Jesus chamavam a atenção, obviamente, afinal muitos em Israel esperavam por um Messias corajoso para reformar a religião e a vida social do país. 

O evangelho de hoje, portanto, nos convida a uma profunda revisão de nossas práticas religiosas. Ele denuncia toda forma de instrumentalização do sagrado e nos chama a construir uma Igreja que seja verdadeiramente casa do Pai, onde todos se sintam acolhidos e respeitados. Jesus não veio apenas para corrigir abusos, mas para inaugurar uma nova forma de se relacionar com Deus, baseada no amor, na liberdade e na verdade. É preciso conciliar a recordação de uma igreja templo tão importante para o mundo cristão com a reflexão sobre o fazer-se templo do Senhor.

Pe. Francisco Cornélio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

 

sábado, novembro 01, 2025

REFLEXÃO PARA A COMEMORAÇÃO DE TODOS OS FIÉIS DEFUNTOS – LUCAS 12,35-40


Neste ano, a liturgia do trigésimo primeiro domingo do Tempo Comum é substituída pela comemoração de todos os fiéis defuntos, devido à coincidência do dia dois de novembro com o domingo equivalente. A oração pelos fiéis defuntos constitui uma prática antiga na vida da Igreja, pois está diretamente relacionada à esperança na vida eterna, cujo fundamento é a ressurreição de Jesus Cristo, princípio fundante da fé cristã. Trata-se, portanto, de uma prática que remonta às origens do cristianismo, com fortes raízes em várias correntes do judaísmo, como atesta a Bíblia em seus dois testamentos. A tradição desta celebração um dia após a comemoração de todos os santos surgiu na França, precisamente na Abadia de Cluny, no ano 998 e, logo após a aprovação oficial pela Igreja, espalhou-se rapidamente por toda a Europa e o mundo. O motivo principal desta celebração é a esperança, como recordam as leituras empregadas. Por sinal, a liturgia oferece várias opções de textos bíblicos para compor a liturgia da Palavra deste dia, independentemente do ciclo litúrgico vigente. Para a nossa reflexão, optamos por Lc 12,35-40, devido ao maior uso dele nas comunidades do Brasil, neste ano, como indicado nos subsídios da CNBB.

O contexto da passagem escolhida – Lc 12,35-40 – é a ampla seção do caminho de Jesus para Jerusalém, acompanhado de seus discípulos (Lc 9,51–19,28). Faz parte de uma subseção na qual Jesus adverte seus discípulos acerca das exigências que o seu seguimento comporta (Lc 12,22-53). De tais exigências, o evangelho de hoje ressalta a necessidade da vigilância e a responsabilidade enquanto se vigia. A princípio, chega a ser surpreendente a localização desse tipo de ensinamento ainda no início do caminho para Jerusalém, pois se trata de um tema escatológico, mais apropriado para a fase final do ministério de Jesus em Jerusalém, já próximo à sua morte, como fazem Marcos e Mateus, ao inserir parábolas tematicamente próximas (Mc 13,32-37; Mt 24,42-51). Somente no Evangelho de Lucas esse tema é proposto de modo tão antecipado. Na verdade, ao propor esse tipo de ensinamento logo na etapa do caminho, o evangelista Lucas indica a importância do tema e a necessidade de mantê-lo em evidência no dia a dia da comunidade, ensinando que a vigilância não é uma atitude a se tomar no final da vida, e sim durante toda a existência. A vida cristã exige que se pratique a vigilância e se prepare cotidianamente para o encontro definitivo com o Senhor.

