sábado, junho 28, 2025

REFLEXÃO PARA A SOLENIDADE DOS APÓSTOLOS PEDRO E PAULO – MATEUS 16,13-19

 


Como tem acontecido nos últimos dois anos, também neste ano, a liturgia do décimo terceiro domingo do tempo comum é substituída pela solenidade dos apóstolos Pedro e Paulo. Por isso, interrompe-se neste dia a leitura semi-contínua do Evangelho de Marcos. Para esta solenidade, o evangelho é o mesmo em todos os anos: Mt 16,13-19. Esse texto é muito rico e significativo, pois contém o relato do clássico episódio de Cesareia de Filipe, cujo ápice é a confissão de fé de Pedro, que reconhece e proclama Jesus como o Cristo, ou seja, o Messias. Trata-se de um episódio comum aos três evangelhos sinóticos (Mt 16,13-19; Mc 8,27-30; Lc 9,18-21), sendo que a versão de Mateus apresenta mais elementos próprios, como veremos no decorrer da reflexão. E foi exatamente por causa dos seus elementos próprios que o texto de Mateus foi mais valorizado, ao longo dos séculos, sobretudo, no cristianismo católico. Como fazemos em todos os domingos, concentraremos a reflexão no texto bíblico em si, sem transformá-la em mera apologia devocional aos santos apóstolos recordados. No entanto, reconhecemos que a recordação dos apóstolos é sempre importante para a vida da Igreja, porque a ajuda a manter-se alinhada às suas origens, não obstante os desgastes históricos.

Os apóstolos Pedro e Paulo foram imprescindíveis para o cristianismo das origens conservar os ensinamentos de Jesus e, ao mesmo tempo, para se espalhar e crescer, extrapolando os limites culturais e geográficos do judaísmo e da Palestina. Olhando para o exemplo dos dois, a Igreja, de hoje e de sempre, é interpelada, cada vez mais, a renovar-se e edificar-se somente pela fé em Jesus Cristo, sem tomar como parâmetro nenhuma instituição terrena. A recordação dos dois no mesmo dia é também sinal da unidade na diversidade, características da comunidade cristã desde as origens, que devem ser reconhecidas permanentemente. O Novo Testamento mostra divergências e até conflitos entre eles. Pedro, um pescador do pequeno mar da Galileia, foi transformado em pescador de seres humanos; Paulo, um fariseu zeloso, até fanático, perseguidor da comunidade cristã, transformado em apóstolo das nações. Cada um foi transformado pelo encontro com Jesus, passando a viver em contínua conversão a partir de então, com atitudes muitas vezes contraditórias. Ambos assumiram um protagonismo incomparável nas primeiras décadas do cristianismo, a ponto de alguns estudiosos defenderem que o livro de Atos dos Apóstolos poderia tranquilamente ser chamado de Atos de Pedro e Paulo, uma vez que são os principais personagens humanos da obra. Por caminhos e métodos diferentes, como eram tão diferentes em personalidade e história de vida, tiveram em comum a paixão por Jesus Cristo e o zelo pelo seu Evangelho, recebendo como prêmio a coroa do martírio.

Antes de entrarmos na reflexão do texto em si, é necessário fazer algumas considerações a respeito do contexto do relato no conjunto do Evangelho. Convém recordar que esse trecho abre uma série de acontecimentos importantes da vida de Jesus e dos seus seguidores, como a transfiguração (Mt 17,1-7) e os dois primeiros anúncios da paixão (Mt 16,21-23; 17,22). Na verdade, pode-se dizer que esses acontecimentos são consequência do episódio narrado no evangelho de hoje, pois tanto a transfiguração quanto os anúncios da paixão são tentativas de Jesus revelar a sua verdadeira identidade, tendo em vista que os discípulos ainda não tinham tanta clareza dessa. Recordamos acima o que sucede ao texto no conjunto do evangelho, mas também não podemos deixar de recordar o que o antecede: houve uma controvérsia de Jesus com os fariseus, que lhe pediram um sinal do céu (Mt 16,1-4), e uma séria advertência aos discípulos para não se deixarem contaminar pelo fermento dos fariseus e saduceus (Mt 16,5-12). Esse fermento era a mentalidade equivocada sobre Deus e o futuro messias e, principalmente, a hipocrisia em que viviam. Mateus recorda tudo isso porque, certamente, a sua comunidade passava por uma crise de identidade: por falta de clareza da identidade de Jesus e falta de experiência autêntica com o Crucificado-Ressuscitado, o “fermento dos fariseus”, quer dizer a influência da sinagoga, estava atrapalhando a vivência das bem-aventuranças, síntese do programa de Jesus, e impedindo a realização do Reino dos céus naquela comunidade.

Feita a contextualização, olhemos para o texto: «Jesus foi à região de Cesaréia de Filipe e ali perguntou aos seus discípulos: “Quem dizem os homens ser o Filho do homem?”» (v. 13). Como se vê, o texto começa com um indicativo espacial. Cesareia de Filipe estava localizada no extremo norte de Israel, portanto, muito longe de Jerusalém. Como o próprio nome indica (homenagem a César), era um centro do poder imperial e, portanto, lugar de culto ao imperador romano. Certamente o evangelista e sua comunidade tinham um propósito muito claro ao narrar esse episódio e recordar a sua localização. Ora, longe de Jerusalém, os discípulos estariam isentos da influência do fermento dos fariseus e, portanto, aptos a confessarem e professarem livremente a fé em Jesus, fora dos esquemas tradicionais da religião. O distanciamento físico, portanto, é sinal do distanciamento da ideologia que Jerusalém representa. Ao mesmo tempo, estando em uma região de culto ao imperador, a confissão da fé em Jesus se torna um sinal de convicção e adesão ao projeto do Reino dos Céus, e uma demonstração da coragem que deve marcar a vida da comunidade cristã, chamada a testemunhar a Boa Nova, e a continuar a obra de Jesus, mesmo em meio às hostilidades impostas pelo poder imperial. Portanto, pode-se dizer que professar a fé em Jesus é distanciar-se dos esquemas tradicionais do judaísmo e, ao mesmo tempo, desafiar qualquer sistema que não coloque a vida e o bem do ser humano em primeiro lugar, como o império romano. Isso torna a confissão de Pedro um ato extremamente subversivo.

A expressão “Filho do Homem” ao invés do pronome pessoal “eu” é a primeira particularidade de Mateus em relação às versões de Marcos e Lucas, deste episódio. Porém, o sentido aqui é o mesmo. A pergunta de Jesus sobre o que diziam a respeito de si, ou seja, do Filho do Homem, não é demonstração de preocupação com sua imagem pessoal, mas com a eficácia do anúncio da comunidade. Àquela altura da sua vida pública, ele já tinha realizado muitos sinais entre o povo e ensinado bastante, mas pouca gente o conhecia verdadeiramente. Muitos o seguiam pela novidade que ele trazia, uns pelo seu jeito diferente de acolher os mais necessitados e excluídos, outros para aproveitarem-se dos sinais que ele realizava. Foi como consequência disso que ele fez a pergunta: «Que dizem os homens ser o Filho do Homem?» (v. 13b). E a resposta dada pelos discípulos revela a falta de clareza que se tinha a respeito da sua identidade e, ao mesmo tempo, a boa reputação da qual ele já gozava diante do povo; certamente, o povo simples, com quem ele interagia e por quem lutava. Eis a resposta: «alguns dizem que é João Batista; outros, que é Elias, outros, ainda, que é Jeremias ou algum dos profetas» (v. 14). A menção a Jeremias entre os personagens com os quais o povo identificava Jesus é outra exclusividade de Mateus. Marcos e Lucas nomeiam apenas João Batista e Elias. O acréscimo de Mateus é significativo, pois Jeremias foi o profeta mais “parecido” com Jesus, em relação ao estilo de vida, o teor da pregação e a perseguição sofrida.

