A liturgia deste quarto e
último domingo do advento constitui o ápice da preparação para o Natal do
Senhor. Assim como nos dois últimos domingos (segundo e terceiro) fomos
ajudados pelo testemunho de João Batista, hoje é a figura de Maria que nos é
apresentada como testemunha exemplar de acolhida aos desígnios de Deus em sua
vida. Por isso, a liturgia recorre ao Evangelho segundo Lucas, e nos oferece o
texto da anunciação: Lc 1,26-38, uma vez que o evangelho do ano corrente,
Marcos, não faz qualquer menção a este acontecimento.
Esta última etapa litúrgica de
preparação para o Natal tem a função de nos introduzir diretamente no mistério
da encarnação, mostrando como Deus intervém na história, vindo ao encontro da
humanidade de maneira extraordinária e, ao mesmo tempo, simples, interagindo
surpreendentemente com o ser humano através do diálogo, propondo ao invés de
impor, escolhendo os pequenos e marginalizados ao invés dos poderosos e ricos,
fazendo morada na periferia ao invés dos grandes centros. Essas pequenas
pequenas observações constituem uma breve síntese do evangelho de hoje, objeto
da nossa reflexão.
A anunciação do nascimento de
Jesus pelo anjo Gabriel a Maria não é um evento isolado no terceiro evangelho.
Na verdade, esse evento é precedido por um outro anúncio: o do nascimento de
João a Zacarias. Inclusive, para compreender melhor o anúncio a Maria, é
necessário recordar alguns elementos do anúncio a Zacarias, como: o ambiente urbano
e solene do templo de Jerusalém, um sacerdote como destinatário, a idade
avançada dos personagens (Zacarias e Isabel), a incredulidade. Esses elementos
são importantes para as intenções teológicas de Lucas, o qual convida o
ouvinte/leitor a perceber que no anúncio a Maria acontece praticamente o
contrário, como sinal de que, em Jesus, começa uma nova história da humanidade,
escrita a partir dos pequenos, com uma verdadeira revolução de valores e
relações.
Mais uma vez, a versão
litúrgica do texto traz um prejuízo logo no primeiro versículo, ao trocar o
indicativo temporal “No sexto mês”, como consta no texto bíblico, pela
fórmula genérica e vaga “naquele tempo”. Assim é o primeiro versículo: “No
sexto mês, o anjo Gabriel foi enviado por Deus a uma cidade da Galiléia,
chamada Nazaré” (v. 28). O sexto mês tem como referência o anúncio feito a
Zacarias: seis meses após, o anjo Gabriel foi enviado a Nazaré. Aqui começa a
novidade. Ora, a Galiléia era uma terra desprezada, considerada semi-pagã;
embora fossem judeus de raça, seus habitantes eram vistos com desconfiança
pelos líderes religiosos e políticos de Jerusalém. Nazaré era uma pequena
aldeia, nunca mencionada no Antigo Testamento; aqui, Lucas a apresenta como
símbolo máximo do desprezo e do anonimato, sinal das surpresas de Deus. Para
onde a religião só dispensava desprezo e discriminação, Deus envia o seu
mensageiro para dar uma Boa Notícia!
Além do lugar desprezível, Deus
surpreende também na escolha da destinatária: “a uma virgem, prometida em
casamento, a um homem chamado José. Ele era descendente de Davi, e o nome da
virgem era Maria” (vv. 27-28). Embora a tradição cristã tenha transformado
a virgindade em virtude, para a mentalidade semita a mulher virgem tinha uma
conotação bastante negativa; ser virgem significava não ter capacidade de
atrair os desejos e olhares de um homem, e numa cultura ultra-machista de
completo desprezo pela mulher, isso era lamentável, sinônimo de desgraça. No
caso de Maria, menos mal que já estava “prometida em casamento”. É
importante recordar como se dava o casamento judaico. Esse acontecia em duas fases:
a primeira, chamada de “etapa da promessa”, durava cerca de um ano; nessa fase,
já eram considerados casados, mas a noiva continuava morando com seus pais. Um
ano após a “promessa”, acontecia a celebração de bodas, dando início a segunda
fase; após cerca de uma semana de festa, os cônjugues passavam a viver juntos.
O casamento era consumado na primeira noite das bodas, por isso a noiva
permanecia virgem durante toda a fase da promessa.
