sábado, maio 10, 2025

REFLEXÃO PARA O 4º DOMINGO DA PÁSCOA – JOÃO 10,27-30 (ANO C)

 


Todos os anos, a liturgia do quarto domingo da Páscoa utiliza um trecho do capítulo décimo do Evangelho de João, no qual Jesus se auto apresenta como o único, autêntico e bom pastor. Por isso, este domingo foi declarado como o “domingo do bom pastor” e, oportunamente, instituído como o “Dia mundial de oração pelas vocações”, pelo Papa Paulo VI, no ano de 1964. Embora o evangelho deste dia seja sempre tirado do mesmo capítulo, alternam-se os textos, conforme o ciclo litúrgico vigente. O trecho lido neste “Ano C” é bastante breve, composto de apenas quatro versículos: Jo 10,27-30. Curiosamente, o termo pastor não aparece nessa passagem específica da liturgia de hoje. Mas, ao falar das ovelhas e de sua relação com elas, Jesus mostra também as características e as qualidades da sua condição de pastor. Como o texto faz parte de um amplo discurso que compreende o capítulo inteiro, muita coisa já foi afirmada nos versículos que antecedem o texto de hoje, o que torna ainda mais necessária uma contextualização, para ser compreendido adequadamente, como faremos a seguir. Também a brevidade do texto – apenas quatro versículos – torna a contextualização ainda mais necessária para uma boa compreensão.

De acordo com o evangelista, no momento do discurso, Jesus se encontra em Jerusalém, nas dependências do templo, participando da “festa da dedicação” (Jo 10,22). É importante ressaltar que as idas de Jesus ao templo de Jerusalém são sempre marcadas por polêmicas, nos quatro evangelhos. Toda vez que frequenta o espaço mais sagrados de Israel, como concebiam os judeus, ele entra em confronto com aqueles que tinham transformado ou permitido a transformação da casa do seu Pai em casa de comércio (Jo 2,16) e em covil de ladrões (Mt 21,13; Mc 11,17; Lc 19,46). Embora não figurasse entre as três maiores festas judaicas – Páscoa, Pentecostes e Tendas –, a festa da dedicação também era grande e atraía muitos peregrinos a Jerusalém. Esta festa foi estabelecida por Judas Macabeu no ano 165 a.C., para celebrar a vitória dos macabeus sobre a dominação grega e a nova dedicação do templo e do altar, que tinham sido profanados pelos gregos (1 Mc 4,36-59). Desde então, essa festa que entrou no calendário judaico oficial, era celebrada solenemente em Jerusalém, com duração de uma semana, sendo chamada também de “festa das luzes”. O principal texto bíblico utilizado na liturgia dessa festa era o capítulo 34 de Ezequiel, no qual o profeta faz uma enfática denúncia aos maus pastores de Israel. Estes, segundo o profeta, apascentavam a si mesmos, ao invés de apascentar o (povo) rebanho (Ez 34,1-2). Por isso, de acordo com o profeta, Deus iria destituir os maus pastores e cuidar ele mesmo do rebanho (Ez 34,11).

Foi a partir deste contexto que Jesus aplicou a si a imagem do bom pastor, aproveitando a ocasião em que o texto de Ezequiel estava muito vivo na memória das pessoas ali reunidas, uma vez que era lido e relido diversas vezes durante a festa. É importante recordar que a figura do pastor sempre foi muito significativa para o povo de Israel, devido às suas origens pastoris. Essa imagem foi aplicada a Deus e também aos líderes que assumiram funções de guia e comando sobre o povo, como reis e sacerdotes. Foi a profissão dos principais personagens do Antigo Testamento: Moisés e Davi. Portanto, era muito presente no imaginário popular dos judeus. Atualizando a perspectiva do profeta Ezequiel, Jesus se apresenta como o único e autêntico pastor, e dirige à classe dirigente de Jerusalém, especialmente aos sacerdotes do templo, uma de suas mais pesadas críticas. Ora, ao afirmar ser o bom pastor (Jo 10,14), Jesus denunciava que os sacerdotes do templo eram aqueles maus pastores destituídos por Deus, como profetizou Ezequiel. Indiscutivelmente, suas palavras tiveram grande repercussão porque mexiam com os privilégios da classe dirigente de Israel, composta por funcionários do sagrado, ao invés de pastores verdadeiros. A prova do incômodo causado pelas palavras de Jesus está na reação dos líderes judeus durante e após o seu discurso: primeiro, disseram que ele estava endemoniado (Jo 10,20), depois quiseram apedrejá-lo (Jo 10,31) e tentaram prendê-lo (Jo 10,39).

Feita a contextualização, olhemos para o texto, que começa com a seguinte declaração de Jesus: «As minhas ovelhas escutam a minha voz, eu as conheço e elas me seguem» (v. 27). No versículo anterior, que não consta no texto da liturgia, Jesus tinha dito aos seus interlocutores, os líderes do judaísmo, que eles não pertenciam às suas ovelhas (Jo 10,26). Isso porque não correspondiam aos critérios de pertença, ou seja, não lhe ouviam e nem lhe seguiam. É de suma importância essa afirmação de Jesus, pois revela quais são as características fundamentais do seu tipo de pastoreio e os critérios para pertencer ao seu rebanho: escutar e seguir. Esses dois verbos são as principais chaves de leitura para toda a mensagem de Jesus, sobretudo para a compreensão do seu discipulado. Escutar a voz de alguém, na linguagem bíblica, não significa simplesmente a percepção de um som ou ruído, mas é acima de tudo dar adesão completa àquele que fala, é deixar-se transformar e, consequentemente, conduzir-se pelas suas palavras. Por isso, a escuta vem acompanhada de um segundo elemento, que é a sua consequência: o seguimento. Os interlocutores de Jesus não viviam a dinâmica do “escutar-seguir”. Apegados aos ritos e preceitos, tinham sido instruídos a obedecer e cumprir normas, apenas. O seguimento proposto por Jesus, como consequência da escuta, significa seguir os mesmos caminhos dele, com liberdade e disposição. Logo, ao invés de cumpridores de ordens, fazer parte das ovelhas de Jesus é ser descobridores de estradas, buscadores de novos horizontes. O Deus pregado no templo era um soberano que, através de seus representantes ditos pastores, mas na verdade eram mercenários, a casta sacerdotal, ditava normas do alto. Apresentando-se como pastor, Jesus revela que Deus age de maneira completamente diferente: caminha à frente, não dá ordens, apenas aponta a direção; quem escuta a sua voz e o segue torna-se íntimo dele, deixa-se humanizar pelo seu amor cuidadoso.

A quem, motivado pela escuta, se coloca no seguimento de Jesus, o bom pastor, Ele garante o maior dos dons: «Eu dou-lhes a vida eterna e elas jamais se perderão. E ninguém vai arrancá-las de minha mão» (v. 28). Os falsos pastores do templo, denunciados por Jesus, apenas pediam; Jesus, pelo contrário, é quem dá, e não dá qualquer coisa, mas a vida em plenitude, ou seja, a “vida eterna”. É importante recordar que a “vida eterna” dada por Jesus a quem lhe segue não é um prêmio que as pessoas boas receberão no futuro, mas a vida conduzida segundo a escuta da sua voz, desde agora. A adesão a Jesus e ao seu Evangelho, compreendida como a escuta da sua voz e o seu seguimento, eterniza a vida, humanizando-a. Vida eterna, portanto, segundo a perspectiva teológica do evangelista João, não é uma vida para o pós-morte, mas é uma vida tão plena, tão cheia de sentido e autêntica, tão humanizada, a ponto de nem a morte poder destruí-la, como não destruiu a de Jesus.  Por isso, mesmo após a passagem pelo inevitável fenômeno que chamamos de morte, essa “vida eterna” prosseguirá. É a vida presente que se torna eterna à medida em que a pessoa se deixa conduzir pela voz de Jesus. Ora, o próprio Jesus, mais adiante, afirmará que a vida eterna consiste no conhecimento dele e do Pai (Jo 17,2-3). Portanto, quem ouve a sua voz lhe conhece e, por sua vez, conhece também o Pai, já que Ele e o Pai são um (v. 30). Logo, a vida eterna é a vida de toda pessoa que escuta a voz de Jesus e abraça o seu seguimento.

