domingo, abril 30, 2017

REFLEXÃO PARA O III DOMINGO DE PÁSCOA – LUCAS 24,13-35


A liturgia da Palavra deste III Domingo da Páscoa nos oferece o texto evangélico de Lucas 24,13-35. Esse é, sem dúvidas, um dos textos mais conhecidos de todo o Novo Testamento. Trata-se da narrativa da experiência do encontro de dois discípulos com o Cristo Ressuscitado no caminho de retorno de Jerusalém para um povoado chamado Emaús. Daí o título popular atribuído a esse episódio de “Os discípulos de Emaús”. É um texto bastante atrativo para o leitor, devido à sua vivacidade narrativa, à beleza literária e riqueza teológica.

Esse é um texto exclusivo de Lucas, e funciona como síntese e conclusão do seu Evangelho: síntese porque resume a dinâmica de Jesus e seu discipulado em todo o Evangelho, ou seja, a dinâmica do caminho, tema central da teologia lucana, desde a caminhada de Maria ao encontro com Isabel, (Lc 1,39-45) até a longa viagem de Jesus com os discípulos para Jerusalém (Lc 9,51 – 19,44); conclusão porque culmina com o encontro da comunidade com o Ressuscitado e o cumprimento da missão de anunciá-lo (24,33-35). Podemos dizer que, com esse episódio, Lucas conclui o Evangelho e, ao mesmo tempo, antecipa a sua segunda obra, o livro dos Atos dos Apóstolos.

O texto é iniciado com um indicativo temporal importante: “Naquele mesmo dia, o primeiro da semana” (v. 13a); o evangelista faz questão de apresentar momentos diferentes de um mesmo dia: a ida das mulheres ao sepulcro nas primeiras horas (24,1), e depois a ida de Pedro (24,12) e, no final do dia, a viagem dos dois discípulos, conforme o nosso texto, até o encontro fraterno dos Onze e os demais discípulos (24,33ss). Portanto, o dia do acontecimento é o dia mesmo da Páscoa, o domingo da ressurreição.

Infelizmente, o texto litúrgico apresenta uma deficiência logo no início: a ausência da expressão “Eis que”, presente no texto original; a partícula grega ivdou. – idú, com a qual Lucas abre esse episódio, indica a importância do que vem a ser narrado, é um modo de chamar a atenção do leitor e, infelizmente, o texto que da liturgia omite. Assim, a expressão mais apropriada para abrir o texto seria: “Eis que que naquele mesmo dia...”, pois, além de enfatizar a importância do relato, o relaciona com os outros acontecimentos do mesmo dia.

Na sequência, diz o texto que “dois dos discípulos de Jesus iam para um povoado, chamado Emaús, distante onze quilômetros de Jerusalém” (v. 13); essa expressão nos traz informações muito importantes: se dois discípulos tinham saído de Jerusalém, e quando voltam encontram os Onze reunidos (v. 33), logo, o grupo de discípulos era muito mais vasto que o grupo dos apóstolos propriamente ditos. Ao apresentar esses dois, Lucas resgata a grande missão dos setenta e dois, quando Jesus os enviou dois a dois (cf. Lc 10,1-20). Esse é mais um passo em preparação aos Atos dos Apóstolos e um modo de dizer que a missão não é monopólio dos Doze menos um (os Onze após a saída de Judas), mas é aberta, inclusiva e universal.

Os dois discípulos “iam para um povoado chamado Emaús, distante onze quilômetros de Jerusalém” (v. 13); após toda uma vivência com Jesus, o retorno ao povoado é sinal de incompreensão e decepção, pois o povoado significa o fechamento de mentalidade, é o lugar onde o que vale é aquilo que está na Lei. O nome Emaús significa “gente desprezada”; esse povoado teve importância no tempo dos macabeus, pois fora palco de uma batalha dos judeus liderados por Judas Macabeu contra os pagãos, e vencida pelos judeus (cf. 1Mc 3,40 – 4,27). Por isso, Lucas enfatiza esse povoado como antítese ao seu projeto missionário: em Emaús se cultivava o ideal tradicional e triunfalista do judaísmo; logo, não era lugar para os discípulos de Jesus!

Nesse texto, Lucas preserva e reforça a função pedagógica do caminho na sua teologia: “Conversavam sobre todas as coisas que tinham acontecido” (v. 14). Caminhar é aprender e ensinar; mais que percorrer uma distância, é a busca de um ideal. Obviamente, para quem tinha seguido Jesus, o assunto não poderia ser outro senão os últimos acontecimentos da sua vida. Caminhavam tristes, certamente discutiam sobre as esperanças perdidas e os sonhos frustrados, como gente que perdeu tempo seguindo a um fracassado que morreu na cruz; tudo isso fica claro na conversa a três, quando Jesus surge no caminho e passa a interagir com eles.

