sábado, novembro 16, 2024

REFLEXÃO PARA O 33º DOMINGO DO TEMPO COMUM – MARCOS 13,24-32 (ANO B)


A reta final do ano litúrgico é sempre marcada pelo uso intenso de textos do gênero literário apocalíptico, como acontece neste domingo, o trigésimo terceiro do tempo comum. Chegamos ao penúltimo domingo do ano litúrgico em curso, cujo evangelho proposto é Mc 13,24-32. Com esse texto encerramos a leitura dominical do Evangelho de Marcos, por este ano, já que o evangelho do próximo domingo, solenidade de Cristo Rei, será tirado da obra de João. Ao longo dos domingos de todo este ano litúrgico, foi feita a leitura quase completa do Evangelho de Marcos, e hoje nos despedimos dele. Como foi mencionado acima, o trecho lido hoje pertence ao gênero literário apocalíptico, e faz parte do “discurso escatológico” de Jesus, chamado também de “pequeno apocalipse” do Evangelho de Marcos. Antes de entrar propriamente no conteúdo do texto, é necessário contextualizar e fazer algumas observações, como faremos agora, à maneira de introdução.

A primeira observação diz respeito ao gênero literário ao qual pertence o texto: o gênero apocalíptico. Derivado da palavra apocalipse (em grego: ἀποκάλυψις – apocalípsis), cujo significado é “revelação”, “manifestação da verdade” ou “tornar conhecido algo que estava escondido”, o gênero apocalíptico é bastante empregado na Bíblia, mas tem sido muito distorcido ao longo da história, passando a ser sinônimo de catástrofes e desastres, causando medo nas pessoas, quando, na verdade, é um gênero literário usado pelos autores bíblicos para transmitir mensagens de esperança e resistência às comunidades destinatárias. Logo, ao invés de causar terror e medo, a mensagem do evangelho de hoje deve nos animar, como veremos no decorrer da reflexão. O discurso escatológico está presente nas últimas partes dos três evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas), antecedendo os relatos da paixão, morte e ressurreição de Jesus. Os evangelistas fazem questão de situá-los no curto ministério de Jesus em Jerusalém. O adjetivo “escatológico” deriva da palavra grega “escatón” (ἔσχατον), que significa fim. Ao falar de fim, os evangelistas pensam em dois sentidos: fim como extermínio de tudo o que impede a realização plena do Reino de Deus, e como finalidade da criação, sobretudo do gênero humano, alcançando seu verdadeiro destino.

Em Marcos, o discurso escatológico surge como resposta de Jesus a algumas perguntas dos discípulos. Ora, eles ficaram muito admirados com a beleza e esplendor do templo de Jerusalém (Mc 13,1). A essa admiração, Jesus respondeu que, de tudo aquilo, “não restaria pedra sobre pedra” (Mc 13,2). Curiosos, os discípulos perguntaram também quando aconteceria a destruição do templo (Mc 13,4); a essa pergunta, Jesus respondeu com um longo discurso (Mc 13,5-37), do qual o evangelho desse domingo faz parte. É um discurso dirigido essencialmente aos discípulos, os mais necessitados de respostas naquele momento, o que reflete também a necessidade da comunidade de Marcos. Ora, mais de trinta anos separam a ressurreição de Jesus da redação do Evangelho de Marcos. Muitos cristãos da sua comunidade começavam a levantar dúvidas sobre a veracidade das palavras anunciadas como se fossem de Jesus, enquanto surgiam dificuldades com perseguições de todas as partes: tanto do poder imperial romano, quanto da sinagoga que não aceitava mais continuar perdendo adeptos para o movimento cristão. Diante disso, além de levantar questionamentos, muitos membros da comunidade cristã desanimaram, perdendo a esperança e a motivação para continuar acreditando no projeto de Jesus. Por isso, o evangelista recorda o que Jesus disse e convida a sua comunidade a resistir diante das dificuldades.

O texto de hoje começa com uma afirmação importante de Jesus: «Naqueles dias, depois da grande tribulação, o sol vai se escurecer, e a lua não brilhará mais, As estrelas começarão a cair do céu e as forças do céu serão abaladas» (vv. 24-25). Percebe-se que essas palavras ainda fazem parte da resposta de Jesus à pergunta dos discípulos a respeito de “quando” aconteceria a destruição do templo, que significa a “grande tribulação” aqui mencionada. Ora, para Jesus, o templo de Jerusalém, que já não era mais uma casa de oração, e sim casa de comércio e covil de ladrões, era a primeira das estruturas de poder e dominação a ser destruída. A realização plena do Reino de Deus depende da derrocada das forças opressoras deste mundo, das quais, para Jesus, a mais cruel era a instituição religiosa que oprimia em nome de Deus; depois que essa desmoronasse, também as outras forças malignas desmoronariam, como aqui ele anuncia, ao usar as imagens dos astros: sol, lua e estrelas. Aqui, ele não se refere a uma catástrofe cósmica, mas usa uma linguagem simbólica, típica das literaturas de resistência, como a apocalíptica. Os astros aqui mencionados – sol, lua e estrelas – representam os poderes opressores e as divindades pagãs às quais estes poderes estavam associados. Esses astros eram divindades adoradas pelos romanos e egípcios, os quais acreditavam que seus imperadores fossem imagens e representantes dessas divindades.

O escurecimento do sol e da lua, junto à queda das estrelas, significa, portanto, que as forças opressoras, principalmente o poder religioso e o império romano, irão cair; desses acontecimentos brotará o Reino de Deus, instaurado definitivamente pelo Ressuscitado que, vivo, retornará glorioso: «Então vereis o Filho do Homem vindo nas nuvens com grande poder e glória» (v. 26). Nessa imagem, está a grande esperança de um novo tempo e de um novo mundo para todos os que perseverarem, pois «Ele enviará os anjos aos quatro cantos da terra e reunirá os eleitos de Deus, de uma extremidade à outra da terra» (v. 27). Ao invés de um julgamento severo, o evangelista diz que o Filho do Homem vem para reunir a criação inteira, e esse é um dos grandes distintivos do discurso apocalíptico de Marcos, isento de qualquer mensagem ameaçadora e punitiva. Os quatro cantos e as extremidades da terra significam a totalidade da humanidade a ser reunida e renovada; com isso, será instaurada a paz messiânica sobre a terra. São os poderes opressores com suas respectivas ideologias que impedem a convivência fraterna entre todos os povos da terra; com a queda dessas forças, a humanidade alcançará o seu verdadeiro fim e, assim, a paz será instaurada definitivamente. Com isso, os pobres e pequeninos terão vez e voz, serão protagonistas. As imagens que evocam o fim são, portanto, sinais de esperança, pois indicam um novo começo. É o velho mundo dando lugar a um mundo novo, com a instauração definitiva do Reino de Deus.

Assim é a história da salvação: nela, as coisas não acontecem repentinamente, nem através de eventos extraordinários, mas por meio de processos históricos que se desenrolam no tempo até que, um dia, desses acontecimentos, surgirá o Reino de Deus de modo definitivo. Com isso, ensinam Jesus e o evangelista que, para alcançar o Reino de Deus em sua máxima manifestação, os cristãos não devem fugir do mundo, nem ignorar a história; pelo contrário, inseridos no mundo e construtores da história, esses devem transformar, como agentes habilitados e enviados pelo próprio Cristo. A vitória é fruto e consequência de muita luta contra as forças do mal. Como viviam perseguidos os cristãos da comunidade de Marcos, o evangelista encontrou no gênero apocalíptico o meio mais adequado para transmitir sua mensagem encorajadora. A autêntica compreensão da história começa pela observação das coisas simples da natureza; por isso, o convite: «Aprendei, pois, da figueira esta parábola: quando seus ramos ficam verdes e as folhas começam a brotar, sabeis que o verão está perto» (v. 28). Os sinais estarão sempre disponíveis para quem tem a necessária capacidade do discernimento. E é muito significativo que Jesus convide seus seguidores a observar os sinais dos tempos a partir dos elementos da criação. Mesmo sendo a sua pessoa a plenitude da revelação, ele não abre mão dos elementos da criação – astros e plantas – como sinais mediadores e indicadores do agir de Deus no mundo.

Os cristãos perseguidos da comunidade de Marcos não cansavam de perguntar quando seriam libertados, quando as tribulações passariam. Muitos deles, assim como os primeiros discípulos, queriam até uma data determinada e fixa. Porém, nem Jesus nem o evangelista fixaram datas; apenas convidaram todos a manterem-se vigilantes e atentos, lendo os sinais dos tempos: «Assim também, quando virdes acontecer essas coisas, ficai sabendo que o Filho do Homem está próximo, às portas» (v. 29). “Estas coisas”, aqui, são os acontecimentos históricos representados pela imagem do desmantelamento dos astros (vv. 24-25), o que significa o desmoronamento das forças opressoras, a começar pela queda do templo de Jerusalém, como fim da exploração religiosa e, posteriormente, a derrocada das outras forças, como o império romano. É importante o sentido das palavras empregadas com a sua simbologia: os astros são meras imagens. Mas não é para o alto que os cristãos devem olhar, e sim para o que está ao seu redor, como o renovamento da ramagem da figueira, que é uma imagem mais acessível. Mais do que esperar acontecimentos portentosos, portanto, os discípulos de Jesus devem olhar para os fatos simples e cotidianos. O ciclo de mudanças de uma planta, como sinal de simplicidade e mistério, ao mesmo tempo, é mais pedagógico do que uma imaginária revolução cósmica, pois é algo concreto, observável no cotidiano. Por isso, é preciso ver a história acontecendo e interpretá-la com discernimento, para transformá-la, sem esperar sinais extraordinários.