Ninguém consegue arrancar as ovelhas da mão de Jesus (v 28b) porque tudo o que está em sua mão está também na mão do Pai. E Jesus tem profundo zelo por tudo o que recebeu do seu Pai. Sua missão neste mundo foi cuidar das coisas do Pai, e o que o Pai tem de mais precioso são os seus filhos e filhas, por isso, todo ser humano é profundamente amado por Jesus. Por isso, tendo recebido do Pai, Jesus cuida tão bem das ovelhas: «Meu Pai, que me deu estas ovelhas, é maior que todos, e ninguém pode arrebatá-las da mão do Pai» (v. 29). Ora, tudo o que Jesus tem, recebeu do Pai, porque o Pai, amando-lhe tanto, entregou-lhe tudo nas mãos (Jo 3,35), principalmente a vida dos seus filhos, as ovelhas que estavam nas mãos de mercenários (Ez 34; Jo 10,12-13). Quando o Pai decide cuidar ele mesmo das ovelhas, como tinha profetizado Ezequiel (Ez 34,11), na verdade, ele decide entregá-las ao seu Filho, que é Jesus, entregando-lhe em mãos. A mão, na linguagem bíblica, é uma metáfora do poder protetor de Deus, da sua força e dos seus cuidados paternais e maternos (Os 11,3; Dt 33,3; Is 43,13; 49,2; Sl 31,6; 95,4; Sb 3,1; Dn 5,23). As mãos que protegem são as mesmas que acariciam. Com essa imagem, Jesus diz que também é Deus; daí, a afirmação: «Eu e o Pai somos um» (v. 30). Por causa desta afirmação, seus interlocutores quiseram apedrejá-lo, acusando-o de blasfêmia, por fazer-se Deus, sendo apenas um homem (Jo 10,31-33), como eles imaginavam. Ora, Jesus sendo Deus e estando no mundo, é óbvio que aqueles que se diziam representantes de Deus – os sacerdotes do templo – estariam destituídos de suas funções, pois Deus já não necessita mais de ser representado, pois está pessoalmente presente, por meio do Filho. Com efeito, Jesus, o autêntico pastor, não é um representante de Deus, mas é Deus mesmo. Isso revela a superioridade do seu pastoreio e da sua messianidade em relação às expectativas messiânicas da época. E o mais importante é que ele compartilha com a humanidade inteira a sua intimidade com o Pai.

Quem se deixa acariciar pelas mãos de Jesus, é acariciado também pelo Pai. As mãos dos chefes religiosos de Israel faziam o contrário: oprimiam, exploravam, sugavam o povo, ao invés de proteger e acariciar. As mãos de Jesus cuidam, humanizam e salva. E, para receber o toque de suas mãos basta ouvir sua voz e segui-lo. Que o Bom Pastor, único e autêntico, inspire vocações que ajudem a ressoar sua voz no mundo e sejam extensões de sua mão que protege, cuida e defende, sobretudo, as ovelhas mais vulneráveis e necessitadas.  

Pe. Francisco Cornélio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, maio 03, 2025

REFLEXÃO PARA O 3º DOMINGO DA PÁSCOA – JOÃO 21,1-19 (ANO C)

 



A partir do terceiro domingo da Páscoa, a liturgia passa a empregar um texto evangélico específico para cada ano, conforme o ciclo litúrgico vigente, ao contrário do que ocorre no primeiro e no segundo domingo, quando se lê o mesmo texto todos os anos. Neste ano, por ocasião do ciclo litúrgico C, o evangelho proposto no terceiro domingo é Jo 21,1-19, texto que descreve a terceira e última manifestação do Ressuscitado aos seus discípulos, conforme a dinâmica narrativa do Quarto Evangelho. Nele, a ênfase recai sobre a “pesca milagrosa” e o diálogo franco e sincero de Jesus com Pedro. Inicialmente, este capítulo 21 não fazia parte do Evangelho de João; foi acrescentado posteriormente, devido às necessidades das comunidades destinatárias. A redação original do Evangelho foi concluída em Jo 20,30-31, conforme lemos no domingo passado: «Jesus realizou muitos outros sinais diante dos discípulos, que não estão escritos neste livro. Mas estes foram escritos para que acrediteis que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais a vida em seu nome». Como o Quarto Evangelho já tinha um prólogo (Jo 1,1-18), os líderes da(s) comunidade(s) joanina(s) entenderam que poderiam acrescentar um epílogo – o capítulo 21 – sem trair as intenções e nem as características do evangelista, mas até enriquecendo.

Dos diversos motivos que contribuíram para o acréscimo do capítulo 21 ao Evangelho de João, podemos destacar os seguintes: 1) a reabilitação de Pedro; é inegável que após a contestação no lava-pés (Jo 13,6-10) e a negação durante o processo de Jesus (Jo 18,15-27), Pedro ficou abalado psicologicamente, com grande remorso, e teve sua imagem comprometida nas comunidades; 2) se na conclusão original o evangelista afirmara que Jesus tinha realizado “muitos outros sinais” além daqueles descritos até então, é de se imaginar que as comunidades tenham perguntado algo sobre os sinais não narrados, e até pedido exemplos; logo, a “pesca milagrosa” deste capítulo responde a essa indagação; 3) as duas aparições do Ressuscitado narradas no capítulo 20 (conteúdo do evangelho do domingo passado – Jo 20,19-21), aconteceram no domingo, quando a comunidade estava reunida em um lugar fechado; posteriormente, também deve ter surgido dúvidas se o Ressuscitado não estaria presente também nos outros dias da semana e nas atividades cotidianas dos seus seguidores; uma aparição durante uma pesca, responde a esse questionamento. Certamente, houve outros motivos, mas não é possível destacar todos aqui. Na verdade, não é possível sequer conhecer todos. O que estudiosos conseguem é perceber, pelas entrelinhas, os mais evidentes. Pela extensão, não comentaremos todos os versículos separadamente.