A resposta mostra o quanto Jesus estava bem-conceituado pelo povo, pois era reconhecido como um grande profeta. Mas ele era e é muito mais. Logo, trata-se de uma resposta incompleta. Ora, embora continuem sempre atuais, os profetas de Israel são personagens do passado. E a comunidade cristã não pode ver Jesus como um personagem do passado que deixou um grande legado a ser lembrado, pois isso a impede de fazer sua experiência com o Ressuscitado, presente e atuante na história. Apesar de importante, a pergunta de Jesus sobre o que as outras pessoas diziam a seu respeito foi apenas um pretexto. Na verdade, o que ele queria saber mesmo era o que os seus discípulos pensavam de si, qual imagem tinham a seu respeito. Por isso, lhes perguntou: «E vós, quem dizeis que eu sou?» (v. 15), uma vez que longe do “fermento dos fariseus”, os discípulos poderiam dar uma resposta sincera, isenta e livre. O texto afirma que «Simão Pedro respondeu: “Tu és o Messias, o Filho do Deus vivo”» (v. 16). Certamente, também os outros discípulos também responderam. O evangelista enfatiza a resposta de Pedro por ser uma síntese do pensamento dos doze. Essa é a resposta do grupo e, portanto, da comunidade, da qual Pedro se faz porta-voz.

A resposta de Pedro é complexa e profunda: Jesus é «o Messias, o Filho e do Deus vivo». A tradução litúrgica traz a palavra “Messias”, porém, é mais apropriado o termo “Cristo”, conforme o texto na língua original (em grego: Χριστός – Christós). É muito significativo que Jesus seja reconhecido e acolhido como o Messias esperado, ou seja, o Cristo, o enviado de Deus para libertar o seu povo e a humanidade inteira. Como circulavam muitas imagens de messias entre o povo, principalmente a de um messias guerreiro e glorioso, o segundo elemento da resposta de Pedro é de extrema profundidade e importância: «o Filho do Deus vivo». Além de definir a qualidade da messianidade de Jesus, essa expressão serve também para denunciar a falsidade do culto ao imperador romano, o qual exigia ser reverenciado como filho de uma divindade. Por sinal, a expressão «Filho do Deus vivo», na resposta de Pedro, é outra exclusividade de Mateus. Em Marcos, a resposta é apenas «Tu és o Cristo!» (Mc 8,), e em Lucas é «Tu és o Cristo de Deus» (Lc 9,20). Logo, a resposta em Mateus é mais profunda e, sobretudo, universalista. Ora, o título “Cristo” (ou Messias) correspondia às mais profundas expectativas do judaísmo, bastante enraizado na comunidade de Mateus, o que seria um incentivo à preservação da ideologia nacionalista.

Com a expressão «o Filho do Deus vivo», o evangelista ensina que a messianidade de Jesus não corresponde às expectativas de Israel; trata-se de um Messias diferente, que não veio apenas para Israel, mas para a inteira humanidade. Ora, Israel esperava um Messias filho de Davi, cujo título evoca um programa estritamente restauracionista, reformador, visando a restauração da monarquia e do reino davídico-salomônica. Por isso, a afirmação de Pedro é altamente revolucionária e comprometedora. Ora, essa resposta compromete a(s) comunidade(s) cristã(s), em todos os tempos e lugares, a proclamar que Jesus é, de fato, o Cristo, é o Filho do Deus vivo, ou seja, o seu Deus é o Deus da vida, enquanto os deuses pagãos cultuados no império romano e até mesmo o Deus do templo de Jerusalém, completamente desfigurado pela aristocracia sacerdotal de lá, eram privados de vida, eram agentes de morte, sobretudo para o povo simples e excluído que era explorado diariamente. Portanto, a convicção de que Jesus é o Filho do Deus vivo compromete a comunidade a denunciar e desafiar todos os sistemas religiosos e políticos que não favoreçam a promoção da liberdade e da vida plena e abundante para todos.

Jesus aprovou a resposta de Pedro, por isso o proclamou bem-aventurado: «Feliz és tu, Simão, filho de Jonas, porque não foi um ser humano que te revelou isso, mas o meu Pai que está no céu» (v. 17). De agora em diante, até o versículo 19, o texto passa a ser exclusivo de Mateus. O paralelismo com Marcos e Lucas só volta no versículo 20, que já não faz parte da seleção escolhida para a esta liturgia. Considerando que Mateus teve Marcos como fonte para este episódio, os versículos 17-19 são um acréscimo da sua comunidade como resposta a necessidades concretas, sobretudo em relação à diferenciação da comunidade com a sinagoga. A bem-aventurança dirigida a Pedro não é um elogio por um mérito particular, até porque o conhecimento não é dele, mas do Pai que lhe revelou. O que Jesus faz, então, é uma constatação: parece que as coisas começam a funcionar bem na comunidade, pois a voz do Pai está sendo ouvida; e como o Pai só revela seus desígnios aos pequeninos (Mt 10,21), e Pedro estava falando a partir do que o Pai lhe revelou, logo ele estava demonstrando adesão plena ao projeto do Reino, inserindo-se no mundo dos pequeninos! O Reino de Deus ou dos céus, como Mateus prefere, é um projeto alternativo de mundo que só tem espaço para quem aceita a condição de pertencer ao mundo dos pequeninos. A bem-aventurança de Pedro, portanto, consiste em abrir-se à vontade do Pai e deixar-se conduzir por ela.

Na continuidade, Jesus declara: «Por isso eu te digo que tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja» (v. 18a). Jesus está declarando que Pedro está apto a participar da construção da sua comunidade – a Igreja –, por estar aberto às intuições do Pai. Ao contrário da antiga religião judaica que precisava de um templo de pedras, a comunidade cristã é uma construção sim, mas pela sua coesão e unidade, por isso, na sua construção são necessárias pedras vivas, pessoas de fé. E Pedro foi uma destas pedras escolhidas por Jesus, a primeira, sem dúvidas. A pedra fundamental da construção é a fé da comunidade. A força, o equilíbrio e a perseverança da comunidade dependem da solidez da sua fé. Por isso, é necessário que essa fé seja forte como uma rocha, comparável à fé que Pedro tinha acabado de professar. É importante esclarecer que Mateus usa duas palavras gregas muito parecidas para designar Pedro e pedra: (Πέτρος) “Petros” (πέτρα) “petra”. Embora muito próximas, é possível distingui-las: “Petros”, que foi transformada no nome próprio Pedro, designa pedra, pedregulho ou tijolo, uma pedra pequena e removível, uma pedra de construção; “petra”, por sua vez, designa a superfície rochosa, base ideal para os fundamentos de uma construção segura. São estas as bases necessárias para a edificação da Igreja enquanto comunidade do Reino. Portanto, Jesus diz que Pedro (petros) é uma pedra-tijolo da construção, e a pedra-rocha (petra) é a fé que ele professou, a superfície rochosa sobre a qual a Igreja é edificada.

