O texto evangélico que a
liturgia propõe para este domingo de ramos é a versão de Marcos da narrativa da
paixão e morte de Jesus: Mc 14,1 – 15,47. São dois capítulos inteiros que
narram os últimos momentos de Jesus com a comunidade de discípulos, a sua condenação,
o flagelo, a morte e o sepultamento. A grande extensão do texto nos impede de
construir uma reflexão mais detalhada e pontual; por isso, consideraremos
apenas alguns aspectos específicos do longo relato, procurando colher a
mensagem global do texto.
Como sempre, consideramos
essencial o conhecimento do contexto para uma compreensão adequada do texto em
si. Os relatos da paixão e morte de Jesus constituem o ápice dos evangelhos. É claro
que o nosso foco nesse ano é especificamente o relato de Marcos, mas muitos
aspectos introdutórios valem também para os demais evangelhos. Ora, as primeiras páginas escritas dos livros que hoje conhecemos como evangelhos, foi exatamente as
narrativas da paixão e morte de Jesus e, por sinal, foi Marcos o primeiro evangelho.
Como a catequese e a vida
litúrgica das primeiras comunidades priorizava a ressurreição, logo muitas
dúvidas surgiram a respeito, tipo: como viveu e como morreu aquele que ressuscitou? A
primeira necessidade, então, diante de tais questionamentos, foi contar como se deu a morte de Jesus, até porque as comunidades
começavam a sofrer perseguições tanto da parte do poder político romano quanto
da religião judaica. Inclusive a morte começava a se tornar uma realidade
também para aqueles que insistiam em anunciar o Cristo Ressuscitado. Para quem
não tinha convivido com Jesus, tornava-se cada vez difícil acreditar no seu
nome. Para animar e fortalecer uma comunidade ameaçada pela perseguição, nada melhor
que reconstruir a memória da perseguição e morte de Jesus, priorizando sua
fidelidade aos propósitos do Pai e sua resistência. Os evangelhos surgem, portanto, como resposta às
dúvidas e crises vividas pelas primeiras comunidades.
É claro que toda a vida de
Jesus, desde o início com a pregação do Batista, é edificante para as
comunidades cristãs. Mas, a memória da sua paixão foi a primeira necessidade
para dar credibilidade ao anúncio da ressurreição. Embora seja o mais breve e
sóbrio, o relato da paixão em Marcos pode ser considerado, paradoxalmente, o
mais completo dos quatro. Não se trata de um anexo do Evangelho, como alguns
consideram, mas de uma conclusão preciosa de uma vida que não poderia ter um
fim diferente. Ora, desde o início, a vida de Jesus foi uma alternativa a todos
os sistemas vigentes, político e religioso. Logo, seu desfecho final foi o rechaço da parte desses sistemas.
Durante toda a sua trajetória
terrena Jesus praticou e pregou o que a religião e o sistema político da época não aceitavam: o amor ao próximo, a justiça, o cuidado com os mais necessitados, a
solidariedade e o bem acima de tudo. Uma vida marcada por estas características
não poderia ter outro fim, senão a condenação e morte precoces. É importante perceber
que a cruz, a pior das penas aplicadas na época, não foi opção nem acidente,
mas consequência de uma trajetória marcada pelo inconformismo diante das
atrocidades do sistema.
Jesus não se adequou aos padrões
de comportamento da época: não foi um cidadão exemplar, nem um devoto fiel. Foi
nessa perspectiva que Marcos construiu o seu relato da paixão e morte de Jesus,
evidenciado, melhor que qualquer outro evangelista, a humanidade de Jesus e o
fracasso de uma comunidade quando não persevera ao lado do mestre, mesmo no
sofrimento. Dito isto, procuremos destacar alguns elementos pontuais do texto,
considerados essenciais.
Um primeiro aspecto que
destacamos, por sinal negativo, é a dispersão da comunidade: “Então todos o
abandonaram e fugiram” (14,50). Os discípulos, também sedentos por mudanças,
sentem-se frustrados à medida em que percebem que o projeto de Jesus não
corresponde às suas expectativas. No início do evangelho, Marcos tinha afirmado que, diante do chamado de Jesus ao seguimento, “os
discípulos abandonaram tudo e seguiram Jesus” (1,18.20). Agora, é a Jesus que eles abandonam. Judas tinha acabado entregá-lo, Jesus está
sendo preso, e os discípulos lhe faltam com a mínima solidariedade. O mais
resistente, o último a fugir, é um jovem anônimo (cf. 14,51-52) que não fazia
parte do seleto grupo dos doze. A fuga dos discípulos é sinônimo de medo e
covardia, mas também de decepção com o pretenso messias.