Feitas as devidas considerações introdutórias, a nível de contexto, olhemos então para o texto: «Jesus apareceu de novo aos discípulos, à beira do mar de Tiberíades. A aparição foi assim: Estavam juntos Simão Pedro, Tomé, chamado Dídimo (Gêmeo), Natanael de Caná da Galileia, os filhos de Zebedeu e outros dois discípulos de Jesus» (vv. 1-2). Até então, as aparições do Ressuscitado aos discípulos, tinham acontecido numa sala fechada em Jerusalém, à exceção da aparição a Maria Madalena no jardim – não incluímos o episódio dos discípulos de Emaús, Lc 24,13-35, em que o Senhor apareceu no caminho, porque esse pertence às tradições do evangelista Lucas; por questões didáticas, tratamos aqui apenas da tradição joanina. Dessa vez, a aparição acontece na Galileia, a céu aberto. Ao contrário das duas primeiras que tinham acontecido no domingo (o primeiro ou oitavo dia semana), dessa vez o dia não vem indicado. Já temos um primeiro sinal de que o Ressuscitado não está condicionado a nenhum espaço ou tempo determinados. O mar de Tiberíades – também chamado de lago de Genesaré ou mar da Galileia – possui um significado importante para as origens do cristianismo, pois foi o cenário dos primeiros chamados, conforme a tradição sinótica. A manifestação do Ressuscitado nesse ambiente é um sinal de retorno às origens e confirmação da vocação. Quem outrora deixou-se atrair pela proposta de Jesus de Nazaré, deve continuar atraído pelo Ressuscitado, já que é a mesma pessoa. O autor identifica sete discípulos nessa aparição, apesar de só informar o nome de três. O número sete possui um valor simbólico altamente significativo para os propósitos de universalização da mensagem de Jesus; enquanto o número doze representa apenas o povo de Israel, o número sete representa o universo inteiro, e esse deve ser o destino da missão dos discípulos de Jesus de Nazaré, o crucificado que ressuscitou.

A pesca, por ser a atividade da maioria dos primeiros discípulos, se tornou imagem simbólica da missão apostólica no cristianismo das origens. Por isso, essa cena, mais que descrever uma pescaria real, é uma verdadeira parábola da missão da comunidade cristã. O grupo de discípulos está unido, e Pedro continua impetuoso, falando e agindo sem medir as consequências: «Simão Pedro disse a eles: “Eu vou pescar”. Eles disseram: “Também vamos contigo”. Saíram e entraram na barca, mas não pescaram nada naquela noite» (v. 3). A adesão dos companheiros à iniciativa de Pedro recorda sua liderança na comunidade primitiva. Também recorda a unidade: não deve haver projetos individualistas na comunidade; a missão de um é também de todos. Apesar da adesão do grupo, a iniciativa de Pedro não logrou êxito, o que vem indicado pela expressão «não pescaram nada naquela noite»; o indicativo temporal “naquela noite” possui valor simbólico, significando aqui a ausência de Jesus, aquele que é a luz verdadeira, por excelência. Quando falta essa luz, prevalecem as trevas. Por consequência, essa ausência torna ineficazes as iniciativas da comunidade, por mais boa vontade que tenham os seus membros. No Evangelho de João, o paradoxo trevas-luz possui mais relevância do que em qualquer outro escrito do Novo Testamento. 

Como opção de superação e oposição às trevas da noite, surge o novo dia, com o raiar da luz: «Já tinha amanhecido, e Jesus estava de pé na margem» (v. 4a). Na luz do dia, Jesus se faz presente. Obviamente, não é o dia que traz a presença de Jesus, mas é ele quem faz as trevas desaparecerem e o dia surgir, pois ele é a própria luz. E ele estava de pé, a posição de ressuscitado, vivente, em oposição ao sono e à morte. Quer dizer que, ressuscitado, não dorme e nem morre mais, permanece de pé, pronto para acompanhar a comunidade cristã em qualquer travessia, seja por terra, seja por mar. Contudo, habituados a encontrar o Senhor somente no âmbito litúrgico da reunião comunitária do domingo, os discípulos não o reconheceram quando estava de pé (v. 4b), à margem do mar, mesmo ele já tendo se lhes manifestado duas vezes. Com isso, o autor faz um alerta às comunidades de todos os tempos: é preciso reconhecer a presença de Jesus no dia-a-dia, nas margens e nas atividades cotidianas também. Não basta esperar uma semana para encontrar-se com ele no encontro litúrgico da comunidade, pois ele interage no dia-a-dia através dos acontecimentos e das pessoas necessitadas, principalmente. Inclusive, fazendo-se necessitado, como mostra o evangelista: «Então Jesus disse: “Moços, tendes alguma coisa para comer?”» (v. 6). Aqui, ele se revela necessitado e, sobretudo, terno, carinhoso. O termo grego que o lecionário traduziu por “moços” fica mais bem traduzido por “filhinhos” ou simplesmente “filhos” (παιδία – paidía). Expressa uma interpelação íntima e carinhosa, como se dá na relação entre pais e filhos. Com sinceridade e muito provavelmente com decepção, os discípulos responderam que não tinham nada para comer, afinal, a pescaria tinha sido um fracasso. 

À luz do dia, mesmo sem ainda ser reconhecido, Jesus aponta a solução para a comunidade que trabalhou em vão durante a noite: «“Lançai a rede à direita da barca, e achareis”. Lançaram pois a rede e não conseguiam puxá-la para fora, por causa da quantidade de peixes» (v. 6). Guiada somente pelo impulso de Pedro e na escuridão da noite, a comunidade trabalhou em vão; orientada pelas palavras de Jesus, o resultado foi surpreendente: uma pesca abundante. Aqui está a primeira motivação para a transformação da comunidade. Contudo, será um processo lento. Assim como fora o primeiro a acreditar na ressurreição ao ver o sepulcro vazio (Jo 20,8), o discípulo amado também é o primeiro a reconhecer Jesus naquele homem desconhecido à beira do mar, por isso, exclamou convictamente: «É o Senhor!» (v. 7). O Quarto Evangelho insiste que a primeira condição para o encontro autêntico com Jesus é o amor. Não há trabalho intelectual e nem físico que se sobreponha ao amor. Boas intenções não bastam para o crescimento da comunidade, se nessa não reina o amor. De fato, o amor é o que dá credibilidade ao anúncio; por isso, «Simão Pedro, ouvindo dizer que era o Senhor, vestiu a sua roupa, pois estava nu, e atirou-se no mar» (v. 7b). Ora, Pedro conhecia bem a trajetória de amor daquele discípulo, por isso, sabia que seu testemunho era verdadeiro. As atitudes de Pedro aqui, embora ainda impetuosas, mostram o progresso de sua conversão; a passagem do estado de nudez ao de vestido significa uma mudança de atitude e de mentalidade. Com efeito, a afirmação de que ele “estava nu” não quer dizer que estivesse totalmente despido, mas com alguma veste interior. De fato, a veste interior já era considerada um estado de nudez, em muitas culturas, sobretudo as mais conservadoras. O atirar-se no mar é uma imagem do batismo: é preciso passar pelas águas para tornar-se uma nova pessoa. Pedro tem pressa, pois se sente mais necessitado do que os demais de ficar na presença do Senhor (v 8).

O momento privilegiado do encontro da comunidade com o Ressuscitado será sempre a refeição, o banquete, como sinal de partilha, amor e alegria. E é o próprio Jesus quem prepara a refeição (vv. 9-13), pois, o Ressuscitado continua o mesmo que serviu e foi crucificado: é aquele que se fez servo, que lavou os pés dos discípulos. Essa refeição representa a Eucaristia, já consolidada entre as comunidades, na época da redação do texto. Mesmo oferecendo o banquete, Jesus pede a colaboração dos discípulos: «Trazei alguns dos peixes que apanhastes» (v. 10). É claro que Jesus não pede os peixes por necessidade. Se trata de uma oportunidade oferecida aos discípulos para trabalharem com ele, participarem da sua obra, do seu plano de saciar o mundo de amor. Isso mostra que a comunidade deve unir seus esforços aos dons do Ressuscitado para a transformação do mundo. A construção do Reino exige esforço de todos. Os peixes, aqui, são dons do Ressuscitado, e prova de que as palavras dele geram abundância e fertilidade, por isso, são indispensáveis para o banquete; são, acima de tudo, frutos do amor. O convite «vinde comer» (v. 13) é dirigido a todas as pessoas; participar desse banquete é um ato de amor.