A proclamação de Jesus como Cristo e Filho de Deus é a base da comunidade cristã, a Igreja. Por sinal, essa é a primeira vez que aparece a palavra igreja (em grego: ἐκκλησία – ekklesia) no Evangelho de Mateus, o único que a emprega, e somente duas vezes (Mt 16,18; 18,17); o significado da palavra é assembleia convocada, reunião, comunidade. Ao contrário do templo de Jerusalém e dos templos pagãos que havia na região de Cesaréia de Filipe, construídos sobre pedras concretas e visíveis e, portanto, passíveis de destruição, a comunidade cristã não correrá esse risco se for edificada conforme Jesus pensou, ou seja, tendo a fé por fundamento. Por isso, ele declara: «e o poder do inferno nunca poderá vencê-la» (v. 18b). Aqui, ele se refere às hostilidades que a comunidade irá enfrentar em seu longo percurso até a instauração do Reino aqui na terra, razão da sua existência. O “poder do inferno”, portanto, significa as forças de morte manifestadas nos diversos sistemas de dominação, tanto políticos quanto religiosos. A comunidade precisa de uma fé muito consistente para resistir a tudo isso. Essas forças retardam a concretização do Reino, mas não impedirão a sua realização. Para superá-las é imprescindível uma fé viva e comprometida, como a fé de Pedro e Paulo, e de tantos outros irmãos que doaram a vida pelo Reino.

No último versículo temos mais uma declaração significativa de Jesus a Pedro e à comunidade dos discípulos: «Eu te darei as chaves do Reino dos céus: tudo o que ligares na terra será ligado nos céus; tudo o que desligares na terra será desligado nos céus» (v. 19). Mais do que delegando poderes, Jesus está responsabilizando a comunidade para fazer o Reino dos céus acontecer. No judaísmo, a imagem das “chaves” correspondia à capacidade de interpretação e aplicação da Lei pelos rabinos e escribas. Inclusive, o próprio Jesus vai denunciá-los por terem “fechado” o Reino dos Céus: «Ai de vocês, doutores da Lei e fariseus hipócritas! Vocês fecham o Reino do Céu para os homens. Nem vocês entram, nem deixam entrar aqueles que desejam!» (Mt 23,13). As chaves confiadas a Pedro e a toda a comunidade, portanto, são para abrir o Reino a todas as pessoas, a começar pelas marginalizadas e sofridas, os pobres, as vítimas das mais variadas formas de exclusão. Portanto, Mateus não emprega a imagem das chaves como símbolo de uma instituição, mas como sinal de uma nova relação com Deus. A antiga religião tinha bloqueado, escondido o rosto desse Deus, mas Jesus dá a chave de acesso a ele: a vivência das bem-aventuranças (Mt 5,1-12), que são a síntese de toda a sua mensagem. Logo, a função de “ligar e desligar” representa a responsabilidade da comunidade, e não propriamente poder. Inclusive, no discurso sobre a comunidade, essa mesma função será atribuída a toda a comunidade (Mt 18,18). Isso exige profunda fidelidade da Igreja para viver em perfeita sintonia com Jesus e o Pai, para que tudo o que essa venha a realizar e viver seja referendado por eles.

Se a comunidade/Igreja viver fielmente o Evangelho, sintetizado nas bem-aventuranças, que são as chaves de leitura de toda a obra de Mateus, e de acesso ao Reino, não resta dúvidas de que Jesus e o Pai confirmarão as suas decisões e pleitos lá nos céus. Pedro e Paulo são exemplos concretos de quem fez essa experiência. Eles abriram o Evangelho ao mundo, fazendo o mundo abrir-se ao Evangelho, cada um à sua maneira. Por sinal, pegando essa deixa, é oportuno concluir a reflexão com o seguinte trecho do prefácio desta solenidade: «Hoje, vós nos concedeis a alegria de festejar os Apóstolos São Pedro e São Paulo. Pedro, o primeiro a proclamar a fé, fundou a Igreja primitiva sobre a herança de Israel. Paulo, mestre e doutor das nações, anunciou-lhes o Evangelho da Salvação. Por diferentes meios, os dois congregaram a única família de Cristo e, unidos pela coroa do martírio, recebem hoje, por toda a terra, igual veneração.» (Prefácio de São Pedro e São Paulo, apóstolos).

Pe. Francisco Cornélio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

segunda-feira, junho 23, 2025

REFLEXÃO PARA A SOLENIDADE DA NATIVIDADE DE SÃO JOÃO BATISTA - LUCAS 1,57-66.80

 


A liturgia deste dia contempla a Solenidade da natividade de São João Batista. O texto evangélico proposto é Lc 1,57-66.80, relato que contempla o nascimento, a circuncisão e a imposição do nome do santo precursor de Jesus Cristo. Depois de Jesus, João Batista é o personagem com mais dados biográficos oferecidos pelo Novo Testamento, o que evidencia a importância e a grandeza da sua missão. Quem mais contribuiu para isso foi o evangelista Lucas, como percebemos no Evangelho de hoje. Até mesmo quando os apóstolos consolidaram a pregação sobre Jesus, fizeram questão de recordar o Batista, como recorda o próprio Lucas, no segundo volume de sua obra: «Jesus de Nazaré, começando pela Galileia, depois do batismo proclamado por João» (At. 10,37). Trata-se, portanto, de um personagem relevante da história da salvação, sendo necessário passar por ele para compreender e anunciar a missão do próprio Jesus.

De fato, a figura de João é central na história da salvação, sendo ele apresentado como o elemento de transição da primeira para a segunda aliança pelo próprio Jesus, ao declarar: «A lei e os profetas até João. Daí em diante, é anunciado o Evangelho do Reino de Deus» (Lc 16,16). Em outra ocasião, também Jesus o proclamou como o maior entre os nascidos de mulher (Mt 11,11; Lc 7,28). Portanto, se trata de um personagem que não poderia passar despercebido. E, liturgicamente, a Igreja compreendeu bem isso, reservando-lhe duas datas no calendário: a sua natividade, celebrada hoje (24 de junho), e o seu martírio, celebrado em 29 de agosto. Chama a atenção que o primeiro evento narrado por Lucas em seu evangelho é o anúncio do nascimento de João (1,5-23), apresentando-o desde o início com as características de profeta e como um prodígio de Deus para a humanidade, recordando que seus pais, Zacarias e Isabel, eram anciãos e estéreis, já inaptos à procriação. Nesse casal, descrito como justo (Lc 1,6) o evangelista viu a situação de Israel: mesmo observando minuciosamente os preceitos da lei, faltava alegria e sinal de vida neles!

Aquela esterilidade significava a decadência da Lei e da religião por eles observada, o judaísmo do segundo templo. Por mais que se esforçassem, os condicionamentos sociais, culturais e religiosos não permitiam que vida nova brotasse daquela situação. Somente uma intervenção de Deus poderia mudar o rumo daquela história. Fiel às suas promessas, Deus intervém, inaugurando uma nova fase na história da salvação, fazendo surgir um «profeta do altíssimo» (cf. 1,76).  Assim como os profetas do Antigo Testamento previam um “resto de Israel” fiel e justo, o evangelista Lucas identificou esse resto nos personagens que ilustram o seu chamado “evangelho da infância” (capítulos 1 e 2 de Lucas): Zacarias e Isabel, Maria e José, Simeão e Ana. Neles, as promessas de Deus, desde os patriarcas, chegam ao cumprimento. Por mais que Israel estivesse esgotado e estéril, era dele que a salvação brotaria. Lucas compôs a sua dupla obra (Evangelho e Atos dos Apóstolos) segundo a dinâmica promessa-cumprimento. O nascimento de João é, portanto, o início do cumprimento.

Olhemos, pois, para o texto: «Completou-se o tempo da gravidez de Isabel, e ela deu à luz um filho» (v. 57). Com a clássica e conhecida expressão bíblica “completou-se o tempo”, o evangelista associa o nascimento de João às promessas de Deus. Não se trata apenas de uma gravidez concluída e uma criança a mais no mundo; significa a conclusão de uma etapa na história da salvação e a abertura de uma nova. Israel passou séculos gerando profetas e agora chegou o profeta que, finalmente, contempla o Messias. Por isso, a gravidez de Isabel significa muito mais do que a gestação de uma criança; é a geração de um tempo novo, de uma nova história. Daí que o nascimento de João comporta uma dimensão comunitária, pública; por isso, «os vizinhos e parentes ouviram dizer como o Senhor tinha sido misericordioso para com Isabel, e alegraram-se com ela» (v. 58). Aqui, o evangelista introduz dois temas centrais da sua grande obra (Evangelho e Atos): a misericórdia e a alegria, duas dimensões e características indispensáveis na comunidade cristã. Os parentes e amigos representam a abertura da salvação que, aos poucos, Lucas vai mostrando. Isso mostra que o nascimento de João é recebido como uma ação favorável de Deus a um povo, a uma comunidade, e não apenas a um clã.

Sendo Isabel e Zacarias, «justos e irrepreensíveis observantes da Lei» (1,6), ou seja, pessoas de comportamento reto, que observavam a Lei e cumpriam boas obras em favor do próximo, atentas aos mandamentos da religião que praticavam. Pessoas justas, segundo a mentalidade bíblica, eram aquelas que ajudavam o próximo, que refletiam com a vida a misericórdia de Deus, e a misericórdia é, acima de tudo, um agir favorável em prol dos mais necessitados; ser observantes da Lei significa a fidelidade a Deus e aos seus mandamentos. Por isso, «no oitavo dia, foram circuncidar o menino, e queriam dar-lhe o nome de seu pai, Zacarias» (v. 59)Querendo simplificar a história, o evangelista faz uma pequena confusão: o nome da criança era dado logo no nascimento, e não no momento da circuncisão, ao oitavo dia. Também não era costume dar o nome do pai, e sim o nome do avô da criança. Mais uma vez, o evangelista ressalta a dimensão comunitária do nascimento de João: a comunidade – parentes e amigos – participa da sua vida, assim como o seu ministério profético estará a serviço de todo o povo.

Dar o nome à criança era atributo exclusivo do pai, de acordo com a tradição bíblica e com as tradições de outros povos da antiguidade. É importante perceber neste o papel inovador da mãe, ressaltado por Lucas: «A mãe, porém, disse: ‘Não! Ele vai chamar-se João!» (v. 60). Desde o início do seu evangelho, Lucas pensa a mulher como sujeito com voz e poder de decisão, rompendo com as tradições e condicionamentos da época. Esse “não!” de Isabel representa uma verdadeira revolução na tradição bíblica. É uma inovação sem precedentes na história. Até então, não se tinha visto uma decisão que representasse um empoderamento tão forte da mulher. E isso causou perplexidade, obviamente, como observa o evangelista: «Os outros disseram: ‘Não existe nenhum parente teu com esse nome!’» (v. 61). Os outros aqui, são os parentes e vizinhos; apegados à Lei, não aceitam a novidade que começa a se configurar; querem que as coisas permaneçam como sempre, com a mulher continuando sem direito de opinar e de tomar decisões. É o Israel necessitado de conversão, a quem João se dirigirá em seu ministério e, posteriormente, Jesus. Nesse sentido, Isabel é pioneira na desconstrução da mentalidade patriarcal. A imposição do nome João já tinha sido indicada pelo anjo no anúncio a Zacarias (Lc 1,13), e isso mostra a sintonia de Isabel aos propósitos de Deus: ela não necessitou ouvir de um anjo para acolher e cumprir a sua vontade; os próprios acontecimentos da vida lhe ensinaram a interpretar e cumprir a vontade de Deus. João é um nome hebraico que significa “Deus é favorável” (significados correlatos: Deus é clemente; Deus é misericordioso; agraciado por Deus).

Com a mentalidade ainda fechada e sem aceitar a novidade representada pelo não de Isabel, os parentes e vizinhos recorrem à autoridade masculina, rejeitando o protagonismo da mulher, como mostra o evangelista: «Então fizeram sinais ao pai, perguntando como queria que o menino se chamasse. Zacarias pediu uma tabuinha, e escreveu: ‘João é o seu nome’. E todos ficaram admirados» (vv. 62-63). Zacarias tinha ficado sem poder falar, por não crer no anúncio do anjo (Lc 1,20), por isso se comunicava por meio de sinais. Ao escrever como o menino seria chamado, ele ratifica a decisão de Isabel, e ambos confirmam a promessa de Deus através do anjo. Todos ficaram admirados por contemplar Deus agindo na história, cumprindo as antigas promessas, porém, de um jeito completamente novo, e com novos sujeitos. Embora Zacarias fosse sacerdote, não pertencia às classes abastadas da hierarquia social de Israel; servia no templo por no máximo duas semanas ao ano, com uma função meramente litúrgica, sem influência política nem ideológica, ao contrário dos sumos sacerdotes que eram os verdadeiros detentores de poder em Israel, tanto na política quanto na economia.

Como o anjo tinha afirmado que Zacarias só voltaria a falar quando o menino nascesse, a promessa foi cumprida e, «no mesmo instante, a boca de Zacarias se abriu, sua língua se soltou, e ele começou a louvar a Deus» (v. 64). O ápice do louvor a Deus proclamado por Zacarias é o seu cântico, o Benedictus, o qual a liturgia de hoje omite, mas é bastante conhecido. A transformação de Zacarias, da incredulidade e mudez ao louvor a Deus, é a passagem que, inicialmente, Israel e depois a humanidade inteira, devem fazer: reconhecer e aceitar a ação misericordiosa de Deus em seu favor e abrir-se à conversão. Zacarias se torna, assim, o primeiro convertido pela missão do Batista de endireitar os caminhos do Senhor. Diante de tudo isso, a reação dos vizinhos não poderia ser outra, senão de espanto: «E todos os vizinhos ficaram com medo, e a notícia espalhou-se por toda a região montanhosa da Judeia» (v. 65). Aqui, a tradução litúrgica traz um equívoco, ao optar pela palavra medo ao invés de temor. Na verdade, a reação de quem contempla uma intervenção de Deus é de temor, o que significa mais admiração e respeito do que medo, propriamente. E Lucas não perde a oportunidade de mostrar a publicidade e difusão da ação de Deus na história; por isso, diz que a notícia do nascimento de João «espalhou-se por toda a região montanhosa». Faz parte de suas estratégias literárias e teológicas mostrar a repercussão dos eventos narrados. Aqui ele já antecipa o propósito de suas duas obras (Evangelho e Atos): apresentar a salvação rompendo limites e barreiras para, um dia, atingir até os confins da terra.