Aparentemente, há uma contradição entre os versículos 30 e 32: enquanto no versículo 30 está escrito que «esta geração não passará até que tudo isto aconteça», o versículo 32 afirma que «Quanto àquele dia e hora, ninguém sabe, nem os anjos do céu, nem o Filho, mas somente o Pai» (32). O versículo 30 é, com muita probabilidade, uma advertência do próprio evangelista à sua comunidade que via a destruição de Jerusalém e do seu templo como inevitável – o Evangelho de Marcos foi escrito, provavelmente, já no final dos anos 60, e Jerusalém foi destruída no ano 70. De fato, a destruição de Jerusalém e do templo era vista com a primeira fase “destes acontecimentos” de quedas das forças opressoras. Se aquela grande casa de comércio, o templo, com toda a sua força e ideologia estava prestes a cair, também os demais reinos opressores cairiam um dia, mesmo que num tempo muito distante, efetivando a instauração definitiva do Reino de Deus. Porém, quanto à chegada definitiva desse Reino, somente o Pai sabe; aos filhos, discípulos de Jesus em todos os tempos, cabe apenas lutar perseverantes para um dia isso acontecer. Essa luta depende da disposição de cada pessoa em fazer somente o bem, para que o mal seja completamente destruído e, assim, um novo mundo surgirá.

Não obstante as contradições da história e as dificuldades de ver os sinais do Reino presentes, os cristãos e cristãs são motivados por uma única certeza: «O céu e a terra passarão, mas as minhas palavras não passarão» (v. 31). Esse é, de fato, um versículo conclusivo e bastante significativo. Muitos questionamentos eram e continuam sendo feitos, pois, embora dinâmica, a história parece não caminhar para um final feliz. Os processos históricos, em sua grande maioria, ao invés de melhorar a vida das pessoas, trazendo inclusão e bem-estar, parecem piorar, sobretudo, para os menos favorecidos. As contradições aumentam cada vez mais, junto com as desigualdades. Porém, ao invés de desanimar, todas estas contradições da história devem nos animar e alimentar a esperança, pois mostram que nada permanece para sempre, tudo muda. Dessa certeza, resta-nos acreditar e apostar cada vez mais na única realidade que não passa: o Evangelho. É a totalidade das palavras e da práxis de Jesus que garante à humanidade a única alternativa de mudança de rumo e de realização plena de um novo mundo e uma nova história.

É consolador saber que, diante de tantas coisas passageiras e de outras que parecem permanentes, somente as palavras de Jesus nunca passarão, continuarão sempre novas. Por ser eternas, são palavras que resistem e geram resistência. Neste dia, que é a Jornada Mundial dos Pobres, é importante recordá-las, bem como todo o evangelho de hoje. O mundo velho, representado no texto pelos astros, vai cair, vai passar, e é importante que os seguidores de Jesus se comprometam em lutar por essa queda. Em seu lugar, surgirá um mundo novo, o Reino de Deus, que é o mundo dos pobres e pequeninos, por quem Jesus fez clara opção no seu ministério, e por quem também devem fazer os seus seguidores. O evangelho de hoje é um forte convite a acreditar no mundo novo e a lutar pela sua construção.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues

sábado, novembro 09, 2024

REFLEXÃO PARA O 32º DOMINGO DO TEMPO COMUM – MARCOS 12,38-44 (ANO B)


Depois de uma pausa para a solenidade de todos os santos, celebrada no domingo passado, a liturgia retoma a leitura semi-contínua do Evangelho de Marcos, como é típico do ano litúrgico B, que já se encontra em sua reta final. O texto proposto para este domingo, o trigésimo segundo do tempo comum, é Mc 12,38-44. Nessa passagem, Jesus já se encontra na cidade de Jerusalém, vivendo os dias do seu ministério e da sua vida terrena. Após ter percorrido um longo caminho com seus discípulos, pois partiram do extremo norte da Galileia, Jesus entrou na grande cidade e começou a exercer o seu ministério também ali, principalmente nos átrios do templo e em seus arredores. Ao longo do caminho, além dos discípulos, também as multidões acompanhavam Jesus, sobretudo na reta final, quando já se aproximavam de Jerusalém, pois as caravanas aumentavam cada vez mais, à medida em que a Páscoa de aproximava. E, caminhando, Jesus continuava a exercer sua missão de enviado do Pai – um messias às avessas das expectativas da época –, ensinando, curando e denunciando. O caminho foi a etapa privilegiada de ensino aos discípulos, principalmente, a fim de que assimilassem o seu projeto humanizante. Ao chegar em Jerusalém, sua primeira atividade de Jesus foi a expulsão dos comerciantes do templo (Mc 11,15-16), cumprindo um gesto profético, como forma de denúncia enfática à lideranças religiosas que exploravam as pessoas em nome de Deus.  Além desse fato, durante alguns dias, Jesus se envolveu em diversas controvérsias e disputas com os líderes religiosos, aprofundando cada vez mais a sua crítica à religião da época.

O episódio retratado no evangelho de hoje é a última controvérsia ou investida contra a religião dentro do próprio recinto do templo. É a última semana de Jesus, na qual ele aproveitou para entrar em conflito com todos os grupos hegemônicos da época, aprofundando o seu profetismo denunciador. Na verdade, de acordo com o relato de Marcos, essa foi a última vez que Jesus entrou no templo, o que torna o texto ainda mais significativo, pois atesta sua ruptura total com o sistema religioso que o condenará pouco tempo depois. No episódio anterior, ele tinha entrado em conflito com os escribas por motivos doutrinais (Mc 12,28-37); no texto que a liturgia oferece para hoje, o conflito diz respeito ao comportamento dos escribas ou mestres da Lei, como prefere a versão da liturgia. Os escribas (em grego: γραμματευς = gramateús) eram os teólogos oficiais, intérpretes credenciados da Lei, além de ser também, como sugere o próprio nome, responsáveis pela escrita das cópias da Escritura e dos comentários dos rabinos para serem lidos nas sinagogas. Eles exerciam papel proeminente no judaísmo da época; eram os responsáveis diretos pela dominação ideológica da religião sobre o povo, o que justifica a severidade das denúncias de Jesus contra eles. De fato, para Jesus, o pecado mais grave, intolerável, era a instrumentalização do nome de Deus e a consequente exploração. Por isso, ele foi tão duro com as lideranças religiosas de seu tempo e os evangelistas recordam isso para prevenir suas comunidades e as de todos os tempos para não reproduzirem o modelo de religião que ele combateu e, por isso, levou-o à morte. 

Feita a contextualização, voltemos então a atenção para o texto, partindo da primeira parte do primeiro versículo: «Jesus dizia, no seu ensinamento, a uma grande multidão: “Tomai cuidado com os doutores da Lei!”» (v. 38a). Como a Páscoa já estava bastante próxima, certamente já havia muitos peregrinos em Jerusalém, que certamente ouviam os ensinamentos de Jesus, incluindo as multidões que tinham entrado com ele. À medida em que ouviam, repercutiam, fazendo o seu auditório aumentar a cada dia, o que fazia aumentar também a preocupações dos grupos privilegiados que se sentiam ameaçados pelo teor da sua pregação. Aqui, o polêmico ensinamento é introduzido com uma enfática forma de denúncia, traduzida pelo lecionário por “Tomai cuidado!”. Contudo, apesar de enfática, essa expressão ainda não exprime totalmente o que o texto diz na língua original, pois o evangelista emprega uma forma imperativa de um dos mais expressivos verbos gregos da visão – verbo ver, em grego: βλέπω – blêpo. Literalmente, a expressão empregada pelo evangelista é “abri os olhos” (em grego: βλέπετε – blêpete). Isso quer dizer que Jesus considerava os doutores da Lei muito perigosos, embora fossem as pessoas mais bem vistas e respeitadas pela sociedade da época. É importante recordar que Jesus jamais mandou os discípulos e as multidões tomarem cuidado com as prostitutas, os publicanos ou os pecadores em geral, mas somente com as classes das pessoas mais religiosas da época, como os escribas doutores da Lei, fariseus e sacerdotes.

Após a advertência inicial, expressa pela fórmula “abri os olhos!”, Jesus diz o porque se deve ter cuidado com os doutores da Lei: «Eles gostam de andar com roupas vistosas, de ser cumprimentados nas praças públicas; gostam das primeiras cadeiras nas sinagogas e dos melhores lugares nos banquetes» (vv. 38b-39). É por causa da presunção e desse comportamento hipócrita e falso dos doutores da Lei que as pessoas precisam ter muito cuidado com eles. O comportamento deles é perigoso porque, em nome da religião, camuflam muita perversidade e maldade; são pessoas que vivem de aparências, se sentem superiores, são soberbas e cultivam privilégios, esbanjando ostentação. Um comportamento assim, é totalmente oposto ao que Jesus pede de seus discípulos; e o pior, para Jesus, é que os doutores da Lei faziam tudo isso em nome de Deus e da religião. Eles viviam uma religião de aparências, eram verdadeiros hipócritas, embora Jesus não lhes aplique essa palavra aqui, mas o faz em outras ocasiões. A ênfase de Jesus e do evangelista com essa denúncia visa advertir as comunidades cristãs para que uma prática religiosa desse tipo não se reproduza. Na época da redação do Evangelho de Marcos, logo após a morte dos apóstolos Pedro e Paulo, as comunidades viviam uma verdadeira transição nos modelos de organização interna. O evangelista se preocupava com uma tendência hierarquizante no exercício da liderança. Suas denúncias, portanto, tem a função de prevenir para que a estrutura da religião que levou Jesus à morte não se reproduza nas comunidades. 