A sequência do texto (vv. 15-19) mostra o diálogo decisivo de Jesus com Pedro, que é o coração de todo o capítulo. Essa é, certamente, uma das cenas mais belas de todo o Novo Testamento. Ao longo do(s) Evangelho(s), Pedro tinha demonstrado diversas contradições. Obstinado, procurava sempre demonstrar uma prontidão maior que os demais discípulos; era sempre o primeiro a responder às perguntas de Jesus, queria mostrar mais serviço sempre e de todas formas. Por esse seu caráter, acabava caindo em contradição facilmente. Se manifestou contra a atitude de Jesus no momento do lava-pés e o negou três vezes durante o processo. Esse último fato foi, certamente, o mais dramático e que deixou, inevitavelmente, mais sequelas interiores e remorso, não em Jesus que perdoa tudo, mas no próprio Pedro. É provável que tenha causado desconfiança entre os companheiros e até nas comunidades futuras. Por isso, era necessário reabilitá-lo, e foi esse o principal motivo da inserção deste capítulo num Evangelho que já estava concluído. Aqui, Jesus não faz um acerto de contas com Pedro, mas quer apenas mostrar que, não obstante todas as fragilidades do apóstolo, o amor entre os dois precisa ser confirmado e reforçado, pois é do amor que dependem os frutos da missão confiada. Assim, o evangelista recorda a re-humanização de Pedro pela força do amor de Jesus. 

Jesus pergunta três vezes se Pedro lhe ama, e Pedro responde três vezes. O número três, obviamente, alude ao número de negações; foi essa a marca negativa que Jesus quis tirar do coração de Pedro, mostrando todo o seu amor por ele. Temos aqui uma prova muito clara de que Jesus não desiste do ser humano. Ele insiste de todos os modos para que nenhum dos que o Pai lhe confiou se perca (Jo 6,39), pois essa é sua missão. Jesus age com Pedro como um bom terapeuta que pretende eliminar o mal pela raiz. Eis a primeira pergunta e resposta: «“Simão, filho de João, tu me amas mais do que estes?” Pedro respondeu: “Sim, Senhor, tu sabes que eu te amo. Jesus disse: “Apascenta os meus cordeiros”» (v. 15). Na verdade, Jesus não necessita que Pedro lhe ame mais do que os demais; esse detalhe que aparece somente na primeira pergunta, é apenas uma advertência: quanto mais intenso for o amor do discípulo, maior deve ser a disponibilidade para o serviço. A resposta de Pedro é positiva, inclusive reconhecendo que Jesus sabe tudo, como soube antecipadamente da sua negação (Jo 13,36-38). O amor de Pedro, bem como dos demais discípulos, é fundamental para os propósitos de Jesus, que confirma a missão: «Apascenta os meus cordeiros». Antes de tudo, fica claro que o rebanho é de Jesus e, portanto, os seus discípulos não podem recebê-lo como propriedade sua. Apascentar significa cuidar: proteger dos perigos e prover o alimento, especialmente; em outras palavras, é proporcionar todos os meios para uma vida digna, abundante e humanizada. 

A pergunta é repetida até a terceira vez, com pequenas variações de vocabulário que não comprometem o seu significado, embora alguns estudiosos explorem bastante as mudanças. Para o uso litúrgico, no entanto, é suficiente saber que aquilo que está em questão é a reabilitação de Pedro por meio do amor. Nesse processo de resgate, «Pedro ficou triste, porque Jesus perguntou três vezes se ele o amava» (v. 17); o remorso da negação veio à tona novamente, mas essa tristeza também significa um lamento por não ter descoberto antes que o amor é o único meio para uma relação autêntica com Jesus. A sua prontidão anterior, o apresentar-se sempre como o primeiro, tanto no falar quanto no agir, não tinha tanto efeito porque a motivação para isso ainda não era o amor. Agora sim, Pedro está convicto da necessidade do amor nas relações e do seu papel na comunidade; não se trata de exercer um governo; Jesus lhe pede para cuidar, para servir, não para governar. O serviço, movido pelo amor, é o que conta na comunidade cristã. Está claro, portanto, que o objetivo principal do texto é mostrar a reabilitação de Pedro: de um discípulo envergonhado de seu mestre, a um discípulo convertido pelo amor, tendo o seu remorso sanado pela insistência do Senhor Ressuscitado. Se é Jesus o dono do rebanho, para cuidar desse rebanho é necessário amá-lo intensamente, à sua própria maneira. 

Convicto da conversão de Pedro, Jesus lhe revela o seu próprio destino: «“Quando fores velho, estenderás as mãos e outro te cingirá e te levará onde não queres ir”. Jesus disse isso, significando com que morte Pedro iria glorificar a Deus. E acrescentou: “Segue-me”» (vv. 18-19). Ora, sempre que Jesus dizia que ia sofrer, quando antecipava a sua morte de cruz, o primeiro a repreendê-lo era Pedro. Agora, Jesus diz que é o próprio Pedro quem também vai passar pela cruz: a expressão «estenderás os braços» é uma referência explícita à morte de cruz. Dessa vez, já não há contestação porque Jesus está cara a cara com um novo Pedro, um homem convertido, consciente de que não pode mais agir segundo seus impulsos, pois quando isso acontece a pesca é totalmente estéril; só há peixe em abundância quando as redes são lançadas de acordo com as indicações de Jesus. Após a reabilitação de Pedro, Jesus renova o convite ao seguimento: «Segue-me». O Ressuscitado é uma pessoa viva, presente na comunidade, e deve ser seguido sempre. Esse seguimento, para ser autêntico, deve ser motivado sempre pelo amor.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sexta-feira, abril 25, 2025

REFLEXÃO PARA O SEGUNDO DOMINGO DE PÁSCOA – JOÃO 20,19-31



Como acontece no primeiro Domingo de Páscoa, também no segundo domingo o evangelho é o mesmo para todos os anos. No caso do segundo, o trecho lido é Jo 20,19-31. Este texto narra a continuação dos eventos envolvendo a comunidade de discípulos no dia mesmo da ressurreição, e a sua quase repetição uma semana depois. Para compreendê-lo melhor, é necessário recordar alguns elementos do texto da liturgia do domingo passado, que apresentava a comunidade completamente desnorteada, não apenas porque o Senhor e mestre fora morto, mas porque até mesmo o seu cadáver parecia ter sido roubado (Jo 20,1-3). Naquela ocasião, o evangelista dava sinais de uma nova criação, embora ainda estivesse na fase do caos, simbolizado pelo escuro da madrugada (Jo 20,1). Três personagens protagonizaram aquele relato: Maria Madalena, Pedro e o Discípulo Amado; ambos fizeram a constatação do sepulcro vazio, mas somente um deles interpretou, de imediato, a ausência do corpo como sinal da ressurreição: o Discípulo Amado (Jo 20,8). Maria Madalena foi a segunda a acreditar, mas já durante o dia, após confundir o Senhor com o jardineiro (Jo 20,16-18), porém esse episódio já não constava no texto que fora lido no domingo.