A presença de Jesus não é reconhecida de imediato, o que se explica pela cegueira recordada pelo evangelista (v. 16). Obviamente, não se trata de uma cegueira física, o que os impediria de caminhar sozinhos; é uma cegueira de mentalidade. É interessante perceber que, embora desiludidos e decepcionados, aqueles discípulos falavam de Jesus e tinham um bom conceito a seu respeito: “foi um profeta poderoso em obras e palavras, diante de Deus e de todo o povo” (v. 19); portanto, não estão longe da verdade. Lamentam ter que voltar ao “povoado”, pois já sabem que o mal está na tradição quando afirmam com muita clareza que foram “os sumos sacerdotes e os chefes que o entregaram para ser condenado à morte e o crucificaram” (v. 20); por isso, não querem mais submeter-se a ela. Outra característica da teologia lucana é aqui evidenciada: a responsabilidade dos judeus na morte de Jesus, praticamente inocentando o império romano.

O motivo da decepção e do não reconhecimento de Jesus em seu meio está na concepção equivocada de messias: eles “esperavam que Jesus fosse libertar Israel” (v. 21); ora, Jesus não veio ao mundo para libertar Israel, mas a humanidade inteira! Essa mentalidade equivocada só pode ser corrigida com uma boa revisão da Escritura, como faz o próprio Jesus: “E, começando por Moisés e passando pelos Profetas, explicava aos discípulos todas as passagens da Escritura que falavam a respeito dele” (v. 27); é necessário abrir o horizonte da consciência para compreender e aceitar que a mensagem libertadora de Jesus é universal, e não destinada a um único povo. Essa revisão da Escritura não é tudo, mas é um passo importante no processo de reconhecimento do ressuscitado; a ela, deve-se acrescentar a experiência comunitária da partilha, da comunhão de mesa, como se dará, finalmente (vv. 30-31).

Mesmo não reconhecendo ainda a presença do ressuscitado, os discípulos parecem não ter perdido completamente a esperança; na verdade, a esperança parece que começou a renascer dentro deles depois que o forasteiro começou a caminhar com eles, tanto que “imploram” que permaneça com eles: “Fica conosco, pois já é tarde e a noite vem chegando!” (v. 29); ao invés do verbo “insistir” trazido pelo texto litúrgico, o mais apropriado seria “implorar” ou “forçar”, mais próximos do sentido de intensidade que o verbo grego, presente no texto original exprime: parebia,zomai – parabiazomai. Portanto, os discípulos perceberam que não podiam ficar sozinhos no povoado e, por isso, imploraram que o forasteiro permanecesse com eles, porque daquela conversa, a esperança estava voltando; por isso, querem evitar o retorno às trevas da vida no povoado, que significa o retorno ao julgo da lei. A expressão “a noite vem chegando” não é um dado cronológico, mas teológico: é a vida fechada, sem perspectivas e esperanças, da qual eles tinham saído e não queriam mais voltar.

Jesus, ainda como forasteiro, atende aos discípulos que imploram a sua presença e senta-se com eles à mesa (v. 30). A refeição tem um sentido muito profundo no Evangelho de Lucas e é, portanto, necessário perceber essa importância para não reduzirmos esse texto a uma mera descrição de uma celebração eucarística, como muitas interpretações reducionistas tem feito.

Ao longo de todo o Evangelho, Lucas apresentou Jesus sentando à mesa com pessoas de diferentes classes sociais e religiosas: fez refeição na casa de um fariseu de nome Simão (cf. 7,36-50); outra vez foi na casa de um dos chefes dos fariseus (cf. 14,1-6); ao hospedar-se na casa de Zaqueu, pecador público, também se sentou com ele à mesa e fez refeição (cf. 19,1-10). É necessário, pois, ter em mente que a mesa-refeição é, ao longo de todo o Evangelho de Lucas, um espaço-momento de revelação da identidade de Jesus, pois significa, partilha, fraternidade, companheirismo e acolhida.

Como tinham sido profundamente incomodados pela explicação da Escritura que Jesus tinha dado, o que os levou a uma revisão de conceitos e de compreensão da mesma, faltava pouco para seus olhos abrirem-se, ou seja, para saírem definitivamente da situação de trevas em que se encontravam. E, foi, portanto, a experiência da partilha que proporcionou a certeza da presença do ressuscitado no meio deles.

Essa é a resposta que Lucas quis dar às suas comunidades: o Ressuscitado está presente no dia-a-dia, quando a comunidade caminha, reflete a Palavra, partilha a mesa e dialoga; são essas as ocasiões propícias para a comunidade abrir os olhos (v. 31a). Quem segue esses passos, já não necessita mais de uma visão ou aparição (v. 31b). Finalmente, como último passo de uma comunidade que faz a experiência do encontro com o Ressuscitado, Lucas apresenta a missão, tema caro para a sua teologia e que será mais desenvolvido no livro dos Atos dos Apóstolos, antecipado no Evangelho de hoje pela iniciativa dos discípulos: “se levantaram e voltaram para Jerusalém” (v. 33). Para Lucas, Jerusalém não significa chegada, mas o ponto de partida da missão universal.

Somos, portanto, hoje e sempre, interpelados por Lucas a fazer um esforço constante de reconhecimento do ressuscitado, percebendo sua presença na comunidade para que jamais falte esperança, amor, partilha, solidariedade e companheirismo. Para isso, é necessário caminhar, aprofundar no conhecimento da Escritura e viver, acima de tudo, a partilha. De fato, o critério básico de reconhecimento da experiência com o Ressuscitado é a partilha do pão; essa, não pode ser reduzido a um rito ou gesto, mas deve ser a práxis da comunidade.


Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues

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