Feita a devida contextualização, olhamos para o texto, partindo do primeiro versículo, no qual vem expresso o seguinte imperativo: «Que os vossos rins estejam cingidos e as lâmpadas acesas» (v. 35). O emprego do modo imperativo indica a importância e a urgência do que está sendo ensinado. Logo, se trata de uma exigência indispensável na vida cristã. Obviamente, o ensinamento se dá por meio de uma linguagem simbólica, com o emprego de imagens muito acessíveis aos ouvintes de Jesus e aos primeiros destinatários do Evangelho de Lucas. Mediante essa expressão, o evangelista descreve a atitude de quem se encontra em estado de serviço, antes de tudo. E a disponibilidade de servir é a primeira atitude que se espera de uma pessoa cristã. Ora, a vestimenta básica da época era a túnica; essa não facilitava o serviço, pois atrapalhava o movimento. A expressão “os rins cingidos” quer dizer estar com a túnica levantada até a cintura, posição dos rins, presa ao cinto. Com isso, facilitava-se o movimento. Era assim que as pessoas ficavam enquanto trabalhavam ou viajavam. Significa estar pronto para caminhar e servir. Jesus pede uma postura vigilante, mas ao mesmo tempo serviçal. Seus discípulos devem vigiar sim, eis o sentido das “lâmpadas acesas”; mas, enquanto vigiam colocam-se em prontidão para o serviço. Foi “cingido” que Jesus lavou os pés dos discípulos na última ceia (Jo 13,4-5). Também os hebreus celebraram a primeira Páscoa assim: «E comereis assim: com a cintura cingida, as sandálias nos pés» (Ex 12,11a). Diante disso, percebe-se uma clara intenção da parte de Lucas de incentivar a comunidade a manter-se constantemente em espiritualidade pascal. Isso se confirma pela continuação do ensinamento, no qual se diz que quando o senhor voltar da festa de casamento fará os servos sentarem-se à mesa, e ele mesmo os servirá (v. 37). Trata-se de uma atitude surpreendente para quem é senhor.

O ensinamento continua com mais um imperativo, no qual a linguagem simbólica é empregada de modo ainda mais intenso: «Sede como homens que estão esperando seu Senhor voltar de uma festa de casamento, para lhe abrirem, imediatamente, a porta, logo que ele chegar e bater» (v. 36). Na Bíblia, a imagem da festa de casamento é sempre representativa da relação entre Deus e a humanidade, levada à plenitude por Jesus. Nesta passagem específica, ela significa todo o mistério pascal – paixão, morte, ressurreição e ascensão de Jesus. É, portanto, dessa festa que os homens – a humanidade – devem esperar a volta de seu senhor. A volta, aqui, portanto, é a parusia (παρουσία), termo grego empregado pelo cristianismo para descrever e sintetizar o retorno definitivo do Senhor Jesus, cujo momento preciso – dia e hora – é absolutamente desconhecido. E a necessidade da vigilância permanente se dá exatamente porque ninguém sabe o dia e nem a hora em que o Senhor vai voltar. A maneira de esperar a sua volta, conforme sua mensagem e sua vida, é vivendo à sua maneira, sobretudo no jeito de amar. Não há prática devocional que substitua o amor enquanto credencial para o encontro definitivo com o Senhor. Enquanto se espera, portanto, é necessário que, todos os dias, se abra a porta para ele, que bate continuamente, apresentando-se com diversas características, sendo que a mais típica e própria dele é a pessoa necessitada. Somos vigilantes quando, humanizados por seu amor, nos tornamos instrumento de humanização para o próximo, o mundo. Fazer isso é abrir a porta para ele. Por sinal, a porta não aparece explicitamente no texto em grego, a língua original do Evangelho. Certamente, para o ouvinte e leitor não se confundir, imaginando a porta física de uma casa. O que se deve abrir, portanto, é o coração, para o Senhor entrar e morar na vida da pessoa. Para isso, não é necessário esperar um momento imprevisível e desconhecido, pois todos os dias ele bate em nosso coração, desejando entrar e morar. Entrando, ele transforma, renova a pessoa.

Na continuidade, o ensinamento se torna ainda mais surpreendente, com uma pequena parábola, na qual se descreve o comportamento do Senhor para com os servos encontrados acordados em seu retorno: «Felizes os empregados que o Senhor encontrar acordados quando chegar. Em verdade eu vos digo: Ele mesmo vai cingir-se, fazê-los sentar-se à mesa e, passando, os servirá» (v. 37). São declaradas bem-aventuradas as pessoas que fazem a vigilância permanente, como ensinado por Jesus, o que se dá mediante o amor e serviço. A pessoa que ama o próximo e serve, por amor, está sempre com o coração aberto para o Senhor entrar. Quem vive assim estará sempre acordada para o encontro com o Senhor, mesmo quando morre. O sono que impede o encontro com o Senhor, portanto, não é o sono físico, mas a falta de amor, de empatia, é a indisposição de acolher e servir. Com essa pequena parábola, o evangelista reforça suas convicções de que um novo mundo está em construção, desde o anúncio do nascimento de Jesus, com a exaltação dos pequenos e humildes, proclamada no Magnificat (Lc 1,46-55) e reforçada por tudo o que Jesus ensinou, até aqui, sobretudo nas bem-aventuranças e maldições (Lc 6,20-26). Ao longo da história, o agir de Deus sempre contradisse a lógica humana, como se reforça aqui. Por sinal, o termo traduzido por “empregados” na versão litúrgica significa servos ou escravos (em grego: δοῦλοι – duloi), imagem do que há de mais baixo na estratificação social dos tempos de Jesus. E foi assim que Maria de Nazaré se autodeclarou, ao dar o seu sim ao projeto de Deus. Aqui, o evangelista ensina que os servos, os últimos, são servidos pessoalmente pelo Senhor. A imagem de um Senhor que serve é mesmo surpreendente. Trata-se de uma das mais belas imagens que Jesus aplica a Deus e a si mesmo: um senhor, grande proprietário que, ao invés de exigir serviço de seus servos, abaixa-se para servi-los. Somente Jesus, sendo Senhor, fez-se servo (Lc 22,27).