Da madrugada do primeiro dia, a liturgia de hoje passa para o anoitecer do mesmo dia, como diz o texto: «Ao anoitecer daquele dia, o primeiro da semana, estando fechadas, por medo dos judeus, as portas do lugar onde os discípulos se encontravam, Jesus entrou e pondo-se no meio deles, disse: ‘A paz esteja convosco’» (v. 19). Não obstante as frustrações e decepções com o final trágico de seu líder, condenado e morto na cruz, a reunião dos discípulos mostra que a comunidade está se recompondo, após uma normal dispersão. Certamente, o anúncio de Maria Madalena – «Eu vi o Senhor!» (Jo 20,18) – influenciou nesse processo de recomposição, junto à fé do Discípulo Amado, ao constatar o sepulcro vazio em companhia de Pedro, ainda na madrugada daquele dia. Embora se recompondo, a comunidade continuava em crise, o que se evidencia pela situação de medo informada pelo evangelista. Por “medo dos judeus” entende-se o medo das lideranças religiosas que condenaram Jesus em conluio com o império. É típico de João usar o termo “judeus” em referência aos líderes, e não a todo o povo. Do início ao fim do Quarto Evangelho, eles são apresentados como verdadeiros antagonistas de Jesus, buscando impedir sua a realização da sua missão libertadora a qualquer custo. Porém, não conseguiram, mesmo tendo contribuído para sua morte na cruz. Por isso, o medo deles da parte dos discípulos é até compreensível, apesar de inaceitável. De fato, o medo é preocupante, é um impedimento à missão; é fruto da angústia, da desilusão e do remorso de alguns. O principal motivo do medo era a possibilidade clara de perseguição; os discípulos temiam ter o mesmo final trágico do mestre, ou seja, a condenação à morte de cruz.

Manifestando-se no meio dos discípulos, o Ressuscitado inicia neles um processo de transformação, oferecendo o primeiro antídoto ao medo: o dom da paz, que, nesse texto, não significa apenas a típica saudação dos judeus (shalom), mas o cumprimento de uma promessa que, por sinal, responde às necessidades reais da comunidade acuada pelo medo. Ora, durante a ceia, vendo seus discípulos angustiados (Jo 14,1), Jesus encorajou-os e prometeu-lhes a paz: «Eu vos deixo a paz, eu vos dou a minha paz» (Jo 14,27a). Naquele contexto, no entanto, os discípulos não assimilaram esse dom, devido à angústia pela qual passavam. Na verdade, todo este relato do evangelho de hoje deve ser lido na perspectiva da dinâmica promessa–cumprimento: a própria manifestação (aparição) do Ressuscitado à comunidade é também cumprimento de uma promessa: «Vou e volto a vós» (Jo 14,28), como é a doação do Espírito Santo. O Ressuscitado não retorna ao mundo para fazer um julgamento ou prestação de contas, mas para continuar a sua obra de amor, cumprindo suas promessas e continuando a mostrar com gestos e palavras que o Pai lhe enviou ao mundo para, acima de tudo, amar sem medidas. O encontro com a paz de Jesus levanta o ânimo da comunidade que parecia fracassada. Ele comunica a sua paz e, ao mesmo tempo, reforça o modelo de comunidade ideal: uma comunidade igualitária e livre, tendo um único centro: o Cristo Ressuscitado. É esse o significado do seu colocar-se no meio deles. Para uma comunidade viver realmente os propósitos do Evangelho é necessário, antes de tudo, que no centro do seu existir esteja o Ressuscitado; é Ele o único ponto de referência e fator de unidade.

Na continuidade da experiência, diz o texto que Jesus «mostrou-lhes as mãos e o lado. Então os discípulos se alegraram por verem o Senhor» (v. 20). Ao mostrar as mãos e o lado, Jesus mostra a continuidade entre o Ressuscitado e o Crucificado: trata-se da mesma pessoa. Geralmente, esse gesto é interpretado apenas como uma demonstração material da ressurreição: as chagas do Crucificado continuam no Ressuscitado. No entanto, aqui, as mãos e o lado não são apenas as marcas da paixão; são os sinais da identidade de Jesus de Nazaré que continuam no Cristo Ressuscitado, porque é a mesma pessoa. E os principais traços da identidade de Jesus são o serviço e o amor; foi isso que ele demonstrou em toda a sua vida terrena. Portanto, Jesus diz, com esse gesto, que continua servindo e amando, e sua comunidade deve também viver dessa forma. As mãos são sinais do serviço, e o lado é sinal do amor, pois representa o coração. Estes sinais revelam elementos essenciais da identidade e missão da comunidade: amar e servir, servir e amar, não importa a ordem das palavras. O importante é que serviço e amor não podem faltar numa comunidade cristã. E a certeza da presença do Ressuscitado faz a comunidade superar definitivamente o medo, passando à alegria. De fato, os discípulos se alegram por verem o Senhor. Essa alegria é carregada de alívio e esperança, tornando-se também um sinal de encorajamento no processo de superação do medo.

Já estabelecido como centro da comunidade, «novamente Jesus disse: ‘A paz esteja convosco’» (v. 21a). A paz é novamente oferecida, porque a passagem do medo à alegria poderia tornar-se uma simples euforia nos discípulos; por isso a paz é doada novamente para enfatizar a serenidade e o equilíbrio que devem existir na comunidade. Só é possível acolher os dons pascais estando realmente em paz. Aqui, a paz não significa alívio ou tranquilidade, mas sinal de liberdade e vida plena; é a capacidade de assumir livremente as consequências das opções feitas. Tendo plenamente comunicado a paz como seu primeiro dom, o Ressuscitado os envia, como fora ele mesmo enviado pelo Pai: «Como o Pai me enviou, também eu vos envio» (v. 21b). Ao contrário de Mateus e Lucas que determinam as nações e até os confins da terra como destinos da missão (Mt 28,19; Lc 24,47; At 1,8), em João isso não é determinado: «Como o Pai me enviou, também eu vos envio». Jesus simplesmente os envia. Sem diminuir a importância da missão em sua dimensão universal, João pensa na comunidade, em primeiro lugar. É essa a primeira instância da missão, porque é nessa onde estão as situações de medo, de desconfiança, de falta de entusiasmo, por isso é a primeira a necessitar da paz do Ressuscitado.  

O texto mostra, como sempre, a coerência de Jesus: «E depois de ter dito isso, soprou sobre eles e disse: Recebei o Espírito Santo» (v. 22). Ora, ele tinha prometido o Espírito Santo aos discípulos durante a ceia (Jo 14,16.26; 15,26). Ao soprar sobre eles, o Espírito é comunicado e a promessa é cumprida. O evangelista usa o mesmo verbo/gesto do relato da primeira criação do ser humano (Gn 2,7). O Evangelho do domingo passado mostrava a nova criação em sua primeira fase; hoje, essa criação chega ao seu ponto alto com o sopro de vida comunicado pelo Ressuscitado. Nessa nova criação, o “Criador” já não age como um vigilante, olhando de cima, mas se faz presente no meio da comunidade, deixando-se tocar, vivendo como um igual entre as pessoas. O verbo soprar (em grego: έμφυσάω – emfysáo) significa doação de vida. Literalmente, quer dizer soprar para dentro do outro, como fez Deus na criação, soprando dentro das narinas da escultura de barro e, assim, transformando-a em ser vivo. Desse modo, podemos dizer que Jesus, ao soprar sobre os seus discípulos, transmitiu-lhes vida, recriando a comunidade e, nessa, a humanidade inteira. Ao receber o Espírito, a comunidade se torna também comunicadora dessa força de vida. E é o Espírito quem mantém a comunidade alinhada ao projeto de Jesus, porque é Ele quem faz a comunidade sentir, viver e prolongar a presença do Ressuscitado como seu único centro. E isso se faz através do amor e o serviço. Ao contrário da perspectiva de Lucas, que aguarda para o dia de Pentecostes (cinquenta dias após a páscoa), em João o Espírito Santo é doado no dia mesmo da ressurreição, o que parece mais lógico, tendo em vista a situação da comunidade paralisada pelo medo. A força do Espírito Santo era uma necessidade urgente para reanimar a comunidade.