Na continuidade da denúncia, Jesus identifica uma falta ainda mais grave na falsa religiosidade dos mestres da Lei: «Eles devoram as casas das viúvas, fingindo fazer longas orações. Por isso eles receberão a pior condenação» (v. 40). A categoria das viúvas é uma das imagens de pessoas mais vulneráveis e necessitadas da Bíblia; juntamente com os pobres, os órfãos e estrangeiros, as viúvas são destinatárias prediletas do cuidado de Deus e, por isso, símbolo da sua preferência pelos humildes. Inclusive, a Lei hebraica previa proteção especial às viúvas (Ex 22,21-23), mas nem sempre isso era bem observado. Entre o Antigo e o Novo Testamento, não faltam críticas e lamentos pelos direitos usurpados das viúvas. Ora, se a mulher em si já era uma categoria marginalizada na época, se tornava ainda mais se ficasse viúva. A mulher que ficasse viúva sem ter um filho homem, e se não casasse novamente com um cunhado, em caso de ter ficado com herança, deveria confiar o cuidado dessa herança aos escribas doutores da Lei, já que a mulher não podia fazer negócios; é a esse fato que Jesus alude ao dizer que os escribas devoram as casas das viúvas. Constatava-se que, ao receber o direito de administrar o patrimônio das viúvas, os escribas na verdade se desfrutavam desse, roubando até devorar, literalmente. Para Jesus, nenhuma forma de injustiça e exploração é aceitável, mas quando isso acontece em nome de Deus e da religião, é muito pior. Por isso, a sentença é tão dura: “eles receberão a pior condenação”. De acordo com o Evangelho, o que leva o ser humano à condenação é a prática da injustiça, principalmente a exploração e a falta de cuidado com as pessoas mais vulneráveis e necessitadas.

Após a polêmica com os doutores da Lei, Jesus continua no templo observando o movimento e, certamente, inconformado com tudo o que via ali. Na verdade, dessa vez a polêmica não tinha sido exatamente com os doutores da Lei, mas eles tinham sido empregados como exemplo negativo; a prática religiosa e o estilo de vida deles foram recordados como modelo a ser evitado na comunidade cristã. Jesus sabia que o templo já não era casa de oração, mas casa de comércio e covil de ladrões, como tinha denunciado há pouco tempo (Mc 11,15-18). Chamava sua atenção a mercantilização da fé, o que lhe deixava indignado. Por isso, o evangelista recorda que «Jesus estava sentado no templo, diante do cofre das esmolas, e observava como a multidão depositava suas moedas no cofre. Muitos ricos depositavam grandes quantias» (v. 41). O povo tinha se acostumado com uma Deus que pedia ofertas para revertê-las em favores e proteção aos que ofertavam. A posição de Jesus era de completo repúdio àquele sistema, pois a religião dos favores se transforma em religião do mérito e, por fim, em religião do domínio. Com seu programa de humanização, o Reino de Deus, Jesus repudiava tudo isso. Para o sistema do templo, o valor da oferta determinava a dimensão do favor de Deus. Esse Deus mercador não podia ser o Pai de Jesus!

Entre tantas pessoas devotas que passavam pelo templo, Jesus observa um caso muito particular, que lhe chama a atenção: «Então chegou uma pobre viúva que deu duas pequenas moedas, que não valiam quase nada» (v. 42). Ora, de acordo com a Lei, o sistema religioso deveria prover as viúvas pobres do necessário para a sobrevivência (Dt 14,28-29). E, de repente, Jesus constata o contrário: o sistema religioso recebendo até mesmo de quem não podia ofertar e mal tinha como sobreviver. Embora voluntária e generosa, a oferta da viúva é motivada por uma concepção errada de Deus; ela é coagida ideologicamente a ofertar o pouco que tem, para poder receber benefícios de Deus. Era isso que os doutores da Lei e os sacerdotes pregavam. As pequenas moedas ofertadas pela viúva eram suficientes para comprar cem gramas de pão, cada uma, conforme a terminologia empregada pelo evangelista, na língua original do texto (em grego: λεπτός – leptós). As duas moedinhas significam, simbolicamente, o que a viúva tinha para viver o dia de hoje e o dia seguinte. Quer dizer que ela abriu mão de tudo, renunciou a si mesma, fez o que Jesus pedia insistentemente aos seus discípulos, mas eles ainda não tinham conseguido, pois, ao longo do caminho tinham se revelado ambiciosos, pretensiosos e sedentos por poder. De repente, surge uma pessoa que não conhecia o ensinamento de Jesus, mas estava sintonizado com ele. O problema, no entanto, constatado por Jesus, é que a religião estava tirando a vida da pobre viúva. A viúva imaginava estar ofertando a Deus, mas, a verdade, estava ofertando à caricatura de Deus que a religião tinha fabricado. 

Ao ver a viúva ofertando tudo o que tinha para viver, Jesus se comove e chama a atenção dos seus discípulos, tão necessitados de mudança de mentalidade. Por isso, ele faz da viúva uma parábola vivente: «Jesus chamou os discípulos e disse: “Em verdade vos digo: esta pobre viúva deu mais do que todos os outros ofereceram esmolas. Todos deram do que tinham de sobra, enquanto ela, na sua pobreza, ofereceu tudo aquilo que possuía para viver”» (vv. 43-44). A fórmula de introdução “em verdade vos digo” (em grego: ἀμὴν λέγω ὑμῖν – amén lêgo hymin) indica tratar-se de um ensinamento solene, indispensável para os discípulos. Ele estabelece um paralelismo antitético entre os ricos, que doavam do que sobrava, e a viúva, que doou tudo o que tinha para viver. A atitude da pobre viúva se torna um ensinamento solene para Jesus. Considerando a relação entre o que ela possuía e o que deu, ela deu mais do que todos os outros. Sua atitude mostra que toda pessoa tem algo a oferecer ao outro, todos têm algo para dar, independentemente da condição social. Jesus percebeu muita sinceridade e verdade naquela oferta. Ao contrário dos doutores da Lei, que viviam de aparências, e dos ricos que ofertavam do supérfluo, a viúva renunciou a tudo o que tinha para viver, doando as suas duas únicas pequenas moedas. Porém, a admiração de Jesus é mais uma denúncia do que um elogio: a oferta das duas moedinhas da viúva era a última prova que ele precisava para concluir que aquela instituição religiosa – o templo e seu aparato de sustentação financeiro e ideológico – estava completamente degradada, sugando até mesmo de quem não tinha, como a viúva. Jesus sentiu as dores da viúva sendo sugada pelo templo e chamou os discípulos para sentirem também essas dores, alertando-os para jamais repetirem os abusos da religião que ele estava denunciando, corresponsável pela sua morte, junto com o império romano. Mais do que comover, aquela cena causou repulsa em Jesus; por isso, ao sair do templo, pouco tempo depois, ele desejou e profetizou a sua destruição: «Não ficará pedra sobre pedra que não seja demolida» (Mc 13,2).

Jesus condena severamente a religião que se sustenta em práticas superficiais, condena a ostentação e a busca por privilégios. Ele não tolera religião de fachada, sobretudo quando essa esconde injustiças e exploração. Qualquer prática religiosa que abusa da boa vontade das pessoas simples e humildes, nada tem a ver com o projeto de Jesus. O exemplo de generosidade da viúva é modelo para os seus discípulos. Ele louva quem tem coragem de dar a vida, como ele. A viúva também deu sua própria vida, com aquela oferta. Mas é intolerável a religião que tira a vida das pessoas, como o templo tirou a vida da viúva e estava, aos poucos, tirando a vida de Jesus. 

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues

sábado, novembro 02, 2024

REFLEXÃO PARA A SOLENIDADE DE TODOS OS SANTOS – MATEUS 5,1-12a

 


Neste ano, a liturgia do trigésimo primeiro domingo do comum é substituída pela solenidade de todos os santos. E o evangelho proposto para essa solenidade é Mt 5,1-12a, interrompendo, assim, a leitura semi-contínua do Evangelho de Mateus. É um texto fixo, lido todos os anos, certamente porque nenhuma outra passagem expressa tão bem o sentido da santidade como esse. Trata-se da introdução do primeiro dos cinco discursos de Jesus no Evangelho de Mateus, conhecido como “discurso ou sermão da montanha”. Essa introdução ficou conhecida como “bem-aventuranças”, devido à repetição constante do termo grego makárioi (μακάριοι), cujo significado é benditos, felizes ou bem-aventurados. Esse é, certamente, um dos trechos mais lidos e conhecidos de todo o Novo Testamento, apreciado por cristãos e não cristãos, pois contém o mais completo programa de humanização que o mundo já conheceu. Gandhi, por exemplo, definiu as bem-aventuranças como «as palavras mais altas que a humanidade já escutou».