Além da traição de Judas e da
fuga dos demais, outros aspectos negativos dos discípulos também são
evidenciados por Marcos. Tendo já denunciado a falta de perseverança na oração
(cf. 14,32-42), o evangelista denuncia também a superficialidade no seguimento:
“Pedro seguiu Jesus de longe” (14,54a). Seguir de longe é não
comprometer-se. Embora os demais nem de longe estivessem mais seguindo, não é
admissível na comunidade um discipulado superficial. Quem segue de longe não
suporta a pressão nem a perseguição, por isso está fadado à renegação, como de fato
aconteceu com Pedro: “Nem conheço esse homem de quem estais falando” (14,71b).
O evangelista deixa claro, com isso, que não pretende denunciar com seu relato somente
as forças externas que perseguem a comunidade; também de dentro da comunidade podem
surgir muitas forças tão danosas ao seu crescimento quanto os poderes externos.
O duplo julgamento de Jesus, um
político e outro religioso, ou seja, diante do sinédrio e de Pilatos (cf. 14,53-65;
15,1-15), mostra a união das forças hostis, pois judeus e romanos não se
suportavam, quando tem um inimigo em comum. O sinédrio, órgão jurídico máximo do
judaísmo, o acusa de blasfêmia, e ao poder romano ele será denunciado como
subversivo e agitador, alguém que pretende ser rei (15,2). Esses dois poderes estavam viciados na corrupção, no
suborno e na mentira; mantinham um relacionamento de conveniência, tendo o povo
pobre como alvo de suas cobiças. O movimento de Jesus surgiu como alternativa a
tudo isso; logo, a repressão seria inevitável.
A cruz é decretada como pena
exemplar para Jesus. Em plena páscoa, sua festa máxima, a religião judaica não
hesita em condenar quem lhe ameaça. Não obstante tanto sofrimento, Jesus
manteve-se firme em seus propósitos e na confiança no Pai. Não hesitou, mesmo
não escondendo sua humanidade. Gritou de dor, lamentou-se, mas não abriu mão de
suas convicções. Em meio ao suplício e ao abandono dos seus, Jesus faz prevalecer
as convicções de seguir até o fim. Aquele projeto de vida nova, com justiça,
igualdade e amor sem distinção não poderia ser jogado fora de repente. O rosto
amoroso do Pai que ele veio revelar não poderia ser escondido.
A cruz veio, portanto, como
consequência de uma vida toda marcada pelo amor. E, nele, ao invés de ser
simplesmente sinal de condenação, a cruz se tornou sinal de salvação e de
reconhecimento do seu amor e de sua pertença a Deus. Na cruz ele foi
escarnecido e humilhado, mas também reconhecido em sua mais profunda
identidade: “Na verdade, este homem era Filho de Deus!” (15,9c).
Surpreende que essa declaração não saiu de nenhum discípulo, mas de um soldado
romano. Isso é significativo em dois aspectos, principalmente: primeiro,
porque é na morte de cruz que a identidade de Jesus é plenamente revelada;
segundo, porque daquele momento em diante, todos, independentemente da etnia e
da religião, podem conhecer o rosto verdadeiro de Deus revelado no seu filho
amado.
O reconhecimento do centurião é
mencionado após o evangelista dizer que “a cortina do santuário rasgou-se de
alto a baixo, em duas partes” (15,38). Esse dado simbólico significa a falência completa
da religião que tinha acabado de matar Jesus. A cortina ou véu do santuário
marcava a divisória do espaço sagrado do templo. Jesus, mesmo morrendo, mostra
sua força; consegue abolir as divisões e rótulos impostos pela religião. De
agora em diante, conhece a Deus quem segue o seu filho até as últimas
consequências, quem vê na cruz instrumento de libertação e não mais quem
frequenta o templo e pratica a lei.
A comunidade de Marcos foi
edificada e fortalecida a partir deste relato. Compreendendo a fidelidade com
que Jesus abraçou o projeto de tornar o Reino de Deus acessível a todos, é
possível perceber que a morte não é capaz de destruir a vida de quem se dedica
dessa maneira ao bem de todos. A presença do Ressuscitado se tornou certeza na comunidade
porque percebeu-se que Deus não abandona jamais um projeto quando esse é conduzido
pelo amor. Também as comunidades de hoje são chamadas a fazer experiência
semelhante àquela de Marcos: perseverar com os crucificados de hoje, todos os
que lutam por um mundo de justiça, igualdade e amor, para que o Ressuscitado de
ontem continue a ressuscitar em cada coração hoje e sempre.
Roma, 25/03/2018, Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues
Belas palavras. E bem isso mesmo. Parabéns pelas postagens. Gostei de conhecer este blog.
ResponderExcluirParabéns pelo texto! Tomei conhecimento através da página Teologia da Libertação no facebook.
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