O dom do Espírito Santo fortalece a comunidade e lhe confere uma grande responsabilidade: «A quem perdoardes os pecados eles lhes serão perdoados; a quem não perdoardes, eles lhes serão retidos» (v. 23). Por muito tempo, essa passagem foi usada apenas para fundamentar o sacramento da penitência. Mas Jesus não está dando um poder aos discípulos, e sim confiando-lhes uma responsabilidade: reconciliar o mundo, levar a paz e o amor do Ressuscitado a todas as pessoas, de todos os lugares e em todos os tempos. Não se trata, portanto, de um poder para determinar se um pecado pode ser perdoado ou não. É a responsabilidade da obrigatoriedade da presença cristã para que, de fato, o mundo seja reconciliado com Deus e, assim, humanizado.  Os discípulos têm a missão de ser comunicadores desse Espírito em todas as realidades. Ora, Jesus fora definido pelo Batista como o «Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo» (Jo 1,29); para isso fora enviado pelo Pai. E é à maneira do Pai que ele envia seus discípulos em todos os tempos: «Como o Pai me enviou, também eu vos envio» (v. 21). Portanto, os pecados são perdoados à medida em que o amor de Jesus vai se espalhando no mundo, e isso se dá pelo testemunho dos seus discípulos e pela força do Espírito Santo. Ficam pecados sem perdão, portanto, quando há omissão dos discípulos, quando eles deixam de amar e servir à maneira de Jesus.

A comunidade não estava completa naquele primeiro dia: assim como Judas não fazia mais parte do grupo, também «Tomé, chamado Dídimo, que era um dos Doze, não estava com eles quando Jesus veio» (v. 24). É necessário destacar algumas características desse discípulo, considerando que ele foi bastante rotulado negativamente ao longo da história. Ora, o motivo pelo qual os discípulos estavam reunidos com portas fechadas era o medo. Provavelmente, Tomé não estava trancado com eles porque não tinha medo. A evidência maior da coragem de Tomé aparece no relato da reanimação de Lázaro. Jesus estava ameaçado de morte, e quando decidiu ir à Judeia, onde ficava Betânia, a cidade de Lázaro, Tomé foi o único que se dispôs a ir para morrer com ele: «Tomé, chamado Dídimo, disse então aos condiscípulos: ‘Vamos também nós, para morrermos com ele!’» (Jo 11,16). Por isso, ele não tinha nenhum motivo para esconder-se. Essa sua coragem foi ofuscada pelo rótulo de incrédulo. Quanto à fé no Ressuscitado, a diferença de Tomé para os demais deve-se ao intervalo de uma semana. Não estava reunido no primeiro dia e não acreditou no testemunho da comunidade: «Os outros discípulos contaram-lhe depois: ‘Vimos o Senhor!’. Mas Tomé disse-lhes: ‘Se eu não vir a marca dos pregos em suas mãos, se eu não puser o dedo nas marcas dos pregos e não puser a mão no seu lado, não acreditarei’» (v. 25). Não dar credibilidade ao testemunho da comunidade foi o grande erro de Tomé, mas ao exigir evidências da ressurreição, ele agiu como os demais. Ora, à exceção do Discípulo Amado, o qual viu e acreditou logo ao contemplar o sepulcro vazio (Jo 20,8), os demais também só acreditaram após a manifestação do Senhor entre eles.

E mesmo sem acreditar ainda na ressurreição pelo primeiro anúncio dos companheiros, Tomé se reintegrou à comunidade. Assim, «Oito dias depois, encontravam-se os discípulos novamente reunidos em casa, e Tomé estava com eles. Estando fechadas as portas, Jesus entrou, pôs-se no meio deles e disse: ‘A paz esteja convosco’» (v. 26). Embora a reunião ainda aconteça às portas fechadas, o medo não é mais mencionado; certamente, fora superado, graças à paz e ao Espírito Santo comunicados pelo Ressuscitado comunicados no primeiro dia. Também é importante indicativo temporal «oito dias depois»; essa expressão significa uma semana depois; é explícita a referência ao domingo – o qual pode ser contado como o primeiro ou o oitavo dia da semana – como dia de reunião dos discípulos, como sinal de que a comunidade cristã já não está mais presa aos esquemas do judaísmo, e não necessita mais do sábado para fazer a sua experiência com o Senhor. Temos aqui um dado claro de ruptura entre a comunidade cristã e a sinagoga, embora nas primeiras décadas, por falta de clareza, muitos cristãos frequentavam as duas reuniões: a da sinagoga, no sábado, e a da comunidade de discípulos no domingo, na casa de um dos membros da comunidade. Mas o texto deixa claro que, no final da última década do primeiro século, dada provável da redação deste evangelho, o domingo já estava consolidado como o dia de reunião e encontro da comunidade.

O Senhor se pôs de novo no meio dos discípulos, com a presença de Tomé, conferindo novamente o dom da paz, sem o qual a comunidade não se sustenta. Assim como fez com os demais, uma semana antes, também a Tomé Jesus dá os sinais da sua identidade de Ressuscitado-Crucificado, que só sabe servir e amar: «Depois disse a Tomé: ‘Põe o teu dedo aqui e olha as minhas mãos. Estende a tua mão e coloca-a no meu lado. E não sejas incrédulo, mas fiel!’» (v. 27). Quando, assim como os demais, Tomé teve certeza da ressurreição, superou aos demais na intensidade e na convicção da fé; provavelmente, não tocou as mãos e o lado, como aparece na maioria das pinturas. Certamente, não precisou disso. É mais provável que tenha se jogado aos pés de Jesus, com essa solene declaração de fé: «Tomé respondeu: ‘Meu Senhor e meu Deus!’» (v. 28). Essa é a mais profunda profissão de fé de todos os evangelhos. Jesus já tinha sido reconhecido como Mestre, como Messias, Filho de Davi, Filho do Homem e Filho de Deus, mas como Deus mesmo, essa foi a primeira vez. Com isso, o evangelista ensina que não importa o tempo em que alguém adere à fé; o que importa é a intensidade e a convicção dessa fé. Neste sentido, Tomé é o discípulo modelo.

Ainda sobre Tomé, diz o evangelista que ele era chamado Dídimo (em grego: Δίδυμος – dídimos), cujo significado é gêmeo. No entanto, o evangelista não apresenta o irmão gêmeo de Tomé, mas deixa no anonimato. E os personagens anônimos do Quarto Evangelho têm função paradigmática para a comunidade e os leitores de todos os tempos. Na verdade, o primeiro gêmeo de Tomé é o próprio Jesus, não biologicamente, mas teologicamente. Daí o convite aos leitores e discípulos de todos os tempos a também tomarem Tomé como irmão gêmeo: questionador, corajoso, atento, sincero, perspicaz e convicto. É claro que se ele estivesse com a comunidade logo no primeiro dia, teria antecipado a sua profissão de fé. Mas é importante ser prudente e esperar, principalmente nos tempos atuais, com tantas visões, aparições e falsas certezas imediatas. Se muitos(a) videntes dos tempos atuais, assumissem a sua consanguinidade com Tomé, ou seja, se o reconhecessem como gêmeo, teríamos um cristianismo mais evangélico e autêntico, com mais convicção e menos fantasia.

