Todos os anos, a liturgia do
quarto domingo da Páscoa utiliza um trecho do capítulo décimo do Evangelho de
João, no qual Jesus se auto apresenta como o único, autêntico e bom pastor. Por
isso, este domingo foi declarado como o “domingo do bom pastor” e,
oportunamente, instituído como o “Dia mundial de oração pelas vocações”, pelo
Papa Paulo VI, no ano de 1964. Embora o evangelho deste dia seja sempre tirado
do mesmo capítulo, alternam-se os textos, conforme o ciclo litúrgico vigente. O
trecho lido neste “Ano C” é bastante breve, composto de apenas quatro
versículos: Jo 10,27-30. Curiosamente, o termo pastor não aparece nessa
passagem específica da liturgia de hoje. Mas, ao falar das ovelhas e de sua
relação com elas, Jesus mostra também as características e as qualidades da sua
condição de pastor. Como o texto faz parte de um amplo discurso que compreende
o capítulo inteiro, muita coisa já foi afirmada nos versículos que antecedem o
texto de hoje, o que torna ainda mais necessária uma contextualização, para ser
compreendido adequadamente, como faremos a seguir. Também a brevidade do texto –
apenas quatro versículos – torna a contextualização ainda mais necessária para
uma boa compreensão.
De acordo com o evangelista, no
momento do discurso, Jesus se encontra em Jerusalém, nas dependências do
templo, participando da “festa da dedicação” (Jo 10,22). É importante ressaltar
que as idas de Jesus ao templo de Jerusalém são sempre marcadas por polêmicas, nos
quatro evangelhos. Toda vez que frequenta o espaço mais sagrados de Israel,
como concebiam os judeus, ele entra em confronto com aqueles que tinham
transformado ou permitido a transformação da casa do seu Pai em casa de comércio
(Jo 2,16) e em covil de ladrões (Mt 21,13; Mc 11,17; Lc 19,46). Embora não
figurasse entre as três maiores festas judaicas – Páscoa, Pentecostes e Tendas –,
a festa da dedicação também era grande e atraía muitos peregrinos a Jerusalém.
Esta festa foi estabelecida por Judas Macabeu no ano 165 a.C., para celebrar a
vitória dos macabeus sobre a dominação grega e a nova dedicação do templo e do
altar, que tinham sido profanados pelos gregos (1 Mc 4,36-59). Desde então,
essa festa que entrou no calendário judaico oficial, era celebrada solenemente
em Jerusalém, com duração de uma semana, sendo chamada também de “festa das
luzes”. O principal texto bíblico utilizado na liturgia dessa festa era o
capítulo 34 de Ezequiel, no qual o profeta faz uma enfática denúncia aos maus
pastores de Israel. Estes, segundo o profeta, apascentavam a si mesmos, ao
invés de apascentar o (povo) rebanho (Ez 34,1-2). Por isso, de acordo com o
profeta, Deus iria destituir os maus pastores e cuidar ele mesmo do rebanho (Ez
34,11).
Foi a partir deste contexto que
Jesus aplicou a si a imagem do bom pastor, aproveitando a ocasião em que o
texto de Ezequiel estava muito vivo na memória das pessoas ali reunidas, uma
vez que era lido e relido diversas vezes durante a festa. É importante recordar
que a figura do pastor sempre foi muito significativa para o povo de Israel,
devido às suas origens pastoris. Essa imagem foi aplicada a Deus e também aos
líderes que assumiram funções de guia e comando sobre o povo, como reis e
sacerdotes. Foi a profissão dos principais personagens do Antigo Testamento: Moisés
e Davi. Portanto, era muito presente no imaginário popular dos judeus. Atualizando
a perspectiva do profeta Ezequiel, Jesus se apresenta como o único e autêntico
pastor, e dirige à classe dirigente de Jerusalém, especialmente aos sacerdotes
do templo, uma de suas mais pesadas críticas. Ora, ao afirmar ser o bom pastor
(Jo 10,14), Jesus denunciava que os sacerdotes do templo eram aqueles maus
pastores destituídos por Deus, como profetizou Ezequiel. Indiscutivelmente,
suas palavras tiveram grande repercussão porque mexiam com os privilégios da
classe dirigente de Israel, composta por funcionários do sagrado, ao invés de
pastores verdadeiros. A prova do incômodo causado pelas palavras de Jesus está
na reação dos líderes judeus durante e após o seu discurso: primeiro, disseram
que ele estava endemoniado (Jo 10,20), depois quiseram apedrejá-lo (Jo 10,31) e
tentaram prendê-lo (Jo 10,39).
Feita a contextualização, olhemos
para o texto, que começa com a seguinte declaração de Jesus: «As minhas
ovelhas escutam a minha voz, eu as conheço e elas me seguem» (v. 27).
No versículo anterior, que não consta no texto da liturgia, Jesus tinha dito
aos seus interlocutores, os líderes do judaísmo, que eles não pertenciam às
suas ovelhas (Jo 10,26). Isso porque não correspondiam aos critérios de
pertença, ou seja, não lhe ouviam e nem lhe seguiam. É de suma importância essa
afirmação de Jesus, pois revela quais são as características fundamentais do
seu tipo de pastoreio e os critérios para pertencer ao seu rebanho: escutar e
seguir. Esses dois verbos são as principais chaves de leitura para toda a
mensagem de Jesus, sobretudo para a compreensão do seu discipulado. Escutar a
voz de alguém, na linguagem bíblica, não significa simplesmente a percepção de
um som ou ruído, mas é acima de tudo dar adesão completa àquele que fala, é
deixar-se transformar e, consequentemente, conduzir-se pelas suas palavras. Por
isso, a escuta vem acompanhada de um segundo elemento, que é a sua
consequência: o seguimento. Os interlocutores de Jesus não viviam a
dinâmica do “escutar-seguir”. Apegados aos ritos e preceitos, tinham sido
instruídos a obedecer e cumprir normas, apenas. O seguimento proposto por
Jesus, como consequência da escuta, significa seguir os mesmos caminhos dele,
com liberdade e disposição. Logo, ao invés de cumpridores de ordens, fazer
parte das ovelhas de Jesus é ser descobridores de estradas, buscadores de novos
horizontes. O Deus pregado no templo era um soberano que, através de seus
representantes ditos pastores, mas na verdade eram mercenários, a casta
sacerdotal, ditava normas do alto. Apresentando-se como pastor, Jesus revela
que Deus age de maneira completamente diferente: caminha à frente, não dá
ordens, apenas aponta a direção; quem escuta a sua voz e o segue torna-se
íntimo dele, deixa-se humanizar pelo seu amor cuidadoso.