As bem-aventuranças compreendem a síntese do programa de vida de Jesus e, consequentemente, daquilo que seus discípulos e discípulas de todos os tempos devem viver. É um texto belo, mas muito fácil de ter seu sentido deformado, se interpretado de modo equivocado, como geralmente tem acontecido. Ora, falar em todos os santos e santas tem tudo a ver com o autêntico seguimento de Jesus de Nazaré. Por isso, é importante refletir cada vez mais sobre as palavras de Jesus que o Evangelho apresenta. Na verdade, todo o discurso da montanha é um indicador de direção para o discipulado de Jesus e, portanto, para a santidade. Devemos, pois, concentrar nossa reflexão na mensagem evangélica, evitando que esta solenidade se transforme em mera apologia ao devocionismo fundamentalista que tanto tem se difundido nos últimos anos. Por isso, é preciso ter clareza do programa de vida de Jesus com seu projeto de sociedade e, consequentemente, das suas exigências.

De todas as palavras atribuídas a Jesus que encontramos ao longo dos evangelhos, as bem-aventuranças são as mais interpelantes e revolucionárias, embora sejam as mais fáceis de serem deturpadas, passando de uma mensagem de transformação a uma de resignação. Infelizmente, isso tem acontecido com muita frequência. Por isso, é necessário compreendê-las bem, para que sua mensagem seja sempre de encorajamento e transformação. Na versão mateana, encontramos oito bem-aventuranças, embora alguns comentadores considerem nove, devido à ocorrência do termo grego makárioi (μακάριοι) por nove vezes. Não consideramos a nona ocorrência do termo (v. 11) como uma nova bem-aventurança, mas como uma recapitulação e síntese das oito para os discípulos, reforçando a exigência para que eles de fato vivessem intensamente todas elas.

Para compreendermos as bem-aventuranças em seu sentido original, é necessário fazer mais uma consideração semântica. Como já afirmamos anteriormente, o termo grego empregado no Evangelho é makárioi (μακάριοι), o qual pode ser traduzido por benditos, felizes ou bem-aventurados; é uma fórmula que introduz uma mensagem de felicitação. É importante recordar que, embora escritos em grego, os evangelhos foram construídos segundo uma mentalidade semítica, sobretudo o de Mateus. Por isso, é importante recordar o sentido da palavra na língua original de Jesus, o hebraico. Ora, o termo correspondente ao grego μακαριοι – makárioi, em hebraico é (אשרי) “ashrei”, o qual significa uma felicitação, mas é, ao mesmo tempo, uma forma imperativa do verbo caminhar, seguir em frente, avançar ou pôr-se em marcha. Expressivas correntes da exegese atual propõem que o evangelista pensou nos dois sentidos ao formular o seu texto. De fato, sem esse segundo sentido, as bem-aventuranças podem facilmente ser transformadas em discurso de conformismo ou resignação; com ele, passam a ser uma mensagem de transformação.

Olhemos, pois, para cada uma das situações contempladas por Jesus como necessitadas de transformação. Eis a primeira bem-aventurança: «Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o Reino dos Céus» (v. 3). De todas, tem sido essa a bem-aventurança que tem recebido as interpretações mais equivocadas ao longo da história, infelizmente. Longe de ser um convite ao conformismo, é um impulso à transformação. Na língua grega a palavra pobre (πτωχός – ptokós) deriva do verbo acocorar-se de medo, dobrar-se, abaixar-se, encurvar-se; designa, portanto, uma condição de humilhação extrema. O convite de Jesus é para que não desanimem, mas sigam em frente, não desistam, coloquem-se em marcha para alcançarem o Reino que foi criado para eles, o Reino dos Céus, mas não no céu, aqui mesmo na terra, como sinônimo de vida digna e plena. Aqui o termo espírito (em grego: πνεύμα – pneuma) é empregado como sinônimo de consciência da situação em que se encontram os pobres, encurvados de medo pela opressão do império romano e pela religião oficial da época. A esses, Jesus convida a perder o medo e, conscientemente, seguir em frente lutando pelo Reino. O pobre que se encontra encurvado pelo sistema, deve tomar consciência da sua situação insuportável e lutar, seguindo em busca de seus direitos de herdeiro do Reino.

A segunda bem-aventurança diz: «Bem-aventurados os aflitos, porque serão consolados» (v. 4). De todas as bem-aventuranças, certamente, essa é a mais paradoxal. Numa tradução mais literal, o termo aflitos seria substituído por “os que choram”, e essa bem-aventurança mistura felicidade com lágrimas e lágrimas com a consolação. É um paradoxo que escapa a qualquer lógica humana. É claro que Deus não compactua com as causas das aflições, mas ele está sempre do lado dos aflitos, daqueles que choram. Ora, jamais será consolado o aflito que se fecha em suas aflições, mas sim aquele que consegue mover-se, apesar do sofrimento. Ser consolado na mentalidade bíblica é ter o sofrimento eliminado por completo. A implantação do Reino dos Céus em um mundo tão hostil traz muitas aflições para os discípulos de Jesus. Mesmo assim, eles devem avançar, jamais recuar, para encontrar a consolação.

Na terceira bem-aventurança, Jesus diz: «Bem-aventurados os mansos, porque possuirão a terra» (v. 5). O termo manso equivale a humilde, e significa a pessoa que reivindica alguma coisa sem violência. Nesse caso particular, equivale às pessoas que lutam pela terra sem fazer uso da violência. A luta sem violência se torna mais lenta e, aparentemente, mais difícil de conseguir o objetivo. Por isso, Jesus encoraja, pede paciência, determinação e ação; em outras palavras, é como se ele dissesse: «não parem, continuem caminhando e lutando». Era muito comum os pequenos camponeses perderem suas terras por dívidas, com possibilidade de resgate. À medida que o tempo passava, as esperanças de resgate diminuíam e muitos desanimavam. Por isso, Jesus os consola e os encoraja.

Como não poderia deixar de ser, Jesus coloca para os discípulos, conforme ele mesmo o fizera, a justiça como uma busca incessante. Por isso, a quarta bem-aventurança é tão forte: «Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados» (v. 6). A fome e a sede são as necessidades que mais incomodam o ser humano. Assim como o alimento e a bebida são essenciais para a vida, também deve ser a luta por justiça entre seus discípulos. A comunidade cristã não tem vida quando não se alimenta cotidianamente de justiça. Onde não há justiça, não há dignidade, não há paz. É preciso seguir em frente na luta por justiça.

Na quinta bem-aventurança, temos: «Bem-aventurados os misericordiosos, porque encontrarão misericórdia» (v. 7). É importante recordar que misericórdia, na Bíblia, não é um sentimento, mas uma ação em favor dos necessitados. Com isso, Jesus pede que seus discípulos prossigam sempre no caminho do bem, pois é do bem que o bem é gerado. Quando mais se ama mais possibilidades se tem de ser amado também. Isso faz parte da pedagogia divina e da própria essência do Deus revelado por Jesus, que é todo amor e misericórdia. De fato, a misericórdia é uma das principais características do Deus de Jesus, por isso, deve ser também para os seus seguidores. Seguir fazendo o bem ao próximo, sem distinção, é uma das principais exigências do discipulado.

Com a sexta bem-aventurança, Jesus se contrapõe claramente aos ritos de purificação da religião judaica: «Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus» (v. 8). Os antigos ritos de purificação do judaísmo tinham escondido o rosto verdadeiro de Deus. Jesus proclama a nulidade daqueles ritos e pede para seus discípulos caminharem em outra direção, avançarem por outro caminho que não seja o da religião que divide, exclui e até mata. Só há um tipo de pureza: aquela interior, e essa não é proporcionada por nenhum rito, mas somente pela disposição do ser humano em seguir os propósitos de Deus. Vê a Deus quem olha para o próximo com os olhos de Deus. É nessa direção que o discípulo de Jesus deve marchar, avançar.

A sétima bem-aventurança diz: «Bem-aventurados os que promovem a paz, porque serão chamados filhos de Deus» (v. 9). Na marcha da comunidade formada por discípulos e discípulas de Jesus, a promoção da paz é requisito básico e essencial. Não se trata de uma falsa paz como aquela imposta por Roma, intitulada “pax romana”. A paz que Jesus propõe não é uma mera ausência de conflitos, mas um retorno ao ideal hebraico expresso pela palavra (שלום) shalom: paz como bem-estar total do ser humano, harmonia com Deus, com o próximo e consigo mesmo. É por essa paz que a comunidade de discípulos e discípulas deve lutar enquanto caminha, fazendo dessa paz o rumo da caminhada. Não há prêmio para quem caminha promovendo a paz, mas há consequências: ser chamados filhos de Deus. Na tradição bíblica, ser filho é ser parecido com o pai. Quando alguém caminha promovendo a paz, se torna parecido com Deus, por isso, será chamado seu filho.

A oitava bem-aventurança funciona como uma espécie de credencial para o reconhecimento do discípulo e sua pertença ao Reino: «Bem-aventurados os que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o Reino dos Céus» (v. 10). A justiça, por excelência, é a prática de todas as bem-aventuranças anteriores. A quem adere plenamente à lógica do Reino, não há outra consequência a não ser a perseguição. Mas, mesmo diante da perseguição, a palavra de Jesus continua sendo de ânimo e encorajamento: continuai caminhando, avançando, marchando em busca do Reino que é vosso!