As diversas possibilidades de hora em que o Senhor poderá voltar e encontrar seus servos acordados reforçam a importância da vigilância, que consiste em assumir a verdadeira condição de servo: «E caso ele chegue à meia-noite ou às três da madrugada, felizes serão, se assim os encontrar!» (v. 38). Obviamente, não se trata de uma exigência para as pessoas renunciarem ao pouco tempo disponível que têm para dormir, num mundo tão dominado pela lógica do capital, no qual a classe trabalhadora vive sufocada diante de uma jornada de trabalho desumana e contrária ao Evangelho. O sono é uma necessidade fisiológica vital, fundamental para a saúde e o bem-estar da pessoa. Certamente, não é do agrado de Deus quando as pessoas são forçadas a deixar de dormir, seja por excesso de trabalho, seja por devoção exagerada. O que o Senhor quer encontrar, a qualquer hora, é corações cheios de amor e, ao mesmo tempo, abertos para receber o amor que ele oferece a todas as pessoas, indistintamente. Toda hora é hora de amar e sentir-se amado. Quem, a todo instante, ama, é feliz, é agradável a Deus e dele não se separa, nem mesmo com a morte.

Os versículos conclusivos constituem mais uma pequena parábola (vv. 39-40), que visa apenas reforçar a necessidade da vigilância, através da imagem do ladrão que não avisa a hora do assalto, mas procura exatamente surpreender o dono da casa. Com isso, temos novamente uma imagem surpreendente, justamente quando se adverte a comunidade cristã a não se deixar surpreender com a volta do Senhor. Essa é a única vez, em toda a Bíblia, que Deus é apresentado como um ladrão, embora o “Dia do Senhor” seja apresentado com essa mesma imagem em outros contextos e gêneros literários (1Ts 5,2; 2Pd 3,10; Ap 3,3). A falta de conhecimento do dia e da hora da vinda do Senhor deve ser motivo para a comunidade não desviar o foco por um único instante; isso quer dizer que os discípulos não podem, em momento algum, deixar de viver o programa de Jesus, ou seja, o Evangelho do Reino.

Tendo em vista os limites da vida neste humano, é necessário carregá-la de sentido, e o modo adequado de fazer isso é viver conforme a justiça e o amor, depositando toda a confiança em Deus e em seu infinito amor. Para isso, é necessário manter o coração pronto para acolhê-lo continuamente. Ao recordar os entes queridos que já partiram, somos chamados a refletir sobre os limites da nossa existência neste mundo e a necessidade de preenchê-la de sentido. E isso depende essencialmente da maneira de relacionar-se com Deus, deixando-se humanizar pelo seu amor. Por isso, sejamos vigilantes como pede o Senhor, amando e deixando-nos amar por ele.

