Com a liturgia deste terceiro domingo do tempo
comum, iniciamos propriamente a leitura contínua do Evangelho Segundo Marcos. O
texto proposta, Marcos 1,14-20, nos situa no início da vida pública de Jesus,
destacando seus primórdios na Galiléia com o anúncio do Reino de Deus e o
chamado aos primeiros discípulos para o seu seguimento. Podemos dizer que se trata
de um texto paradigmático para a comunidade cristã de todos dos tempos.
Três acontecimentos antecedem o nosso texto: a
pregação de João Batista (cf. Mc 1,2-8), o batismo de Jesus (cf. Mc 1,9-11), e
as tentações no deserto (cf. Mc 1,12-13). Esses são acontecimentos
introdutórios, que fazem parte da preparação para o início da pregação de Jesus
e, consequentemente, da execução do seu programa.
Como o texto mesmo deixa claro, é o início de
uma nova etapa: “Depois que João foi preso, Jesus foi para a Galiléia” (v.
14a). Essa primeira afirmação é muito importante. A prisão de João se torna um
divisor de águas na vida de Jesus e na história da salvação. O advérbio
temporal grego Meta. = metá visa enfatizar que, embora haja
continuidade, as missões do Batista e de Jesus não coincidem, fazem parte de
etapas diferentes da história. Como a sina dos profetas sempre foi a
perseguição, a prisão de João significa que sua missão alcançou seu objetivo.
Aqui, o evangelista usa o verbo “entregar”, de modo que a tradução mais compatível
com o texto original seria “depois que João foi entregue”; é o mesmo verbo
aplicado a Jesus na paixão (cf. Mc 14,10 ). Esse detalhe, aparentemente
simples, enfatiza ainda mais a peculiaridade de sua missão. Ora, é entregue
aquele que incomoda, quem anuncia a verdade em um mundo marcado pela mentira. Assim
foi a missão do Batista.
À medida em que o Batista sai de cena, entra Jesus: “Jesus
foi para a Galiléia”. Aqui está o primeiro sinal de ruptura, ou seja, as
diferenças entre os dois personagens começam a aparecer. Ora, João tinha
desenvolvido sua atividade na Judéia, às margens do rio Jordão, e Jesus tinha
participado dessa atividade como discípulo seu, provavelmente, esperando o
momento de apresentar-se como autônomo em relação aos homens, e dependente
somente do Pai Eterno. Uma vez cumprida a missão do Batista, Jesus inicia a sua
com proposta e metodologia completamente novas.
Enquanto realizada na Judéia, a missão do Batista visava
purificar judeus, através, do batismo, para reintegrá-los à religião oficial,
ou seja, ao templo. Era na Judéia que estava Jerusalém com seu magnífico
templo. Jesus, ao contrário, veio para incluir pessoas no Reino de Deus, e não
para recrutar devotos para o templo. Por isso inicia a sua atividade longe da
sede da instituição religiosa, como diz o texto: “foi para a Galiléia”, ou
seja, para onde estavam os marginalizados, um povo semi-pagão. Portanto, mais
que uma mudança geográfica, a ida de Jesus para a Galileia representa uma
mudança de perspectiva. Os galileus eram considerados perigosos pela religião
oficial; um povo rebelde e subversivo. É no meio desse povo rotulado
negativamente que Jesus começa a agir.
A pregação de Jesus consistia no anúncio do Reino de Deus como
algo urgente: “o tempo já se completou e o Reino de Deus está próximo.
Convertei-vos e crede no Evangelho” (v. 15). A compreensão do
cumprimento do tempo é essencial na pregação de Jesus. O evangelista se refere
ao tempo com o termo grego kairo.j = kairós, que não significa o
tempo cronológico, mas o tempo oportuno e favorável, uma oportunidade única que
não pode ser desperdiçada. De fato, em um mundo insuportável, marcado pelas
injustiças e opressão, com lideranças religiosas e políticas totalmente
corrompidas, a oportunidade de criação de um mundo novo não poderia ser
desperdiçada.
O Reino de Deus (em grego: h` basilei,a tou/ qeou/ - hé basileia tú Theú), conteúdo da pregação de Jesus, consiste exatamente
na alternativa de mundo e sociedade ao sistema vigente na época; é claro que
essa proposta continua válida ainda hoje, e até com mais urgência.
O Reino de Deus não é uma resposta de esperança em um
bem-estar futuro, mas a proposta de Deus para o hoje da história. Essa proposta
consiste em uma sociedade com novas relações, baseadas na justiça, no amor, no
perdão e no serviço; um mundo marcada pela igualdade e fraternidade. Podemos
resumir o Reino de Deus como a realização plena da vontade da sua vontade neste
mundo. Esse Reino “está próximo”, diz Jesus, porque é Ele o Reino em
pessoa. Mais que a temporalidade do Reino, a forma verbal “está próximo”
exprime a sua materialidade. Essa proximidade do Reino será evidenciada pelo
modelo de vida de Jesus e pelos sinais realizados por Ele, os quais dirão que o
Reino, de fato, chegou.
