Neste ano, a liturgia do trigésimo
primeiro domingo do Tempo Comum é substituída pela comemoração de todos os
fiéis defuntos, devido à coincidência do dia dois de novembro com o domingo
equivalente. A oração pelos fiéis defuntos constitui uma prática antiga na vida
da Igreja, pois está diretamente relacionada à esperança na vida eterna, cujo
fundamento é a ressurreição de Jesus Cristo, princípio fundante da fé cristã.
Trata-se, portanto, de uma prática que remonta às origens do cristianismo, com
fortes raízes em várias correntes do judaísmo, como atesta a Bíblia em seus
dois testamentos. A tradição desta celebração um dia após a comemoração de
todos os santos surgiu na França, precisamente na Abadia de Cluny, no ano 998
e, logo após a aprovação oficial pela Igreja, espalhou-se rapidamente por toda
a Europa e o mundo. O motivo principal desta celebração é a esperança, como
recordam as leituras empregadas. Por sinal, a liturgia oferece várias opções de
textos bíblicos para compor a liturgia da Palavra deste dia, independentemente
do ciclo litúrgico vigente. Para a nossa reflexão, optamos por Lc 12,35-40,
devido ao maior uso dele nas comunidades do Brasil, neste ano, como indicado
nos subsídios da CNBB.
O contexto da passagem escolhida –
Lc 12,35-40 – é a ampla seção do caminho de Jesus para Jerusalém, acompanhado
de seus discípulos (Lc 9,51–19,28). Faz parte de uma subseção na qual Jesus
adverte seus discípulos acerca das exigências que o seu seguimento comporta (Lc
12,22-53). De tais exigências, o evangelho de hoje ressalta a necessidade da
vigilância e a responsabilidade enquanto se vigia. A princípio, chega a ser
surpreendente a localização desse tipo de ensinamento ainda no início do
caminho para Jerusalém, pois se trata de um tema escatológico, mais apropriado para a fase final do
ministério de Jesus em Jerusalém, já próximo à sua morte, como fazem Marcos e
Mateus, ao inserir parábolas tematicamente próximas (Mc 13,32-37; Mt 24,42-51).
Somente no Evangelho de Lucas esse tema é proposto de modo tão antecipado. Na
verdade, ao propor esse tipo de ensinamento logo na etapa do caminho, o
evangelista Lucas indica a importância do tema e a necessidade de mantê-lo em
evidência no dia a dia da comunidade, ensinando que a vigilância não é uma
atitude a se tomar no final da vida, e sim durante toda a existência. A vida
cristã exige que se pratique a vigilância e se prepare cotidianamente para o
encontro definitivo com o Senhor.
Feita a devida contextualização, olhamos para o texto,
partindo do primeiro versículo, no qual vem expresso o seguinte imperativo: «Que os vossos rins estejam cingidos e as lâmpadas
acesas» (v. 35). O emprego do modo imperativo
indica a importância e a urgência do que está sendo ensinado. Logo, se trata de
uma exigência indispensável na vida cristã. Obviamente, o ensinamento se dá por
meio de uma linguagem simbólica, com o emprego de imagens muito acessíveis aos
ouvintes de Jesus e aos primeiros destinatários do Evangelho de Lucas. Mediante
essa expressão, o evangelista descreve a atitude de quem se encontra em estado
de serviço, antes de tudo. E a disponibilidade de servir é a primeira atitude
que se espera de uma pessoa cristã. Ora, a vestimenta básica da época era a túnica; essa não facilitava o serviço,
pois atrapalhava o movimento. A expressão “os rins cingidos” quer
dizer estar com a túnica levantada até a cintura, posição dos rins, presa ao
cinto. Com isso, facilitava-se o movimento. Era assim que as pessoas ficavam
enquanto trabalhavam ou viajavam. Significa estar pronto para caminhar e
servir. Jesus pede uma postura vigilante, mas ao mesmo tempo serviçal. Seus
discípulos devem vigiar sim, eis o sentido das “lâmpadas acesas”;
mas, enquanto vigiam colocam-se em prontidão para o serviço. Foi “cingido”
que Jesus lavou os pés dos discípulos na última ceia (Jo 13,4-5). Também os
hebreus celebraram a primeira Páscoa assim: «E comereis assim: com a
cintura cingida, as sandálias nos pés» (Ex 12,11a). Diante disso, percebe-se
uma clara intenção da parte de Lucas de incentivar a comunidade a manter-se
constantemente em espiritualidade pascal. Isso se confirma pela continuação do
ensinamento, no qual se diz que quando o senhor voltar da festa de casamento
fará os servos sentarem-se à mesa, e ele mesmo os servirá (v. 37). Trata-se de
uma atitude surpreendente para quem é senhor.