A quem, motivado pela escuta, se
coloca no seguimento de Jesus, o bom pastor, Ele garante o maior dos
dons: «Eu dou-lhes a vida eterna e elas jamais se perderão. E ninguém
vai arrancá-las de minha mão» (v. 28). Os falsos pastores do templo,
denunciados por Jesus, apenas pediam; Jesus, pelo contrário, é quem dá, e não
dá qualquer coisa, mas a vida em plenitude, ou seja, a “vida eterna”.
É importante recordar que a “vida eterna” dada por Jesus a
quem lhe segue não é um prêmio que as pessoas boas receberão no futuro, mas a
vida conduzida segundo a escuta da sua voz, desde agora. A adesão a Jesus e ao
seu Evangelho, compreendida como a escuta da sua voz e o seu seguimento,
eterniza a vida, humanizando-a. Vida eterna, portanto, segundo a perspectiva teológica
do evangelista João, não é uma vida para o pós-morte, mas é uma vida tão plena,
tão cheia de sentido e autêntica, tão humanizada, a ponto de nem a morte poder
destruí-la, como não destruiu a de Jesus. Por isso, mesmo após a passagem pelo
inevitável fenômeno que chamamos de morte, essa “vida eterna” prosseguirá.
É a vida presente que se torna eterna à medida em que a pessoa se deixa
conduzir pela voz de Jesus. Ora, o próprio Jesus, mais adiante, afirmará que a
vida eterna consiste no conhecimento dele e do Pai (Jo 17,2-3). Portanto, quem
ouve a sua voz lhe conhece e, por sua vez, conhece também o Pai, já que Ele e o
Pai são um (v. 30). Logo, a vida eterna é a vida de toda pessoa que escuta a
voz de Jesus e abraça o seu seguimento.
Ninguém consegue arrancar as
ovelhas da mão de Jesus (v 28b) porque tudo o que está em sua mão está também
na mão do Pai. E Jesus tem profundo zelo por tudo o que recebeu do seu Pai. Sua
missão neste mundo foi cuidar das coisas do Pai, e o que o Pai tem de mais
precioso são os seus filhos e filhas, por isso, todo ser humano é profundamente
amado por Jesus. Por isso, tendo recebido do Pai, Jesus cuida tão bem das
ovelhas: «Meu Pai, que me deu estas ovelhas, é maior que todos, e ninguém
pode arrebatá-las da mão do Pai» (v. 29). Ora, tudo o que Jesus tem,
recebeu do Pai, porque o Pai, amando-lhe tanto, entregou-lhe tudo nas mãos (Jo
3,35), principalmente a vida dos seus filhos, as ovelhas que estavam nas mãos
de mercenários (Ez 34; Jo 10,12-13). Quando o Pai decide cuidar ele mesmo das
ovelhas, como tinha profetizado Ezequiel (Ez 34,11), na verdade, ele decide
entregá-las ao seu Filho, que é Jesus, entregando-lhe em mãos. A mão, na
linguagem bíblica, é uma metáfora do poder protetor de Deus, da sua força e dos
seus cuidados paternais e maternos (Os 11,3; Dt 33,3; Is 43,13; 49,2; Sl 31,6;
95,4; Sb 3,1; Dn 5,23). As mãos que protegem são as mesmas que acariciam. Com
essa imagem, Jesus diz que também é Deus; daí, a afirmação: «Eu e o Pai
somos um» (v. 30). Por causa desta afirmação, seus interlocutores quiseram
apedrejá-lo, acusando-o de blasfêmia, por fazer-se Deus, sendo apenas um homem
(Jo 10,31-33), como eles imaginavam. Ora, Jesus sendo Deus e estando no mundo,
é óbvio que aqueles que se diziam representantes de Deus – os sacerdotes do
templo – estariam destituídos de suas funções, pois Deus já não necessita mais
de ser representado, pois está pessoalmente presente, por meio do Filho. Com efeito,
Jesus, o autêntico pastor, não é um representante de Deus, mas é Deus mesmo.
Isso revela a superioridade do seu pastoreio e da sua messianidade em relação
às expectativas messiânicas da época. E o mais importante é que ele compartilha
com a humanidade inteira a sua intimidade com o Pai.
Quem se deixa acariciar pelas
mãos de Jesus, é acariciado também pelo Pai. As mãos dos chefes religiosos de
Israel faziam o contrário: oprimiam, exploravam, sugavam o povo, ao invés de
proteger e acariciar. As mãos de Jesus cuidam, humanizam e salva. E, para receber
o toque de suas mãos basta ouvir sua voz e segui-lo. Que o Bom Pastor, único e
autêntico, inspire vocações que ajudem a ressoar sua voz no mundo e sejam
extensões de sua mão que protege, cuida e defende, sobretudo, as ovelhas mais
vulneráveis e necessitadas.
Pe. Francisco Cornélio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN