A liturgia do terceiro domingo do
advento continua evidenciando a figura de João Batista, como acontece todos os
anos. Ora, de acordo com os evangelhos, João é o profeta que anuncia, prepara e
até antecipa a missão de Jesus. Isso faz dele uma figura fundamental neste itinerário
catequético-espiritual que constitui o tempo do advento. Enquanto no domingo
passado tivemos a oportunidade de contemplar o Batista no auge do seu
ministério profético, pregando e batizando no deserto da Judeia, às margens do rio
Jordão, o evangelho de hoje – Mt 11,2-11 – o mostra já encarcerado e próximo de
ser decapitado. Entre os estudiosos, convencionou-se intitular essa passagem de
“a crise do Batista”. De fato, a pergunta de João sobre a identidade de Jesus
não revela apenas uma dúvida, mas uma verdadeira crise, tendo em vista a não
correspondência entre a messianidade que Jesus revelava com sua práxis e as
expectativas criadas a seu respeito pela pregação do Batista.
E
quais tinham sido as expectativas alimentadas por João Batista a respeito da
messianidade de Jesus? Ora, assim como muitos de seu tempo, João esperava um
messias conforme a tradição: um rei poderoso, um guerreiro forte e juiz rigoroso
que, de fato, viesse ao mundo para julgar, recompensando os bons e castigando
os maus. Na sua apresentação do messias vindouro, João tinha usado imagens
muito fortes como o machado na raiz das árvores, pronto para cortar (cf. Mt
3,10), e o fogo que queima a palha (cf. Mt 3,12). Na verdade, ele esperava um
messias que viesse ao mundo mais para condenar do que para salvar, por isso
frustrou-se, uma vez que Jesus veio somente para salvar (cf. Lc 19,10). Em
outras palavras, João anunciou um messias severo demais, enquanto Jesus veio
misericordioso demais. Por isso, é necessário considerar esses aspectos
para compreender bem o evangelho de hoje.
Feitas as devidas considerações
introdutórias e contextualização, passamos ao estudo do texto propriamente,
embora durante a explicação seja necessário acrescentar mais informações de caráter
contextual. Eis o primeiro versículo: “João estava na prisão. Quando ouviu
falar das obras de Cristo, enviou-lhe alguns discípulos” (v. 2). A primeira
informação é impactante, embora esperada. A prisão de João é uma confirmação da
sua identidade e missão de profeta. Os motivos dessa prisão só serão apresentados
mais tarde, pelo evangelista (cf. Mt 14,1-12). João foi preso por causa da sua
pregação, sobretudo pela denúncia pública à relação imoral e ilegítima de
Herodes com sua cunhada Herodíades, esposa de seu irmão Filipe. A perseguição
sempre marcou os profetas de Israel, principalmente quando desmascaravam os
poderosos. Desse modo, a notícia da prisão de João se torna também uma
advertência para Jesus e seus discípulos que seguiam, pelo menos na coragem de
denunciar os poderosos, os mesmos passos do precursor.
Uma
vez preso, João poderia até dar por cumprida a sua missão, tendo em vista que
ele fora apresentado como o responsável por preparar a vinda do messias, e o
messias já tinha vindo e se encontrava no auge do seu ministério messiânico. Contudo,
parece que houve uma inquietação nele, “tendo
ouvido falar das obras do Cristo” (v. 2b). De fato, “as obras
do Cristo” (em grego: τὰ ἔργα τοῦ Χριστοῦ – tá erga
tu christu), expressão forte que significa o ensinamento e o agir de Jesus,
eram preocupantes para quem tinha idealizado nele o messias esperado pelas
antigas tradições judaicas, como apresentamos na introdução. Ao invés de
condenação, Jesus cumpria somente obras de salvação, como cura de doenças (cf.
Mt 8,14-15; 9,27-31), inclusive de leprosos (cf. Mt 8,1-4), libertação de
demônios (cf. Mt 8,28-34), e o pior: ao invés de condenar os pecadores, como João
havia predito, Jesus gostava era de misturar-se com eles, comendo e bebendo em
companhia deles. Portanto, o comportamento de Jesus revelava um messias às
avessas, e isso preocupava João.
Além de
não cumprir certos ritos e práticas devocionais caras a João e a muitos da sua
época, Jesus ainda incentivava seus discípulos a fazerem o mesmo, levando-os até
a uma discussão com os próprios discípulos de João sobre o jejum (cf. Mt
9,14-17). Nessa ocasião da discussão sobre o jejum, os discípulos de João
preferiram se alinhar aos fariseus, aqueles mesmos que tinham sido chamados
de “cobras venenosas” pelo próprio João (cf. Mt 3,7), o que
vem a confirmar, ainda mais, a insatisfação de João e de seus discípulos com as
atitudes de Jesus. E, se as obras de Jesus deixaram João embaraçado, muito mais
ainda deve ter ficado com as palavras dele, como: “Felizes os mansos,
felizes os misericordiosos, felizes os que promovem a paz” (Mt
5,4.7.8), “amai os vossos inimigos” (Mt 5,43), “não
julgueis para não serdes julgados” (Mt 7,1). Foi ouvindo falar sobre
isso, e muito mais, que João enviou alguns discípulos para fazer uma pergunta
decisiva a Jesus.
Embaraçado,
talvez até com medo de ter acreditado no messias errado e de ter pedido tempo
preparando seu caminho, João enviou alguns discípulos a Jesus “para
lhe perguntarem: ‘És tu aquele que há de vir ou devemos esperar um outro?’” (v.