O ensinamento continua com mais um imperativo, no qual
a linguagem simbólica é empregada de modo ainda mais intenso: «Sede como homens
que estão esperando seu Senhor voltar de uma festa de casamento, para lhe
abrirem, imediatamente, a porta, logo que ele chegar e bater» (v. 36). Na
Bíblia, a imagem da festa de casamento é sempre representativa da relação entre
Deus e a humanidade, levada à plenitude por Jesus. Nesta passagem específica, ela
significa todo o mistério pascal – paixão, morte, ressurreição e ascensão de
Jesus. É, portanto, dessa festa que os homens – a humanidade – devem esperar a
volta de seu senhor. A volta, aqui, portanto, é a parusia (παρουσία), termo grego empregado pelo cristianismo para descrever e sintetizar o
retorno definitivo do Senhor Jesus, cujo momento preciso – dia e hora – é
absolutamente desconhecido. E a necessidade da vigilância permanente se dá
exatamente porque ninguém sabe o dia e nem a hora em que o Senhor vai voltar. A
maneira de esperar a sua volta, conforme sua mensagem e sua vida, é vivendo à
sua maneira, sobretudo no jeito de amar. Não há prática devocional que
substitua o amor enquanto credencial para o encontro definitivo com o Senhor.
Enquanto se espera, portanto, é necessário que, todos os dias, se abra a porta
para ele, que bate continuamente, apresentando-se com diversas características,
sendo que a mais típica e própria dele é a pessoa necessitada. Somos vigilantes
quando, humanizados por seu amor, nos tornamos instrumento de humanização para
o próximo, o mundo. Fazer isso é abrir a porta para ele. Por sinal, a porta não
aparece explicitamente no texto em grego, a língua original do Evangelho.
Certamente, para o ouvinte e leitor não se confundir, imaginando a porta física
de uma casa. O que se deve abrir, portanto, é o coração, para o Senhor entrar e
morar na vida da pessoa. Para isso, não é necessário esperar um momento
imprevisível e desconhecido, pois todos os dias ele bate em nosso coração,
desejando entrar e morar. Entrando, ele transforma, renova a pessoa.
Na continuidade, o ensinamento
se torna ainda mais surpreendente, com uma pequena parábola, na qual se
descreve o comportamento do Senhor para com os servos encontrados acordados em
seu retorno: «Felizes os empregados que o Senhor
encontrar acordados quando chegar. Em verdade eu vos digo: Ele mesmo vai
cingir-se, fazê-los sentar-se à mesa e, passando, os servirá» (v. 37). São declaradas bem-aventuradas as pessoas
que fazem a vigilância permanente, como ensinado por Jesus, o que se dá
mediante o amor e serviço. A pessoa que ama o próximo e serve, por amor, está
sempre com o coração aberto para o Senhor entrar. Quem vive assim estará sempre
acordada para o encontro com o Senhor, mesmo quando morre. O sono que impede o
encontro com o Senhor, portanto, não é o sono físico, mas a falta de amor, de
empatia, é a indisposição de acolher e servir. Com essa pequena parábola, o
evangelista reforça suas convicções de que um novo mundo está em construção,
desde o anúncio do nascimento de Jesus, com a exaltação dos pequenos e
humildes, proclamada no Magnificat (Lc 1,46-55) e reforçada por tudo o
que Jesus ensinou, até aqui, sobretudo nas bem-aventuranças e maldições (Lc
6,20-26). Ao longo da história, o agir de Deus sempre contradisse a lógica
humana, como se reforça aqui. Por sinal, o termo traduzido por “empregados” na
versão litúrgica significa servos ou escravos (em grego: δοῦλοι – duloi), imagem do que há de mais baixo na estratificação social dos
tempos de Jesus. E foi assim que Maria de Nazaré se autodeclarou, ao dar o seu
sim ao projeto de Deus. Aqui, o evangelista ensina que os servos, os últimos,
são servidos pessoalmente pelo Senhor. A imagem de um Senhor que serve é mesmo
surpreendente. Trata-se de uma das mais belas
imagens que Jesus aplica a Deus e a si mesmo: um senhor, grande proprietário
que, ao invés de exigir serviço de seus servos, abaixa-se para servi-los.