Viver as bem-aventuranças é, portanto, abraçar um projeto de sociedade alternativa que, inevitavelmente, entra em conflito com os sistemas dominantes baseados na exploração, no lucro, na sobreposição de uns sobre os demais e pela violência. Mas é diante de tudo isso, ou seja, no conflito, que a comunidade cristã deve avançar, seguir em frente sem jamais desanimar. Por isso, Jesus reforçou todo o ensinamento anterior, direcionando diretamente para os discípulos a conclusão com as consequências do abraçar o seu projeto: «Bem-aventurados sois vós, quando vos injuriarem e perseguirem, e, mentindo, disserem todo tipo de mal contra vós, por causa de mim. Alegrai-vos e exultai, porque será grande a vossa recompensa nos céus» (vv. 11-12a). Alguns estudiosos vêem essa afirmação como uma nova bem-aventurança, enquanto outros, a maioria, a vêem como um reforço e síntese conclusiva das oito anteriormente apresentadas. Aquelas oito são inseparáveis. Jesus não as apresenta como sugestões para os discípulos escolherem uma ou outra. É preciso viver todas elas para ser discípulo e discípula de Jesus, pois nelas ele traça o seu próprio retrato, diz como ele mesmo viveu, caminhou ou avançou; e o discípulo deve, inevitavelmente, viver como ele.

Assim, recordando que Paulo e os demais cristãos de suas comunidades chamavam-se mutuamente de santos, e eram cristãos porque levavam a sério as bem-aventuranças, podemos compreender que celebrar todos os santos é recordar todos os que não aceitam as coisas como são impostas, mas sabem mover-se, avançar e seguir um outro caminho, não para fugir da realidade, mas para transformá-la à maneira de Jesus.

Para seguir Jesus é preciso estar em estado permanente de marcha, caminhando contra tudo o que impede a realização do Reino já aqui na terra. A comunidade cristã não pode mais aceitar que uma mensagem tão encorajante e transformadora se transforme em sinal de resignação e aceitação passiva diante de tudo o que impede o advento do Reino. A mensagem das bem-aventuranças é libertadora porque convida o discípulo e a discípula a sair de si, colocar-se em movimento rumo a um mundo melhor, mais justo e mais fraterno. Enfim, as bem-aventuranças constituem o mais completo programa de humanização que esse mundo já conheceu.

 Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN


sábado, outubro 26, 2024

REFLEXÃO PARA O 30º DOMINGO DO TEMPO COMUM – MARCOS 46-52 (ANO B)

 


O evangelho proposto para a liturgia do trigésimo domingo do tempo comum é Mc 10,46-52. Esse texto corresponde à última etapa do caminho de Jesus com seus discípulos em direção à cidade de Jerusalém, onde acontecerão os eventos da sua paixão, morte e ressurreição. Como sempre, é oportuno recordar que esse caminho não é apenas um percurso físico-espacial, mas, sobretudo, um programa catequético, teológico e espiritual, apresentado pelos três evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas). Nesse caminho, Jesus procura conscientizar os seus discípulos a respeito da sua verdadeira identidade: ele não é um messias glorioso e forte, mas servidor e sofredor que, ao invés de restaurar o reino de Davi, como esperavam os judeus do seu tempo, propõe a instauração do Reino de Deus. Esse processo de conscientização proposto consiste num verdadeiro “abrir os olhos” dos discípulos, uma vez que as expectativas messiânicas alimentadas por eles é comparável a uma cegueira. E Jesus fazia isso com bastante transparência, como demonstram os três anúncios explícitos da paixão e, mesmo assim, os discípulos continuavam sem compreender e sem aceitar esse destino, pois estavam movidos por pretensões de poder.

O episódio narrado no evangelho hoje é a cura de Bartimeu, um cego que mendigava às margens da estrada, na saída da cidade de Jericó. Esse relato se torna emblemático e decisivo para a catequese de Marcos e a vida de todos os discípulos e discípulas de Jesus, em todos os tempos. Trata-se do último milagre de Jesus, conforme a narrativa de Marcos, o que confere ainda mais relevância ao episódio. Mais do que uma crônica, é uma espécie de parábola, por meio da qual Jesus denuncia a situação dos seus discípulos, e Marcos atualiza essa denúncia para a sua comunidade: há uma cegueira generalizada entre os seguidores de Jesus quando buscam prestígio, poder, riquezas e privilégios, quando não aceitam que o Reino de Deus pertence aos pequenos, excluídos e marginalizados, como era o cego naquela época. Ora, durante o caminho, os discípulos tinham feito proselitismo, alimentado rivalidades discutindo sobre quem era o maior entre eles, e almejado lugares de honra, demonstrando, com isso, uma verdadeira cegueira ao que Jesus estava propondo e anunciando. Por isso, ao apresentar, na reta final desse caminho, um cego gritando por ajuda, o evangelista denuncia a situação dos discípulos e da sua comunidade, mostrando suas reais necessidades. 

Olhemos com atenção para o texto, partindo do início«Jesus saiu de Jericó, junto com seus discípulos e uma grande multidão. O filho de Timeu, Bartimeu, cego e mendigo, estava sentado à beira do caminho» (v. 46). Esse primeiro versículo já traz muitas informações importantes; a primeira, é a confirmação de que Jesus se encontra em caminho, cujo destino o leitor e leitora já conhecem: a cidade de Jerusalém; a segunda, é que, encontrando-se em caminho, ele está em movimento. Ora, o caminho é um lugar importante para uma comunidade itinerante como a de Jesus. Representa a exposição aos riscos e perigos, mas também é sinal de abertura ao encontro e ao diálogo com o diferente; acentua que, desde o início, a Igreja existe para estar sempre em saída. Um outro indicativo espacial importante presente no versículo é a cidade de Jericó. Situada a aproximadamente trinta quilômetros de Jerusalém, Jericó era a última parada do caminho para a cidade santa (Jerusalém), para quem partia da Galileia, como Jesus e seus discípulos. A cidade de Jericó tem grande significado para a tradição bíblica; foi a primeira cidade conquistada pelo povo de Israel, sob a liderança de Josué, após a entrada na terra prometida (Js 6,1-14). No tempo de Jesus, era uma cidade estratégica também do ponto de vista econômico. Sendo passagem obrigatória para quem ia do norte para Jerusalém, milhares de peregrinos passavam por ela durante o ano, principalmente na época das grandes festas religiosas de Israel, como a páscoa, pentecostes e a festa das tendas; isso fomentava a economia, ao mesmo tempo em que facilitava a aglomeração de mendigos pedindo esmolas à beira da estrada, fenômeno muito comum nas proximidades dos santuários e centros de peregrinação, até os dias de hoje.

Além dos discípulos, também uma grande multidão acompanha Jesus. Além de admiradores, pessoas que tinham se encantado com ele ao longo do caminho, essa multidão era também, com muita probabilidade, composta por peregrinos em geral que já se dirigiam à Jerusalém para a festa da Páscoa que se aproximava, pois era recomendável andar em caravanas, por questão de segurança. Certamente, havia na multidão também pessoas que ainda não conheciam Jesus, que tinham se unido ao seu grupo por coincidência. Dos muitos pedintes que, certamente, estavam à beira do caminho, o evangelista destaca um: o cego Bartimeu, filho de Timeu. Na verdade, Bartimeu é um título patronímico, forma hebraica da expressão “filho de Timeu”. E Timeu significa honra ou honorável. Por consequência, Bartimeu significa “filho da honra”. Esse é o único caso, no Evangelho de Marcos, em que um doente necessitado de cura é chamado pelo nome, um dado que não pode passar despercebido. E é somente Marcos quem atribui esse nome, pois nas versões paralelas do episódio em Mateus e Lucas o referido personagem é apresentado apenas como cego (Mt 20,29-34; Lc 18,35-43). A sua condição de cego lhe impedia de ser integrado à comunidade, restando-lhe somente as margens da sociedade e a mendicância para a sobrevivência. Esse personagem se torna representação da situação do discipulado, por isso o evangelista lhe dá tanta ênfase. É uma situação que exige transformação, e Bartimeu aceitou esse processo, ao contrário do que os discípulos de primeira chamada tinham demonstrado até aqui.

Bartimeu era consciente de sua condição de necessitado – de cego, precisamente – e alimentava a esperança de voltar a ver. Isso faz dele uma figura representativa do empobrecido, segundo a concepção bíblica: é aquele que reconhece a sua real necessidade e deposita sua confiança em Deus, na pessoa do seu enviado: Jesus.  Por isso, «quando ouviu dizer que Jesus, o Nazareno, estava passando, começou a gritar: “Jesus, filho de Davi, tem piedade de mim!”» (v. 47). A fama de Jesus já tinha chegado em Jericó e alimentava a esperança dos humildes e marginalizados, como os cegos. Porém, ele ainda não era compreendido nem reconhecido como o Filho de Deus, mas como o esperado messias nacionalista, o descendente de Davi. A cegueira dos discípulos consistia, sobretudo, nessa compreensão equivocada da identidade de Jesus. Ora, conceber Jesus como o filho de Davi é imaginá-lo guerreando, combatendo pela força para conquistar o trono e exercer o poder como os chefes deste mundo, algo totalmente incompatível com sua mensagem e proposta de Reino de Deus. Porém, apesar de expressar-se segundo a ideologia nacionalista, Bartimeu já demonstra uma compreensão mais refinada do que os discípulos de primeira ora, sobretudo os Doze. Ele não pede honra nem poder, como fizeram os filhos de Zebedeu, mas suplica por piedade (em grego: ἐλέησόν – eleyson), o que poderia ser traduzido também por compaixão ou misericórdia. Isso reforça ainda mais a sua exemplaridade: sabe do que necessita, e sabe o que Jesus pode lhe conceder.