A bem-aventurança proclamada por Jesus: «Bem-aventurados os que creram sem terem visto» (v. 28), reflete a preocupação do evangelista com as novas gerações de discípulos, após a morte dos apóstolos e das demais testemunhas de primeira hora. Os novos membros da comunidade joanina eram muito questionadores e chegavam a duvidar do anúncio, exigindo provas concretas da ressurreição. Por isso, o evangelista quis responder a essa realidade, mostrando que não há necessidade de visões e aparições; basta integrar-se a uma comunidade de fé para experimentar a presença do Ressuscitado. Na verdade, o evangelista usou Tomé como personagem simbólico da transição entre duas fases distintas na vida da comunidade: a geração dos que viram pessoalmente o Senhor, e a dos que aderiram a ele pela fé e o anúncio-testemunho. E não há supremacia de uma sobre a outra. O que importa é crer, o que significa plena adesão ao Evangelho. A presença do Ressuscitado pode ser verificada quando uma comunidade tem o serviço e o amor como sinais distintivos; a ausência desses sinais significa que o Ressuscitado não é o centro da comunidade.

Os versículos finais mostram que esse texto é a conclusão original do Evangelho de João: «Jesus realizou muitos outros sinais diante dos discípulos, que não estão escritos neste livro. Mas estes foram escritos para que acrediteis que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais a vida em seu nome» (vv. 30-31). Aqui está também a chave de leitura para todo o Evangelho: a promoção da vida; vida que para ser plena de sentido necessita do encontro com Jesus, o Cristo, o Ressuscitado que foi crucificado. O objetivo do Evangelho, portanto, é despertar a fé de pessoas e comunidades no Cristo que viveu para servir e amar. Animada pelo dom do Espírito Santo, a Igreja, em todos os tempos só pode se apresentar como pertencente a Jesus Cristo, o Filho de Deus Ressuscitado, com mãos abertas para servir e um coração capaz de sangrar por amor à humanidade. O capítulo seguinte (c. 21) é um acréscimo posterior da comunidade para responder a uma outra necessidade: o resgate da imagem de Simão Pedro, que tinha ficado bastante comprometida na comunidade devido à negação e outras incoerências; e para mostrar que sempre há a possibilidade de reabilitação e admissão à comunidade, não obstante os momentos de infidelidade e incoerência. 

A comunidade reunida é o lugar privilegiado de manifestação do Ressuscitado. Não importa o tempo e o lugar da adesão à fé; o que importa é acolher a paz que o Ressuscitado oferece e viver animado(a) pelo Espírito que ele transmite. E que o esse mesmo Espírito ajude a reconhecê-lo nos crucificados de sempre, ao longo da história: os pobres, feridos e marginalizados nas mais diversas situações. A fé no Ressuscitado é autêntica, de fato, quando há disponibilidade para de amar e servir, como ele fez. A exigência de Tomé foi, na verdade, uma advertência do evangelista: o seguimento de Jesus exige que se toque em feridas. Tocar as feridas das pessoas necessitadas, sanando suas dores, é fazer experiência com o Ressuscitado.

Pe. Francisco Cornélio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, abril 19, 2025

REFLEXÃO PARA O DOMINGO DE PÁSCOA – JOÃO 20,1-9



Ao contrário da Vigília Pascal, cujo evangelho muda a cada ano, conforme o ciclo litúrgico vigente, no Domingo da Páscoa a liturgia mantém o mesmo evangelho para todos os anos. Trata-se de 20,1-9, embora também se possa ler Lc 24,13-35 como alternativa, na missa vespertina. Tratemos aqui da passagem de João, o texto oficial. Ao invés de ser um relato da ressurreição, como normalmente vem chamado, esse é, na verdade, um relato do «sepulcro encontrado vazio», pois a ressurreição em si não é relatada, uma vez que é um acontecimento indescritível, ao contrário da paixão e da morte de Jesus, as quais são descritas minuciosamente pelos evangelhos. Esse fato pode parecer estranho, considerando que é a ressurreição o evento fundante do cristianismo e, por isso, o centro da fé cristã, e foi exatamente em função dessa que os evangelhos foram escritos. Mesmo assim, os evangelistas não conseguiram descrevê-la. O texto proposto hoje – Jo 20,1-9 – é apenas a introdução daquilo que o Quarto Evangelho dedica à ressurreição, sem, no entanto, descrevê-la: a descoberta do sepulcro vazio, o que pode significar muita coisa ou quase nada, a depender de quem faz a constatação. Três personagens entram em cena nesse texto: Maria Madalena, Simão Pedro e o Discípulo amado. O número três já é, por si, um grande e rico sinal; se trata de um indicativo teológico: significa uma comunidade que, embora se encontre profundamente abalada, devido ao final trágico de seu líder, aos poucos vai sendo recomposta, à medida em que a esperança será recuperada.

O primeiro versículo apresenta o retrato da comunidade antes de vivenciar a experiência da ressurreição: «No primeiro dia da semana, Maria Madalena foi ao túmulo de Jesus, bem de madrugada, quando ainda estava escuro, e viu que a pedra tinha sido retirada do túmulo» (v. 1). O “primeiro dia da semana” é o dia seguinte ao sábado, último dia da antiga criação. Com essa expressão, o evangelista indica que há uma nova criação em curso; um novo tempo e um novo mundo estão sendo gestados, mas ainda está na etapa primordial, o caos, simbolizado pela expressão «quando ainda estava escuro»; o escuro, como sinônimo de caos, fora constatado também na primeira criação (Gn 1,1-2). Na verdade, o indicativo temporal «bem de madrugada» e seu complemento enfático «quando ainda estava escuro» não é apenas uma indicação temporal; significa o estado da comunidade naquelas circunstâncias. A ausência de Jesus e a procura pelo seu corpo na morada dos mortos – o túmulo – reflete uma realidade de trevas na comunidade. Essa situação de trevas não se deve à ausência da luz física, mas significa que a vida não está triunfando na comunidade, ou seja, a morte está prevalecendo. Trevas é ausência de vida e de esperança, sobretudo na teologia de João. E a primeira atitude de inconformismo diante das trevas é de Maria Madalena. Sua atitude vai despertar toda a comunidade a buscar uma saída para a superação das trevas.

Sem a experiência do Ressuscitado, a situação da comunidade é caótica, pois essa fica sem rumo, sem saber o que fazer, como vemos na postura de Maria Madalena: «Então, ela saiu correndo e foi encontrar Simão Pedro e o outro discípulo, aquele que Jesus amava, e lhes disse: ‘Tiraram o Senhor do túmulo e não sabemos onde o colocaram’» (v. 2). A pressa e as palavras de Maria Madalena indicam uma situação de quase desespero. Embora o texto de João registre apenas a ida de Maria Madalena ao sepulcro, é mais provável que tenha sido um grupo de mulheres, como consta nos evangelhos sinóticos (Mt 28,1; Mc 16,1; Lc 24,1); João cita somente a Madalena para recordar o protagonismo dela na comunidade primitiva e para delimitar o número três com os dois discípulos mencionados (Pedro e o Discípulo Amado), dando uma ênfase teológica maior ao fato, indicando uma comunidade, pois o número três significa completude.

Ir ao túmulo é a atitude de quem acredita que a morte triunfou, pois o túmulo é a morada dos mortos, é um depósito de cadáver, mas é também uma manifestação de amor por aquele que julgava estar morto. A surpresa e o espanto de Maria Madalena são causados exatamente pela ausência do cadáver no túmulo. A cultura da morte e o desânimo estavam tão presentes na mente dos discípulos que nem mesmo a pedra removida do túmulo fora suficiente para animá-los. De fato, a remoção da pedra e a ausência do corpo de Jesus causaram, inicialmente, preocupação e espanto, ao invés de alegria e esperança. Na fala de Maria Madalena vem expressa a falência da comunidade: mesmo reconhecendo Jesus como “Senhor”, ela sente a falta de um cadáver; quer saber onde está o corpo morto para reverenciá-lo, provavelmente com os perfumes, e chorar junto dele. É a situação de quem ainda estava agindo na escuridão, sem reconhecer o novo dia que estava para nascer.