3). Pela pergunta, percebe-se claramente que havia dúvidas e preocupação em
João sobre a messianidade de Jesus. Aliás, não apenas dúvidas e preocupação, havia
também angústia e decepção. Portanto, com essa pergunta, João visava verificar
a messianidade de Jesus. E, pelo comportamento de Jesus,
as informações que chegavam até João não poderiam animá-lo; na verdade, ele
tinha dado características messiânicas que Jesus não possuía. Ao invés do
rigorismo predito pelo Batista, Jesus apresentou-se cheio de amor e
misericórdia, não aplicando os terríveis castigos aos pecadores, como esperava
João. Portanto, a crise do Batista tornou-se inevitável.
João não
foi o primeiro e nem o último a se decepcionar com o nazareno. Por isso, a
resposta de Jesus foi muito serena, mas cheia de vida e de convicção, deixando
até que os fatos falassem por si: “Ide contar a João o que estais
ouvindo e vendo: os cegos recuperaram a vista, os paralíticos andam, os
leprosos são curados, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e os pobres são
evangelizados” (vv. 4-5). Como se vê, Jesus não responde com o
tradicional “sim” ou “não”; mas responde com o seu legado, o resultado das suas
obras, sobre as quais João ouviu falar e ficou preocupado (v. 2). Aqui, não
entra em discussão a historicidade dos milagres e curas de Jesus, mas o que, de
fato, estes sinais representam: a renovação completa da humanidade e o início
de um novo mundo. Com estas categorias de pessoas sendo reabilitadas, Jesus
está afirmando que o seu messianismo consiste em restaurar, resgatar o que
parecia perdido, ao invés de destruir com o fogo, como tinha anunciado o
Batista (cf. Mt 3,10.12). A resposta de Jesus mostra as primícias do Reino. É a
partir das situações transformadas recordadas por ele que o Reino começa a se
manifestar no mundo. E nisso revela-se uma clara opção pelos pobres, os últimos,
os marginalizados de todos os tempos, mostrando o quanto o Reino é inclusivo,
ao invés de seletivo, como João imaginava.
Nessa resposta de Jesus está a certeza de que o
Reino dos céus que estava próximo, segundo o próprio João (cf. Mt 3,2), tinha,
finalmente, chegado. E, esse Reino é de inclusão e vida nova. Diante disso,
Jesus proclama uma bem-aventurança: “Feliz aquele que não se escandaliza por
causa de mim!” (v. 6); é provável que a desconfiança de João a seu
respeito tenha lhe entristecido um pouco, mas Jesus tinha consciência de que o
Batista era fruto do seu tempo e carregava em si os anseios de um povo e de uma
tradição. Assim, passado o desconforto inicial, Jesus faz um grande elogio a
João Batista, quando seus discípulos já tinham ido embora levando a resposta: “O que fostes ver? Um homem vestido com
roupas finas? Mas os que vestem roupas finas estão nos palácios dos reis. Então
o que fostes ver? Um profeta? Sim, eu vos afirmo, e alguém que é mais do que
profeta” (vv. 7-9). Nesse testemunho elogioso a respeito do Batista,
Jesus exalta suas qualidades de profeta, ressaltando seu testemunho, integridade,
honestidade e austeridade. Para Jesus, João foi até maior do que todos os
antigos profetas. Nisso, se percebe o afeto que unia os dois, apesar da
inegável crise e divergência na maneira de conceber o Reino de Deus. Se houve
um pouco de angústia em Jesus ao receber o “ultimato” dos discípulos de João,
muito mais deve ter tido o próprio João, pois, encarcerado, não podia ver o que
Jesus fazia, apenas ouvia falar a seu respeito e, certamente, com distorções.
Jesus
reconheceu a importância de João Batista, interpretando-o, inclusive, à luz das
Escrituras, através da profecia de Malaquias (cf. Ml 3,1): “É dele que
está escrito: ‘eis que envio o meu mensageiro à tua frente...” (v.
10). Com isso, Jesus reforça que havia continuidade entre os dois, não obstante
as diferenças que se transformaram em rupturas. Fez-lhe um elogio tão grande, a
ponto de considerá-lo o maior dos seres humanos até então: “Em verdade
vos digo, de todos os homens que já nasceram, nenhum é maior do João
Batista” (v. 11a). No entanto, João pertence a uma ordem antiga, cujos
esquemas não coincidem com a nova ordem que Jesus veio inaugurar, o Reino dos
céus. Esse Reino é uma sociedade alternativa, incompatível com todas as formas
de organização social até então experimentadas. Para entrar nesse Reino, não
contam os títulos de honra e grandeza, mas apenas a adesão livre ao projeto
libertador de Jesus, cujo critério principal de pertença é a capacidade de
fazer-se pequeno (cf. Mt 18,3; 19,14). Por isso, “o menor no Reino dos céus
é maior do que ele” (v. 11b). Não se trata de uma desvalorização do
Batista, mas de evidenciar que Jesus inaugura uma nova humanidade em todos os
sentidos.
Com o exemplo
de João Batista, o evangelho de hoje ensina que não devemos ter medo de duvidar
e questionar. É a partir das dúvidas que a fé cresce, se tornando autêntica e
sólida. Por causa do seu questionamento, João teve a oportunidade de confrontar
suas convicções com a verdadeira natureza da messianidade de Jesus. Por ter
tido a coragem de questionar, ele aprendeu que o messias autêntico veio para
incluir, para renovar o que a religião e a sociedade tinham descartado: os
pobres, marginalizados e pecadores. Que este tempo do advento nos ajude a
discernir sobre a verdadeira identidade de Jesus, o messias de todos, mas principalmente
dos pobres, das pessoas mais necessitadas. Precisamos nos precaver para não
esperar o messias errado.
Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
Nenhum comentário:
Postar um comentário