Imaginando que seguiam ao messias davídico, as pessoas que acompanhavam Jesus, principalmente os discípulos, queriam monopolizá-lo, impedindo que outras pessoas se aproximassem dele, com medo de perder prestígio e privilégio quando fosse restaurado o reino de Israel. Os discípulos já tinham repreendido as crianças para que não se aproximassem, João tinha proibido a um homem desconhecido de agir em nome de Jesus. Agora, repreendem também o cego por querer aproximar-se de Jesus e pedir a sua compaixão: «Muitos o repreendiam para que se calasse. Mas ele gritava mais ainda: “Filho de Davi, tem piedade de mim!”» (v. 48). Apesar de não afirmar explicitamente que eram os discípulos os responsáveis pela repreensão ao cego, o histórico de reincidências os denuncia. A atitude dos que repreendiam o cego é, muitas vezes, a postura das religiões em geral e, sobretudo, de muitos grupos cristãos: querer controlar a pessoa de Jesus, impedindo que ele seja conhecido e experimentado por todas as pessoas, principalmente pelas mais necessitadas. Temos aqui uma denúncia do evangelista à sua comunidade e uma advertência às comunidades futuras. Jesus não é propriedade de ninguém; logo, ninguém pode ser impedido de aproximar-se dele e falar, dizer o que pensa e o que necessita. É preciso combater as tentativas de silenciamento nas comunidades. Todas as pessoas devem ser ouvidas, todos tem direito de expressar suas demandas, com seus sonhos. E quem ensina isso é o próprio Jesus, que não se deixa controlar pelos interesses de nenhuma religião ou grupo religioso.

Ele faz questão que as pessoas excluídas pela religião e pela sociedade se aproximem dele, como mostra o texto: «Então Jesus parou e disse: “Chamai-o. Eles o chamaram e disseram: “Coragem, levanta-te, Jesus te chama!”» (v. 49). Como se vê, Jesus interrompe seu caminho quando vê a necessidade do próximo. Ele para quando é interpelado por alguém, independentemente da condição social. Há dois domingos, o evangelho mostrava ele sendo interpelado por um homem muito rico, com quem desenvolveu um franco diálogo (Mc 10,17-30). Quando se trata de uma pessoa necessitada e excluída, ele mesmo chama para perto de si, como mostra o evangelho de hoje. Chama a atenção, neste versículo, três ocorrências do verbo chamar (em grego: φωνέω – fonêo). Isso indica o alto teor vocacional que o texto contém, um dado que confirma tratar-se de um episódio paradigmático para o discipulado de todos os tempos. Também é significativo o encorajamento para o cego levantar-se. É um convite a sair de si. Ele estava sentado, em situação de espera e dependência, embora não fosse por comodismo, mas devido aos condicionamentos impostos pela deficiência. A súplica por compaixão já tinha demonstrado que não era uma pessoa acomodada; se fosse, teria apenas pedido uma esmola, como era o costume. Ao suplicar por compaixão, ele expressou esperança e seu desejo de mudança de vida, como vai mostrar a sequência do texto.

Diante do convite de Jesus, o evangelista afirma que «o cego jogou o manto, deu um pulo e foi até Jesus» (v. 50). Aqui, a atitude do cego evidencia o entusiasmo e a alegria de quem tem reacesa a esperança. O primeiro gesto, jogar o manto, significa abrir mão de tudo, é o “renunciar a si mesmo”, uma das exigências de Jesus para o seu seguimento. Recorda a atitude dos primeiros discípulos que, diante do chamado de Jesus, deixaram redes, barca e família (Mc 1,16-20). Jogando o manto, portanto, o cego renunciou a tudo, inclusive às esmolas que já tinha recebido naquele dia. Ora, além de ser o único sinal de dignidade que ainda lhe restava, era no manto que se depositavam as esmolas. Os mendigos que pediam esmolas sentados, como os cegos e os paralíticos, estendiam o manto diante de si enquanto pediam, para que os transeuntes jogassem as esmolas no manto, evitando qualquer forma de toque, o que poderia deixar os outros impuros. O encontro autêntico com Jesus depende da capacidade de renunciar a tudo o que pode causar impedimento, como o apego aos bens. A renúncia ao manto, tornou o cego uma pessoa livre, por isso, ele “deu um pulo”; além da alegria, esse gesto significa também a liberdade reconquistada. Com isso, o evangelista recorda e denuncia, implicitamente, com o gesto do cego, os dois contra-exemplos anteriores na sua narrativa: o homem rico que não foi capaz de deixar o que possuía para herdar a vida eterna (Mc 10,17-30; evangelho do 28º domingo), e a ambição de João e Tiago por lugares de honra (cf. Mc 10,35-41; evangelho do 29º domingo). O pulo do cego é um salto qualitativo na sua vida, marco do encontro transformador com Jesus, salto esse que os discípulos da primeira chamada recuavam de vez em quando.

É muito significativo que, mesmo conhecendo as necessidades do cego, «Jesus lhe perguntou: “O que queres que eu te faça?” O cego respondeu: “Mestre, que eu veja!”» (v. 51). A pergunta de Jesus visa evidenciar o itinerário do discipulado: a passagem da cegueira à visão. Inclusive, é a mesma pergunta feita aos dois filhos de Zebedeu (Mc 10,36), sendo que eles pediram poder, algo absurdo para o projeto de Jesus. Essa pergunta mostra o interesse de Jesus pelo próximo com suas reais necessidades. Revela o quanto ele valorizava a escuta e, consequentemente, como deve ser a comunidade cristã: um espaço onde todos devem ter vez e voz, onde ninguém deve ser silenciado. Ver era a necessidade de todos os que acompanhavam Jesus, mas somente o cego Bartimeu foi capaz de assumir e pedir, com confiança. Enquanto estava longe, ele chamava Jesus de “Filho de Davi”, influenciado pela ideologia nacionalista. Agora, estando face a face com Jesus, ele deixa de lado a ideologia nacionalista e começa a reconhecer a verdadeira identidade de Jesus, chamando-o de Mestre. Isso faz de Bartimeu um potencial candidato ao discipulado; e, de fato, ele se tornará um autêntico discípulo, atestando sua transformação pessoal, semelhante à passagem das trevas à luz, vivendo um autêntico processo de humanização. Ainda a propósito do título de mestre aplicado a Jesus, por Bartimeu, o evangelista não emprega a tradicional forma grega “didáskalos”, e sim a forma aramaica “rabuni”, que, literalmente, significa “meu mestre”, o que confere mais solenidade e confiança, ao mesmo tempo.

Após ouvir a demanda de Bartimeu, que queria apenas ver, Jesus o declara curado e deixa clara a causa da cura, a fé: «Jesus disse: “Vai, a tua fé te curou”. No mesmo instante, ele recuperou a vista e seguia Jesus pelo caminho» (v. 52). De acordo com Jesus, o cego foi curado pela própria fé; não foram necessários sinais ou gestos extraordinários; bastou um encontro sincero, autêntico com Jesus, verdadeiro mestre de humanização, ao contrário das curas do do surdo-mudo (Mc 7,31-37) e do cego de Betsaida (Mc 8,22-26), nas quais ele empregou uma intensa atividade terapêutica, usando as mãos e a saliva. Nesse encontro com o cego de Jericó, houve apenas expressão de uma necessidade e uma abertura à escuta. Antes de tudo, Jesus permitiu que o cego falasse, que expressasse sua real necessidade. E a atitude de Bartimeu, logo após recuperar a vista, foi o seguimento. Assumiu o discipulado e começou a seguir Jesus pelo caminho. O encontro transformador gerou um novo discípulo para Jesus. A vista recuperada do cego, nesse relato, significa, portanto, uma verdadeira exigência e o último apelo de Jesus aos discípulos para abrirem-se à sua mensagem de libertação; por isso, esse foi o último milagre narrado no Evangelho de Marcos. Abrir os olhos é um imperativo para os discípulos, enquanto a escuta é um critério de identificação da comunidade com Jesus.