Embora uma nova história da
salvação estivesse para acontecer, o evangelista faz questão de mostrar a
continuidade dessa história e da ação perene de Deus em favor da humanidade,
levando as antigas promessas ao seu cumprimento. Por isso, apresenta José como
descendente de Davi, mostrando que a nova história começa como cumprimento da
velha; as duas alianças de unem.
Do versículo 28 em diante, o
texto se desenvolve em forma de um surpreendente diálogo entre o enviado de
Deus e Maria: “O anjo entrou onde ela estava e disse: ‘Alegra-te cheia de
graça, o Senhor está contigo!” (v. 28). Ao dizer que o anjo entrou, o
evangelista dá a entender que o anúncio foi dado dentro de casa, contrapondo ao
anúncio solene a Zacarias no templo de Jerusalém. Através de seu mensageiro,
Deus rompe todas as barreiras de classe e cultura, dialogando com uma mulher em
uma casa de aldeia.
O imperativo “alegra-te” (em
grego: cai/re – kaire) que abre o diálogo
sinaliza para um novo tempo: coisas boas estão para acontecer, uma nova
história virá! É também uma demonstração de que Deus não se deixa condicionar
pelos esquemas da religião e da cultura, substituindo a tradicional fórmula de
saudação hebraica “shalom”. O motivo da exuberante saudação nem sempre
foi bem compreendido: “cheia de graça, o Senhor está contigo”. Algumas
práticas devocionais exageradas tende a encher Maria de méritos, a ponto de
Deus tê-la premiado por isso, escolhendo-a para mãe de seu Filho. O anjo não
está dando um atestado de virtudes, mas fazendo um anúncio maravilhoso: “O
Senhor está contigo, te enchendo de amor gratuitamente”; essa seria a
tradução mais justa. A escolha de Maria, portanto, não foi um prêmio por suas
virtudes, mas uma demonstração da gratuidade do amor de Deus. Na Bíblia, graça
e mérito são incompatíveis.
A reação de Maria é bastante compreensível, considerando a novidade
do acontecimento: ficou perturbada e pensativa (v. 29), chegando, inclusive, a
ter medo (v. 30). Como a iniciativa foi de Deus, é Ele mesmo, através de seu
mensageiro, o anjo, quem explica qual será a missão de Maria na nova história: “Eis
que conceberás e darás à luz um filho, a quem porás o nome de Jesus. Ele será
grande, será chamado Filho do Altíssimo, e o Senhor Deus lhe dará o trono de
seu pai Davi. Ele reinará para sempre sobre os descendentes de Jacó, e o seu
reino não terá fim” (vv. 31-33). A missão de Maria é de uma mulher
autônoma, emancipada: conceber, dar à luz, pôr o nome. Pela tradição, quem dava
o nome à criança era o pai, principalmente se o filho fosse varão. No limiar de
um novo tempo, a história toma um novo rumo com o protagonismo da mulher.
Simultânea à missão de Maria,
também vem explicada a do filho, começando pelo nome Jesus, o qual significa “Deus
salva”; aqui está o sentido de todos estes acontecimentos. A ação salvífica
de Deus, até então bloqueada pela religião, de agora em diante se estenderá a
todas as gerações. Sendo “Filho do Altíssimo”, ninguém terá poder
sobre Ele. Ocupará de uma vez por todas o trono de Davi; não terá sucessores,
como acontecera no passado, inaugurando um reino novo na certeza de que não
cairá nas antigas vicissitudes, como ocorrera com o finado reino de Israel.
Assim, cumprem-se as promessas do Antigo Testamento, mas não conforme as
antigas expectativas. “Deus salva” a partir dos pequenos e das margens;
será essa a principal característica do Reino que está prestes a ser
inaugurado.