Pe. Francisco Cornélio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sexta-feira, outubro 31, 2025

REFLEXÃO PARA A SOLENIDADE DE TODOS OS SANTOS – MATEUS 5,1-12a


Neste ano, a Igreja no Brasil celebra a solenidade de todos os santos no próprio dia – primeiro de novembro –, o que pode ser considerado um fenômeno raro no calendário litúrgico do nosso país, uma vez que se costuma transferi-la para o domingo seguinte, o que neste ano coincide com a comemoração de todos os fiéis defuntos – dia dois de novembro , a qual terá prioridade. O evangelho proposto para essa solenidade de todos os santos é um texto fixo, lido todos os anos, certamente porque nenhuma outra passagem bíblica expressa tão bem o sentido da santidade como este: Mt 5,1-12a. Trata-se da introdução do primeiro dos cinco discursos de Jesus no Evangelho de Mateus, conhecido como “discurso ou sermão da montanha”. Essa introdução ficou conhecida como “bem-aventuranças”, devido à repetição constante do termo grego makárioi (μακάριοι), cujo significado é benditos, felizes ou bem-aventurados. Esse é, certamente, um dos trechos mais lidos e conhecidos de todo o Novo Testamento, apreciado por cristãos e não cristãos, pois contém o mais completo programa de humanização que o mundo já conheceu. Gandhi, por exemplo, definiu as bem-aventuranças como «as palavras mais altas que a humanidade já escutou».

As bem-aventuranças compreendem a síntese do programa de vida de Jesus e, consequentemente, daquilo que seus discípulos e discípulas de todos os tempos devem viver. É um texto belo, mas muito fácil de ter seu sentido deformado, se interpretado de modo equivocado, como geralmente tem acontecido. Ora, falar em todos os santos e santas tem tudo a ver com o autêntico seguimento de Jesus de Nazaré. Por isso, é importante refletir cada vez mais sobre as palavras de Jesus que o Evangelho apresenta. Na verdade, todo o discurso da montanha é um indicador de direção para o discipulado de Jesus e, portanto, para a santidade. Devemos, pois, concentrar nossa reflexão na mensagem evangélica, evitando que esta solenidade se transforme em mera apologia ao devocionismo fundamentalista que tanto tem se difundido nos últimos anos. Por isso, é preciso ter clareza do programa de vida de Jesus com seu projeto de sociedade e, consequentemente, das suas exigências.

De todas as palavras atribuídas a Jesus que encontramos ao longo dos evangelhos, as bem-aventuranças são as mais interpelantes e revolucionárias, embora sejam as mais fáceis de serem deturpadas, passando de uma mensagem de transformação a uma de resignação. Infelizmente, isso tem acontecido com muita frequência. Por isso, é necessário compreendê-las bem, para que sua mensagem seja sempre de encorajamento e transformação. Na versão mateana, encontramos oito bem-aventuranças, embora alguns comentadores considerem nove, devido à ocorrência do termo grego makárioi (μακάριοι) por nove vezes. Não consideramos a nona ocorrência do termo (v. 11) como uma nova bem-aventurança, mas como uma recapitulação e síntese das oito para os discípulos, reforçando a exigência para que eles de fato vivessem intensamente todas elas.

Para compreendermos as bem-aventuranças em seu sentido original, é necessário fazer mais uma consideração semântica. Como já afirmamos anteriormente, o termo grego empregado no Evangelho é makárioi (μακάριοι), o qual pode ser traduzido por benditos, felizes ou bem-aventurados; é uma fórmula que introduz uma mensagem de felicitação. É importante recordar que, embora escritos em grego, os evangelhos foram construídos segundo uma mentalidade semítica, sobretudo o de Mateus. Por isso, é importante recordar o sentido da palavra na língua original de Jesus, o hebraico. Ora, o termo correspondente ao grego μακαριοι – makárioi, em hebraico é (אשרי) “ashrei”, o qual significa uma felicitação, mas é, ao mesmo tempo, uma forma imperativa do verbo caminhar, seguir em frente, avançar ou pôr-se em marcha. Expressivas correntes da exegese atual propõem que o evangelista pensou nos dois sentidos ao formular o seu texto. De fato, sem esse segundo sentido, as bem-aventuranças podem facilmente ser transformadas em discurso de conformismo ou resignação; com ele, passam a ser uma mensagem de transformação.

Olhemos, pois, para cada uma das situações contempladas por Jesus como necessitadas de transformação. Eis a primeira bem-aventurança: «Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o Reino dos Céus» (v. 3). De todas, tem sido essa a bem-aventurança que tem recebido as interpretações mais equivocadas ao longo da história, infelizmente. Longe de ser um convite ao conformismo, é um impulso à transformação. Na língua grega a palavra pobre (πτωχός – ptokós) deriva do verbo acocorar-se de medo, dobrar-se, abaixar-se, encurvar-se; designa, portanto, uma condição de humilhação extrema. O convite de Jesus é para que não desanimem, mas sigam em frente, não desistam, coloquem-se em marcha para alcançarem o Reino que foi criado para eles, o Reino dos Céus, mas não no céu, aqui mesmo na terra, como sinônimo de vida digna e plena. Aqui o termo espírito (em grego: πνεύμα – pneuma) é empregado como sinônimo de consciência da situação em que se encontram os pobres, encurvados de medo pela opressão do império romano e pela religião oficial da época. A esses, Jesus convida a perder o medo e, conscientemente, seguir em frente lutando pelo Reino. O pobre que se encontra encurvado pelo sistema, deve tomar consciência da sua situação insuportável e lutar, seguindo em busca de seus direitos de herdeiro do Reino.

A segunda bem-aventurança diz: «Bem-aventurados os aflitos, porque serão consolados» (v. 4). De todas as bem-aventuranças, certamente, essa é a mais paradoxal. Numa tradução mais literal, o termo aflitos seria substituído por “os que choram”, e essa bem-aventurança mistura felicidade com lágrimas e lágrimas com a consolação. É um paradoxo que escapa a qualquer lógica humana. É claro que Deus não compactua com as causas das aflições, mas ele está sempre do lado dos aflitos, daqueles que choram. Ora, jamais será consolado o aflito que se fecha em suas aflições, mas sim aquele que consegue mover-se, apesar do sofrimento. Ser consolado na mentalidade bíblica é ter o sofrimento eliminado por completo. A implantação do Reino dos Céus em um mundo tão hostil traz muitas aflições para os discípulos de Jesus. Mesmo assim, eles devem avançar, jamais recuar, para encontrar a consolação.

Na terceira bem-aventurança, Jesus diz: «Bem-aventurados os mansos, porque possuirão a terra» (v. 5). O termo manso equivale a humilde, e significa a pessoa que reivindica alguma coisa sem violência. Nesse caso particular, equivale às pessoas que lutam pela terra sem fazer uso da violência. A luta sem violência se torna mais lenta e, aparentemente, mais difícil de conseguir o objetivo. Por isso, Jesus encoraja, pede paciência, determinação e ação; em outras palavras, é como se ele dissesse: «não parem, continuem caminhando e lutando». Era muito comum os pequenos camponeses perderem suas terras por dívidas, com possibilidade de resgate. À medida que o tempo passava, as esperanças de resgate diminuíam e muitos desanimavam. Por isso, Jesus os consola e os encoraja.

Como não poderia deixar de ser, Jesus coloca para os discípulos, conforme ele mesmo o fizera, a justiça como uma busca incessante. Por isso, a quarta bem-aventurança é tão forte: «Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados» (v. 6). A fome e a sede são as necessidades que mais incomodam o ser humano. Assim como o alimento e a bebida são essenciais para a vida, também deve ser a luta por justiça entre seus discípulos. A comunidade cristã não tem vida quando não se alimenta cotidianamente de justiça. Onde não há justiça, não há dignidade, não há paz. É preciso seguir em frente na luta por justiça.

Na quinta bem-aventurança, temos: «Bem-aventurados os misericordiosos, porque encontrarão misericórdia» (v. 7). É importante recordar que misericórdia, na Bíblia, não é um sentimento, mas uma ação em favor dos necessitados. Com isso, Jesus pede que seus discípulos prossigam sempre no caminho do bem, pois é do bem que o bem é gerado. Quando mais se ama mais possibilidades se tem de ser amado também. Isso faz parte da pedagogia divina e da própria essência do Deus revelado por Jesus, que é todo amor e misericórdia. De fato, a misericórdia é uma das principais características do Deus de Jesus, por isso, deve ser também para os seus seguidores. Seguir fazendo o bem ao próximo, sem distinção, é uma das principais exigências do discipulado.

Com a sexta bem-aventurança, Jesus se contrapõe claramente aos ritos de purificação da religião judaica: «Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus» (v. 8). Os antigos ritos de purificação do judaísmo tinham escondido o rosto verdadeiro de Deus. Jesus proclama a nulidade daqueles ritos e pede para seus discípulos caminharem em outra direção, avançarem por outro caminho que não seja o da religião que divide, exclui e até mata. Só há um tipo de pureza: aquela interior, e essa não é proporcionada por nenhum rito, mas somente pela disposição do ser humano em seguir os propósitos de Deus. Vê a Deus quem olha para o próximo com os olhos de Deus. É nessa direção que o discípulo de Jesus deve marchar, avançar.