Mais do que demonstração de força e poder, os milagres narrados nos evangelhos têm a função de mostrar a necessidade de transformação e mudança de mentalidade pelas quais toda pessoa deve passar para aderir à mensagem de Jesus. Para isso, é necessário, acima de tudo, abrir os olhos, independentemente das condições físicas. Abrir os olhos é metáfora de abertura interior, de convencimento e aceitação da proposta de Jesus. É essa a necessidade principal das comunidades cristãs em todos os tempos: abrir os olhos para ver como Jesus e reconhecer sua presença nos mais necessitados e humildes, e discernir quais projetos, de fato, estão em sintonia com o seu Evangelho. À necessidade de abrir os olhos, acrescenta-se a exigência da escuta na comunidade, para que o seguimento de Jesus seja um verdadeiro “caminhar juntos”. A ênfase do evangelho de hoje, portanto, não é o poder terapêutico de Jesus, mas a adesão de Bartimeu, como modelo de discípulo, ao seu seguimento.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, outubro 19, 2024

REFLEXÃO PARA O 29º DOMINGO DO TEMPO COMUM – MARCOS 10,35-45 (ANO B)



Na liturgia do vigésimo nono domingo do tempo comum, o evangelho continua mostrando a incompreensão e incoerência dos discípulos de Jesus em relação ao seu programa de vida com as respectivas exigências que o discipulado comporta. O texto de hoje – Mc 10,35-45 – é talvez o que melhor descreve essa incoerência. Em outras ocasiões, antes que os discípulos entrem em cena como opositores de Jesus, o evangelista apresenta alguns outros adversários mais tradicionais, como os fariseus e escribas, que fazem perguntas maliciosas e críticas duras. No episódio de hoje, são apenas os discípulos que se opõem ao projeto libertador de Jesus. Eles se apresentam como verdadeiros antagonistas. Antes de tudo, é importante recordar o contexto: Jesus está caminhando para Jerusalém e, desde o início do caminho, alertou os discípulos sobre o destino desse caminho: o sofrimento, a paixão e a morte. Por isso, fez os três anúncios da sua paixão (Mc 8,31-33; 9,30-32; 10,32-34), a fim de prepará-los para os acontecimentos que o esperava em Jerusalém. A cada anúncio, no entanto, os discípulos apresentavam mais resistência e incompreensão. Contagiados pela ideologia nacionalista, que aspirava um messias glorioso que restaurasse o reino de Israel nos moldes de Davi e Salomão, os discípulos não aceitavam a ideia de um messias humilde, pobre e sofredor. Por isso, a cada vez que Jesus anunciava o seu destino doloroso, os discípulos distorciam o anúncio, alimentando a falsa ilusão de um reino glorioso, nos moldes dos reinos deste mundo.

O episódio narrado no evangelho de hoje segue de imediato ao terceiro anúncio da paixão, o mais claro e profundo dos três. Por incrível que pareça, a reação dos discípulos a esse terceiro anúncio foi a mais absurda de todas, demonstrando ambição e sede de poder, aspirações totalmente incompatíveis com a mensagem de Jesus. É importante recordar a reação deles a cada anúncio: após o primeiro, Pedro repreendeu Jesus, em nome do grupo dos Doze (Mc 8,32); após o segundo, os discípulos – todos eles – reagiram discutindo quem era o maior entre eles (Mc 9,33-34). Após o terceiro, a reação é a ambição, a busca por posições de honra e poder, trazendo ainda a rivalidade e a divisão como consequências, como vemos no evangelho de hoje. Parece até ironia: quanto mais claro Jesus falava de seu destino, menos os discípulos compreendiam. De acordo com o evangelista, ao projeto que Jesus apresenta, os discípulos não apenas respondem com uma coisa diferente, mas com algo totalmente oposto à proposta do Mestre, distorcendo completamente a sua mensagem. O evangelho de hoje é a prova mais evidente disso. Como último elemento a nível de introdução e contexto, convém recordar que, de acordo com o itinerário traçado pelo evangelista, no evangelho de hoje Jesus e os discípulos já se encontram muito próximos de Jerusalém, pois esse texto antecede o último episódio antes da entrada em Jerusalém, a cura do cego de Jericó, que será o texto do próximo domingo. Portanto, à essa altura do caminho, soa preocupante para Jesus que seus discípulos estejam cada vez mais distantes da sua proposta.

Feitas as considerações a nível de contexto, olhemos então para o texto, partindo do primeiro versículo: «Tiago e João, filhos de Zebedeu, foram a Jesus e lhe disseram: “Mestre, queremos que faças por nós o que vamos pedir”» (v. 35). É importante recordar que Tiago e João, juntamente com Pedro, são os discípulos mais evidenciados nos três evangelhos sinóticos, não por méritos, como às vezes se imagina, e sim pelas fragilidades e incoerências que demonstram. Recordemos que, no momento da constituição do grupo dos Doze, Tiago e João receberam o nome de Boanerges, que significa “filhos do trovão” (Mc 3,17), em alusão ao temperamento explosivo, arrogante, intolerante e ambicioso dos dois. Além do texto de hoje, os evangelhos mostram mais duas ocasiões em que as características negativas deles dois são evidenciadas: quando querem monopolizar o nome de Jesus, proibindo um homem de fazer o bem em seu nome pelo simples fato de não pertencer ao mesmo grupo (Mc 9,38-39) – evangelho do 26º domingo –, e quando queriam eliminar um povoado da Samaria com fogo, somente porque lá não foram bem acolhidos (Lc 9,51-55). Portanto, juntamente com Pedro, João e Tiago são os discípulos mais difíceis de lidar no grupo; por isso, quando Jesus fica somente com eles, como no episódio da transfiguração (Mc 9,2-8; Mt 17,1-8; Lc 9,28-36), não se trata de um privilégio, mas de necessidade. Pelo comportamento e temperamento, eles necessitavam de uma catequese mais intensa, pois tinham mais dificuldade de aceitar Jesus e sua mensagem de libertação.

Nos evangelhos sinóticos (Mt; Mc; Lc), João e Tiago são os únicos discípulos apresentados com o título patronímico – nome do pai –, o que indica o quanto ainda estavam presos à tradição. Ora, uma das exigências básicas para o discipulado de Jesus é exatamente a capacidade de deixar família e bens para dedicar-se somente ao seguimento do mestre. Portanto, ao citá-los ainda na relação com o pai, o evangelista quer dizer que eles ainda não tinham deixado tudo, na prática, por isso, demonstravam tanta incompreensão, pois ainda não tinham assimilado de modo satisfatório a mensagem de Jesus. É importante notar que, antes mesmo que eles façam diretamente o pedido, o evangelista já os denuncia: «Queremos que faças por nós o que vamos pedir»; aqui, há praticamente uma ordem, se trata de uma exigência. Além do conteúdo do pedido, a forma como esse é feito é uma afronta ao projeto de Jesus, o que torna o texto bastante polêmico. De fato, é um texto não só polêmico, mas comprometedor para a comunidade. Por isso, Lucas preferiu omiti-lo do seu Evangelho, e Mateus o modificou, colocando a mãe dos discípulos como a autora do pedido (Mt 20,20-23), preservando a imagem dos discípulos e revelando, assim, a sua visão mais negativa da mulher. Marcos, pelo contrário, faz questão de revelar também as debilidades dos discípulos, o que faz do seu Evangelho o mais autêntico e original. Por isso, é o Evangelho que mais revela os traços humanos de Jesus (Mc 3,5; 7,34; 9,36; 10,14.16), juntamente com as fragilidades dos seus discípulos.

Diante da quase “quase ordem” dos discípulos, Jesus lhes responde com uma pergunta, antes mesmo de conhecer o conteúdo do pedido: «Que quereis que eu vos faça?» (v. 36). É típico de Jesus responder com uma nova pergunta, o que revela até uma certa ironia da sua parte. Se os discípulos ainda não tinham aprendido nada com os três anúncios da paixão, pouco importava para eles uma pergunta irônica de Jesus. Por isso, sem nenhum escrúpulo, eles fazem o pedido absurdo: «Deixa-nos sentar um à tua direita e outro à tua esquerda, quando estiveres na tua glória!» (v. 37). Temos aqui uma verdadeira afronta a tudo o que Jesus já tinha ensinado a respeito de si e do seu projeto de Reino de Deus. Esse pedido revela uma busca ambiciosa por poder e privilégios, decorrente de uma visão completamente equivocada da messianidade de Jesus. Eles Imaginavam Jesus como um messias segundo as expectativas políticas de Israel, alimentada ao longo dos séculos: um messias guerreiro que combateria os dominadores – na época, os romanos – até expulsá-los do seu território e, finalmente, restabeleceria o antigo reino davídico em Jerusalém. Jesus já tinha descartado essa possibilidade por diversas vezes, mas os discípulos continuavam fechados e presos à antiga mentalidade. Sentar-se à esquerda e à direita, equivalia às posições de honra, como se fossem os primeiros-ministros de um rei. Eles queriam ser as pessoas mais importantes, depois do rei, demonstrando total desconhecimento da natureza do Reino que Jesus veio propor ao mundo.

Ao pedido absurdo dos discípulos, Jesus responde com uma repreensão irônica e, como de costume, com novas perguntas: «Vós não sabeis o que pedis. Por acaso, podeis beber o cálice que eu vou beber? Podeis ser batizados com o batismo com que vou ser batizado?» (v. 38). Com razão, Jesus os trata como ignorantes, ao dizer que eles não sabiam o que estavam pedindo. Apesar do teor irônico que contém, esse tratamento de Jesus aqui é demonstração da sua misericórdia e do seu amor incondicional. Pelo absurdo da proposta dos discípulos, ele poderia até dispensá-los do seu seguimento ou repreendê-los duramente. Mas prefere ver como incompreensão e ignorância. É o mesmo tratamento ele vai dar aos seus algozes, na cruz (Lc 23,34). Ora, depois de três anúncios explícitos da paixão, e de toda uma trajetória de oposição e combate aos poderes vigentes, é inadmissível que os discípulos ainda quisessem espelhar-se nessas formas de poder, alimentando pretensões de glória e privilégios, querendo impor um modelo hierárquico na comunidade. À correção, com a qual Jesus denuncia a ambição dos discípulos, ele acrescenta duas perguntas provocatórias que resumem todo o seu ministério, desde o início na Galileia até a consumação em Jerusalém, evocando duas imagens simbólicas dessa trajetória: o cálice e o batismo. O batismo remonta ao início de tudo (Mc 1,8-11); já o cálice pré-anuncia a paixão (Mc 14,23.36). Embora sejam imagens de múltiplos significados ao longo de toda a Bíblia, aqui em Marcos são síntese da vida de Jesus, do batismo à cruz. Em outras palavras, é como se Jesus perguntasse: «Vocês estão dispostos a viver do meu jeito, do começo ao fim de vossas vidas?».