A interação de Maria com o anjo
revela uma nova concepção de Deus. O Deus soberano e distante é coisa do
passado. O Deus do diálogo entra em cena: vindo ao encontro da humanidade,
escolhendo o lado mais fraco da história, permite ser questionado por uma jovem
mulher. Maria antecipa o novo rosto da humanidade e da religião, quebrando
protocolos, abandonando rituais, interagindo diretamente com o divino: “Como
acontecerá isso, se eu não conheço homem algum?” (v. 34). Ela compreende
que é possível dialogar com Deus e até questioná-lo, afinal, Ele quis ser um de
nós! Mais que percepção e cognição, o verbo conhecer (em grego: ginw,skw – guinôsko) na tradição bíblica
significa intimidade, e até mesmo relação sexual; é nesse sentido que Lucas o emprega aqui. É o
mesmo que afirmar que Maria disse “Como isso pode acontecer, se eu não tenho
relação com homem algum?”. De fato, embora já fossem considerados marido e
mulher, na primeira etapa do casamento não era permitido ter relação sexual. A fé
autêntica não está imune a questionamentos, pelo contrário. Na pergunta de
Maria, Lucas antecipa o modelo ideal de discipulado: crente, confiante,
perspicaz e questionador. Com a crescente mercantilização do sagrado, o exemplo
questionador de Maria se torna cada vez mais necessário no discipulado de
Jesus; isso vale para todos os tempos.
À humanidade questionadora,
Deus não responde com castigo, como muitos ainda hoje pregam. A resposta de
Deus, através do anjo, é de quem acredita no ser humano e tem paciência com
ele, bem típico do Deus de Jesus: “O Espírito virá sobre ti, e o poder do
Altíssimo te cobrirá com sua sombra. Por isso, o menino que vai nascer será
chamado Santo, Filho de Deus” (v. 35). Além da capacidade de Deus agir de
modo completamente novo, extraordinário e surpreendente, a concepção divina de
Jesus, dispensando a intervenção masculina, marca também um rompimento com a
tradição familiar patriarcal. A figura masculina deixa de ser o centro da
família e da sociedade, preconizando uma sociedade marcada pela igualdade nas
relações.
Ainda em resposta ao
questionamento de Maria, o mensageiro de Deus cita o exemplo de Isabel, uma anciã
considerada estéril, porém fecundada graças à intervenção divina. Os dois
casos, uma anciã estéril e uma jovem virgem grávidas, ressaltam a grandiosidade
de Deus, comprovam que para Ele nada é impossível (v. 37). Como é a partir das
dúvidas que a fé se torna sólida, Maria chega à conclusão da veracidade do
anúncio e se prontifica a colaborar decisivamente com o projeto de Deus para a
construção de um mundo novo e de uma humanidade renovada: “Eis aqui a serva
do Senhor” (v. 37a). Mais que uma prova de humildade, a resposta de Maria é
uma profissão de fé, amor e confiança. Com a expressão “a serva do Senhor”
(em grego: h` dou,lh kuri,ou – hé
dulé tu kyriu), Maria não dá uma declaração de humildade, mas se apresenta como
colaboradora de Deus. Ora, no Antigo Testamento, “servo do Senhor” era um
título de honra, aplicado apenas a figuras masculinas, tanto síngulas quanto
corporativas. Aplicando a si, Maria diz que também as mulheres podem ser
colaboradoras de Deus e de seu plano salvífico.
O consentimento livre e
espontâneo demonstra a autonomia e a confiança de Maria: “faça-se em mim
segundo a tua palavra!” (v. 37b). Naquelas circunstâncias sócio-históricas,
a mulher não tinha nenhum poder de decisão; só o pai ou o marido poderiam
decidir por ela. Ao ser consultada e responder sozinha, sem pedir permissão a
nenhum homem, Maria rompe completamente com os condicionamentos culturais da
época, tirando a mulher da humilhante situação de submissão. Assim, ela
preconiza a total emancipação da mulher. Abrindo-se com disponibilidade para o
cumprimento da palavra, ela se torna exemplo de discípula.
Podemos, então, concluir que o
maior exemplo de preparação para a acolhida do Senhor é Maria. Com seu
testemunho de fé no Senhor, espírito questionador, automia e coragem, ela se
torna modelo e exemplo para o discipulado de todos os tempos. Para sentir os
sinais da sua vinda/presença, o Senhor nos convida, através do exemplo de
Maria, a olhar para as margens, ouvir os silenciados de sempre e, assim,
construir uma nova história.
Mossoró-RN, 23/12/2017, Pe.
Francisco Cornelio F. Rodrigues
Simplesmente o Padre Francisco Cornélio foi incrível no seu texto rico e meditativo! Obrigado Padre amigo!
ResponderExcluirSimplesmente maravilhoso esse comentário. Como sempre o Pe. Francisco Cornélio nos dá uma aula de vida muito rica. Suas palavras nos fazem sentir a presença de Deus ao nosso lado. Obrigado.
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