Para participar do Reino não são necessários
rituais de purificação, mas apenas conversão e adesão ao Evangelho: “Convertei-vos
e crede no Evangelho” (v. ). A necessidade de conversão é uma constante na
vida do seguidor de Jesus. O convite à conversão, expresso pela forma verbal
grega “metanoei/te – metanoeite”, não significa intensificar as práticas penitenciais e
devocionais, nem melhorar um pouco, nem rezar mais... significa mudar
radicalmente o jeito de ser, de pensar e de agir. Essa mudança de mentalidade
se torna verificável na vida da pessoa pela adesão ao Evangelho. Crer no
Evangelho significa aceitar o anúncio de Deus por meio de Jesus Cristo, tomando
suas palavras como verdadeiras e portadoras de libertação. É acreditar que um
anúncio só pode ser bom e edificante se tiver como base a mensagem libertadora de
Jesus de Nazaré.
Conhecedores da atividade e pregação de Jesus (vv. 14-15), o evangelista
nos apresenta o início da formação do discipulado: “E,
passando à beira do mar da Galiléia, Jesus viu Simão e André seu irmão, que
lançavam a rede ao mar, pois eram pescadores” (v. 16).
O mar é sinônimo de hostilidade e perigo na mentalidade bíblica. Embora
esse da Galiléia fosse apenas um lago, o evangelista denomina de mar numa
perspectiva teológica. Quer dizer que Jesus não fazia distinção de ambientes,
não temia perigos e enfrentava as adversidades com naturalidade. A “beira do
mar” é um lugar de circulação de pessoas de diversas proveniências, expressa
pluralidade e diversidade, além de perigo.
Ao invés da comodidade dos átrios do templo,
por onde circulavam as pessoas “santas”, Jesus prefere circular em meio ao
perigo, entre as pessoas sem reputação. Com base no que vê, e não no que diz a
doutrina, Ele escolhe seus primeiros seguidores. As pessoas não são escolhidas
por Ele enquanto estão rezando ou praticando atos devocionais, mas enquanto
estão trabalhando; é para o cotidiano das pessoas que Jesus olha e chama. Ele
não faz uma pesquisa de opinião pública, não pede cartas de recomendação, não
vai aos lugares sagrados observar quem tem “cara de santo”.
A primeira chamado é direcionada a quatro, duas
duplas de irmãos: Simão e André, João e Tiago (vv. 16-20), todos pescadores.
Esse número simbólico representa, com muita probabilidade, os quatro pontos
cardeais, acenando para a universalidade do Reino e do Evangelho. O convite é
direcionado a pessoas de todos os lugares, dos quatro cantos da terra. O
mandato é simples: “Segui-me e eu farei de vós pescadores de homens” (v.
17).
Ao impertativo “segui-me” (em grego: ovpi,sw mou – ópisso mú), literalmente “venham atrás de
mim”, corresponde a necessidade do discípulo viver como Jesus vive. Segui-lo
é configurar-se ao seu modo de vida. É um convite para o desprendimento e para
que os discípulos se coloquem em estado constante de aprendizado. Somente
andando atrás do mestre o discípulo poderá caminhar na direção certa. Aqui, Ele
se distancia completamente do modelo de mestre do seu tempo, estabelecendo uma
nova concepção: enquanto os rabinos do seu tempo eram procurados por candidatos
ao discipulado, é Jesus mesmo quem busca e escolhe os seus discípulos.
A expressão “pescadores de homens” (v. 17b) é muito passível de
interpretações equivocadas que podem distanciar e distorcer o sentido aplicado
pelo evangelista, como tem acontecido. Geralmente, se tem usado ela para
justificar as mais diversas formas de proselitismos e até abusos, o que nunca
esteve nos planos de Jesus. É necessário, portanto, compreender o sentido do
mar (grego: qa,lassa – thálassa) para
o mundo bíblico: é sinônimo de perigo; evoca morte e domínio do mal. Portanto,
ser “pescador de homens” é ser sinal de vida, tirar seres humanos das
mais diversas situações de morte causadas pelos pseudo-reinos. Assim é a missão
dos seguidores de Jesus: restituir aos homens e mulheres, ou seja, à
humanidade, a vida e a dignidade, livrando-a de todas as ameaças à vida em
plenitude: a violência, o ódio, a corrupção, a injustiça, a fome, e todos os
males nos quais a humanidade possa “afogar-se”.
A resposta positiva dos primeiros discípulos é uma interpelação aos
cristãos de todos os tempos: converter-se e acreditar no Evangelho são as
condições necessárias para fazer parte do Reino de Deus. A autenticidade dessa conversão
depende do seguimento fiel a Jesus. Para isso, é necessário deixar tantas redes
que continuam a prender e atrapalhar o seguimento do Mestre. Uma vez que o
Reino tornou-se próximo, e essa oportunidade única não pode ser desperdiçada,
criemos coragem de deixar imediatamente, como os quatro primeiros, todos os
obstáculos ao seguimento.
Mossoró-RN, 19/01/2017, Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues
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