Somente Jesus, sendo Senhor, fez-se servo (Lc 22,27).
As diversas possibilidades de hora em que o Senhor
poderá voltar e encontrar seus servos acordados reforçam a importância da
vigilância, que consiste em assumir a verdadeira condição de servo: «E caso ele chegue à meia-noite ou às três da
madrugada, felizes serão, se assim os encontrar!» (v. 38). Obviamente, não se trata de uma exigência
para as pessoas renunciarem ao pouco tempo disponível que têm para dormir, num
mundo tão dominado pela lógica do capital, no qual a classe trabalhadora vive
sufocada diante de uma jornada de trabalho desumana e contrária ao Evangelho. O
sono é uma necessidade fisiológica vital, fundamental para a saúde e o
bem-estar da pessoa. Certamente, não é do agrado de Deus quando as pessoas são
forçadas a deixar de dormir, seja por excesso de trabalho, seja por devoção
exagerada. O que o Senhor quer encontrar, a qualquer hora, é corações cheios de
amor e, ao mesmo tempo, abertos para receber o amor que ele oferece a todas as
pessoas, indistintamente. Toda hora é hora de amar e sentir-se amado. Quem, a
todo instante, ama, é feliz, é agradável a Deus e dele não se separa, nem mesmo
com a morte.
Os versículos conclusivos constituem mais uma pequena
parábola (vv. 39-40), que visa apenas reforçar a necessidade da vigilância,
através da imagem do ladrão que não avisa a hora do assalto, mas procura
exatamente surpreender o dono da casa. Com isso, temos novamente uma imagem
surpreendente, justamente quando se adverte a comunidade cristã a não se deixar
surpreender com a volta do Senhor. Essa é a única vez, em toda a Bíblia, que
Deus é apresentado como um ladrão, embora o “Dia do Senhor” seja apresentado
com essa mesma imagem em outros contextos e gêneros literários (1Ts 5,2; 2Pd
3,10; Ap 3,3). A falta de conhecimento do dia e da hora da vinda do Senhor deve
ser motivo para a comunidade não desviar o foco por um único instante; isso
quer dizer que os discípulos não podem, em momento algum, deixar de viver o
programa de Jesus, ou seja, o Evangelho do Reino.
Tendo em vista os limites da vida
neste humano, é necessário carregá-la de sentido, e o modo adequado de fazer
isso é viver conforme a justiça e o amor, depositando toda a confiança em Deus e
em seu infinito amor. Para isso, é necessário manter o coração pronto para
acolhê-lo continuamente. Ao recordar os entes queridos que já partiram, somos
chamados a refletir sobre os limites da nossa existência neste mundo e a
necessidade de preenchê-la de sentido. E isso depende essencialmente da maneira
de relacionar-se com Deus, deixando-se humanizar pelo seu amor. Por isso,
sejamos vigilantes como pede o Senhor, amando e deixando-nos amar por ele.
Pe. Francisco Cornélio F. Rodrigues –
Diocese de Mossoró-RN

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