Além de mencionar o espalhar-se da notícia, como antecipação da “Boa-Notícia” por excelência, que é a pessoa de Jesus, o evangelista destaca o seu efeito: «E todos os que ouviam a notícia, ficavam pensando: ‘O que virá a ser este menino?’ De fato, a mão do Senhor estava com ele» (v. 66). As notícias das maravilhas de Deus geram repercussão em quem escuta, não são notícias vagas; causam efeitos porque carregam em si a força inerente à Palavra, que é uma Palavra performativa. O questionamento sobre o futuro do menino reforça o superdimensionamento da sua missão. Se seus pais, anciãos e estéreis, desejavam um filho simplesmente para «deixarem de passar vergonha perante os homens» (Lc 1,25), pois a esterilidade era sinal de humilhação para um casal, inclusive, era considerada um castigo divino. E Deus fez muito mais por aquele casal, dando-lhe não apenas um filho, mas um profeta, com uma missão especial de testemunhar o Messias e preparar o seu caminho. Na verdade, o menino recém-nascido tinha pela frente uma missão inconfundível na história, a ponto de ser difícil de catalogá-la. Até mesmo no auge da sua pregação, era difícil saber quem era João Batista; até com o messias ele foi confundido (Lc 3,15), devido à sua fidelidade a Deus e a radicalidade com que vivia a sua missão. Com a expressão «a mão do Senhor estava com ele», o evangelista reforça a escolha e origem divina de sua futura missão de profeta.

Na conclusão do texto, é apresentada uma síntese da vida de João, da infância ao início da sua vida pública: «E o menino crescia e se fortalecia em espírito. Ele vivia nos lugares desertos, até o dia em que se apresentou publicamente a Israel» (v. 80). Aqui está a prova de que a mão do Senhor estava realmente com ele. O evangelista está preparando o leitor para apresentar, posteriormente, o seu ministério de precursor do Messias. Paralelo ao crescimento físico, ele se preparava para a missão. A vida no deserto, embora marcada pelas dificuldades, é ideal para a relação com Deus. Seu pai era sacerdote do templo e, por isso, o ambiente familiar não seria favorável a uma educação ascética e crítica em relação às instituições de Israel. O deserto significa o lugar da obediência a Deus, do diálogo, da oração; enfim, viver no deserto é ser educado por Deus, resgatando o verdadeiro sentido da lei: instrução para o povo. No ambiente sacerdotal ligado ao templo ele receberia uma educação reprodutora para, no futuro, apenas substituir o pai nas funções litúrgicas, o que seria a negação da sua identidade profética. Viver nos lugares desertos, portanto, significa a necessária ruptura com as estruturas da época, para acolher a novidade de Deus.

Mais do que recordar um grande personagem, o evangelho de hoje constitui um verdadeiro convite para retornar ao que, de fato, é essencial na vivência da fé, procurando compreender os sinais de Deus na história e a necessidade de aderir aos seus propósitos. A fidelidade a Jesus e seu Evangelho implica aceitar os seus valores, acolher a sua misericórdia e a coragem de romper com todos os possíveis entraves à difusão do seu amor. A ousadia de Isabel, apresentada por Lucas, junto com a vida e o ministério do Batista, são sinais autênticos da necessidade contínua de conversão para acolher o Evangelho com suas exigências. Se a missão do Batista foi preparar os caminhos do Senhor, só tem sentido celebrá-lo com disposição para seguir esses caminhos!

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, junho 21, 2025

REFLEXÃO PARA O 12º DOMINGO DO TEMPO COMUM – LUCAS 9,18-24 (ANO C)

 


Com a retomada do tempo comum, retoma-se também a leitura semi-contínua do Evangelho de Lucas, como prescreve a liturgia dominical do Ano C. Por tratar-se já do décimo segundo domingo, a leitura do referido Evangelho está bastante avançada. O texto lido hoje – Lc 9,18-24 – encontra-se já no final da primeira grande seção narrativa da obra, que corresponde ao ministério de Jesus na Galileia (Lc 4,14–9,50). É importante considerar este dado para compreender adequadamente o episódio de hoje que, embora curto, possui uma riqueza extraordinária, pois concentra elementos importantes para a compreensão da identidade e missão de Jesus, bem como do seu discipulado em todos os tempos. Trata-se de um episódio comum aos três evangelhos sinóticos (Mt, Mc e Lc), embora cada um deles o apresente com características próprias, que correspondem às respectivas intenções teológicas e ao plano literário de cada obra. Hoje, particularmente, nos interessa o contexto do episódio na obra de Lucas, como mostraremos a seguir.

O nono capítulo do Evangelho de Lucas possui uma importância singular, pois marca a transição entre as duas grandes seções narrativas da obra, que são, respectivamente, o ministério de Jesus na Galileia (Lc 4,14–9,50) e o longo caminho em direção a Jerusalém (Lc 9,51–19,44). Este capítulo é iniciado com o envio missionário dos Doze, de povoado em povoado para proclamar o Reino de Deus e libertar (curar) as pessoas (9,1-6). A repercussão da missão dos Doze foi tanta que chegou aos ouvidos de Herodes, deixando-o confuso e também curioso sobre a identidade de Jesus (9,7-9). O retorno dos discípulos foi marcado pelo entusiasmo, fazendo aumentar ainda mais a multidão que acompanhava Jesus, culminando com o episódio da partilha dos pães (9,10-17). O entusiasmo forte, tanto dos discípulos, pelo que tinham feito na missão (cf. Lc 9,10), quando do povo que estava se beneficiado dos milagres, foi um alerta para Jesus. Em todos os três sinóticos, este episódio de hoje está relacionado à partilha dos pães, mas somente em Lucas possui relação direta também com a missão dos doze. O texto pode ser dividido em três pequenas unidades temáticas distintas, embora interligadas: a) a pergunta de Jesus sobre a sua própria identidade, cuja resposta mais completa é a confissão de Pedro (vv. 18-21); b) o primeiro anúncio da paixão (v. 22); as exigências para o discipulado, que se tornam profecia da identidade cristã no mundo (vv. 23-24).

A situação criada desde envio dos Doze até a partilha dos pães levou Jesus à reflexão. E os momentos de reflexão de Jesus, no Evangelho de Lucas, são sempre marcados pela oração, quando ele expressa a sua intimidade e confiança no Pai. Por isso, para o autor do Terceiro Evangelho, todos os momentos marcantes da vida de Jesus são precedidos pela oração (6,12; 9,28; 11,1-2; 22,40ss). A primeira afirmação do texto de hoje, portanto, é um indicativo da importância que este episódio possui, pois assim começa: «Jesus estava rezando num lugar retirado, e os discípulos estavam com ele. Então Jesus perguntou-lhes: “Quem diz o povo que eu sou?”»  (v. 18). De início, é importante recordar uma primeira particularidade deste episódio em Lucas, além da oração: ele não localiza precisamente o acontecimento, como fazem Marcos e Mateus, que identificam a cena na região de Cesareia de Filipe. Mais importante do que o lugar geográfico, para Lucas, é que a situação favoreça o clima de oração. Como se sabe, a oração é o meio para cultivar a intimidade com o Pai, por isso, é instrumento de humanização, pois, quanto mais próximo de Deus estiver a pessoa, mais humana se torna. Isso torna a atitude orante de Jesus paradigmática, expressando uma necessidade concreta para a vida de seus discípulos em todos os tempos. De fato, para Jesus, as relações com Deus e com o próximo são inseparáveis. Por isso, da oração, que é intimidade com o Pai, Ele passa a um diálogo confidencial, sincero e transparente com os discípulos, seus amigos.

Como tinham sido enviados há pouco tempo para anunciar o Reino de Deus – o projeto de vida de Jesus –, os discípulos também ouviram as impressões do povo a seu respeito. Por isso, Jesus quis saber qual a imagem que o povo tinha dele até então. É claro que a preocupação de Jesus não era com sua popularidade, mas com a compreensão da sua mensagem, a assimilação do seu projeto. Ora, até aquela ocasião, Jesus já tinha feito muita coisa, tendo andado bastante pelas cidades e povoados da Galileia, anunciando o Reino de Deus com palavras e gestos de libertação, humanizando tantas pessoas e situações, mediante o seu amor. Era justo que ele quisesse saber como estava sendo acolhido e compreendido. E as respostas não demonstram fracasso, mas são insuficientes: «Eles responderam: “Uns dizem que és João Batista; outros que és Elias; mas outros acham que és algum dos antigos profetas que ressuscitou”» (v. 19). Como se vê, essa resposta mostra que, em geral, o povo tinha uma boa impressão sobre Jesus; o considerava um grande profeta, e os profetas constituíam o que tinha surgido de mais autêntico na história religiosa de Israel, dentre todas as figuras de mediação. Porém, aplicada a Jesus, a imagem do profeta é insuficiente e até equivocada, pois ele é muito mais do que profeta. Ora, tanto João Batista quanto Elias foram profetas reformadores. João Batista, com a sua austeridade, preferiu isolar-se no deserto, ao invés de enfrentar diretamente as estruturas do seu tempo; inclusive, acreditava que apenas a passagem pelo rito do batismo já era suficiente para uma verdadeira conversão. Elias era muito zeloso, mas fanático e intolerante, pregava a violência e o extermínio dos adversários (1Rs 18,40; 19,1). Colocar Jesus nessa linha é um grande equívoco, inclusive, porque ele não veio propor reformas, mas uma mudança radical de mentalidades e de estruturas, na sociedade, começando pela religião.

Como os discípulos já tinham feito um longo percurso com Ele, é de se esperar que tivessem uma visão mais aprofundada do que o povo a seu respeito. Por isso, «Jesus perguntou: “E vós, quem dizeis que eu sou?” Pedro respondeu: “O Cristo de Deus”» (v. 20). Da resposta dos discípulos, Jesus saberia como tinha sido o anúncio deles, enquanto estiveram em missão. Isso torna a questão ainda mais relevante. Pedro responde em nome de todo o grupo; a sua resposta é coletiva, sintetiza a opinião e a fé da comunidade. Que o povo conhecesse Jesus apenas superficialmente, seria compreensível, mas dos discípulos esperava-se que o conhecessem mais verdadeiramente, ou seja, de modo mais profundo. Formalmente, a resposta de Pedro é correta, mas é suficiente também; Jesus é, de fato, o Cristo, e veio de Deus; confessá-lo assim é reconhecê-lo como o messias esperado. Ele é o messias sim, mas não conforme as expectativas do seu povo. O messias esperado pelos judeus era um personagem glorioso, um guerreiro nacionalista, alguém que iria restaurar o reino davídico-salomônico com o uso da força, do poder e da violência. E Jesus não veio para restaurar a realeza em Israel, mas para instaurar o Reino de Deus. Sua mensagem não é direcionada a um povo apenas, mas a toda a humanidade. Contudo, é compreensível que Pedro e os demais discípulos ainda estivessem condicionados à mentalidade antiga do seu povo. A mudança de mentalidade, indispensável para compreender e acolher a mensagem de Jesus, é um processo, aliás, um caminho. E ainda faltava muito a ser percorrido.

Conhecendo a mentalidade dos discípulos, «Jesus proibiu-lhes severamente que contassem isso a alguém» (v. 21). É importante reconhecer a relevância dessa “proibição” para o discipulado de outrora e de hoje. Jesus não manda somente anunciar, mas manda também calar. A comunidade deve procurar todos os meios eficientes para o anúncio do Reino chegar a todas as pessoas e em todos os lugares; mais tarde, Jesus vai ordenar que os discípulos deverão pregar até sobre os telhados (Lc 12,3), mas quando o anúncio é distorcido, quando há proselitismo, quando há pretensões de glória e poder, é necessário calar. O desejo de glória e poder estava implícito na resposta de Pedro. Por isso, Jesus o proibiu de anunciá-lo daquela forma. A urgência da evangelização, em qualquer época, não pode levar a comunidade a anunciar o Evangelho de qualquer forma, sem antes conhecê-lo em profundidade, sem criar a devida intimidade com ele. Anunciar Jesus distorcendo ou omitindo a essência libertadora da sua mensagem é mais danoso do que mesmo o silêncio. Talvez, essa consciência seja um dos elementos de mais urgência que o evangelho de hoje evidencia e, infelizmente, passa quase despercebida. Os instrumentos para o anúncio têm se multiplicado cada vez mais, com o avanço da tecnologia e o advento de novas demandas. Contudo, o mais importante no anúncio é a convicção e o conhecimento da verdadeira identidade de Jesus de Nazaré. São muitos os riscos de instrumentalização e distorção da sua mensagem. Muitas vezes, a imagem de Jesus que é anunciada não corresponde à do Nazareno que morreu de tanto amar. E amou lutando, humanizando, libertando.

Diante da compreensão ainda não muito clara que os discípulos tinham da sua identidade messiânica, Jesus acrescentou, a modo de esclarecimento: «O Filho do Homem deve sofrer muito, ser rejeitado pelos anciãos, pelos sumos sacerdotes e doutores da Lei, deve ser morto e ressuscitar no terceiro dia» (v. 22). Temos aqui uma espécie de complemento e correção à resposta de Pedro. Com essa afirmação, Jesus faz a sua primeira grande autorrevelação, deixando clara a especificidade da sua messianidade. Com isso, Ele antecipa o seu destino dramático, fazendo o primeiro dos três anúncios da paixão (9,22; 9,43-45; 18,31-34). Esses anúncios são formas de dizer que Ele não é um Messias conforme as expectativas do povo e da própria religião, que era quem controlava a mentalidade do povo. Um messias sofredor era inadmissível para a tradição. Por isso, Ele irá repetir bastante este anúncio, pois não era fácil de ser assimilado. Ele deverá ser morto porque levará a cumprimento o projeto do Pai. Obviamente, não era a vontade do Pai que seu Filho fosse assassinado tão cruelmente como foi. Mas, a vontade de Deus é que seu Reino se instaure na terra, mesmo que isso custe o sangue do seu Filho. A morte de Jesus na cruz, portanto, não é predestinação, mas consequência de suas opções, marcadas sempre pela fidelidade aos desígnios do Pai que o enviou; é fruto da cobiça e da maldade humana, sobretudo das lideranças religiosas, que não aceitavam um messias tão cheio de amor e próximo das pessoas, sobretudo das mais necessitadas. Mas o Pai reverte essa situação em salvação para a humanidade, com a ressurreição. Para Lucas, os responsáveis pela morte de Jesus são as autoridades religiosas. Inclusive, os autores da violência que ele sofrerá na paixão são claramente mencionados, são os grupos componentes do sinédrio, o máximo órgão jurídico de Israel: anciãos, sacerdotes e doutores da Lei. Essas categorias simbolizam o ter, o poder e o saber, tudo aquilo que foi prometido por satanás no episódio das tentações, mas Jesus rejeitou (Lc 4,1-13).