A sétima bem-aventurança diz: «Bem-aventurados os que promovem a paz, porque serão chamados filhos de Deus» (v. 9). Na marcha da comunidade formada por discípulos e discípulas de Jesus, a promoção da paz é requisito básico e essencial. Não se trata de uma falsa paz como aquela imposta por Roma, intitulada “pax romana”. A paz que Jesus propõe não é uma mera ausência de conflitos, mas um retorno ao ideal hebraico expresso pela palavra (שלום) shalom: paz como bem-estar total do ser humano, harmonia com Deus, com o próximo e consigo mesmo. É por essa paz que a comunidade de discípulos e discípulas deve lutar enquanto caminha, fazendo dessa paz o rumo da caminhada. Não há prêmio para quem caminha promovendo a paz, mas há consequências: ser chamados filhos de Deus. Na tradição bíblica, ser filho é ser parecido com o pai. Quando alguém caminha promovendo a paz, se torna parecido com Deus, por isso, será chamado seu filho.

A oitava bem-aventurança funciona como uma espécie de credencial para o reconhecimento do discípulo e sua pertença ao Reino: «Bem-aventurados os que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o Reino dos Céus» (v. 10). A justiça, por excelência, é a prática de todas as bem-aventuranças anteriores. A quem adere plenamente à lógica do Reino, não há outra consequência a não ser a perseguição. Mas, mesmo diante da perseguição, a palavra de Jesus continua sendo de ânimo e encorajamento: continuai caminhando, avançando, marchando em busca do Reino que é vosso!

Viver as bem-aventuranças é, portanto, abraçar um projeto de sociedade alternativa que, inevitavelmente, entra em conflito com os sistemas dominantes baseados na exploração, no lucro, na sobreposição de uns sobre os demais e pela violência. Mas é diante de tudo isso, ou seja, no conflito, que a comunidade cristã deve avançar, seguir em frente sem jamais desanimar. Por isso, Jesus reforçou todo o ensinamento anterior, direcionando diretamente para os discípulos a conclusão com as consequências do abraçar o seu projeto: «Bem-aventurados sois vós, quando vos injuriarem e perseguirem, e, mentindo, disserem todo tipo de mal contra vós, por causa de mim. Alegrai-vos e exultai, porque será grande a vossa recompensa nos céus» (vv. 11-12a). Alguns estudiosos vêem essa afirmação como uma nova bem-aventurança, enquanto outros, a maioria, a vêem como um reforço e síntese conclusiva das oito anteriormente apresentadas. Aquelas oito são inseparáveis. Jesus não as apresenta como sugestões para os discípulos escolherem uma ou outra. É preciso viver todas elas para ser discípulo e discípula de Jesus, pois nelas ele traça o seu próprio retrato, diz como ele mesmo viveu, caminhou ou avançou; e o discípulo deve, inevitavelmente, viver como ele.

Assim, recordando que Paulo e os demais cristãos de suas comunidades chamavam-se mutuamente de santos, e eram cristãos porque levavam a sério as bem-aventuranças, podemos compreender que celebrar todos os santos é recordar todos os que não aceitam as coisas como são impostas, mas sabem mover-se, avançar e seguir um outro caminho, não para fugir da realidade, mas para transformá-la à maneira de Jesus.

Para seguir Jesus é preciso estar em estado permanente de marcha, caminhando contra tudo o que impede a realização do Reino já aqui na terra. A comunidade cristã não pode mais aceitar que uma mensagem tão encorajante e transformadora se transforme em sinal de resignação e aceitação passiva diante de tudo o que impede o advento do Reino. A mensagem das bem-aventuranças é libertadora porque convida o discípulo e a discípula a sair de si, colocar-se em movimento rumo a um mundo melhor, mais justo e mais fraterno. Enfim, as bem-aventuranças constituem o mais completo programa de humanização que esse mundo já conheceu.

 Pe. Francisco Cornélio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

REFLEXÃO PARA O 33º DOMINGO DO TEMPO COMUM – LUCAS 21,5-19 (ANO C)

  Após dois domingos seguidos de interrupção, por ocasião da comemoração dos fiéis defuntos e da solenidade de dedicação da basílica de Sã...