Com o aviso de Maria Madalena, também Pedro e o Discípulo Amado tomam a iniciativa de ir ao túmulo para conferir a veracidade da informação, uma vez que a palavra da mulher não era digna de credibilidade naquela sociedade: «Saíram, então, Pedro e o outro discípulo e foram ao túmulo» (v. 3). Continuando, diz o texto que «Os dois corriam juntos, mas o outro discípulo correu mais depressa que Pedro e chegou primeiro ao túmulo» (v. 4). A pressa do Discípulo Amado revela sua fidelidade, testada e comprovada aos pés da cruz (19,25-27), característica da pessoa amada. Somente quem fez uma autêntica e profunda experiência de amor com o Senhor é capaz de opor-se ao clima de morte reinante na comunidade, por isso, esse discípulo é anônimo; o evangelista não lhe dá um nome, mas apenas um adjetivo: amado.

Os personagens anônimos no Evangelho segundo João têm a função de paradigmas para a sua comunidade e os seus leitores de todos os tempos; assim, todo aquele que ler esse evangelho deve tornar-se um “discípulo amado” também. Ele, o Discípulo Amado chegou primeiro e comprovou que a informação da Madalena era verídica: «viu as faixas de linho no chão, mas não entrou» (v. 5). À pressa do Discípulo Amado opõe-se a lentidão e o desânimo de Pedro, após ter sido tão incoerente com o Mestre na fase final de sua vida: opôs-se a ele na ceia, no momento do lava-pés (Jo 13,6-8), e o negara durante o processo (Jo 18,15-27). A falta de motivação de Pedro foi, certamente, marcada pelo remorso da negação e outras incoerências, o que será transformado quando experimentar o Ressuscitado em sua vida.

O Discípulo Amado, embora tenha chegado primeiro, espera que Pedro também chegue e faça ele mesmo a sua experiência: «Chegou também Simão Pedro, que vinha correndo atrás, e entrou no túmulo. Viu as faixas de linho no chão» (v. 6). Tendo entrado no túmulo, Pedro comprova a ausência do corpo de Jesus e, certamente, faz uma longa reflexão a respeito de tudo o que tinha acontecido nos últimos dias. Embora a tradução litúrgica diga que ele “viu” as faixas de linho, o evangelista emprega um verbo de significado muito mais profundo: “contemplar” (em grego: θεωρέω theorêo), o que significa mais que simplesmente ver; inclusive, desse verbo grego deriva a palavra teoria, como consequência de uma observação profunda: um olhar contemplativo, processado na mente e no coração.

Depois de Pedro, entra também o Discípulo Amado no túmulo. Tendo chegado primeiro, poderia ter entrado logo, mas preferiu esperar que Pedro chegasse e entrasse logo. Não se trata de uma preeminência de Pedro, como sugerem algumas interpretações, uma vez que na comunidade joanina não ainda havia espaço para hierarquia, como Jesus mesmo deixou claro no lava-pés; era na verdade uma questão de necessidade: quem, de fato, necessitava de uma experiência mais forte era Pedro, pois, depois de Judas, foi o discípulo que mais tinha fracassado até então, impondo sempre resistências aos propósitos de Jesus, além da negação durante o processo. Já o Discípulo Amado tinha feito uma experiência autêntica com o Senhor durante toda a sua vida, por isso, «viu e acreditou» (v. 8); não se deixou vencer pelos sinais de morte vistos dentro do túmulo, mas reforçou ali a sua fé.

Para Pedro, foi necessário um pouco mais de tempo, pelo menos algumas horas, para convencer-se de que o Senhor ressuscitou e vive (Jo 20,19ss). Mas, os sinais estão apontando para isso: interiormente, ele já estava “teorizando” sua fé, reconstruindo-a lentamente, uma vez que os acontecimentos do lava-pés ao julgamento de Jesus foram muito fortes e deixaram suas expectativas bastante comprometidas. Será o próprio Senhor Ressuscitado a ajudá-lo no processo de reconstrução da fé, posteriormente, com a tríplice pergunta: «Pedro, tu me amas?» (Jo 21,15-19). Sem amor, não há discipulado e, muito menos, experiência pascal. As percepções diferentes do sepulcro vazio por Maria, Pedro e o Discípulo Amado são sinais da diversidade que marca comunidade cristã desde os seus primórdios. Os três viram o mesmo fenômeno, mas cada um reagiu à sua maneira: Maria com espanto e choro (Jo 20,11), Pedro com silêncio, e o Discípulo Amado com fé. Embora a dimensão comunitária da fé seja indispensável, as experiências de percepção e reação diante do mistério são sempre pessoais e devem ser respeitadas.

É o conhecimento da Escritura que, gradativamente, vai habilitando a comunidade a crer na ressurreição (v. 9), pois é na Escritura que os planos de Deus são indicados e conhecidos. A fé de Pedro, de Maria Madalena e dos demais será reformulada aos poucos, a cada “primeiro dia” quando se reunirem para a comunhão fraterna, compreendendo a partilha do pão e a leitura da Escritura. A comunidade que não coloca a Escritura no centro da sua existência, tende a repetir a situação inicial desanimadora de Maria Madalena, pois sem a Escritura «não sabemos onde está o Senhor» (v. 2). A propósito de Maria Madalena, é necessário considerar o fato de todos os evangelistas mencionarem as mulheres como as primeiras personagens dos acontecimentos do “primeiro dia”; mesmo não acreditando em primeira hora, é a partir da visão e das palavras delas que a ressurreição vai se tornando realidade na vida da comunidade. Ora, se os evangelistas, e João em particular, pretendem apresentar uma nova criação, a gestação de um novo mundo e um novo tempo, é imprescindível que o papel da mulher seja evidenciado. Mulher é sinônimo de vida nova, pois ela é, por excelência, geradora de vida. Mesmo quando a vida nova não é gerada no ventre de uma mulher, como no caso extraordinário da ressurreição, mas é da intuição e da perspicácia de uma mulher (ou de várias, como nos evangelhos sinóticos) que brotam as razões para a constatação dessa nova vida. Se na antiga criação a mulher não passava de uma companheira para o homem, na nova criação ela assume um protagonismo ímpar: é a primeira a ver e a falar.

Além da compreensão da Escritura, é necessária a experiência do amor autêntico para a fé e o encontro com o Ressuscitado. O Discípulo Amado já tinha completado essas duas etapas, por isso, somente Ele acreditou em primeira mão, pois foi capaz de ler os sinais do sepulcro aberto e o corpo ausente à luz do amor e das Escrituras. Só crê num primeiro momento quem ama e sente-se amado, como aquele Discípulo sem nome, ao qual o evangelista quer que todos os seus leitores se assemelhem! Assim, concluímos voltando para o nosso início: a ressurreição não pode ser descrita, pode apenas ser experimentada. Para isso, é necessário fazer a experiência do amor profundo e do conhecimento da Escritura. 

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

REFLEXÃO PARA O 4º DOMINGO DA PÁSCOA – JOÃO 10,27-30 (ANO C)

  T odos os anos, a liturgia do quarto domingo da Páscoa utiliza um trecho do capítulo décimo do Evangelho de João, no qual Jesus se auto ...