À pergunta decisiva de Jesus, os discípulos irmãos respondem com muita prontidão, mas Jesus parece não levar muito a sério a resposta deles, provavelmente por perceber uma certa presunção nos dois: «Eles responderam: “Podemos!”. E ele lhes disse: “Vós bebereis o cálice que eu devo beber, e sereis batizados com o batismo com que eu devo ser batizado. Mas não depende de mim conceder o lugar à minha direita ou à minha esquerda. É para aqueles a quem foi reservado”» (vv. 39-40). A disposição para abraçar e assumir as consequências de um seguimento sério e radical não pode dar-se em função de recompensas futuras ou prêmios, como eles queriam. Por isso, Jesus confirma que, de fato, eles participarão de seu destino doloroso, mas os alerta que abraçar o seu projeto em vista de recompensa é sinal de incompreensão. A disposição de lugares na glória é um dom gratuito do Pai, e não uma conquista por méritos. Quando Marcos escreve seu Evangelho, pelo menos Tiago já tinha sido martirizado, o primeiro dos Doze a derramar o sangue pela causa de Jesus (At 12,1-2). Isso quer dizer que, apesar de obstinados, eles aceitaram e compreenderam o sentido do seguimento, com suas consequências. Compartilharam o batismo e o cálice de Jesus. Mas é importante a coragem do evangelista apresentar toda a resistência e incompreensão no caminho, ensinando que o seguimento de Jesus exige uma constante conversão. Ninguém nasce discípulo nem se torna num único momento. Ser discípulo é um processo, um tornar-se, que deve se aperfeiçoar cotidianamente, à medida em que aumenta o grau de intimidade com Jesus.

O resultado do ambicioso pedido dos dois irmãos foi a divisão da comunidade: «Quando os outros dez discípulos ouviram isso, indignaram-se com Tiago e João» (v. 41). Temos aqui o primeiro cisma da comunidade, a partir de quando ficaram dez contra dois. Esse episódio é também a recordação de um dos acontecimentos mais deploráveis da história de Israel: o cisma que gerou a divisão em dois reinos: as doze tribos se dividiram, numa disputa de dez contra duas, ficando o reino do norte composto de dez tribos, e o reino do sul formado por apenas duas (2Rs 12). Inclusive, esse texto constitui a única ocasião no Novo Testamento em que aparece a denominação “os dez” (em grego: hoi déka – οἱ δέκα) como referência a uma ala do grupo dos discípulos. Para o evangelista, é inaceitável que a comunidade cristã reproduza os erros históricos de Israel. À medida em que os projetos individuais são colocados em primeiro plano, a unidade da comunidade é quebrada. A reação dos doutros dez mostra isso. Por “indignaram-se” deve-se compreender que ficaram com raiva, ficaram irados. Logo, não significa que eles tivessem compreendendo melhor a dinâmica do projeto de Jesus; pelo contrário, demonstra que eles também pensavam como os dois irmãos; ficaram com raiva por rivalidade, ou seja, eles também queriam os dois lugares de destaque pretendidos pelos filhos de Zebedeu. Essa reação afirma que a sede de poder e o espírito de competição contagiava todo o grupo dos discípulos. inclusive, pouco tempo antes, após o segundo anúncio da paixão, eles tinham discutido sobre quem era o maior entre eles (9,30-37) – texto lido no 25º domingo. Portanto, todos eles estavam movidos por ambições, desejando o exercício do poder a partir do estabelecimento de uma hierarquia na comunidade, contrariando, assim, o projeto igualitário de Jesus.

A comunidade, afetada pela ambição, estava completamente ameaçada. Por isso, Jesus chama a atenção dos discípulos, como diz o evangelista: «E Jesus convocando-os, lhes diz: “sabeis que os que são considerados chefes das nações as dominam, e os grandes as tiranizam” (v. 42). O verbo grego traduzido pelo lecionário como convocar significa “chamar para perto de si” (em grego: προσκαλέω – proskálêo). Com isso, o evangelista denuncia que, embora estivessem no mesmo caminho, e até próximos fisicamente, os discípulos estavam distantes de Jesus em termos de mentalidade e consciência da natureza do Reino. Ao chamá-los para perto de si, Jesus revela sua capacidade de diálogo, suas qualidades de bom pedagogo que não desiste de ver seus discípulos humanizados. Mostra também a sua perseverança e amor; ele não abandona seus discípulos à ignorância, mas insiste em despertar neles a consciência da igualdade e da solidariedade, conforme seu projeto. Ao mesmo tempo, esse gesto mostra que ele vê a ambição com muita preocupação. Por isso, procura expor o seu projeto com mais clareza ainda, procurando mostrar o quanto é diferente de qualquer projeto humano de obtenção e exercício do poder.

Tendo negligenciado os três anúncios da paixão, mesmo tendo sido corrigidos por Jesus, os discípulos tinham como parâmetro os modelos vigentes de poder, marcados pelo domínio e a tirania. Por isso, agora Jesus apresenta sua reação e proposta: «Porém, entre vós não é assim, mas aquele que quiser tornar-se grande entre vós, será vosso servidor.  E aquele que quiser ser o primeiro entre vós, será escravo de todos!» (vv. 43-44). Na verdade, trata-se de uma contraproposta; é uma proposta anti hegemónica, como o Evangelho em sua inteireza. Os sistemas de poder conhecidos até então, não podem ser referência para a comunidade. Marcos recorda isso com muita clareza, pois na época da redação do seu Evangelho havia uma tendência hierarquizante muito forte na sua comunidade, e ele via isso como um distanciamento do projeto de Jesus, que quis uma comunidade igualitária, justa e solidária, sem dominadores nem dominados. Portanto, na comunidade cristã não pode haver espaço para carreirismo, ambição e posições de privilégio. Qualquer imitação dos sistemas vigentes de poder, seja da religião do templo ou do império romano, deve ser abolida da comunidade. A expressão «entre vós não é assim» é carregada de uma certa ironia da parte de Jesus, uma vez que, de fato, estava sendo daquele jeito entre os discípulos; ao mesmo tempo, é uma forte denúncia: não é mais possível adiar a tomada decisiva de posição a respeito dos valores do Reino. Daí ele apresenta qual é o modelo a ser seguido pela comunidade: o serviço, sendo ele mesmo o exemplo de servidor. É preciso substituir a lógica do poder pela lógica do serviço. E isso vale para todas as épocas.

Só é primeiro na comunidade quem se coloca em atitude de serviço em benefício de todos. Por isso, o referencial para a comunidade cristão não pode ser outro senão o próprio Jesus, como ele mesmo se apresenta: «Pois o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a vida dele em resgate de muitos» (v. 45). Ao almejar os primeiros lugares, os filhos de Zebedeu buscavam meios de comando, queriam dominar, distanciando-se do projeto de Jesus, cuja proposta de vida consiste em colocar-se em estado de serviço, com disposição de dar a vida pelo próximo, por amor. O verbo servir (em grego: διακονέω – diaconêo) é empregado duas vezes no mesmo versículo, indicando a chave de leitura do texto e de toda a vida de Jesus. Os discípulos tinham dificuldade de assimilar esse ensinamento, à medida em que queriam estabelecer um sistema de poder na comunidade, como embrião de um projeto de dominação nos moldes da antiga monarquia davídica. Com isso, conscientes ou não, eles rejeitavam o programa de Jesus e adotavam o modelo de administração do império romano e da religião judaica, comandada pelos sacerdotes do templo e o sinédrio. Na compreensão deles, as estruturas da organização social e religiosa da época não seriam abaladas, mudaria apenas as pessoas de comando. Sairiam os romanos e entrariam galileus. Eles queriam reproduzir um sistema opressor e excludente. É claro que uma mentalidade assim não encontra respaldo na mensagem de Jesus.

O evangelho de hoje constitui-se, portanto, como um forte convite à Igreja, em todos os lugares, a abrir-se à sinodalidade como um caminho propício à recuperação da originalidade do projeto de Jesus, para a sua comunidade e para o mundo. Onde há ambição, há rivalidade; e esses dois males impedem o “caminhar juntos”. Por isso, precisam ser abolidos da comunidade cristã, para que nessa vigorem comunhão, participação e missão, retornando, assim, à originalidade evangélica. Para isso, é necessário recuperar a dimensão diaconal do seguimento de Jesus. Somente com disposição para servir há seguimento de Jesus Cristo.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

 

REFLEXÃO PARA O 33º DOMINGO DO TEMPO COMUM – MARCOS 13,24-32 (ANO B)

A reta final do ano litúrgico é sempre marcada pelo uso intenso de textos do gênero literário apocalíptico, como acontece neste domingo, o t...