Tendo esclarecido que não é um messias conforme as expectativas do povo e nem mesmo dos seus discípulos, Jesus também esclarece quais são as exigências básicas para o seu seguimento. Ora, Ele está terminando o seu ministério na Galileia; em pouco tempo irá iniciar o caminho para Jerusalém, onde viverá o drama da paixão. Para continuarem no seu seguimento, é necessário que os discípulos tenham clareza do destino e dos riscos que estão correndo, como seguidores de um messias ao revés. De fato, a messianidade revelada por Jesus é todo contrário do que esperavam. Por isso, o esclarecimento: «Então chamou a multidão com seus discípulos e disse: “Depois Jesus disse a todos: “Se alguém me quer seguir, renuncie a si mesmo, tome sua cruz a cada dia, e siga-me”» (v. 23). Antes de tudo, Jesus deixa claro que o discipulado é uma adesão pessoal e livre: «se alguém me quer seguir»; Ele não obriga e nem impõe; apenas propõe. E o seguimento exige rupturas. E a primeira ruptura é com a própria pessoa. Renunciar a si mesmo não significa odiar-se, mas é deixar de lado o egoísmo e todas as convicções pessoais que não estejam em sintonia com a mensagem libertadora do Evangelho; pretensões de poder, conquista e bem-estar pessoal, devem ser deixadas de lado. A cruz de cada dia corresponde às consequências de tal escolha. A cruz, como a mais temida das penas na época, era sinal de perigo; era a pena reservada aos considerados desordeiros, subversivos; com isso, Jesus deixa claro que os seus discípulos, à medida em que viverem o Evangelho com fidelidade, estarão em perigo constante, pois as opções do Evangelho contradizem os pretensões dos detentores de poder deste mundo, o que torna, inevitavelmente, os seus autênticos discípulos em subversivos, pessoas consideradas perigosas para o sistema. Também quanto ao tomar a cruz, o de Lucas se destaca em relação aos demais evangelhos: somente nele se diz que a cruz deve ser tomada a cada dia, ou seja, é uma realidade do cotidiano, não um evento e muito menos um adorno; é a situação cotidiana de quem assume com seriedade o seguimento de Jesus.

O último versículo é uma profecia em forma de provérbio, na qual são reforçadas as exigências para o discipulado, com suas consequências: «Pois quem quiser salvar a sua vida, vai perdê-la; e quem perder a sua vida por causa de mim, esse a salvará» (v. 24). Há aqui um jogo de palavras, recurso retórico bastante usado por pregadores itinerantes, e neste, especificamente, são contrapostos os verbos salvar e perder à luz da lógica reversa da messianidade de Jesus. Já na época da redação do Evangelho de Lucas, os cristãos eram considerados pessoas que tinham perdido a vida, conforme a lógica do sistema vigente, devido às renúncias que tinham feito e à disposição de abraçar a cruz como consequência das opções assumidas. Abrir mão de uma mentalidade individualista, deixando de lado projetos e ambições pessoais para viver a utopia do Reino, ou seja, aderir a um projeto igualitário, com relações gratuitas e movidas pelo amor, era visto como perda e loucura. Para Jesus, contudo, quem faz isso salva a sua vida, quer dizer, dá sentido à existência. A salvação não é simplesmente a preservação ou repouso eterno da alma, mas a vida e a mensagem libertadora de Jesus, o salvador. Se salva, portanto, quem assimila essa mensagem e faz dela vida, deixando-se humanizar por meio dela.

Somos convidados hoje, de modo especial, a procurar conhecer cada vez mais a identidade autêntica de Jesus, para poder continuar no seu seguimento. Segui-lo é confrontar-se com as estruturas do mundo que impedem a realização, desde já, do Reino de Deus. O seguimento e o anúncio devem ser frutos de uma relação de intimidade com Ele e com o Pai. Sem convicção e conhecimento da sua pessoa, o anúncio tende a ser distorcido.

 Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, junho 14, 2025

REFLEXÃO PARA A SOLENIDADE DA SANTÍSSIMA TRINDADE – JOÃO 16,12-15 (ANO C)



No primeiro domingo depois de Pentecostes, a Igreja celebra a solenidade da Santíssima Trindade. Os textos bíblicos empregados nesta solenidade se alternam conforme a dinâmica do ciclo litúrgico. Neste ano, por ocasião do ciclo litúrgico C, é Jo 16,12-15. Ao contrário das solenidades pascais, instituídas desde os primeiros séculos do cristianismo, essa festa já foi introduzida no calendário litúrgico em um período mais tardio. Em alguns países, começou a ser celebrada ainda por volta do séc. oitavo, mas só foi instituída oficialmente como festa universal pelo papa João XII, já no ano de 1334, como resposta a alguns movimentos heréticos que negavam a divindade de Jesus e/ou do Espírito Santo. Nela, recordamos o mistério da comunhão de amor que une o Pai, o Filho e o Espírito Santo, a Trindade Santa, em cujo nome somos batizados, batizadas e, consequentemente, salvos e salvas. É muito significativo que esta solenidade seja celebrada logo no primeiro domingo após Pentecostes. Como se sabe, em Pentecostes acontece o verdadeiro nascimento da Igreja. Desse modo, a Solenidade da Santíssima Trindade vem indicar que toda a ação da Igreja é trinitária, a começar pelo batismo, que se celebra em nome do Pai, e do Filho e do Espírito Santo. Portanto, é em nome da Santíssima Trindade que ingressamos e participamos da comunidade cristã. Isso faz da comunidade o lugar privilegiado de comunhão com o Deus que é também comunidade. Como sempre, a nossa reflexão será pautada exclusivamente a partir do evangelho, sem levar em consideração as afirmações dogmáticas a respeito da Santíssima Trindade.

O contexto do Evangelho de hoje ainda é o da última ceia, ambientada no cenáculo em Jerusalém, e vivenciada por Jesus com seus discípulos, às vésperas da Páscoa. Como já afirmamos em outras ocasiões, pois durante quase todo o tempo pascal o evangelho dos domingos foi tirado desse mesmo contexto, a ceia no Quarto Evangelho não significa apenas o consumo de alimentos, nem a vivência de um rito, tampouco uma mera confraternização. Para a comunidade joanina a ceia é autorrevelação de Jesus, sendo o momento mais forte da sua catequese. Por isso, conforme o respectivo evangelho, foi na ceia que Jesus apresentou o seu “testamento”, como é convencionalmente chamado o seu longo discurso de despedida, do qual faz parte o evangelho de hoje. A centralidade da ceia em João já é evidenciada pelo amplo espaço narrativo que ocupa: são cinco capítulos (Jo 13 –17), totalizando cento e cinquenta e cinco versículos, o que corresponde a um quarto de todo o Evangelho. Esse momento foi iniciado com o lava-pés (13,1-15), e continuado pelo discurso de Jesus, com algumas interrupções dos discípulos (13,36-38; 14,5.8.22). Jesus sabia do que estava para acontecer: em pouco tempo, seria condenado à morte; os discípulos também imaginavam o que estava para acontecer, embora não tivessem ainda tanta clareza. Havia um clima de tensão e medo entre os discípulos, o que era inevitável para as circunstâncias. Por isso Jesus procurou tranquilizá-los em diversos momentos (14,1.27; 16,6.22). Por cinco vezes, durante o discurso, Jesus prometeu enviar o Espírito Santo quando retornasse para o mundo do Pai (14,16-17.26; 15,26; 16,7-8.13), de modo que os discípulos não permaneceriam sozinhos, pois através do Espírito, a presença de Jesus se eternizaria no meio deles. O Evangelho de hoje contém a quinta e última promessa do Espírito Santo.

Durante o seu ministério, Jesus apresentou todo o seu programa aos discípulos, ou seja, o seu “Evangelho”, compreendendo palavras e sinais; não escondeu nada, conforme Ele disse nesse mesmo discurso: «já não vos chamo servos, porque o servo não sabe o que faz o seu Senhor, mas vos chamo de amigos, porque tudo o que ouvi de meu Pai vos dei a conhecer» (Jo 15,15). Ser discípulo(a) de Jesus é entrar no seu círculo de profunda intimidade, é ser contado entre os seus amigos. E dos amigos, ele nada esconde. A princípio, o primeiro versículo do evangelho de hoje parece contradizer a afirmação acima, que ele já disse tudo, pois, de repente, ele diz: «Tenho ainda muitas coisas a dizer-vos, mas não sois capazes de as compreender agora» (v. 12). Ora, Jesus já disse tudo; não há novas coisas para dizer ou ensinar. Logo, aqui, ele não se refere a novos ensinamentos, mas à capacidade de compreensão dos discípulos, que não tinham assimilado tudo o que ouviram dele.

Muita coisa da vida e da mensagem de Jesus ainda não tinha sido assimilada pelos discípulos, porque a chave de interpretação da sua vida é a cruz e ressurreição. Na verdade, aqui o evangelista nem usa o verbo compreender, empregado equivocadamente pela tradução litúrgica, mas o verbo “suportar” (em grego: βαστάζω – bastázo); a tradução mais justa, portanto, seria: “não sois capazes de suportar agora”. Antes da experiência da ressurreição, e sem o dom maior do Ressuscitado, que é o Espírito Santo, os discípulos não teriam forças para suportar a sua mensagem de libertação e vida em plenitude, sobretudo porque essa mensagem compreende a passagem pela cruz, como consequência de um amor incondicional. Inclusive, alguns acontecimentos durante o processo de Jesus demonstram a incapacidade dos discípulos de suportar a sua mensagem com suas consequências; a traição de Judas e a tríplice negação de Pedro atestam isso.

Para compreender e suportar o peso da mensagem de Jesus, principalmente a cruz, os discípulos necessitam de uma força especial, de uma energia que os tire do medo e do comodismo. Por cruz não se compreende apenas a crucifixão sofrida uma vez no calvário, mas o conjunto da obra. Em toda a sua vida, Jesus viveu um crucificar-se contínuo. Cada atitude de rejeição sofrida, desde os primeiros momentos do seu ministério, já apontava para a cruz como desfecho. Diante disso, conhecendo seus discípulos, ele sabia que não estavam ainda preparados para suportar tudo o que ele estava suportando. Por isso, para que pudessem continuar sua missão com fidelidade, ele garante que receberão a força necessária, o Espírito Santo, para sustentá-los e conduzi-los: «Quando, porém, vier o Espírito da Verdade, ele vos conduzirá à plena verdade. Pois ele não falará por si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido; e até as coisas futuras vos anunciará» (v. 13). Ora, a Verdade é o próprio Jesus, como Ele mesmo se autointitulara antes: «Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida» (Jo 14,6). A “Verdade plena”, portanto, é o Cristo glorificado no mundo do Pai, tendo já passado pela cruz e ressurreição, realidade que só pode ser assimilada por quem se deixa conduzir pelo Espírito; significa o “conjunto da obra”: da preexistência do Verbo (Jo 1,1) à encarnação (Jo 1,14), passando pela cruz, até o retorno ao mundo do Pai.

A função do Espírito é manter a comunidade alinhada ao projeto de Jesus, que é a Verdade em pessoa. O Espírito não falará por si mesmo, será a voz do Pai e do Filho no coração das pessoas e na vida da Igreja. Transmitirá ao mundo a comunhão de amor que envolve o Pai e o Filho, como força de humanização para a humanidade inteira. E o Espírito é o próprio amor que une o Pai e o Filho; mediante seu sopro, esse amor irradia-se sobre o mundo, fecundando-o de vida , e vida em abundância. As “coisas futuras” que serão anunciadas não são novas revelações ou visões; significa a capacidade de ler os eventos futuros à luz da mensagem de Jesus. A comunidade cristã – a Igreja – sempre encontrará situações novas e surpreendentes ao longo da história, não previstas por Jesus e seu pequeno grupo de discípulos, durante os aproximados três anos de ministério. Ao longo da história, a comunidade cristã necessita do dom do Espírito Santo para discernir e aplicar o ensinamento de Jesus, que já disse tudo, mas preciso ser compreendido de modo novo, a cada dia, diante das novas realidades que surgem continuamente. Independentemente da época, a comunidade deverá interpretar tais situações à luz de tudo o que Jesus ensinou. E só é possível fazer isso deixando-se conduzir pelo Espírito da Verdade. Por isso, guiada pelo Espírito Santo, a comunidade mantém a atualidade da mensagem de Jesus em qualquer que seja a situação e a época histórica.

Continuando a explicação sobre os efeitos do Espírito Santo para a vida da comunidade, Jesus afirma: «Ele me glorificará, porque receberá do que é meu e vo-lo anunciará» (v. 14). Ora, o Espírito irá iluminar os discípulos para compreenderem e viverem o que Jesus já disse. Assim como Jesus glorificou o Pai fazendo a sua vontade, também o Espírito glorifica Jesus conduzindo a comunidade em conformidade com o Evangelho. Aqui, cabe destacar um aspecto importante da teologia do Quarto Evangelho. Ora, ao contrário dos sinóticos, que preveem uma vinda gloriosa de Jesus no final dos tempos, João segue outra perspectiva. Para o autor do Quarto Evangelho, a glória de Jesus é que Ele mesmo esteja permanentemente presente na comunidade através do Espírito. À medida em que a comunidade se deixa conduzir pelo Espírito Santo, ela põe em prática o programa de Jesus, cuja síntese é o novo mandamento do amor (Jo 13,34). Fazendo assim ela revela Jesus presente no mundo. Fazer isso é glorificá-lo. Portanto, o efeito “glorificante” do Espírito Santo em relação a Jesus confere séria responsabilidade à comunidade.

A promessa do Espírito é concluída com uma afirmação muito profunda que enfatiza a comunhão de Jesus com o Pai: «Tudo o que o Pai possui é meu. Por isso, disse que o que ele receberá e vos anunciará, é meu» (v. 15). O Pai é a fonte originária de tudo. O que Jesus tem a oferecer ao mundo, o amor ilimitado e incondicional, pertence ao Pai; mas como Ele e o Pai são Um (Jo 10,30), tudo o que é do Pai é também seu. Logo, o que o Espírito recebe de Jesus, recebe também do Pai. Aqui, nesse último versículo temos, de fato, um eco trinitário bastante evidente, pois revela a comunhão dos três: o Espírito comunica à comunidade tudo o que recebe de Jesus, e tudo o que Jesus concede ao Espírito recebeu do Pai. Por isso, pode-se dizer que os Três são Um. Acolhendo, o Espírito, a comunidade vive o que Jesus ensinou e, assim, revela ao mundo o rosto de um Pai que é todo amor.

Portanto, a presença perene de Jesus na comunidade, através do Espírito, é também presença do Pai. É essa relação que torna sempre novo e atual tudo o que Jesus viveu e ensinou. Deixar-se conduzir pelo Espírito Santo é entrar também nessa comunhão profunda com o Pai e o Filho. O resultado da acolhida a essa comunhão é a humanização do mundo.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

 

REFLEXÃO PARA A SOLENIDADE DOS APÓSTOLOS PEDRO E PAULO – MATEUS 16,13-19

  Como tem acontecido nos últimos dois anos, também neste ano, a liturgia do décimo terceiro domingo do tempo comum é substituída pela solen...